INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
IN DUBIO PRO REO
Sumário

Sumário:
(da responsabilidade da Relatora)
I. Os vícios elencados no n.º 2 do artigo 410º do CPP têm de resultar do contexto factual inserido na decisão, por si, ou em confronto com as regras da experiência comum, ou seja, tais vícios apenas existirão quando uma pessoa média facilmente deles se dá conta.
II. Pode ler-se no Acórdão do STJ, relatado pelo Senhor Juiz Conselheiro João Silva Miguel, no processo n.º 502/08.0 GEALR.. de 24.02.2016, o seguinte, a propósito destes vícios: o vício previsto pela alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP verifica-se quando, da factualidade vertida na decisão, se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição: a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.
III. Quanto ao vício previsto pela alínea b) do n.º 2 do mesmo preceito legal, verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação - quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.
IV. Por fim, ocorre o vício previsto pela alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio.

Texto Integral

Acordam em Conferência os Juízes da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório:
Nos autos de Processo n.º530/21.0PHSNT.L1, o tribunal decidiu o seguinte:
A) Absolvo o arguido, AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º, nº 1, 155º, nº 1, alínea a), por referência aos artigos 131º e 132º, nº 2alínea l), todos do Código Penal, na pessoa do agente policial BB, por cuja prática vinha acusado.
B) Condeno o arguido, AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência a ordem de dispersão de reunião pública, previsto e punido pelo artigo 304º, nº 1, do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão.
C) Condeno o arguido, AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria, na forma agravada, previsto e punido pelo artigo 181º, nº 1, por referência aos artigos 184º e 132º, nº 2, alínea l), todos do Código Penal, na pessoa do agente policial, CC, na pena de 3 meses de prisão.
D) Condeno o arguido, AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º, nº 1, 155º, nº 1, alínea a), por referência aos artigos 131º e 132º, nº 2, alínea l), todos do Código Penal, na pessoa do agente policial, CC, na pena de 9 meses de prisão.
E) Condeno o arguido, AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º, nº 1, 155º, nº 1, alínea a), por referência aos artigos 131º e 132º, nº 2, alínea l), todos do Código Penal, na pessoa do agente policial, DD, na pena de 9 meses de prisão.
F) Condeno o arguido, AA, pela prática em autoria material, na forma consumada e concurso efectivo, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77º, do C. Penal, pelos crimes e penas fixadas em B) a E), na pena única de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão suspensa, na sua execução, nos termos do disposto no artigo 50º, do Código Penal, pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, sujeitando tal suspensão a regime de prova, nos termos do disposto nos artigos 53º e 54º, ambos do Código Penal impondo, igualmente, ao arguido, nos termos do disposto no artigo 54º, nº 3, do Código Penal, as obrigações aí mencionadas, a saber: 1) Responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social; 2) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência; 3) Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso; e 4) Obter autorização prévia do magistrado responsável pela execução para se deslocar ao estrangeiro.
Não conformado com tal sentença, veio o arguido, acima melhor identificado, interpor recurso para este Tribunal, juntando para tanto as motivações que constam dos autos, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, concluindo nos seguintes termos, que se transcrevem:
O recorrente foi condenado: (A) pela prática em autoria material, na forma consumada e concurso efectivo, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77º, do C. Penal, pelos crimes e penas fixadas em B) a E), na pena única de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão suspensa, na sua execução, nos termos do disposto no artigo 50º, do Código Penal, pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, sujeitando tal suspensão a regime de prova, nos termos do disposto nos artigos 53º e 54º, ambos do Código Penal impondo, igualmente, ao arguido, nos termos do disposto no artigo 54º, nº 3, do Código Penal, as obrigações aí mencionadas.
(ii) Por outro lado, do texto do acórdão recorrido resulta a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a al. A), do nº 2, do art. 410º., do CPP.
(iii) Na apreciação da prova revela erro notório, conforme prevê o artigo 410º. Nº 2, al c) do CPP.
Em suma, nos presentes autos, não só ficou cabalmente provado que o recorrente praticou os crimes em que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pelos quais vem acusado e quanto à sua culpa, pelo que deve ser absolvido dos crimes em que foi condenado.
