I. A prescrição é um facto extintivo do direito invocado e, por conseguinte, o respectivo ónus de alegação e prova incumbe àquele contra quem é invocado o direito, in casu à ré, incumbindo-lhe o ónus de alegar e provar os factos constitutivos da excepção, de que fazem parte o início do prazo prescricional.
II. Efectivamente, só se verifica a prescrição pelo decurso do respectivo prazo, pelo que a determinação do início em que se começa a contar tal prazo é fundamental/determinante para averiguar da prescrição do direito invocado, fazendo, por isso, parte dos “factos constitutivos” da excepção, pelo que, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil é à ré que incumbe o respectivo ónus de provar o momento em que se inicia a prescrição, sem o qual, não se pode ter como certo que o prazo prescricional já decorreu, pelo que era à ré que incumbia provar que a autora teve conhecimento da existência dos certificados de aforro em momento que acarretasse o decurso do prazo de prescrição.
III. Como resulta da parte final do art. 679º do CPC, não é aplicável no recurso de revista a regra da substituição ao tribunal recorrido prevista, para o recurso de apelação, no art. 665º do CPC, não podendo, deste modo, o STJ apreciar as questões que o acórdão recorrido deixou por apreciar, por as mesmas terem ficado prejudicadas pela solução dada à questão da exceção da prescrição.
Tribunal da Relação de Lisboa – 6.ª Secção
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
AA intentou contra Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública - IGCP acção declarativa de condenação, com processo comum alegando, em síntese, que o seu pai era aforrista do IGCP e titular de certificados de aforro, série B de 9/1/90, 30/1/92 e 30/1/92, respectivamente de 2000, 1000 e de 1000 unidades, todos com o valor unitário de 500$00, tendo sido atribuído à autora poderes para a sua movimentação, mas quando o seu pai faleceu em .../98 e a autora lhe sucedeu como única herdeira, desconhecia a existência destes certificados de aforro, como consequência de doença de que padece e que a afecta seriamente na execução de várias competências, razão pela qual só em 2013 tomou conhecimento da existência destes títulos e se dirigiu a uma estação dos CTT, onde foi informada de que a conta do aforrista estava bloqueada, em virtude de o seu falecimento ter ocorrido há mais de 10 anos, dirigindo então a autora uma carta à ré, expondo-lhe o motivo de não ter reclamado antes os títulos, respondendo-lhe a ré, por carta de 24/9/2013, que mantinha a decisão de considerar prescritos os certificados de aforro por terem decorrido mais de 10 anos sobre a ocorrência do óbito, entendimento de que a autora discorda porque o prazo prescricional só deve ser contado a partir do ano de 2013, altura em que a autora tomou conhecimento do seu direito.
Concluiu pedindo a condenação da ré a transmitir-lhe a totalidade das unidades que constituem os certificados de aforro, através da emissão de novos certificados.
A ré contestou arguindo a excepção de prescrição e impugnando os factos alegados na petição inicial quanto ao desconhecimento da existência dos títulos por parte da autora.
Concluiu pedindo a procedência da excepção de prescrição e a improcedência da acção com a absolvição do pedido.
A autora respondeu à excepção de prescrição, defendendo que a mesma não se verifica.
Notificada a autora para liquidar o pedido e concretizar o critério utilizado para determinar o valor da acção, veio a autora indicar o valor de 43.340,18 euros para os certificados e para a acção.
Saneados os autos, procedeu-se a julgamento, findo o qual foi proferida sentença que julgou improcedente a acção e absolveu a ré do pedido.
Inconformada com esta decisão, interpôs a autora, AA, recurso de apelação, na sequência do que, na Relação de Lisboa, foi proferido o Acórdão que antecede, no qual, com um voto de vencido, se decidiu julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
De novo, inconformada com o mesmo, a autora, AA, interpôs o presente recurso de revista, nos termos do disposto no artigo 671.º, n.º 1, do CPC, para o Supremo Tribunal de Justiça, visando a revogação do acórdão revidendo, julgando-se procedente a acção, com a condenação da ré conforme pedido.
Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
A. Entre 9 de janeiro de 1990 e 30 de janeiro de 1992 o pai da recorrente subscreveu 4.000 unidades de certificados de aforro, no valor global de 2.000.000$00 (nº 3, dos factos provados);
B. O aforrista designou a sua filha e recorrente como movimentadora (nº 4, idem);
C. O aforrador faleceu em ... de1998, no estado de viúvo e sem qualquer outro descendente para além da recorrente (nº 2, idem);
D. Em janeiro de 1999 a recorrente comunicou o óbito do pai à Autoridade Tributária e apresentou a respetiva relação de bens, da qual não constam os certificados de Aforro (nº 5, idem);
E. No ano de 2012 foi celebrado um protocolo entre a recorrida e o Instituto dos Registos e Notariado na sequência do qual se começou a efetuar o cruzamento entre a base de dados dos aforristas e a base de dados dos óbitos (nº 10, idem);
F. A recorrida tomou conhecimento do óbito do aforrista em 2012 (nº 11. Idem);
G. Em 29 de junho de 2012 a recorrida transferiu o saldo dos certificados de aforro para o Fundo de Regularização da Dívida Pública (nº 12, Idem);
H. Em 28 de maio de 2013 o médico psiquiatra subscreveu Relatório Médico a atestar que a recorrente padece, desde há cerca de 20 anos, de transtorno depressivo recorrente, grave, de longa evolução, com reflexos significativamente negativos na esfera cognitiva e comportamental, com o subsequente défice na execução de competências nomeadamente pessoais(Doc nº 7 junto com a petição inicial);
I. Em 11 de junho de 2013 a recorrente remeteu carta à recorrida a solicitar o levantamento dos certificados de aforro (nº 8, idem);
J. Em 24 de setembro de 2013 a recorrida comunicou que os certificados de aforro estavam prescritos por terem decorrido mais de 10 anos sobre a ocorrência do respetivo óbito (nº 9, idem);
K. A testemunha BB no seu depoimento declarou que:
- Em 98 não teve conhecimento do óbito, porque ninguém lho comunicou;
- Em 2012 foi feito um protocolo de troca de informações com o IRN;
- Tendo então a recorrida tido conhecimento de imensos óbitos por comunicar;
- Nos quais se incluía o pai da recorrente;
- Pelo que em 29 de junho de 2012 o valor dos certificados de aforro foi entregue ao fundo de regularização da dívida pública;
- A recorrida não fez qualquer comunicação à movimentadora, ora recorrente, porque desconhecia a sua identidade, assim como desconhecia a morada e grau de parentesco;
- E também nunca enviou extratos ao titular, nem à movimentadora, porque não havia morada associada à conta do aforrista.
