CRIME
ROUBO
HOMICÍDIO
TENTATIVA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário

Sumário (da responsabilidade do relator):
I. São causais do facto ilícito, como danos deste emergentes, as despesas que o lesado suporte com prática desportiva decorrente de recomendação médica;
II. Não é excessivo o valor de €35.000 fixado como compensação por danos não patrimoniais emergentes de roubo e tentativa de homicídio, com uso de arma de fogo, mesmo que se não apurem ao lesado sequelas físicas permanentes das lesões sofridas;
III. Tal valor não se mostra excessivo, face às dores físicas, sofrimentos psicológicos, período alargado de doença (um ano), stress pós-traumático, angústia, ataques de pânico e perturbações no sono, decorrentes de ser atingido por um dos seis tiros contra si dirigidos no decurso de um assalto, depois de ter sido agredido na cabeça com a coronha da arma de fogo usada.

Texto Integral

Decisão:

Acordam os Desembargadores abaixo referidos o seguinte quanto à presente apelação:
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I. Caracterização do recurso:
I.I. Elementos objetivos:
- Apelação – 1 (uma), nos autos;
- Tribunal recorrido – Juízo Central Cível de Lisboa - Juiz 20;
- Processo em que foi proferida a decisão recorrida – Ação de processo comum n.º
- Decisão recorrida – Sentença.
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I.II. Elementos subjetivos:
- Recorrente (réu): - ---;
- Recorrido (autor): - ---. --
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I.III. Síntese dos autos:
O autor pediu a condenação do réu no pagamento dos seguintes valores:
- Equivalente a €27.992,56, relativo a perdas salariais sofridas nos anos de 2019 e 2020;
- Equivalente a €23,09, relativo a despesas medicamentosas;
- Equivalente a €3.331,90 relativos a despesas hospitalares;
- Equivalente a €3.090,00, relativo a despesas com a prática de exercício físico após trauma;
- Equivalente a €42.240,00 relativo a despesas futuras com a prática de exercício físico que terá que suportar;
- Equivalente a €232,91, relativo à aquisição de equipamento desportivo para tal prática;
- Equivalente a €205,18, relativo ao aumento do valor de seguro contratado que teve que suportar no ano 2019;
- Equivalente a €731,57, relativo ao aumento do valor do seguro contratado que teve que suportar no ano 2020;
- Equivalente a €50.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais.
- Alegou para sustentar tais pedidos, em síntese, o seguinte:
- No dia 12 de maio de 2019, cerca das 6h20, encontrando-se no desempenho do seu trabalho de assistente de produção, em Lisboa, foi vítima de um roubo cometido pelo réu, com uso de arma de fogo;
- No contexto desse roubo, o réu disparou a arma contra si, atingindo-o e causando-lhe uma série de consequências físicas, que descreve;
- Na sequência, foi transportado em urgência médica, foi assistido a nível hospitalar e imediatamente submetido a intervenção cirúrgica;
- Permaneceu em cuidados intensivos durante uma semana e meia, mantendo-se internado até 6 de junho, impedido de trabalhar por 155 dias e sofrido um período total de doença de 365 dias;
- Em consequência, sofreu as lesões físicas e os prejuízos emocionais, que descreve, correspondentes aos pedidos que formula a esse nível, acima referidos;
- Teve e terá que suportar as despesas com recuperação, que igualmente descreve, correspondentes aos pedidos que formula a esse nível, acima referidos;
- Viu prejudicada a sua capacidade de ganho, da forma que descreve e cuja compensação solicita.
- Citado, contestou o réu, por exceção e por impugnação.
- Excecionou invocando caso julgado relativo ao pedido de condenação no equivalente a despesas hospitalares, por ter sido objeto de condenação em sede penal, peticionada no âmbito de indemnização cível deduzida pelo Centro Hospitalar onde o autor foi assistido;
- Impugnou a matéria de facto relativa aos danos alegados pelo autor, concluindo pela sua absolvição de todos os pedidos.
- O autor, notificado, apresentou resposta à exceção deduzida, pugnando pela sua improcedência.
- Foi designada data para audiência prévia, que se realizou;
- Nesse âmbito o autor apresentou requerimento de desistência do pedido de compensação por despesas hospitalares, que foi homologado e declarado extinto;
- Foi proferido despacho saneador, indicado o objeto do litígio e identificados temas de prova a produzir;
- Foi posteriormente agendada audiência final, que se realizou;
- Na sequência foi proferida sentença, cujo dispositivo tem o seguinte teor (transcrição):
Pelo exposto e ao abrigo das disposições legais supra citadas, o Tribunal julga a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) condena o Réu a pagar ao Autor a quantia total de € 42.072,75 (quarenta e dois mil e setenta e dois euros e setenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento;
b) absolve o Réu de tudo o demais peticionado.
- Dessa decisão, não se conformando o réu, interpôs o presente recurso. –
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II. Objeto do recurso:
II.I. Conclusões apresentadas pela recorrente nas suas alegações (assinalando a negrito as passagens relevantes):
A. Com o presente recurso, pretende o recorrente impugnar a sua condenação, apenas na parte que respeita à indemnização por danos patrimoniais relativos à prática de exercício físico após trauma (entre 2019 e 2022) e aquisição do respetivo equipamento desportivo, e ainda o quantum indemnizatório fixado por conta de danos não patrimoniais;
B. Impugna-se, da decisão sobre a matéria de facto, os factos provados em 36. e 37. por considerar o recorrente que, tratando-se de danos patrimoniais, nomeadamente despesas que o recorrido alega ter incorrido, tal prova deveria ter como base probatória prova documental comprovativa do pagamento dessas despesas, o que não sucedeu;
C. Com efeito, a obrigação de indemnizar, tem por base ressarcir o recorrido das despesas em que incorreu, sendo que o documento junto com a petição inicial sob o n.º 61 apenas tem o condão de atestar qual o valor de cada sessão, não quantas sessões ocorreram e que valor foi efetivamente despendido pelo recorrido;
D. Ademais, da análise critica destes factos dados como provados, em confronto com o que decidiu o Tribunal a quo quanto aos danos futuros peticionados (pela prática de exercício físico até aos 81 anos de idade do recorrido) – “Sucede que, neste ponto, a prova foi escassa e pouco consistente, no sentido em que o Autor haja de ter de praticar exercício físico por causa das sequelas – cuja extensão e gravidade, aliás, também não foi possível apurar – e não como forma, sabida, de assegurar uma boa qualidade de vida e um modus vivendi em saúde, como a generalidade da população. Pelo que não há fundamento para atribuir uma compensação a este título, na medida em que se apurou, apenas, que é vantajoso para o Autor (como o é, aliás, para todas as pessoas), a manutenção de um estilo de vida saudável, o qual inclui, necessariamente, a prática de exercício físico. Pelo que o pedido é, nesta parte, improcedente.” – sempre se dirá, que deveria ter sido aplicada a mesma lógica;
E. Pelo que se impõe a alteração da matéria de facto provada nos pontos 36. e 37., em congruência com a restante matéria de facto e de direito e com a prova constante dos autos, passando a considerar-se como NÃO PROVADOS estes factos, com a seguinte redação: Não provado que “O Autor despendeu na prática de exercício físico após trauma torácico, por recomendação médica, em 2019, o valor de € 210”; Não provado que “Entre Janeiro de 2020 e Dezembro de 2022, o Autor despendeu o valor total de € 2.880”;
F. Impugna-se, da decisão sobre a matéria de facto, o facto provado em 39., por considerar o recorrente que tais despesas que o recorrido alega ter incorrido, não se encontram cabalmente provadas através dos respetivos documentos juntos sob os docs. 52 a 57 com a petição inicial, porquanto ou não se referem a material desportivo ou não são adquiridas pelo recorrido;
G. Pelo que se impõe a alteração da matéria de facto provada no ponto 39., em congruência com a prova constante dos autos, requerendo o recorrente que passe a constar da matéria de facto NÃO PROVADO que “Em equipamento para a prática de exercício físico, o Autor despendeu o valor de € 232,91”
H. Mas ainda que assim não se entenda, considera o ora recorrente, smo, que tais despesas (com exercício físico e aquisição de equipamento desportivo) não têm nexo causal com o facto ocorrido e gerador da responsabilidade civil, desde logo porque algumas dessas despesas são anteriores à data em que ocorreu o facto, o que só por si é revelador de que o recorrido já praticava exercício físico. Logo, esta prática não foi consequência direta e necessária do facto ocorrido em 12/05/2019;
I. Por fim, não pode o ora recorrente concordar com o montante indemnizatório atribuído ao recorrido a título de danos não patrimoniais, por ser manifestamente excessivo, devendo o mesmo ser fixado por critério de equidade, tendo em conta as circunstâncias referidas no artigo 494º do mesmo Código, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem;
J. Na sentença de que se recorre, considera-se que “felizmente, para o Autor não remanescem sequelas físicas de cariz definitivo e é de esperar, razoavelmente e à luz das regras da experiência comum, que as sequelas psicológicas tendam a amenizar com o decurso do tempo, levando em conta, também, que o Autor é ainda relativamente jovem e está no máximo da sua vida activa.”