Respondeu o MºPº, pugnando pela manutenção da decisão, concluindo nos seguintes termos:
A sentença recorrida não padece do vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, nos termos e moldes em que o mesmo deve ser atendido, porquanto os factos apurados e constantes da decisão recorrida são suficientes para a decisão de direito verificada.
B. Por outro lado, a sentença recorrida não padece do vício de erro notório na apreciação da prova, cf. artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, porquanto o Tribunal a quo mais não fez do que extrair, a partir da prova produzida, conclusão perfeitamente lógica, não atentatória das regras da experiência comum, decorrente do exercício (tão legítimo quanto devido) da livre apreciação da prova.
C. O que o recorrente pretende fundamentalmente pôr em crise é o princípio da livre apreciação da prova; na verdade, do que se trata é da discordância do mesmo relativamente ao modo como a prova produzida foi apreciada pelo Tribunal a quo, designadamente, o seu próprio depoimento e os depoimentos dos agentes policiais que permitiram dar como provada (quase toda) a factualidade constante da acusação pública.
D. Sucede que, mesmo nos casos em que haja gravação da prova (como sucede(u) no caso concreto), o Tribunal da Relação não pode sindicar a valoração das provas, em termos de criticar o tribunal a quo por ter dado prevalência a uma(s) em detrimento de outra(s);
E. A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto jamais poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais e flagrantes erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto;
F. Como tal, necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o Tribunal indique os fundamentos suficientes para que se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado, o que foi feito - e bem feito - na sentença recorrida.
G. Tendo em conta a prova produzida e a fundamentação do enquadramento fáctico, é manifesto que a sentença recorrida fez uma acertada e ponderada apreciação da prova produzida em audiência de julgamento.
H. Pelo exposto, a sentença recorrida não merece qualquer censura, não padece de qualquer vício (mormente, aqueles que vêm invocados na peça processual a que se responde), achando-se em absoluta conformidade com a lei.
Neste Tribunal o Ilustre Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Foi cumprido o disposto no artigo artº 417º nº 2 do CPP.
Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se á conferência.
2. Fundamentação:
Cumpre assim apreciar e decidir.
Vejamos então.
***
É a seguinte, a decisão sob recurso (fundamentação de facto):
1. FUNDAMENTAÇÃO
Da Matéria de Facto
Discutida a causa, e de relevante para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia ... de ... de 2021, cerca das 00h00, o arguido AA encontrava-se numa festa de aniversário na via pública na ..., em ..., juntamente com mais cerca de trinta pessoas.
2. Por haver notícia de desacatos na mencionada festa, uma patrulha da Polícia de Segurança Pública, composta pelos agentes CC, BB e DD, todos devidamente uniformizados, deslocou-se ao local mencionado em 1.
3. Aí chegados, os agentes da Polícia de Segurança Pública encontraram o referido aglomerado de cerca de 30 (trinta) indivíduos, e entre eles o arguido, a quem deram ordem de dispersão e de saída do local, informando-os de que incorriam na prática de um crime de desobediência caso não cumprissem a referida ordem.
4. Não obstante ter compreendido a ordem que lhe fora dada pelos agentes policiais, bem como das suas consequências, o arguido manteve-se no local, recusou sair dali e incitou os restantes indivíduos que estavam a dispersar a não saírem também.
5. A dado momento, o arguido, dirigindo-se aos elementos policiais, em tom alto e sério, disse-lhes “daqui não saio, daqui ninguém me tira, vocês não mandam cá, o Bairro é nosso, bófias filhos da puta”.
6. O arguido manteve a recusa de sair do local mesmo depois de ter sido novamente advertido pelos aludidos agentes da Polícia de Segurança Pública de que incorria na prática de um crime de desobediência caso não o fizesse, do que ficou ciente.
7. Por manter a recusa de dispersar do local, o arguido foi detido, algemado e conduzido à Esquadra da Polícia de Segurança Pública de ..., sita na ..., em ....
8. No percurso entre a dita ..., em ... e a Esquadra da Polícia de Segurança Pública de ..., o arguido dirigindose aos elementos policiais, em tom alto e sério, disse-lhes “filhos da puta, mato-vos a todos bófias do caralho”.