L. Por seu turno a testemunha CC no seu depoimento declarou que:
- A recorrente foi impedida de levantar os certificados de aforro, porque o pai tinha morrido há mais de dez anos (13.08.1998 / 12.06.2012 / 11.06/2013);
- Evento que terá ocorrido entre 13 a 15 anos após a morte do pai (1998 + 15 = 2013);
- A recorrente não era uma pessoa muito ativa e preocupada em resolver as coisas, sendo uma pessoa muito fragilizada pela morte da mãe e do irmão, nunca trabalhando, nem sendo desembaraçada, causando até admiração como é que tinha descoberto os certificados de aforro;
M. Por último a testemunha DD no seu depoimento declarou que:
- A recorrente não sabia dos certificados de aforro, tendo-os encontrado por mero acaso no meio de uma papelada alguns anos depois;
- Quando os encontrou já tinha passado o prazo, tentou-os levantar e não conseguiu (....08.1998 / 12.06.2012 / 11.06.2013)
N. Em 26 de junho de 2012 a recorrida bloqueou a conta do aforrista e transferiu os certificados de aforro para o Fundo de Regularização da Dívida Pública;
O. Daqui decorre que a recorrente poderia ter procedido ao levantamento dos certificados até 26 de junho de 2012;
P. Só que desconhecia a sua existência como o evidencia a relação de bens apresentada em janeiro de 1999;
Q. Sendo que a recorrente somente solicitou o levantamento dos certificados de aforro em 11 de junho de 2023;
R. Ou seja, de acordo com a prova produzida a recorrente somente teve conhecimento do direito que lhe assistia – a existência dos certificados de aforro, entre o dia 29 de junho de 2012 – data em que a recorrida bloqueou a conta do aforrista seu pai, e o dia11 dejunhode2013 –data em que a recorrente solicitou o seu reembolso à recorrida;
S. Ora a ter havido conhecimento em data anterior, impunha-se à recorrida fazer essa prova, nos termos do artigo 342 do Código Civil, porque foi ela que alegou a prescrição do direito da recorrente;
T. Não beneficiando a recorrida de qualquer presunção de negligência por parte da recorrente;
U. Mais a função da recorrida não é promover a reversão dos montantes pecuniários entregues por um particular a favor de uma entidade pública;
V. Bem ao invés sobre a recorrida impende a obrigação primordial do reembolso dos certificados de aforro, quando tal lhe for solicitado pelo aforrista ou pelos seus herdeiros;
W. Quer isto dizer que a apropriação pública do aforro privado tem de revestir natureza excecional, como seja a inação prolongada e injustificada do herdeiro do aforrista falecido;
X. Daqui decorre que não basta à recorrida impugnar os factos alegados pela recorrente e invocar a prescrição, é necessário que a recorrida invoque e prove os factos materiais que determinam o decurso do prazo prescricional;
Y. Cabendo-lhe, pois, o ónus de alegar e provar os factos constitutivos da exceção perentória, designadamente a prova do momento em que se iniciou a presunção;
Z. A prescrição é uma forma de extinção de um direito, pelo seu não exercício num determinado lapso de tempo, sancionando o respetivo titular pela sua inércia ou negligência injustificada.
AA. O artigo 306 nº 1 do Código Civil determina que o prazo da prescrição apenas inicia a sua contagem quando o direito puder ser exercido.
BB. O Supremo Tribunal de Justiça através de doutos Acórdãos, onde avultam os datados de 08.01.2019, 14.07.2020, 29.10.2020 e 06.10.2022, tem decidido que no caso em apreço o prazo prescricional apenas tem início quando os herdeiros do aforrista tiverem conhecimento da existência dos certificados de aforro.
CC. Entendimento que se apoia no artigo 9 nº 1 e no artigo 2059 ambos do Código Civil, salvaguardando a unidade do sistema jurídico e a harmonia sistémica das normas relativas à aceitação da herança.