K. O recorrente encontra-se a cumprir pena de prisão efetiva, com data de fim em 11/01/2032, não se vislumbrando que reintegração na vida em sociedade se perspetiva, conquanto essa sua reintegração terá, logo à partida, saldo negativo em virtude da condenação nos presentes autos;
L. Nos acórdãos referenciados supra, o dano não patrimonial é mais gravoso do que aquele se verifica nos presentes autos, sendo a indemnização fixada em montante inferior, neste sentido, deve a indemnização a atribuir ao recorrido ser fixada em valor manifestamente inferior, tendo em conta os critérios de equidade, proporcionalidade face à situação económica do lesante e tendo em atenção as soluções jurisprudenciais para casos semelhantes.
Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de vossas excelências, deve ser concedido provimento ao recurso, alterando a decisão da 1ª instância, em conformidade com o ora exposto, julgando improcedentes os pedidos do autor referentes à prática de exercício físico e respetiva aquisição de material desportivo, bem como ser reduzido equitativamente o valor indemnizatório referente aos danos não patrimoniais, com as demais consequências legais.
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O autor, notificado, não contra-alegou.
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II.II. Questões a apreciar:
Como delimitadas pelo recorrente, são as seguintes as questões a apreciar:
a. Da alteração da decisão de facto relativa às despesas suportadas pelo autor com a prática de exercício físico e com a aquisição de material desportivo;
b. Em caso de improcedência dessa impugnação, da existência de um nexo causal entre tais despesas e o facto ilícito fundamento de responsabilidade do réu;
c. Da adequação e proporcionalidade, de acordo com juízos de equidade, da indemnização fixada para compensação de danos não patrimoniais emergentes do facto ilícito objeto dos autos. –
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. –
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II.III. Apreciação do recurso:
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II.III.I. Recurso da decisão de facto:
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II.III.I.I. Admissibilidade do recurso:
Enquadrando a pretensão impugnatória da decisão de facto, há que salientar:
a. Que o recorrente a limita a impugnar a decisão quanto à matéria relativa a despesas com a prática desportiva do autor e com aquisição de material para essa prática (factos 36, 37 e 39);
b. Que solicita que esses factos, dados por provados, passem a ser considerados não provados (com proposta de alteração de redação);
c. Que não indica para sustentar a impugnação qualquer meio de prova diverso do referido pelo tribunal;
d. Que solicita, portanto, uma reanálise do teor dos meios considerados a quo, pedindo que conduzam a conclusões de facto diversas das que constam da sentença.
Neste contexto, deve considerar-se que se mostram cumpridas adequadamente as exigências processuais de admissão da impugnação.
De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 640.º do Código de Processo Civil (CPC), para admissão da impugnação de facto o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (al. a); os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão de facto diversa (al. b) e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto em causa (al. c).
A interpretação destas exigências legais tem sido concretizada jurisprudencialmente estabelecendo que uma leitura meramente literal não deve ser acolhida.
O sentido material e a teleologia desta norma, e dos específicos requisitos que estabelece, pode considerar-se sintetizado pelo acórdão desta Relação de 11/10/2018 (Eduardo Petersen – ecli.pt) ao dizer que os ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto revelam uma específica combinação entre a procura da verdade material e a gestão pública dos recursos da justiça: o primado daquela só é concedido mediante uma solicitação que não onere demasiadamente estes.
Sendo este o quadro básico de análise, não pode deixar de ser perspetivado por relação com os princípios que pretende tutelar, que serão, de um lado, o que se pode qualificar como prevalência da verdade material sobre a formal e, genericamente, o direito a um processo equitativo e, de outro lado, razões de proporcionalidade, adequação e razoabilidade.
Sobrelevando estes vetores, a jurisprudência tem preenchido os conceitos legais de forma a tornar operativas as garantias e as exigências legalmente estabelecidas.
Pode dizer-se que a base da doutrina do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) fica resumida pelo acórdão de 3/10/2019 – Rosa Tching, ecli.pt), ao estabelecer dois grandes vetores de análise.
De um lado, o que pode qualificar-se como afastamento do formalismo excessivo.
Assim, diz-se que na verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado artigo 640º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
A proporcionalidade/razoabilidade serão, assim critérios de limitação da tal leitura excessivamente restritiva ou literal dos requisitos legais.
Por outro lado, com a criação de uma doutrina qualificável de segmentação dos ónus impugnatórios.
De acordo com esta doutrina, há dois ónus que a parte deve cumprir, um primário, traduzido no cumprimento das exigências do art.º 640.º n.º 1, e um secundário, traduzido na indicação das passagens relevantes da prova gravada.
Diz-se neste acórdão que os ónus primários têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto e o ónus secundário terá um cariz mais operativo, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.
Conclui esta doutrina que, sendo diferentes as naturezas e funções de cada um dos ónus, o seu desrespeito terá diferentes consequências - enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.
É uma doutrina que se pode considerar pacificada e que, vertida ao quadro supra referido, permite concluir que está bem delimitado o objeto de impugnação (factos 36, 37 e 39); os meios de prova em que assenta (documento n.º 61 da petição inicial, quanto aos factos 36 e 37 e documentos n.º 52 a 57, quanto ao facto 39); a decisão alternativa propugnada (passarem os factos a figurar como não provados, ao contrário de provados).
Não se tratando de prova gravada, não tem aplicação ao caso o ónus secundário supra referido.