9. Com o sucedido o agente CC sentiu-se vexado na sua honra, consideração, credibilidade e prestígio pessoal e profissional.
10. Os referidos agentes policiais, CC e DD escutaram as palavras que o arguido lhes dirigiu e recearam que o mesmo concretizasse os atos nelas contidos.
11. O arguido sabia que lhe incumbia obedecer à ordem de se retirar do aglomerado de pessoas que se encontravam na via pública, bem como que os agentes da Polícia de Segurança Pública se encontravam ali no exercício dessas suas funções e que tinham competência legal para lhe exigir que lhes obedecesse.
12. O arguido agiu com o propósito, concretizado, de não cumprir a ordem que lhe foi dada, bem sabendo que a mesma era legítima, emanada de autoridade competente no exercício das suas funções e que lhe foi regularmente comunicada.
13. Com a conduta atrás descrita, o arguido agiu com o propósito, concretizado, de atingir a honra, a consideração, a credibilidade e o prestígio pessoal e profissional do agente policial CC, bem sabendo que era agente da Polícia de Segurança Pública e que se encontrava ali no exercício destas suas funções.
14. Agiu ainda o arguido com o propósito, concretizado, de utilizar as descritas expressões, que sabia serem adequadas a lesar os sentimentos de segurança e liberdade e a paz individual daqueles agentes policiais, CC e DD, bem como serem as mesmas adequadas a causar-lhes receio, medo e inquietação
15. O arguido agiu, em todas as circunstâncias descritas, de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei.
16. O arguido tem antecedentes criminais registados, conforme resulta do CRC, actualizado, de fls. 80 e 81, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo sido julgado e condenado pela prática de um crime de violência doméstica na forma tentada, por factos datados de .../.../2016 e sentença transitada em julgado em .../.../2017, na pena de 3 anos de prisão efectiva, declarada extinta por cumprida.
17. O teor do Relatório Social do arguido, elaborado pela DGRSP, constante de fls. 76 a 78, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e que termina por concluir que: “Trata-se de um jovem adulto que apresenta como fatores negativos uma vivência familiar conflituosa com o progenitor, com repercussões severas no seu comportamento neste âmbito, baixa escolaridade, assim como um trajeto de vida assinalado pelo convívio com grupo de pares em contexto marginal, designadamente associado ao consumo de estupefacientes. Acresce ainda um discurso por parte do próprio que parece refletir uma atitude minimizadora sobre a referida problemática aditiva. Desde a data dos factos constantes nos autos, e após o cumprimento de pena efetiva de prisão, o arguido tem integrado predominantemente o agregado familiar da mãe, padrasto e irmãs, em ambiente aparentemente caracterizado por maior estabilidade relacional entre os elementos, e do qual tem beneficiado de apoio afetivo e material. Mais recentemente, passou a coabitar com a companheira, a fim de conseguir maior autonomia habitacional. Concluiu o 9º ano e conseguiu uma colocação laboral na atual entidade empregadora, em regime efetivo, o que lhe tem permitido dispor de uma situação económica favorável ao suporte das suas despesas correntesA relação com o grupo de pares parece distanciar-se dos contornos anteriormente assumidos, situação que também surge implicitamente associada à evolução da sua situação jurídico-penal. A manutenção do consumo de estupefacientes assumido por o arguido, subsiste como fator negativo no atual contexto de vida, o qual o arguido tende a desvalorizar no seu impacto em termos pessoais e sociais.”.
18. O arguido é solteiro; é servente de armazém de profissão auferindo quantia não concretamente apurada.
* Estes os factos provados e nada mais, nomeadamente, do alegado, de relevante para a decisão da causa, resultou provado.
* Discutida a causa, e de relevante para a decisão da mesma, não resultaram provados os seguintes factos:
a. Que ao actuar conforme descrito em 8, 10 e 14, da matéria de facto provada supra, o arguido se tenha dirigido ao agente policial BB.