DD. Acresce que a prescrição visa sancionar a inércia ou negligência do titular do direito, sendo que ninguém pode exercer um direito que não conhece ter;
EE. Pelo que a presunção não pode operar antes do titular do direito ter conhecimento da sua existência;
FF. Acontece que no caso dos autos a recorrente solicitou o reembolso dos certificados de aforro em 11 de junho de 2013 e instaurou esta ação em 5 de novembro de 2021;
GG. Isto é, antes de decorrido o prazo prescricional;
HH. Ora, como se deixou provado através dos depoimentos das testemunhas CC e DD e do Relatório Médico do psiquiatra Dr EE, esta conduta da recorrente explica-se pela doença psíquica de que enferma, que é fortemente limitadora da sua ação e conhecimento;
II. A recorrente desconhecia, pois, sem culpa sua, o direito que lhe assiste, não podendo a sua conduta ser sancionada como inércia negligente, e, como tal, indigna de proteção jurídica;
JJ. Bem ao invés a enfermidade de que sofre a recorrente, torna-a especialmente digna e carecida de proteção jurídica;
KK. Em 30 de outubro de 2024 foi publicado o DL 79/2024, que procede à revisão do regime jurídico dos certificados de aforro, com vista designadamente à revisão do prazo da prescrição dos títulos da série B;
LL. Este decreto lei entrou em vigor no dia 29 de outubro de 2024;
MM. Estabelece o seu artigo 7 nº 1 que no caso do falecimento do titular de um certificado de aforro, os seus herdeiros podem requerer, no prazo de 20 anos a contar da data do seu falecimento a transmissão do certificado ou a sua amortização;
NN. Por seu turno determina o artigo 12 nº 2 do Código Civil que quando a lei dispuser diretamente sobre o conteúdo de uma relação jurídica, abstraindo do facto que lhe deu origem, entende-se que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor;
OO. Hipótese que se verifica no caso dos autos;
PP. Isto é, o prazo da prescrição passou a ser de 20 anos e aplica-se ao caso sub judice;
QQ. Destarte e como o aforrista faleceu em ... de 1998, a recorrente podia exercer o seu direito até 12 de agosto de 2018;
RR. Sendo que exerceu esse direito em 11 de junho de 2013,ou seja, dentro do prazo de 20 anos que a lei estabelece.
Termos em que se requer a V Exas se dignem conceder provimento ao presente recurso de revista, revogando o douto Acórdão recorrido, e julgando provada e procedente a ação de processo comum instaurada pela recorrente com as legais consequências.
Contra-alegando, a ré, ré, Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública – IGCP, E.P.E., formulou as seguintes conclusões:
INTRÓITO:DA MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA DO RECURSO E, POR CONSEGUINTE,DA PRESENTE AÇÃO
A) As Alegações de Recurso de Revista apresentadas pela Recorrente carecem totalmente de fundamento fático e jurídico, tendo o Tribunal a quo, à semelhança do Tribunal de primeira instância, analisado e valorado devidamente a prova produzida e decidido de forma acertada.
B) A Recorrente insiste em dar como assentes factos que não integram o manancial fáctico dado como provado pelo Tribunal de primeira instância (e confirmado pelo Tribunal Recorrido), na tentativa de daí fazer decorrer consequências jurídicas que não são as aplicáveis in casu.
C) Contudo, não ofereceu prova suficiente dos factos por si alegados e constitutivos de direito de que se arroga titular, como lhe incumbia e conforme exigido pelas regras da repartição do ónus da prova, pelo que nunca poderia a presente ação ser julgada procedente.
D) De qualquer modo, o prazo prescricional já teria decorrido dado que o mesmo inicia a sua contagem da data do óbito do aforrista, pelo que há muito que se encontrava prescrito o direito invocado pela Recorrente, termos em que deve o Tribunal ad quem julgar o recurso de revista totalmente improcedente, mantendo o Acórdão Recorrido, assim se confirmando a Sentença.
DO (DE)MÉRITO DO RECURSO DA RECORRENTE
Da inadmissibilidade de uma decisão assente em factualidade não provada
E) A Recorrente procura sustentar as suas Alegações de Recurso de Revista em factos que não resultaram provados nestes autos, para daí extrair consequências jurídicas (legalmente inadmissíveis por ausência de suporte fáctico) em abono da sua pretensão.
F) Ora, não seria lícito ao Tribunal decidir uma causa trazida a juízo com base em factualidade não provada, sob pena de tal decisão estar ferida de erro de julgamento ou inquinada de nulidade tal como disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c).
G) Além disso, encontrando-se os factos já fixados pelas instâncias inferiores, não caberá ao Tribunal ad quem sindicá-los e reapreciar a prova produzida, porquanto tal não pode ser objeto de recurso de revista conforme disposto nos artigos 662.º, n.º 4 e 674.º, n.º 3, do CPC, por se reportar a matéria sujeita à liberdade de apreciação de prova por parte do Tribunal Recorrido.
H) Por conseguinte, as questões que a Recorrente tenha quanto à decisão da matéria de facto dada pelo Tribunal de primeira instância e pelo Tribunal Recorrido encontram-se subtraídas do âmbito da competência do Tribunal ad quem, devendo a decisão que este vier a proferir nesta sede incidir exclusivamente sobre a interpretação das normas jurídicas aplicáveis in casu, aplicando-as à factualidade dada como provada pelo Tribunal de primeira instância, a qual foi confirmada pelo Tribunal Recorrido, e não à factualidade (não provada) que mais convém à Recorrente.
I) E a verdade é que o Tribunal de primeira instância não deu como provado aquilo que a Recorrente insiste em alegar - isto é, que (i) esta tenha tomado conhecimento da existência dos Certificados de Aforro entre 29.6.2012 e 11.6.2013, e que (ii) o conhecimento apenas nessa data se deveu à doença psíquica de que alegadamente padece – como o Tribunal Recorrido (e bem) confirmou.
Da prescrição dos putativos direitos da recorrente
O prazo de prescrição de 10 anos previsto no artigo 7.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B inicia a sua contagem a partir da data do óbito do aforrista
J) A Recorrente alega que o prazo de prescrição ora em discussão (previsto no artigo 7.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B) apenas tem início quando os herdeiros do aforrista tomam conhecimento da existência dos certificados de aforro, mais alegando que só tomou conhecimento da existência dos Certificados de Aforro entre 29.6.2012 e 11.6.2013 (ainda que tal não decorra dos factos provados na Sentença e no Acórdão Recorrido).