Deve, assim, admitir-se o recurso. –
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II.III.I.II. Apreciação do recurso sobre a matéria de facto:
Admitido o recurso, há que apreciar o seu fundamento.
São os seguintes factos dados por provados (transcrição da parte relevante da sentença recorrida):
36. O Autor despendeu na prática de exercício físico após trauma torácico, por recomendação médica, em 2019, o valor de € 210.
37. Entre Janeiro de 2020 e Dezembro de 2022, o Autor despendeu o valor total de € 2.880 – cf. doc. 61
39. Em equipamento para a prática de exercício físico, o Autor despendeu o valor de € 232,91 (docs. 52-57).
Além das referências aos documentos, que constam do teor do próprio facto provado, em sede de motivação o tribunal a quo, relativamente a esta matéria, disse o seguinte:
Igualmente, para prova dos pontos 35. a 37., 39. e 40., o Tribunal prevaleceu-se dos documentos apresentados para suporte de tais despesas – a saber, os documentos juntos na p.i. com os nºs 48 a 51 e 52 a 57. Quanto a saber se essas mesmas despesas se hão-de relacionar com o evento danoso, é certo que essa prova não foi cabalmente efectuada; mas é medicação adquirida na fase em que o Autor foi sujeito a tratamentos e, à luz de critérios de normalidade e experiência comum, é razoável imputar a aquisição de tais medicamentos ao tratamento a que o Autor foi sujeito durante um período longo.
O mesmo se pode afirmar quanto aos documentos atestativos das despesas relacionadas com o exercício físico: apesar de nem todos os produtos constantes dos documentos terem necessariamente a ver com aquela necessidade, é razoável imputar aquelas despesas à fase atravessada pelo Autor, sempre por efeito do evento danoso.
No que diz respeito à despesa tida com as sessões de exercício físico, mencionada no ponto 36., valeu a declaração a que corresponde o documento 61, juntamente com o depoimento da testemunha ---, treinador que assistiu o Autor e declarou, com aparente isenção e objectividade, o valor da mensalidade que este suportaria, de € 75; este quantitativo, por seu turno, constitui um valor que se reconhece como normalmente praticado no mercado para este tipo de serviços (três vezes por semana), pelo que se reconheceu credibilidade a este depoimento.
Ainda na motivação da decisão, quanto a matéria muito próxima dos específicos pontos objeto de impugnação, diz-se na motivação da decisão recorrida:
Ainda no que respeita ao ponto 38., regista-se que a afirmação aí contida foi confirmada por aquela testemunha mas deve assinalar-se, também (como defendido pelo Réu na contestação), que é facto notório a vantagem da prática de exercício físico pela população em geral; sendo certo que, na situação dos autos, o Autor não demonstrou qualquer fundamento concreto no sentido em que, por causa das lesões sofridas, a prática de exercício físico se revele uma actividade particularmente indicada ou especialmente recomendável em função dessas mesmas lesões ou das sequelas verificadas.
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Apreciando, deve começar-se por relevar que, nos termos expressamente consignados na sentença, a prova produzida quanto a estes pontos não se pode considerar cabal.
O adjetivo escolhido é especialmente apropriado aos meios de prova em causa, na medida em que estes se adequam à conclusão estabelecida, mas não abarcam toda a extensão do facto provado.
Em termos simples, o teor dos documentos permite, à luz da experiência, atestar a existência de despesas, como as dadas por provadas, mas não o seu valor integral, ou a sua integral ligação uma função de recuperação do trauma (físico e psíquico) que sustenta a indemnização.
Assim, mais concretamente, o documento n.º 61 permite estabelecer que o autor contratou um técnico de treino para o assistir na prática desportiva, e o valor pago mensalmente, mas não permite retirar:
a. O período de tempo em que tal prática ou contratação se manteve;
b. Qualquer relação direta entre o exercício físico praticado e uma exigência específica de recuperação física de consequências das lesões.
Esta última questão poderia ser apreciada a nível factual ou jurídico.
Em termos de juízo de facto, teria que se ligar à existência de elementos de prova que conduzissem a uma conclusão que o exercício físico, e a assistência técnica profissional contratada, foram receitadas ou medicamente recomendadas) – algo que, manifestamente, não consta do teor do documento em causa.
Em termos jurídicos, a questão poderá ainda ser colocada, como faz o recorrente, a nível do nexo de causalidade entre o ilícito e o dano, algo cuja apreciação se deve fazer no momento próprio.
Já no que diz respeito à extensão das despesas e ao período de tempo em que os treinos assistidos se mantiveram, a única sede própria de decisão é factual e, repete-se, os documentos não permitem estabelecer integralmente o facto provado.
Foi exigido, portanto, estabelecer um juízo conclusivo, no âmbito da livre apreciação da prova, que o tribunal formulou conjugando o teor do documento 61 com o depoimento da pessoa que emitiu a declaração que faz esse documento - o treinador pessoal ---.
Esse juízo foi formulado com base em regras de experiência, ou conhecimento comum, relativas aos valores de mercado de uma contratação desse tipo.
Também estes juízos não são suficientes, só por si, para afirmar a conclusão estabelecida relativamente ao período global em que o treino assistido se manteve.
A data do documento n.º 61 também não é suficiente para esse fim, mas é mais um elemento a considerar – a declaração foi datada de 8 de novembro de 2022
O facto provado em causa deu por assente um dispêndio total de €2.880 a este título, entre janeiro de 2020e dezembro de 2022, o que perfaz um total de 36 meses o que, levando em conta o valor declarado quanto ao preço mensal acordado, permite estabelecer um valor próximo, mas não coincidente, com o dado por provado (€2700 – 75€X36).
Conjugando estes elementos com o facto, provado, de ter o ilícito ocorrido em maio de 2019 e ter sofrido o autor um período de doença prolongado subsequente, ganha outra sustentação a este juízo à luz de razões de experiência – após um período de recuperação de alguns meses, entendendo o lesado que devia promover a melhoria da sua condição física geral, teria iniciado a prática de exercício físico regular. Este juízo permite sustentar a conclusão de um início de atividade física regular no início do ano 2020 e o seu possível prolongamento até à data de emissão da declaração (novembro de 2022).
Por outro lado, importa considerar que a testemunha em causa foi ouvida em audiência final no dia 19/12/2024, data muito posterior à do período de despesas computado.
Confirmou periodicidade dos treinos (trissemanal) e os valores mensais pagos (referindo 70€ - 75€).
Quanto ao período em que se prolongou a assistência, a testemunha, em declarações ouvidas, declarou que o autor foi seu aluno e já não é. Não soube depois precisar as datas em que essa assistência se iniciou e terminou, declarando que começou num momento um bocadinho anterior à pandemia, esclarecendo adiante que terá começado em 2019 (minutos 3:25).
Disse que continuámos durante a pandemia em modo on-line (minutos 4:25) e, nessa altura, o --- investiu mais valores em termos de equipamentos desportivos.
Aduziu que retomámos os treinos pós-pandemia em formato presencial (4:55) e ficámos até junho-julho de 2022(5:05).