* Fundamentação da Decisão de Facto
A decisão sobre a matéria de facto formou-a, este tribunal, com base na apreciação crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, sendo que a convicção do tribunal, relativamente aos factos que considerou provados e não provados, teve por base as declarações prestadas pelo arguido, em audiência de julgamento, que se traduziram em não assumir os factos e os depoimentos prestados pelas testemunhas, os três agentes policiais, devidamente conjugados e confrontados, bem como concatenados entre si, na inexistência de prova documental relevante resultando, no essencial, de forma segura e credível, corroborado o teor da acusação pública, com a excepção de um dos crimes de ameaça agravada imputados ao arguido. Na verdade, o arguido no inicio da audiência e em exercício de direito que lhe assiste não prestou quaisquer declarações, porém finda a produção da prova prestou declarações, que se traduziram em negar a prática de todos os factos imputados, relatando que no dia dos factos estavam numa festa de aniversário, cerca de 12 pessoas na rua, entre os quais se encontrava o arguido quando apareceu a PSP, altura em que algumas das pessoas saíram do local, com a excepção de 5 pessoas, o arguido e mais 4 pessoas.
Na verdade, continuou, a PSP chegou ao local a gritar que tinham que se ir embora, com cassetetes e o arguido disse que não havia COVID e que não era o tempo da pide, considerando e dizendo que a PSP não tem autoridade para mandar as pessoas e que não tinha que ir para casa. Insistiu que eram 5 pessoas e que a lei do COVID nada explica. Negou que alguém tenha arremessado objectos aos agentes policiais.
Foi nestas circunstâncias, disse o declarante, que a PSP levou o arguido ao chão e o algemou e foi conduzido á esquadra onde foi agredido o tempo todo, por várias pessoas, tendo-lhe partido as rastas e não o deixaram fazer uma chamada.
Prestou, assim, declarações de natureza presencial, porquanto envolvido na situação, negando a prática dos factos, de forma desculpabilizante, tendo sido o declarante agredido pela PSP, sempre denotando total desrespeito pela autoridade policial, demonstrando agressividade, não assumindo credibilidade por si só consideradas e não encontrando qualquer sustentação através da demais prova produzida em audiência.
Na verdade, prestou depoimento CC, Agente Principal da PSP, que disse que conheceu o arguido no dia dos factos, explicando que na altura eram proibidos os ajuntamentos na via pública por força da pandemia e que tiveram noticia de uma festa que decorria na rua e que havia agressões, pelo que o depoente e os seus colegas chegados ao local confirmaram que decorria a dita festa com cerca de 20 pessoas, pelo que foi determinada a ordem de dispersão, com a advertência que se não o fizessem incorriam na prática de um crime de desobediência.
Foi nestas circunstâncias que o arguido não acatou a ordem, enfrentando a PSP e dizendo-lhes “daqui não saio, daqui ninguém me tira, vocês não mandam cá, o Bairro é nosso, bófias filhos da puta”. Perante tal atitude, voltou a ser advertido e o arguido não só não cumpria o que lhe era determinado, assim como incitava os demais a não se irem embora.
Assim, a situação que já estava controlada, descontrolou-se, por força do incitamento do arguido, pelo que tiveram que pedir apoio. Assim, avançaram e voltaram a mandar o arguido sair da via e uma vez que continuava a não cumprir, foi detido.
Mais, relatou, o depoente que durante o caminho para a esquadra o arguido manteve o seu comportamento sempre muito agressivo, difícil de controlar por força da agressividade, injuriando e ameaçando, comportamento que continuou a adoptar mesmo na esquadra para onde foi conduzido, dizendo “mato-vos mato-vos a todos”.
Mais, confirmou o depoente que se sentiu injuriado e que as ameaças mexem com o depoente, porquanto tem família. Terminou por dizer que nesse dia só detiveram o arguido, os demais acabaram por dispersar, mas houve arremesso de objectos á PSP.
Prestou depoimento de teor presencial, porquanto envolvido na situação, de forma lembrada, explicada, circunstanciada, lógica e segura, clara, imparcial, consonante, assim assumindo credibilidade e corroborando, no essencial, a acusação.