K) No entanto, o prazo de prescrição previsto naquele regime especial inicia-se a partir da data do óbito do titular dos certificados de aforro e não do conhecimento da existência desses certificados, desde logo porque este prazo de prescrição tem um carácter eminentemente objetivo cuja contagem é espoletada por um evento objetivo (neste caso, o óbito do aforrista), não estando dependente de qualquer estado de subjetividade (como o conhecimento do herdeiro da existência de certificados).
L) Tal natureza objetiva impõe-se por razões de segurança jurídica, com o objetivo de evitar que a contraparte fique indefinidamente refém da proatividade dos herdeiros do falecido aforrista. Este instituto procura, assim, evitar que situações de indefinição que se prolonguem no tempo, criando fundadas expectativas, sejam atacadas por quem não agiu no devido tempo.
M) Da letra do preceito legal em questão resulta, de forma muito clara, que os herdeiros do titular de certificados de aforro têm um prazo de 10 anos, a contar da data do óbito deste, para requerer a transmissão da totalidade das unidades que o constituem ou o respetivo reembolso, findo o qual se consideram prescritos.
N) O Tribunal Constitucional já esclareceu que não é inconstitucional a interpretação do artigo 7.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B “segundo a qual se consideram prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos certificados de aforro, cuja transmissão ou reembolso não tenham sido requeridos pelos herdeiros no prazo de dez anos após a morte do seu titular; (…)”(sublinhado nosso).
O) Aliás, um prazo de prescrição assim delineado é o que melhor se coaduna com exigências de certeza e segurança jurídicas: sem ele, a Recorrida ficaria refém ad eternum de uma atuação dos herdeiros – que poderiam nem vir a reclamar a transmissão dos títulos ou o respetivo reembolso – numa situação de incerteza quanto ao eventual exercício do direito, com as consequências naturais daí advindas com impacto no montante a reembolsar, o que, no limite, teria efeitos (negativos) na gestão da dívida pública, em claro prejuízo de todos os contribuintes.
P) A favor desta tese já se posicionou a jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa (a título de exemplo, no Acórdão proferido em 22.10.2020, processo n.º 15325/19.3T8LSB-2) e do Tribunal da Comarca de Lisboa (no processo n.º 491/16.8BEBRG e no processo n.º 1731/18.4 T8LSB).
Q) E tem sido esta a posição adotada pela Recorrida - a qual não poderia ser diferente na presenta ação - em cumprimento de orientações que recebe da tutela na sequência da emissão de pareceres solicitados à PGR e em consonância com o entendimento já vertido pelo Tribunal Constitucional e nas decisões supramencionadas do Tribunal da Relação de Lisboa e do Tribunal da Comarca de Lisboa.
O direito de que a Recorrente se arroga titular estava em condições de ser exercido desde o óbito do aforrista: da inércia (negligente) da Recorrente
R) Cumpre ainda referir que, ao contrário do que alega a Recorrente, o artigo 306.º, n.º 1, do CC não seria aplicável ao caso dos autos pois o mesmo tem um caráter meramente supletivo e, nessa medida, é afastado pelo regime especial dos certificados de aforro, atuando apenas em segunda linha, quando nada vem estabelecido quanto à prescrição. Como se viu, não é esse o caso dos presentes autos pois que o legislador consagrou um regime especial de prescrição para os certificados de aforro.
S) Também ao contrário do que alega a Recorrente, a interpretação veiculada pela Recorrida não coloca em causa a unidade do sistema jurídico e a harmonia sistémica com as normas relativas à aceitação da herança, tanto que o prazo de prescrição para aceitar a herança, e o prazo para reclamar a transferência dos certificados de aforro tem a mesma duração (10 anos), terminando ambos neste caso em 2008.
T) Além disso, mesmo que se aplicasse o critério previsto no artigo 306.º do CC, o direito sempre estaria em condições de ser exercido a partir da data do óbito do aforrista pois, como demonstrado nos presentes autos, a Recorrente podia ter diligenciado junto dos serviços da Recorrida no sentido de obter informação sobre a eventual existência de certificados de aforro, sendo certo que existe um registo central de certificados de aforro através do qual os herdeiros podem lograr saber acerca da existência dos mesmos, além que vivia na mesma casa que o pai e na qual se encontravam os Certificados de Aforro.
U) Com efeito, na sequência do óbito do seu pai, a Recorrente deveria ter diligenciado no sentido de apurar a existência de eventuais produtos de aforro da titularidade daquele, bastando para o efeito, solicitar junto dos serviços da Recorrida a prestação de informações sobre a conta de aforro de que o pai fosse (eventualmente) titular, uma vez que, enquanto herdeira teria legitimidade para tal. Mas não o fez.
V) Aliás, a Recorrente sempre teria de relacionar os “títulos e certificados da dívida pública e outros valores mobiliários” na declaração de imposto de selo dedicada à participação de transmissão de bens para a AT e, para o efeito, deveria, em tempo útil, ter indagado junto da Recorrida sobre a existência de tais títulos.
W) Resulta assim claro que a Recorrente tinha maneira de saber da existência dos Certificados de Aforro e tinha obrigações declarativas nesse sentido, pelo que, não tendo cuidado de diligenciar no sentido de obter tal informação, incumpriu um ónus que sobre si impendia.