Quanto a investimentos no período da pandemia, disse que investiu na compra de kettlebells, de halteres e de bandas elásticas de resistência (6:55 – 7:06) e que, deve ter gasto no total, aí à volta de 350 - 400 euros (minutos 7:30)
Quer isto dizer que, sendo esta a única prova direta relativa ao período em que ocorreram estes treinos, de acordo com este depoimento teriam que se estabelecer entre dezembro de 2019 (limite inicial correspondente à declaração da testemunha) e julho de 2022, devendo atentar-se que as declarações de parte do autor, inteiramente ouvidas, não incidiram neste ponto.
Considerando esta fixação temporal, teremos um treino assistido que durou 31 (trinta e um) meses, correspondendo a um valor total de €2350, a que acresceriam os referidos €350 a €400 (estimados) para a aquisição de equipamento para treino pessoal, perfazendo um valor global aproximado do dado por provado (€2700-€2750).
Em termos de situação de saúde, coadjuvando a ligação ao evento lesivo, referiu a testemunha um quadro clínico de insuficiência cardiorrespiratória e limitações em termos de equilíbrio e que procurou fazer um trabalho de condicionamento físico para responder a essas limitações, sendo que precisou que, no início do acompanhamento, teria analisado as recomendações médicas apresentadas pelo autor.
Tudo ponderado, pode concluir-se que a prova objetivamente produzida não permite estabelecer integralmente a conclusão dada por provada, ainda que a diferença seja meramente marginal.
Em todo o caso, a bem da consonância com o que consta dos autos e com a única prova existente, uma alteração impõe-se, passando os factos 36 a 37 a ser agrupados num único, com o seguinte teor:
O Autor despendeu na prática de exercício físico por recomendação médica decorrente do trauma sofrido o valor total de €2700, entre dezembro de 2019 e julho de 2022, com a contratação de sessões de treino em grupo e aquisição de material desportivo para esses treinos.
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Quanto ao outro facto controvertido, relativo ao dispêndio do valor de € 232,91 em equipamento (vestuário e calçado) para a prática de exercício físico, a falta de uma satisfação cabal das exigências de prova pelos documentos 52 a 57 não assenta nalguma discrepância de valor (o valor apurado corresponde à soma aritmética das faturas), mas à sua direta ligação com algum dano.
Como referido, a questão pode colocar-se ao nível jurídico da causalidade, mas também pode ser avaliada nesta sede factual.
Nesta, o descritivo das faturas apresentadas inclui uma série se itens que, como sustenta o recorrente, podem (ou poderiam) referir-se a despesas desligadas de qualquer evento danoso, ou até de alguma prática desportiva - calções, bermudas, calçado; t-shirts).
Em todo o caso, não pode deixar de se relevar o teor integral dos documentos de suporte e, desde logo, os emitentes dos documentos em causa, reconhecidamente estabelecimentos relacionados com a venda de equipamento desportivo (Decathlon; Sport Zone, etc.) o que, ligando-se à referência concreta dos artigos em causa permite sustentar o juízo de facto estabelecido.
Em termos simples, no contexto deste litígio, deve entender-se que os documentos em causa dão suporte suficiente à conclusão de aquisição, pelo autor, de vestuário e calçado para a prática desportiva.
Se isso permite estabelecer um nexo jurídico entre as despesas e o dano verificado, será algo a apurar na sede de apreciação posterior, i.e., na apreciação jurídica do recurso. Em sede factual, os meios de prova em causa dão suporte à conclusão estabelecida.
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Conclui-se, portanto, que o recurso de facto procede parcialmente, quanto à apontada alteração dos factos n.º 36 e 37.
É o que se decide. –
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II.III.II. Recurso de direito:
Face à alteração anteriormente decidida, e também para melhor contextualizar o recurso de direito, apresenta-se integralmente a matéria factual assente:
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II.III.II.I. Matéria de facto definitivamente assente nos autos:
1. Correram termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal, Juiz 4 uns autos de processo comum (Tribunal Colectivo) registados com o n.º 488/19.6SELSB, em que o ora Réu foi arguido.
2. No âmbito desse processo-crime, o Réu julgado e condenado pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio simples, na forma tentada, dois crimes de roubo, na forma tentada, de um crime de detenção de arma proibida, na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão, conforme acórdão de 1ª instância de 21.09.2020, transitado em julgado – doc. 62 com a p.i..
3. No âmbito do referido processo, o Autor, aí assistente, deduziu pedido de indemnização civil contra o Réu, aí arguido, tendo o mesmo sido remetido, nos termos do disposto no art. 82.º, n.º 3 do CPP, para os meios comuns, por despacho de 08.09.2020, conforme decorre da certidão a que corresponde o doc. 63 junto com a p.i..
4. No acórdão referido no n.º 1 foram dados como provados os seguintes factos:
«1. No dia 12 de Maio de 2019, cerca das 06 horas e 20 minutos, o arguido ---s encontrava-se no parque de estacionamento da Cordoaria Nacional, em Lisboa, quando verificou que ali se encontravam --- e ---, pelo que de imediato formulou o propósito de se apoderar de bens e valores que aqueles tivessem consigo, com recurso a uma arma de calibre 6,35 mm, que então possuía;
2. Para tanto, o arguido dirigiu-se aos mesmos e empunhando a citada arma na direcção do ofendido --- exigiu-lhe a entrega de todo o dinheiro que tivesse consigo;
3. Enquanto o faziam, o arguido alertou os ofendidos de que o objecto que empunhava tratava-se de uma arma verdadeira e que poderia utilizá-la contra os mesmos;
4. Nessa ocasião, o ofendido --- não acreditando na autenticidade da arma, disse ao arguido para se deixar de brincadeiras, pois estavam ali para trabalhar;
5. Em reacção, o arguido efectuou então um primeiro disparo para o ar e voltou a exigir a entrega do dinheiro, com advertência de que caso não o fizessem que os mataria;
6. Acto seguido, o arguido desferiu com a coronha da arma um golpe na cabeça de --- e, concomitantemente, efectuou cerca de 6 (seis) disparos na direcção daquele, tendo um deles lhe atingido o lado esquerdo da região torácica e outro rasado o seu ouvido direito;
7. Entretanto, ---, colega dos ofendidos que se encontrava ligeiramente mais à frente, apercebendo-se da situação, dirigiu-se à Rua da Junqueira, para chamar um elemento da Polícia de Segurança Pública que acompanhava a equipa de produção publicitária, da qual os ofendidos faziam parte;
8. Redobrando esforços, o arguido virou-se para a ofendida --- e com a arma apontada na sua direcção, voltou a exigir-lhe a entrega de dinheiro;
9. Como esta não lhe entregava nada, o arguido desferiu-lhe com a coronha da arma, vários golpes na cabeça e na face, e de seguida tentou abrir a bolsa que a mesma trazia, objectivo que não alcançou, uma vez que aquela se debateu pela posse da mesma;
10. Ao aperceber-se que nada conseguiria retirar aos ofendidos, o arguido abandonou o local, no veículo automóvel da marca “Ford”, modelo “Fiesta”, modelo antigo, de cor bordeaux, de matrícula ---, em direcção de Algés;
11. Os ofendidos foram conduzidos pelo INEM ao Hospital de São José, onde foram assistidos;
12. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, --- sofreu, para além de alteração da sua sensibilidade (dor), ferida perfurante com porta de entrada no precórdio, perto do mamilo esquerdo, sem porta de saída, com fractura do 8.° e 9.° arcos esquerdos costais e perturbação timpânica;
13. Tais lesões determinaram a --- um período de doença de 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias, com afectação da capacidade de trabalho geral, por igual período e afectação da capacidade profissional por 155 (cento e cinquenta e cinco) dias;
14. Já --- sofreu, para além de alteração da sua sensibilidade (dor), ferida no lábio superior à esquerda, transfixava, avulsão traumática do dente 22, com deformação do arco ortodôntico;
15. As citadas lesões determinaram à ofendida um período de doença de 30 (trinta) dias, com afectação da capacidade de trabalho geral por 17 (dezassete) dias e com afectação da capacidade de trabalho profissional por igual período;
16. O arguido agiu com o propósito de tirar a vida do ofendido ---, disparando em zonas que visou, onde sabia encontrarem-se órgãos vitais, utilizando instrumento idóneo para atingir o seu objectivo, o que não conseguiu, por circunstâncias externas à sua vontade;
17. Agiu ainda o arguido com o propósito de se apoderar de bens e valores que os ofendidos tivessem consigo, bem sabendo que a isso não estava autorizado e que o fazia contra a vontade dos seus donos, desiderato que não alcançou por razões alheias à sua vontade;
18. Como meio para a plena concretização dos seus intentos apropriativos, usou uma arma de fogo para ameaçar e efectuar os disparos e fê-lo de forma a levar os ofendidos não só a entregar-lhe os bens e valores que possuíam, mas também porque o ofendido --- não lhe entregou de imediato os bens que possuía;
19. Em todas as condutas, agiu o arguido de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo da sua reprovabilidade em termos penais; Do pedido de indemnização cível deduzido pelo "Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, E.P.E.