BB, Agente da PSP, disse conhecer o arguido somente do dia dos factos, relatando que se estava na altura do COVID e que se dirigiu aolocal onde verificou que estava um ajuntamento de cerca de 15 a 20 pessoas, na rua, e que alguns estavam a atirar objectos das janelas aos agentes policiais e mostravam-se muito exaltados. Foi nestas circunstâncias que o arguido foi mandado para casa por várias vezes, assim como os demais, sendo advertido por vária vezes que incorria no crime de desobediência, caso não fosse comprida a ordem, sendo que os demais presentes acabaram por se afastar, porém o arguido não cumpriu, assumindo sempre comportamento agressivo, dirigiu-se á PSP injuriando-os, não conseguindo concretizar as expressões que o arguido utilizou.
Mais, disse não ter já memória se houve ameaças, assim como disse que não se lembra de injurias ou de ameaças concretas que tenham sido dirigidas ao depoente.
Terminou por dizer que não acompanhou o arguido á esquadra, porém esteve presente na esquadra, confirmando que o arguido nunca colaborou, o que levou a que estivesse sempre algemado. Prestou depoimento de teor presencial, porquanto envolvido na situação, de forma lembrada, ainda que menos lembrado que a testemunha anterior, explicada, circunstanciada, lógica e segura, clara, imparcial, consonante, assim assumindo credibilidade e corroborando, no essencial, a acusação pública, com a excepção dos factos atinentes ao crime de ameaça perpetrado pelo arguido em relação ao depoente.
DD, Agente da PSP, disse que conheceu o arguido no dia dos factos, confirmando os factos constantes da acusação, dizendo que o arguido proferiu injurias não se lembrando das expressões concretas utilizadas. Explicou que foi dada ordem de dispersão e que o arguido foi advertido que incorria no crime de desobediência caso não cumprisse, o que fizeram por mais de uma vez, contudo o arguido não cumpriu, sendo que o depoente ajudou a algemar o arguido, altura em que foram arremessados objectos á distância contra a PSP
Explicou que tanto no local, como na carrinha e na esquadra o arguido adoptou sempre o mesmo comportamento, sempre hostil, sempre dirigindo injurias aos agentes policiais, tendo ideia que também houve ameaças, ainda que não se tenha conseguido lembrar do seu teor concreto.
Mais, disse que acompanhou o arguido dentro da carrinha á esquadra, sendo que o arguido chegou a ter contacto físico com o agente CC que o tentava acalmar e na esquadra o arguido manteve-se sempre agressivo, atirava-se para o chão e sempre a injuriar os agentes policiais. Prestou depoimento de teor presencial, porquanto envolvido na situação, de forma lembrada, ainda que menos lembrado que a 1ª testemunha inquirida, explicada, circunstanciada, lógica e segura, clara, imparcial, consonante, assim assumindo credibilidade e corroborando, no essencial, a acusação.
Assim considerada a prova produzida em audiência, verifica-se que existem duas versões opostas, a do arguido e a dos agentes policiais, sendo que as declarações dos três agentes policiais foram prestadas de forma lembrada e explicada, espontânea, imparcial, porém no essencial consentânea entre si, assim assumindo credibilidade e descredibilizando a versão do arguido, assim sustentando a acusação quase na sua totalidade.
Na verdade, relativamente ao crime de desobediência o depoimento dos três agentes policiais sustentou de forma segura, lembrada e circunstanciada, credível, os factos atinentes a tal ilícito criminal, nomeadamente que o arguido foi por mais de uma vez advertido das consequências do não cumprimento da ordem de dispersão (incorria na prática de um crime de desobediência) e, ainda assim, o arguido mantinha o seu comportamento.
Quanto ao crime de injuria, também os três agentes policiais relataram que o arguido proferiu injúrias dirigidas aos agentes policiais, sendo que o 1º agente policial inquirido se lembrava das expressões que lhe foram dirigidas em concreto, ilícito criminal de injúria agravada praticado pelo arguido em relação ao agente policial CC.
Finalmente, também quanto aos crimes de ameaça agravada praticados nas pessoas dos agentes policiais CC e DD se mostram corroborados, de forma bastante e credível, os factos atinentes ao referido ilícito criminal, relativamente aos referidos agentes policiais, apenas não resultando corroborados, de forma bastante, os factos atinentes ao crime de ameaça agravada relativamente ao agente policial BB. Foram, igualmente, considerados os documentos relevantes dos autos, a saber, o Relatório Social do arguido, elaborado pela DGRSP, de fls. 76 a 78 e o CRC, actualizado, de fls. 80 e 81, dos autos, quanto aos antecedentes criminais registados do arguido.