X) Em face do exposto não procede a alegação da Recorrente de que não houve qualquer inércia da sua parte que possa ser censurada. A Recorrida não pode aceitar tal alegação porque estamos efetivamente perante inércia (negligente) quando a Recorrente dispõe de todos os meios para averiguar da existência dos Certificados de Aforro em tempo útil, tendo tal ónus, e não o faz.
Y) Ademais, ao contrário do alegado pela Recorrente, não resultou dos factos provados que a doença psíquica de que supostamente padece foi a causa justificativa da sua inércia e, por conseguinte, do desconhecimento dos Certificados de Aforro até 2012/2013.
Z) Assim sendo, tendo em conta que o óbito do pai da Recorrente ocorreu em 13.8.1998, o referido prazo de 10 anos contado da data de tal facto, há muito que decorreu, não tendo a Autora, ora Recorrente, requerido a transmissão dos certificados de aforro titulados pelo seu pai para o seu nome de forma tempestiva, pois que só o fez em 2013, ou seja, já depois de decorrido tal prazo de prescrição,
AA) Pelo que, o direito à transmissão de que a Recorrente se arroga titular nesta ação encontrava-se à data da sua instauração (em 2021) há muito prescrito, por isso bem andou o Tribunal de primeira instância ao julgar procedente a exceção de prescrição e, consequentemente, improcedente a ação, tendo o Tribunal Recorrido (e bem) confirmado tal decisão.
Incumbia à Recorrente demonstrar a data concreta em que tomou conhecimento dos Certificados de Aforro, o que não sucedeu.
BB) A lei prevê que o prazo de prescrição ora em discussão inicia a sua contagem a partir do óbito do aforrista, após o que, decorrido tal prazo, o direito de que a Recorrente se arroga titular prescreve. Contudo, vem a Recorrente alegar nestes autos que a prescrição não pode operar porquanto apenas tomou conhecimento dos Certificados de Aforro já depois de tal prazo ter decorrido.
CC) Impendia, assim, sobre a Recorrente o ónus de provar o que alega nestes autos, isto é, (i) que tomou conhecimento dos Certificados de Aforro em determinada data; e (ii) que teve conhecimento dos mesmos apenas nessa data em virtude da doença psíquica de que alegadamente padece, algo que não logrou cumprir.
DD) Ora, à luz das regras de distribuição do ónus da prova, não tendo sido produzida prova suficientemente verosímil que permita criar a convicção inequívoca de que a Recorrente apenas soube da existência dos Certificados de Aforro entre 2012 e 2013, bem andou o Tribunal Recorrido ao concluir que: “não se provando que a autora tomou conhecimento da existência dos títulos em data posterior ao óbito do seu pai, a acção improcede necessariamente, mesmo entendendo-se que o prazo só se iniciaria a partir da data de um eventual conhecimento diferido.”.
A Recorrida cumpre escrupulosamente a lei, não tendo qualquer benefício direto no desfechoda presente ação, qualquer que ele seja
EE) Como entidade pública que é, a Recorrida encontra-se vinculada a estritos deveres de legalidade, que procura cumprir de forma absolutamente rigorosa, sem transigências ou concessões.
FF) E a Recorrida nada tem a ganhar com a invocação da exceção de prescrição e, consequentemente, com a rejeição da pretensão da Recorrente. Isto porque os valores de reembolso dos certificados de aforro prescritos não revertem a favor da Recorrida, mas antes para o Fundo de Regularização de Dívida Publica, conforme previsto no n.º 2 do artigo 7.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B
GG) À luz de tal preceito legal, a transmissão do valor de certificados de aforro a favor do Fundo de Regularização de Dívida Publica constitui um dever legal da Recorrida quando se verifica a prescrição dos mesmos, pelo que inexiste qualquer obrigação de reembolso aos herdeiros depois de decorrido o prazo de prescrição.
Da inaplicabilidade do Decreto-Lei n.º 79/2024, de 30 de outubro, ao caso dos autos e da verificação de prescrição à luz do mesmo
HH) A alteração legislativa operada pelo recente Decreto-Lei n.º 79/2024, de 30 de outubro, não tem qualquer efeito no caso sub judice, não sendo aplicável ao caso dos autos, porquanto este apenas entrou em vigor a 30.11.2024, valendo aqui a regra geral sobre aplicação da lei no tempo de que “A lei só dispõe para o futuro”, conforme estatuído no artigo 12.º, n.º 1 do CC.
II) Com efeito, não era o prazo de prescrição de 20 anos que vigorava à data dos factos, mas antes o prazo de 10 anos, prazo esse que já havia decorrido aquando da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 79/2024, de 30 de outubro, pelo que nenhum prazo estava em curso nesse momento que pudesse ser afetado.
JJ) Por assim ser, não pode agora a Recorrente invocar um novo quadro normativo para abrigar a sua pretensão, a qual está há muito tempo prescrita, conforme se tem vindo a demonstrar à saciedade.
KK) Sem prejuízo, mesmo que o referido diploma fosse aplicável ao caso dos autos (no que não se concede, mas por mera cautela de patrocínio se equaciona),o direito de que a Recorrente se arroga titular já teria prescrito à luz do mesmo, dado que o prazo de 20 anos a contar do óbito do aforrista (13.8.1998) terminou em 13.8.2018, ou seja, antes da propositura da presente ação (em 5.11.2021).
LL) Em suma, adotando a interpretação perfilhada pela Recorrida ao longo destes autos (a única correta) resulta evidente que a presente ação sempre se encontraria votada ao manifesto insucesso, porquanto o direito invocado pela Recorrente se encontra prescrito, pelo que bemandou o Tribunal Recorrido, tal como o Tribunal de primeira instância, ao considerar que o direito de que a Recorrente se arroga titular prescreveu, seja porque o prazo de 10 anos a contar do óbito do aforrista já decorreu, seja porque a Recorrente não foi capaz de produzir prova suficiente de que apenas tomou conhecimento dos Certificados de Aforro entre 29.6.2012 e 11.6.2013.