20. O demandante é uma pessoa colectiva de direito público, integrada no Serviço Nacional de Saúde;
21. Na sequência do descrito o ofendido --- sofreu lesões, nos termos aludidos e por conta das mesmas foi assistido em episódio de urgência, internamentos, cirurgias e tratamentos, no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, tendo sido sujeito a exames, intervenções cirúrgicas, internamentos, análises e tratamentos médicos, no valor total de € 3.331,90 (três mil trezentos e trinta e um euros e noventa cêntimos), não tendo sido tal quantia até hoje paga;
22. Na sequência do descrito a ofendida --- sofreu lesões, nos termos aludidos, e por conta das mesmas foi assistida em episódio de urgência, no dia, no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, tendo sido sujeitos a exames e tratamentos médicos, no valor total de 6 123,07 (cento e vinte e três euros e sete cêntimos), não tendo sido tal quantia até hoje paga;
23. Do certificado de registo criminal do arguido constam as seguintes condenações:
- pela prática de um crime de furto, previsto e punido pelo Art.° 203.°, do Código Penal, por factos de 26.11.2010, por sentença proferida a 24.05.2011, transitada em julgado a 14.06.2011, no âmbito do processo n.° 1777/10.0PYLSB, pela l.a Secção do 2.° Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, foi o arguido condenado na pena de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o total de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros). Por despacho de 05.11.2012, foi a pena de multa substituída pela prestação de 90 (noventa) horas de trabalho, declarada extinta, por despacho de 07.01.2015;
- pela prática, em concurso, de um crime de injúria, previsto e punido pelo Art.°181.°, do Código Penal, 3 (três) crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelos Arts.0153.°, n.° 1 e 155.°, n.° 1, alínea a), ambos do Código Penal, um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo Art.° 86.°, n.° 1, alínea c), da Lei n.° 5/2006, de 23/02 e um crime de ameaça, previsto e punido pelo Art,° 153.°, do Código Penal, por factos de 29.11.2014, por sentença proferida a 08.06.2016, transitada em julgado a 07.2016, no âmbito do processo n.° 1029/14.7PCOER, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Oeiras, Jl, foi o arguido condenado nas penas parcelares de 2 (dois) meses de prisão pela prática de um crime de injúria, 5 (cinco) meses de prisão pela prática de um crime de ameaça, 2 (dois) anos de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida e de 9 (nove) meses, 7 (sete) meses e 5 (cinco) meses, por conta de cada um dos três crimes de ameaça agravada, e na pena única, em cúmulo, de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão suspensa na sua execução, por igual período de tempo, sujeita a regime de prova; - pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo Art.° 152.°, n.° 1, alínea d) e n.° 2, do Código Penal, por factos de 30.10.2018, por sentença proferida a 08.11.2019, transitada em julgado a 09.12.2019, no âmbito do processo n.° 1005/I8.0PBOER, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Oeiras, J2, foi o arguido condenado na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão suspensa na sua execução, por igual período de tempo, sujeita a regime de prova e frequência do programa para agressores de violência doméstica e na pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo prazo de um ano e de proibição de permanecer na residência da ofendida --- pelo período de um ano, com meios de fiscalização à distância;
24. Do relatório social do arguido, além do mais, consta a seguinte factualidade, cujo teor se dá integralmente por reproduzido: - «o arguido é natural de Carnaxide, Oeiras, é o único filho do matrimónio, Desenvolveu-se no seio de uma família de condição socioeconómica estável, o pai trabalhava como realizador de televisão (TPA), faleceu em 1998, vítima de acidente automóvel e a mãe trabalhava como bancária, mas já está reformada; - quando o arguido tinha 10 (dez) anos de idade, o agregado foi viver para Angola, onde o pai trabalhava, no entanto, passados dois anos o arguido regressa a Portugal e vai para um colégio interno, no Cacém, uma vez que teve problemas de adaptação ao sistema escolar angolano, local onde se manteve cerca de um ano e foi viver com a avó materna, até a mãe regressar, tinha o arguido 14 (catorze) anos de idade; - o percurso escolar foi inconstante, verificando-se algumas reprovações por falta de investimento pessoal, concluiu o 8.° ano de escolaridade, com cerca de 18 (dezoito) anos de idade; - do ponto de vista laboral, o arguido iniciou a sua actividade profissional como fiel de armazém, passando depois para a área da segurança privada, onde se manteve durante vários anos, tendo sido rescindido o seu contrato de trabalho, na sequência da detecção de estupefacientes no organismo no decurso de análises clínicas solicitadas pela entidade empregadora; - em termos de saúde, o arguido é saudável, no entanto, iniciou o consumo de haxixe com cerca de 16 (dezasseis) anos, e por volta dos 18 (dezoito) anos começou a consumir heroína, situação que motivou vários internamentos em comunidades terapêuticas, períodos de abstinência e recidivas no consumo. Em 2012, altura do seu despedimento, iniciou terapia de substituição com metadona, tratamento que continua a manter no estabelecimento prisional;
- em termos afectivos mantém uma relação com ---, há cerca de três anos. Tem um filho, de 22 (vinte e dois) anos, fruto de uma relação ocasional com uma cidadã alemã, não tendo sido reconhecida formalmente a sua paternidade, não mantendo contactos com o mesmo que vive na Alemanha; - nunca esteve preso anteriormente, no entanto, regista contactos com o sistema de administração da justiça: Foi condenado pela prática de crime de ameaça, crimes de ameaça agravada, um crime de detenção de arma proibida e um crime de injúria, na pena única de dois anos e oito meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com termo em 11-03-2019, e foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de dois anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução por igual período sujeita a regime de prova, tendo o acórdão transitado em julgado em 09.12.2019. Foi ainda condenado na pena acessória de proibição de contados e de permanecer na residência da ofendida pelo período de um ano fiscalizada através de meios de vigilância electrónica;
- na data dos factos imputados, o arguido residia em união de facto com --- num apartamento localizado na Ameixoeira, propriedade da progenitora;
- o arguido mantinha-se desempregado, beneficiado do Rendimento Social de Inserção e do apoio económico da mãe, que assegurava a amortização do empréstimo bancário e as restantes despesas relacionadas com o imóvel, depositando ainda dinheiro para as suas necessidades básicas;
- nos tempos livres praticava tiro desportivo; - o arguido deu entrada no Estabelecimento Prisional de Caxias em 27.12.2019. Encontra-se à ordem do processo n.º 488/19.6SELSB, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa-Juiz 4, indiciado pelos crimes de roubo na forma tentada, homicídio qualificado na forma tentada e detenção de arma proibida; - em termos institucionais, o arguido revela uma postura adequada e colaborante no contacto interpessoal, quer com os pares, quer com os serviços técnicos e de vigilância, no entanto, regista três dias de Permanência Obrigatória no Alojamento, por Comportamento Incorrecto;
- em termos laborais o arguido, não exerce funções, nem se encontra integrado em qualquer actividade escolar ou formativa no estabelecimento prisional;
- a nível familiar tem apenas visitas da companheira, uma vez que foi condenado em 09.12.2019, processo n.° 05/18.0PBOER, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Oeiras - Juiz 2, na pena acessória de proibição de contactos com a progenitora pelo período de um ano;
- o arguido tem 46 (quarenta e seis) anos de idade, sendo esta a lª vez que dá entrada num Estabelecimento Prisional e manifesta o desejo e motivação para organizar a sua situação pessoal, profissional e social de forma ajustada a um padrão de vida normativo.».