***
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Atentas as conclusões do recurso, podemos delimitar o seu objeto à apreciação de uma única questão, a saber:
- se a sentença padece dos vícios referidos no artigo 410º, n.º2 alíneas a) b) e c), isto é, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou mesmo de um erro notório na apreciação da prova:
O arguido nas suas conclusões, muito sucintas, alude apenas à suposta verificação dos vícios a que alude o artigo 410º, n.º2 alíneas a) e c).
Vejamos então.
Estatui o artigo 410º, n.º2 do CPP que: mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum:
a. a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b. a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c. erro notório na apreciação da prova.
Através da consagração, no nº2 do artigo 410º do CPP, do recurso de revista alargada, o legislador pretendeu que o recurso de revista visasse, tal como preconizava a melhor doutrina, também a finalidade de obtenção de uma “decisão concretamente justa do caso, sem perder de vista o fim da uniformidade da jurisprudência” – Castanheira Neves, Questão de facto – questão de direito ou o problema metodológico da juridicidade, I Coimbra, 1967,p. 34 e seguintes.
Os vícios elencados no n.º2 do artigo 410º do CPP têm de resultar do contexto factual inserido na decisão, por si, ou em confronto com as regras da experiência comum, ou seja, tais vícios apenas existirão quando uma pessoa média facilmente deles se dá conta.
Pode ler-se no Acórdão do STJ, relatado pelo Senhor Juiz Conselheiro João Silva Miguel, no processo n.º 502/08.0 GEALR.. de 24.02.2016, o seguinte, a propósito destes vícios:
O vício previsto pela alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP verifica-se quando, da factualidade vertida na decisão, se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição: a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.
Quanto ao vício previsto pela alínea b) do n.º 2 do mesmo preceito legal, verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação - quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.
Por fim, ocorre o vício previsto pela alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio.
Especificamente quanto ao vício da contradição insanável, a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, refere-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 12 de março de 2015, Proc. n.º 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção, que «[o] vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».
Quanto a aquilo que seja o chamado erro notório na apreciação da prova, escreve Maria João Antunes, no seu Conhecimento dos vícios previstos no artigo 410º, n.º2 do CPP, p.120, que é de concluir por um erro notório na apreciação da prova, sempre que, para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo Tribunal, nisto se concretizando a limitação ao princípio da livre apreciação da prova estipulada no artigo 127º do CPP, quando afirma que a prova é apreciada segundo as regras da experiência.
Percorrida a decisão, não se vislumbram os vícios do artigo 410º do CPP. Na decisão estão explanados os factos que conduziram à decisão e a possibilitaram, não há qualquer contradição na fundamentação, nem tão pouco é notório qualquer erro na apreciação da prova. Nos factos provados e não provados nenhuma insuficiência se detecta.
Por outro lado, não há nenhuma contradição na matéria de facto, entre a matéria de facto e a respectiva motivação ou a qualificação jurídica dada.
O arguido, ao longo da sua motivação revela que não confessou os factos e que o tribunal não poderia ter fundado a sua convicção apenas no depoimento das testemunhas.
Conforme se pode ler acima, escreveu-se na sentença: Assim considerada a prova produzida em audiência, verifica-se que existem duas versões opostas, a do arguido e a dos agentes policiais, sendo que as declarações dos três agentes policiais foram prestadas de forma lembrada e explicada, espontânea, imparcial, porém no essencial consentânea entre si, assim assumindo credibilidade e descredibilizando a versão do arguido, assim sustentando a acusação quase na sua totalidade.
Na verdade, relativamente ao crime de desobediência o depoimento dos três agentes policiais sustentou de forma segura, lembrada e circunstanciada, credível, os factos atinentes a tal ilícito criminal, nomeadamente que o arguido foi por mais de uma vez advertido das consequências do não cumprimento da ordem de dispersão (incorria na prática de um crime de desobediência) e, ainda assim, o arguido mantinha o seu comportamento.