MM) Em face de todo o exposto, deve manter-se a decisão de absolução da Recorrida do pedido contra si formulado, por verificação da exceção de prescrição, julgando-se o recurso de revista e a ação totalmente improcedentes, como bem decidiu o Tribunal de primeira instância e o Tribunal Recorrido.
D. PEDIDO
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão:
a) Deverão ser admitidas as presentes Contra-alegações de recurso; e
b) Deverá o recurso de revista interposto pela Recorrente ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, deverá manter-se a decisão de absolução da Recorrida do pedido contra si formulado pela Recorrente, tal como decidido na Sentença e no Acórdão Recorrido, assim se confirmando tais decisões.
POIS SÓ ASSIM SE FARÁ A COSTUMADA JUSTIÇA!
Obtidos os vistos, cumpre decidir.
Face ao teor das alegações apresentadas pela recorrente, a questão a decidir é a de saber se é à autora ou à ré que incumbe o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos da excepção peremptória de prescrição, designadamente do momento/data em que se inicia o prazo de prescrição.
São os seguintes os factos dados como provados:
1. A Ré, AGÊNCIA DE GESTÃO DA TESOURARIA E DA DÍVIDA PÚBLICA - IGCP, E.P.E. é uma entidade pública empresarial, equiparada a instituição de crédito, dotada de autonomia administrativa e financeira, e património próprio, sujeita à tutela e superintendência do membro do Governo responsável pela área das finanças.
2. A Autora é filha de FF, falecido em ...de 1998, no estado de viúvo e sem qualquer outro descendente para além da Autora.
3. À data do óbito, o pai da Autora, FF era titular dos seguintes certificados de aforro, da série B:
3.1. Número ...24, emitido em 09/01/1990, composto por 2.000 unidades, com o valor unitário de 500$00;
3.2. Número ...25, emitido em 30/01/1992, composto por 1.000 unidades, com o valor unitário de 500$00;
3.3. Número ...33, emitido em 30/01/1992, composto por 1.000 unidades, com o valor unitário de 500$00;
4. O aforrista FF designou a Autora como movimentadora dos certificados de aforro indicados em 3.
5. Em janeiro de 1999, a Autora comunicou o óbito de FF na Autoridade Tributária e apresentou a respetiva relação de bens, da qual não constam os certificados de aforro descritos em 3.
6. À data do óbito do seu pai, a Autora vivia na mesma casa que o pai, onde reside até à atualidade.
7. Em data concretamente não apurada, a Autora encontrou os certificados de aforro supra mencionados na casa onde vivia com o seu pai.
8. Em 11 de junho de 2013, a Autora remeteu uma carta ao Presidente do Conselho de Administração da Agência de Gestão de Tesouraria e da Dívida Pública – ICGP – E.P.E. solicitando o levantamento dos certificados de aforro porquanto “Somente no decurso do presente ano de 2013 a signatária tomou conhecimento da existência destes certificados de aforro, tendo-se dirigido a uma estação dos CTT onde foi informada que a conta do aforrista estava bloqueada, em virtude do seu falecimento ter ocorrido há mais de 10 anos”.
9. Em 24 de setembro de 2013, o Serviço de Dívida de Retalho da AGÊNCIA DE GESTÃO DE TESOURARIA E DA DÍVIDA PÚBLICA – ICGP – E.P.E., respondeu à Autora dizendo “considerar prescritos os certificados de aforro titulados pelo senhor FF, por terem decorrido mais de 10 anos sobre a ocorrência do óbito do mesmo”.
10. No ano de 2012, foi celebrado um protocolo entre a Ré, AGÊNCIA DE GESTÃO DE TESOURARIA E DA DÍVIDA PÚBLICA – ICGP – E.P.E., e o INSTITUTO DE REGISTOS E NOTARIADO, na sequência do qual se começou a efetuar o cruzamento entre a base de dados da Ré e os óbitos constantes da base de dados do IRN.
11. A Ré tomou conhecimento do óbito do aforrista em 2012.
12. Em 29 de junho de 2012, a Ré transferiu o saldo dos certificados de aforro para o Fundo de Regularização da Dívida Pública.
Não provados.
A. A Autora apenas teve conhecimento dos certificados de aforro mencionados no facto provado n.º 3, no ano de 2013.
B. A Autora só teve conhecimento da existência dos certificados de aforro em de 2013 em virtude do transtorno depressivo que padece e que a atingiu após o falecimento da sua mãe e do seu único irmão, ocorridos em 1984.
Se é à autora ou à ré que incumbe o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos da excepção peremptória de prescrição, designadamente do momento/data em que se inicia o prazo de prescrição.
Quanto a tal, alega a recorrente que à ora ré não basta impugnar os factos alegados pela autora e invocar a prescrição, sendo, ainda, necessário que a ré invocasse e provasse os factos materiais que determinam o decurso do prazo prescricional, cabendo-lhe, por isso, provar o momento em que se iniciou a prescrição (cf. conclusões X) e Y)).
Por seu turno, a ré, defende que incumbia à autora demonstrar a data concreta em que tomou conhecimento dos certificados de aforro, o que não sucedeu.