5. O Autor é trabalhador independente, trabalhando como assistente de produção.
6. Até à data dos factos, o Autor era uma pessoa saudável, sem antecedentes pessoais significativos.
7. No dia 12 de Maio de 2019, cerca das 06h20, o Autor encontrava-se a trabalhar no parque de estacionamento da Cordoaria Nacional, em Lisboa, quando foi abordado pelo Réu.
8. Em consequência directa e necessária da conduta do R., o A. sofreu, para além de alteração da sua sensibilidade (dor), ferida perfurante com porta de entrada no precórdio, perto do mamilo esquerdo, sem porta de saída, com fractura do 8.º e 9.º arcos esquerdos costais e perturbação timpânica, apresentava-se, ainda, hipotenso e com diminuição do MV à esquerda, tendo-lhe sido colocado dreno torácico com saída de 400cc hemático.
9. O Autor foi ainda submetido a vários exames complementares de diagnóstico que diagnosticaram “hemotórax e pnemorotax esquerdo, enfisema subcutâneo latero cervical, fractura do 8.º arco costal esquerdo, aspectos relevantes de trajecto de projétil balístico que se localiza na profundidade da gordura subcutânea, latero cervical, fratura da vertente posterior do 8.º arco costal esquerdo, aspectos relevantes de trajecto de projétil, balístico que se localiza na profundidade da gordura subcutânea dorsal esquerda ao nível do 8.º arco costal. Observado também por arco ORL que constatou perfuração do tímpano direito e tem indicação para evitar qualquer entrada de água no ouvido direito – indicação para testes auditivos para documentar a acuidade auditiva. Colocado dreno torácico no hemitorax esquerdo para drenagem do hemopneumotorax que foi removida a 17/05; feito RX torax de controlo após a remoção de drenagem torácica que mostra correcta expansão pulmonar.” – cf. doc. 2 com a p.i.
10. O Autor apenas teve alta hospitalar em 20.05.2019.
11. Porém, no seguimento das indicações que lhe foram dadas e atendendo aos sintomas que apresentava, o Autor deslocou-se à urgência do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa em 24.05.2019 (cf. doc. 4 com a p.i.).
12. Aí chegado, o A. apresentava febre, dispneia e toracalgia a inspiração profunda, foi observado pela cirurgia torácica, assumindo-se recidiva de hemotórax e sobreinfecção.
13. Procedeu-se à colocação de dreno torácico e fez antibioterapia, tendo tido alta hospitalar apenas no dia 06.06.2019 (cf. doc. 3 com a p.i.).
14. A nota de alta tinha as seguintes indicações (cf. doc. 4): “Recorrer ao serviço de urgência no dia 08/06/2019, ao cuidado de AA, para excisão de projéctil, em aparente localização subcutânea; Remover pontos de sutura dentro de 10 dias no centro de saúde da área de residência; Comparecer a consulta externa de cirurgia torácica no Hospital de Santa Marta, no dia 08/07/2019, às 14h, para reavaliação de pós-operatório; Cumprir analgesia com paracetamol 1g1 comprimido 8/8 horas e metamizol magnésico 575 mg 8/8 h alternadamente com paracetamol, em SOS; Recorrer ao serviço de urgência se sintomatologia de alarme, explicada oralmente ao doente; Comparecer a consulta externa de otorrinolaringologia no Hospital de São José nos dias 05/09/2019 as 10:00 e 13/12/2019, as 12:00.”
15. Após as referidas indicações, e em cumprimento das mesmas, o A. recorreu de novo, no dia 08/06/2020, ao Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, ao serviço de urgência, para a remoção do corpo estranho (cf. doc. 5 com a p.i.), tendo, para tal, sido realizada “desinfecção do campo operatório com iodopovina em solução. Sob anestesia local com lidocaína 2%, procedeuse a incisão cutânea com dissecção dos planos adjacentes, para remoção do projéctil. Encerramento por planos: tecido subcutâneo com ponto único sem intercorrências.”
16. Foi também dado o seguinte plano: “- Analgesia com metamizol 575 mg per os – cumpre analgesia para ambulatório conforme prescrição do internamento; - Pode remover penso ao final de 48 h e aplicar gelo sobre a ferida operatória, protegido com pano, durante curtos períodos de tempo; - Retorna ao SU no próximo dia 16/06/2019, ao cuidado de AA, para reavaliação da ferida operatória”;
17. Por força das lesões causadas, e para reabilitação respiratória e musculo-esqueléctica em contexto pós trauma torácico, foi recomendado ao A. a prática desportiva.
18. Além disso, o A. necessitou de realizar sessões de fisioterapia para status pós cirúrgico a remoção de uma bala do tórax esquerdo, com pneumotórax, derrame pleural e colocação de drenos (cf. doc. 7).
19. O Autor continuou a ser seguido na especialidade de torácica no Hospital de Santa Marta, na parte respiratória, o qual após várias consultas já recebeu alta, mas com indicação de voltar caso sentisse sintomas associados à parte respiratória.
20. Por força das sessões de fisioterapia, verificou-se uma evolução clínica favorável, com aumento de ventilação alveolar do pulmão esquerdo, optimização das trocas gasosas e diminuição da dispneia.
21. Contudo, como o A. continuava a padecer de dispneia, foi aconselhada a continuação dos tratamentos de fisioterapia em 02 de Agosto de 2019 (cf. doc. 7).