Quanto ao crime de injuria, também os três agentes policiais relataram que o arguido proferiu injúrias dirigidas aos agentes policiais, sendo que o 1º agente policial inquirido se lembrava das expressões que lhe foram dirigidas em concreto, ilícito criminal de injúria agravada praticado pelo arguido em relação ao agente policial CC.
Finalmente, também quanto aos crimes de ameaça agravada praticados nas pessoas dos agentes policiais CC e DD se mostram corroborados, de forma bastante e credível, os factos atinentes ao referido ilícito criminal, relativamente aos referidos agentes policiais, apenas não resultando corroborados, de forma bastante, os factos atinentes ao crime de ameaça agravada relativamente ao agente policial BB Foram, igualmente, considerados os documentos relevantes dos autos, a saber, o Relatório Social do arguido, elaborado pela DGRSP, de fls. 76 a 78 e o CRC, actualizado, de fls. 80 e 81, dos autos, quanto aos antecedentes criminais registados do arguido.
Claro está que o arguido não está obrigado a responder com verdade e por isso mesmo é lícito ao Tribunal dar credibilidade ao depoimento das testemunhas, prestado com conhecimento directo, isenção e credibilidade, em detrimento das declarações do arguido.
Defende também o recorrente que, em face da discrepância entre as declarações do arguido e das testemunhas, ter-se-ia criado uma dúvida quanto à verificação dos factos e que o tribunal a quo devia ter aplicado o princípio in dubio pro reo.
De acordo com o artigo 127º do CPP, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
A livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade, portanto, uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores (Cavaleiro de Ferreira, ob cit. P 11 e 27).
Neste sentido, o princípio que esse postula, como salienta Teresa Beleza o valor dos meios de prova … não está legalmente pré-estabelecido. Pelo menos tendencialmente, todas as provas valem o mesmo: o tribunal apreciá-las-á segundo a sua livre convicção.
O mesmo é dizer: a liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação dada pelo treino profissional, o saber de experiência feito e honesto estudo misturado ou na expressão feliz de Castanheira Neves, trata-se de uma liberdade para a objectividade. (RMP, ano 19, 40).
Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, da Universidade Católica Editora, salienta que o princípio constitucional de livre apreciação da prova é direito constitucional concretizado e não viola a constituição da república, antes a concretiza (ac. TC n.º1165/96, reiterado pelo ac. N.º 464/97): A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permitem ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efectiva motivação da decisão.
A Constituição da República e a Lei estabelecem limites endógenos e exógenos ao exercício do poder de livre apreciação da prova. Estes limites dizem respeito: ao grau de convicção requerido para a decisão, à proibição dos meios de prova, à observância do princípio do in dubio pró reo. Os três primeiros são limites endógenos ao exercício da apreciação da prova no sentido de que condicionam o próprio processo de formação da convicção e da descoberta da verdade material. O último é um limite exógeno, no sentido de que sentido de que condiciona o resultado da apreciação da prova.
O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis. Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.
Face ao que supra ficou dito inexistiam razões para que o tribunal a quo tivesse dúvidas sobre a veracidade dos factos imputados ao arguido e como tal não tinha que lançar mão do princípio in dúbio pro reo.
O princípio in dubio pro reo, como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. Afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal (cfr. Figueiredo Dias Dtº Processual Penal, pág 213).
Daí que a violação deste princípio só ocorra quando o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Não resultando que o tribunal tenha ficado na dúvida em relação a qualquer facto dado como provado não tem fundamento invocar a violação de tal princípio.
Não há na decisão recorrida qualquer omissão, insuficiência, ou qualquer erro notório na apreciação da prova, sendo, aliás, muito linear quer a prova produzida, quer a decisão.
Concluindo, não estando verificado nenhum dos vícios a que alude o n.º2 do artigo 410º, do CPP , entendemos ter a Mma Juiz a quo feito correcta interpretação dos factos e aplicação do direito e consequentemente, julgamos o recurso improcedente, confirmando na íntegra a decisão recorrida.
3. Decisão:
Assim, e pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas pelo arguido que se fixam em 4 UCS.
Notifique.

Lisboa, 10 de Julho de 2025
Cristina Isabel Henriques
Alfredo Costa
Hermengarda do Valle-Frias