Na sentença proferida em 1.ª instância, depois de se considerar que o prazo de prescrição só se inicia quando o herdeiro do aforrista tomou conhecimento da existência dos certificados de aforro, decidiu-se que o direito a que se arroga a autora já estava prescrito, com o fundamento em que lhe cabia demonstrar que só teve conhecimento dos certificados de aforro em data posterior ao óbito do aforrista, o que não provou e daí ocorrer a prescrição.
No Acórdão da Relação de Lisboa, com voto de vencido, igualmente se considerou que cabia à ré o ónus de provar o decurso do prazo de prescrição, o que se demonstrou atento o lapso de tempo decorrido entre o óbito do aforrista (1998) e 2013 (data em que a autora solicitou o levantamento dos certificados de aforro – cf. item 8.º), cabendo à autora o ónus de provar qualquer facto que impedisse os efeitos do decurso desse prazo, nomeadamente factos que diferissem o início da sua contagem, o que não logrou fazer, apoiando-se no decidido no Acórdão do STJ de 1 de Julho de 2004, Processo n.º 03B3417, disponível no respectivo sítio do Itij.
No voto de vencido, considera-se inexistir a invocada prescrição, com o fundamento em que cabe à ré o ónus da prova da data em que a autora teve conhecimento dos certificados de aforro, por ser este o facto a partir do qual se inicia a contagem do prazo de prescrição.
Como resulta do relatório que antecede, com a presente acção, a autora demanda a ré, para que esta seja condenada a transmitir-lhe os certificados de aforro que pertenciam ao seu pai.
A ré veio arguir a prescrição, com o fundamento em que já tinham decorrido 10 anos contados desde a data do óbito do aforrista.
Tanto a sentença como o Acórdão revidendo, consideraram que já havia decorrido o alegado prazo de 10 anos (o que se verifica) e como a autora não provou que só teve conhecimento da existência dos certificados de aforro em momento posterior, de que tinha o respectivo ónus da prova, verifica-se a invocada prescrição.
Efectivamente, do cotejo entre os factos provados e não provados, constata-se que o pai da autora era titular dos certificados de aforro referidos no item 3.º dos factos provados, sendo que o seu pai faleceu em ... de 1998 (item 2.º dos factos provados).
Em data não apurada a autora encontrou os certificados de aforro na casa onde vivia com o pai (item 7.º dos factos provados) e em 11 de Junho de 2013, a autora remeteu uma carta à ré, solicitando o levantamento dos certificados de aforro, alegando somente no decurso de 2013 ter tomado conhecimento da existência dos mesmos.
Não se tendo demonstrado que a autora apenas deles ter tido conhecimento no ano de 2013 (alíneas A) e B) dos factos não provados.
Como ponto prévio, convém esclarecer que neste recurso não está em apreciação a questão de saber se o prazo de prescrição se inicia automaticamente com o decesso do aforrista ou se apenas tem início quando os seus herdeiros tomam conhecimento da existência dos certificados de aforro, como entendido nas instâncias.
Efectivamente, em virtude de se ter decidido verificar-se a invocada prescrição, a Relação não conheceu, por prejudicada, a ampliação do recurso suscitada pela recorrida, quanto a esta questão, pelo que, igualmente, não nos incumbe dela conhecer, como a seguir se referirá.
No presente recurso, como acima se referiu apenas está em questão saber sobre quem incumbe o ónus de alegação e prova do momento em que se inicia a prescrição.
Pretende a autora lhe sejam devolvidos certificados de aforro da Série B da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, de que era titular o seu pai, falecido em... de 1998, sendo a autora sua única herdeira.
Os certificados de aforro Série B, foram instituídos e regulamentados pelo DL n.º 172-B/86, de 30/6, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL n.º 122/2002, de 4/5 e DL n.º 47/2008, de 13/3, emitidos pela ora ré.
Dispõe o artigo 7.º, n.º1, do referido DL n.º 172-B/86, alterado pelos subsequentes e acima já referidos, que por morte do titular dos certificados de aforro, os herdeiros podem requerer a respectiva transmissão no prazo de 10 anos, findo o qual, como decorre do seu n.º 2, se consideram prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública, aplicando-se as demais disposições em vigor relativas à prescrição.
Como resulta da factualidade atinente, o pai da autora faleceu em ... de 1998, a autora reclamou a entrega dos títulos em 11 de Junho de 2013 e propôs a acção em 5 de Novembro de 2021, sem que se tenha provado o momento em que teve conhecimento da existência dos certificados de aforro, o que se verificou, pelo menos, em 11 de Junho de 2013, mas não que o tenha sido apenas nessa data (Alíneas A) e B), dos factos não provados).
Do que tudo resulta que a acção foi intentada para além do prazo de 10 anos acima referido, tendo-se considerado, reitera-se, que se verifica a prescrição porque a autora não provou o momento em que teve conhecimento da existência dos certificados de aforro, o que lhe incumbia.
Desde já se adianta que entendemos, com o devido respeito, não ser este o entendimento mais correcto a extrair do disposto no artigo 342,º, n.º 2, do Código Civil, sendo de seguir o entendimento plasmado no voto de vencido no Acórdão da Relação.
Segundo este preceito:
“A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”.
Fora de dúvidas que a prescrição é um facto extintivo do direito invocado e que, por conseguinte, o respectivo ónus de alegação e prova incumbe àquele contra quem é invocado o direito, in casu à ré.
Pelo que, como referido no Acórdão da Relação de Coimbra, de 19 de Dezembro de 2012, Processo n.º 498-C/2002.C1, disponível no respectivo sítio do Itij, incumbe à ré o ónus de alegar e provar os factos constitutivos da excepção, de que fazem parte o início do prazo prescricional.