22. Como as lesões foram excessivamente profundas, o A. sentia ainda dores em certos momentos de respiração mais profunda e também dificuldade em manter a respiração normal nas situações em que fazia algum esforço, mesmo que diminuto.
23. Para tentar recuperar a forma física, o A. recorreu ao exercício físico que lhe foi recomendado pelo médico.
24. Por força da perfuração timpânica do ouvido direito, o A. foi seguido na especialidade de otorrino, no hospital de São José, pois sofreu perda de audição.
25. O A. foi também seguido na especialidade de estomatologia no hospital de São José para descartar eventuais sequelas provocadas pela perda de audição, de onde já teve alta.
26. O Autor teve necessidade de recorrer a acompanhamento psicológico, tendo para isso contactado a linha de apoio à vítima da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, onde foi seguido por psicóloga no departamento Rede de apoio a familiares e amigos de vítimas de homicídio e vítimas de terrorismo – doc. 8.
27. O Autor também consultou um psiquiatra, pois desde a ocorrência deste episódio que manifestou sérias dificuldades em adormecer e sentia-se hipervigilante, tendo-lhe sido diagnosticada perturbação de stress pós-traumático, tendo-lhe sido prescritos os seguintes psicofármacos: sertralina (500 mg), lorsedal e surmontil, aos quais ainda recorre em situações de maior stress e em SOS.
28. O Autor ainda hoje vive sentimentos de medo, insegurança e hipervigilância, tendo já vivido diversos ataques de pânico, quando ouve sons que o relembram do sucedido.
29. O A. necessitou, por muito tempo, de fazer um esforço permanente para evitar pensamentos e lugares associados ao ocorrido, não se encontrando confortável, ainda hoje, quando tem de passar pelo local do crime.
30. Na sua actividade profissional, o Autor envolvia-se em vários projectos e, apesar de não auferir um vencimento mensal fixo, poderia ter alcançado em 2019, em condições normais, o rendimento de pelo menos € 22.000, auferido em 2018.
31. As limitações físicas e psíquicas que o Autor sofreu e os períodos de incapacidade total e parcial que atravessou impediram-no de aceitar vários projectos durante o resto do ano de 2019, o que o colocou numa situação profissional e financeira difícil, em que auferiu apenas o valor bruto de € 19.330,00 (docs. 18 a 30).
32. O Autor recebeu da sua seguradora, no âmbito da apólice de seguros de acidente de trabalho, o valor de € 3.827,44 (docs. 31 – 36).
33. No ano de 2020, o Autor auferiu o rendimento bruto de € 8.850,00 (docs. 37- 47).
34. Após o assalto e a sua recuperação, o Autor só voltou a trabalhar no final desse ano, mas com funções diferentes, maioritariamente em contexto de back office.
35. O Autor despendeu em medicamentos o valor de € 23,09 (docs. 48-51).
36. O Autor despendeu na prática de exercício físico por recomendação médica decorrente do trauma sofrido o valor total de €2700, entre dezembro de 2019e julho de 2022, com a contratação de sessões de treino em grupo e aquisição de material desportivo para esses treinos.
37. (vazio);
38. A prática de exercício físico durante toda a vida do Autor é indicada, como forma de atenuar as sequelas.
39. Em equipamento para a prática de exercício físico, o Autor despendeu o valor de € 232,91 (docs. 52-57).
40. O prémio de seguro da sua apólice de acidentes de trabalho foi incrementado em € 205,18, no ano de 2019, e em € 731,57 no ano de 2020 – docs. 58 e 59.
41. O Autor foi submetido a diversas intervenções cirúrgicas e exames de diagnóstico, esteve nos cuidados intensivos durante vários dias, entre a vida e a morte, e sentiu profundas dores físicas.
42. O Autor passou a viver angustiado, com medo e hipervigilante.
43. Quando ouviu os disparos e viu a arma empunhada na sua direcção, pensou que iria morrer, tendo vivenciado o pior momento em toda a sua vida.
44. Os sentimentos vivenciados durante o assalto são ainda hoje revividos sempre que o A. ouve algum som de disparo, mesmo que seja em ficção.
45. O A. manifesta ainda receio de sair à rua, quer seja sozinho, quer acompanhado, por medo de voltar a reviver uma situação como esta.
46. O Autor passou a evitar sair de casa e conviver socialmente.
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II.III.II.II. A existência de nexo causalidade entre as despesas com prática desportiva, (contratação de treinador pessoal, aquisição de material, vestuário e calçado desportivo) e o facto lesivo:
Salientando as supra referidas conclusões de recurso e a matéria factual estabelecida, contextualizando a decisão, pode dar-se por assente:
a. Que não está em causa a existência de um ilícito causador de danos na esfera do recorrido-autor;
b. Que não está em causa, face à decisão de facto pontualmente alterada, que o recorrido-autor tenha despendido com prática desportiva, seja com pagamento de treinador, seja com aquisição de material, vestuário e calçado desportivo, um total de €2932,91 (€2700+€232,91).
O que está em causa, consequentemente, é apenas saber se estas despesas foram consequência do facto ilícito, ou, pondo a questão em termos puramente jurídicos, se constituem danos emergentes do ilícito ou, noutra perspetiva, se podem ser imputadas ao autor do facto, aqui recorrente.
Argumenta o recorrente, fazendo eco até de palavras da própria sentença, que a prática de exercício físico é um bem para qualquer pessoa e, na medida em que não foram apuradas sequelas físicas diretas do ato danoso, as despesas suportadas a este título são independentes desse facto. Nesta lógica, seriam apenas despesas relacionadas com o recreio e a fruição do autor, não danos emergentes de um facto ilícito.
Esta argumentação, a despeito da violência envolvida no ilícito em causa, desde logo pela circunstância de se tratar de um atentado direto contra a vida cometido com uso de arma de fogo, não deixa de ser dotada de alguma pertinência, pelo menos prima facie.
É linear afirmar-se que só podem ser consideradas emergentes do facto ilícito as despesas suportadas para o reparar.
A questão é saber qual o limite da relação que deve estabelecer entre despesas suportadas e facto lesivo que as originou ou qual o ponto, a partir do qual, se não pode considerar que uma determinada despesa foi causada por um dado facto ilícito.
Na procura de critérios orientadores, disse-se, de forma clara em acórdão da Relação de Guimarães de 22/7/2007 (Rosa Tching, dgsi.pt)1 que existe nexo de causalidade adequada entre uma conduta e o dano, quando este, pelas regras correntes da vida, é consequência daquela, não sendo necessária uma causalidade directa, bastando uma causalidade indirecta, que se dá quando o facto não produz ele mesmo o dano mas desencadeia ou proporciona um outro que leva à verificação deste.
É certo que, relativamente a um dano indireto relativo ao pagamento de honorários a advogado, a jurisprudência não tem sido uniforme (veja-se, em sentido contrário, o acórdão da Relação de Coimbra de 29/10/2004, Coelho de Matos, jurisprudencia.pt)2, mas há que considerar que, quanto a esse específico dano indireto, se deva sobrelevar a existência de um regime legal específico para a compensação de despesas com advogado como critério decisivo para fundamentar o afastamento dessa compensação (e não, portanto, a ausência em um nexo entre facto e dano).