Efectivamente, só se verifica a prescrição pelo decurso do respectivo prazo, pelo que a determinação do início em que se começa a contar tal prazo é fundamental/determinante para averiguar da prescrição do direito invocado, fazendo, por isso, parte dos “factos constitutivos” da excepção, pelo que, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil é à ré que incumbe o respectivo ónus de provar o momento em que se inicia a prescrição – sem o qual, como referido – não se pode ter como certo que o prazo prescricional já decorreu, pelo que era à ré que incumbia provar que a autora teve conhecimento da existência dos certificados de aforro em momento que acarretasse o decurso do prazo de prescrição.
Não se tendo provado a data em que tal ocorreu, a nível de decisão – momento em que é de ponderar a existência do respectivo ónus da prova e inerentes consequências – tem a decisão da excepção da prescrição de ser decidida em termos desfavoráveis à ré, sobre quem incumbia o aludido ónus.
Como referem P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1982, pág. 304, rege-se o preceito em causa pelo critério da normalidade, em termos que “Aquele que invoca determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram; a parte contrária terá de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos (…).
O mesmo critério (de normalidade) deve nortear o intérprete, em seguida, quanto às próprias circunstâncias que servem de causas impeditivas, modificativas ou extintivas do direito invocado. Assim, se o réu invocar a prescrição (como facto extintivo do direito do autor), sobre o autor recairá, por sua vez, o ónus de provar a suspensão ou a interrupção da prescrição, que haja obstado à consumação desta”.
Também F. Pereira Coelho, in RLJ, Ano, 117.º, a pág. 195, defende que, mesmo para os factos negativos se mantém a regra prevista no artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.
E nem a tal obsta o disposto no artigo 2059.º, n.º 1, do Código Civil, pois que, como ali se refere, o prazo nele mencionado só se conta a partir do momento em que o sucessível tenha conhecimento de haver sido chamado à herança, o que equivale a que tenha conhecimento da existência do bem a partilhar, sem o qual não há nada (ou um concreto bem) a receber por herança.
Consequentemente, sob este prisma, não se verifica a invocada excepção de prescrição, que, assim, se julga improcedente.
Pelo que, procede o recurso.
Como referido no Acórdão da Relação, considerou-se prejudicada a apreciação do pedido formulado ao abrigo do disposto no artigo 636.º, do CPC, pela recorrida, no requerimento de ampliação do âmbito do recurso, nas suas contra-alegações, no sentido de se considerar aplicável a interpretação do artigo 7.º, do DL n.º 172-B/86, de 30/6, de que o decurso do prazo de prescrição se inicia com o óbito do titular, sem depender do conhecimento da existência dos títulos por parte dos herdeiros.
O que naturalmente prejudica (cfr. art. 608.º/2 do CPC) que nos debrucemos sobre o mérito desta (diferente) questão da prescrição, o que implica a remessa dos autos à Relação, para que nesta sejam apreciadas as questões suscitadas na apelação e que ficaram prejudicadas pelo desfecho dado pela Relação à excepção da prescrição.
Efetivamente, o acórdão recorrido, tendo julgado procedente a exceção da prescrição, não chegou a apreciar, por tal ter ficado prejudicado, o referido requerimento de ampliação do âmbito do recurso suscitada pela ré nas contra-alegações, ressurgindo agora, como é evidente, face à não declaração da prescrição, a imprescindível necessidade de apreciar tal ampliação do âmbito do recurso.
Sucede que, segundo a parte final do art. 679º do CPC, não é aplicável no recurso de revista a regra da substituição ao tribunal recorrido prevista, para o recurso de apelação, no art. 665º do CPC, não podendo, deste modo, o STJ apreciar as questões que o acórdão recorrido deixou por apreciar, por as mesmas terem ficado prejudicadas pela solução dada à questão da exceção da prescrição.
O novo CPC, no art. 679.º do CPC, tomou posição sobre a controvérsia que até ali se colocava a propósito do anterior 726.º/1, passando a prever e regular, para este efeito, em termos idênticos e indistintos, as situações em que existe efetiva nulidade por omissão de pronúncia (decorrente de o tribunal a quo ter indevidamente omitido a apreciação de certa questão relevante) – nº 1 do art. 665º do CPC – e a mera (e legítima) não pronúncia sobre questões, suscitadas no processo, que ficaram prejudicadas pela solução dada ao litígio - nº 2 do art. 665º do CPC em vigor.
Como refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo CPC, 2020, págs. 498/499), uma vez que o atual art. 679º exclui a aplicação remissiva de todo o preceituado no art. 665º, incluindo o seu nº 2, que trata das situações que no CPC anterior constavam do nº 2 do art. 715º, tal significa que foi retirada a possibilidade de o STJ se substituir de imediato à Relação, ou seja, quando o acórdão da Relação não estiver afetado por uma nulidade, como é o caso, mas dele emergir apenas que não apreciou determinada questão, por considerá-la prejudicada pela solução encontrada, uma vez revogado o acórdão, em lugar da imediata substituição que antes do novo CPC era viável, impõe-se a remessa dos autos à Relação, o que no caso acontecerá para que nesta seja apreciadas a referida ampliação do âmbito do recurso.
Nestes termos, se decide:
Julgar procedente o presente recurso, concedendo-se provimento à revista, revogando-se o acórdão recorrido – declara-se, nos termos e pelos fundamentos expostos – improcedente a excepção de prescrição – e determina-se a remessa dos autos à Relação para apreciação da ampliação do âmbito do recurso, requerida pela ré, nas contra-alegações da apelação.
Custas, desta revista, pela Ré.
Lisboa, 03 de Julho de 2025
Arlindo Oliveira (Relator)
Rui Machado e Moura
Ferreira Lopes