Disse-se em acórdão no STJ de 25/6/2009, de forma particularmente elucidativa, que o nosso sistema jurídico consagra no artigo 563.º do Código Civil uma vertente ampla da causalidade adequada, ao não exigir a exclusividade do facto condicionante do dano: assim, poderá configurar-se a concorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não daquele facto condicionante, assim como se admite também a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeie um outro que, por sua vez, suscite directamente o dano (Mário Pereira, pgdl.pt)3
É um entendimento que se vem repetindo e alargando o seu alcance, o que levou, designadamente, a que se tenha firmado jurisprudência, em acórdão uniformizador, no sentido de admitir fixação de indemnização pela chamada perda de chance, esclarecendo que o dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade. Esta doutrina admite, portanto, situação em que o dano é estabelecido apenas por uma forte, ou consistente, probabilidade, não como um prejuízo atual e diretamente apurado, algo que, de alguma forma, também reforça o entendimento de não ser necessária uma relação direta e imediata entre facto e dano para que este seja compensável (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2022 – Diário da República I série 26/1/2022)4
Compaginando estes entendimentos, perante um ilícito que produz danos biológicos, podem ser consideradas causais do facto todas as despesas suportadas para recuperar, na máxima medida possível, a integridade biopsicológica de uma pessoa lesada.
Nesta noção alargada, serão despesas elegíveis para qualificação como danos emergentes não só aquelas que se refiram a repor a integridade fisiológica e corporal do lesado, mas também as que se destinem a restituir a sua integridade psicológica (total ou possível), ou a sua recuperação psiquiátrica.
Neste contexto, importa começar por salientar que, nos termos ainda do acórdão criminal, foi estabelecido que o lesado, aqui recorrido, sofreu, em consequência do ilícito, um período de doença de 365 dias.
Compaginando este dado com o apurado nestes autos quanto ao início dos treinos assistidos, conclui-se que estes se iniciaram ainda no período de doença (facto ilícito ocorrido em maio de 2019 e início das despesas com prática desportiva em novembro desse ano).
Se se considerar também que a atividade física foi iniciada por recomendação médica decorrente do trauma sofrido e que, mesmo quanto a matéria não impugnada, já estava assente que a prática de exercício físico durante toda a vida do Autor é indicada, como forma de atenuar as sequelas do evento, pode afirmar-se que a ligação entre as despesas com atividade desportiva e a ofensa é, em grande medida, verdadeiramente direta.
A esta conclusão acresce a circunstância, não diretamente provada, mas que se pode presumir naturalmente da matéria assente, que a prática desportiva foi também uma forma de o autor procurar o seu restabelecimento psicológico e psicossomático do trauma sofrido.
O desporto tornou-se, nessa medida, uma forma de combater a tristeza, a angústia, os ataques de pânico, as dificuldades de conciliar o sono e todo o restante conjunto de consequências psicológicas e emocionais suportadas pelo autor em resultado do evento lesivo.
Também nessa perspetiva, devem ser qualificadas como despesas emergentes do ilícito.
O argumento a contrariu sensu, que é, de algum modo, o que o recorrente invoca ao dizer o que, em termos coloquiais, poderia ser resumido na frase "o desporto faz bem a todas as pessoas e o facto de o autor ter decidido praticá-lo a seguir ao acidente não pode ser considerado como uma consequência do crime" não pode, assim, colher.
A premissa maior do raciocínio estará correta e é consensual, mas o que está em causa não são benefícios gerais, de qualquer pessoa, é um concreto lesado, vítima de um crime violento e que iniciou a prática desportiva por recomendação médica para recuperar as consequências do mesmo.
Sendo verdade, no campo da generalidade, que o desporto fará bem a todas as pessoas, também não deixa de ser verdade, ainda nesse campo, que muitos o praticam e muitos não o fazem. Se o facto ilícito foi um evento que espoletou uma vontade pessoal de o fazer, tal não traduz mais que uma circunstância lateral e irrelevante para a aferição de existência de um nexo entre facto e dano.
Pondo a questão em termos simples, as vantagens que podem advir para um lesado da ocorrência de um facto ilícito, numa expressão popular particularmente ilustrativa, os males que vêm por bem, não são suficientes para afastar uma conexão jurídica relevante entre facto e dano.
Se o crime foi um motivador pessoal da prática de exercício físico, isso não releva para afastar a natureza de dano das despesas inerentes, especialmente num caso em que este se tenha iniciado por recomendação médica.
Uma vez que as despesas foram suportadas para reparar as consequências do evento, está estabelecido esse nexo de causalidade entre facto ilícito e dano com despesas para o reparar, qualquer que seja o circunstancialismo conexo ou as motivações paralelas que se possam manifestar.
A conclusão, na parte relativa a despesas com pagamento a treinador pessoal e com a aquisição de material de finalidade estritamente desportiva (halteres, elásticos, kettlebells), é de estabelecimento desse vínculo e, por isso, de falta de sustentação da argumentação de recurso.
Maiores dúvidas se podem manifestar com as despesas relativas à aquisição de vestuário e calçado, em que o argumento do recorrente ganha maior pertinência.
Neste caso, não se trata apenas de afirmar que o desporto faz bem a todos para procurar afastar a ligação entre o evento e as despesas. Trata-se de afirmar que o autor, como todas as pessoas (em princípio), terá que andar vestido e calçado e, portanto, as despesas que contraiu para essas finalidades não podem ser imputadas ao crime contra si praticado.
Apesar de ser necessária, neste ponto, uma avaliação ainda mais atenta, a conclusão terá que ser a mesma.
Também aqui, o que se apurou não foi que o autor comprou roupa e sapatos, cujo valor pretende imputar ao recorrente. O que se apurou, com a margem de certeza possível em qualquer decisão judicial, é que o recorrente adquiriu vestuário e calçado para a prática desportiva que iniciou.
Sendo este o caso, valem no mais as considerações anteriores e, portanto, também se estabelece um nexo jurídico de adequação entre a despesa contraída e o facto ilícito, o que permite qualificar aquele como dano emergente deste.
É claro que permanecem desconhecidas as exatas características das t-shirts, dos calções, ou dos sapatos (ténis/sapatilhas) adquiridos e, muito menos, o que, efetivamente, o autor fez com cada um desses artigos e, portanto, se os usou, de facto, para a prática desportiva ou para qualquer outra finalidade.
No mero campo das possibilidades não se pode afastar que o autor tenha pretendido imputar ao réu o pagamento de despesas que, efetivamente, não se relacionaram com a prática desportiva. Isso não afeta, todavia, o antes referido – os artigos em causa são de vestuário e calçado desportivo e a sua utilização é adequada a essa finalidade e, nessa medida, o referido nexo jurídico entre a despesa e o facto ilícito também se estabelece.
É o que se decide improcedendo também este argumento de recurso.
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II.III.II.III. Danos não patrimoniais
Pede o recorrente que seja feita uma reavaliação equitativa do valor atribuído ao autor a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Esse valor, fixado na sentença, foi o de €35.000 (trinta e cinco mil euros).
Fundamentou-o a decisão recorrida do seguinte modo:
(...) cumpre assinalar que, por causa da conduta criminosa do Réu, o Autor sofreu dores físicas e psicológicas relevantes, por ter estado internado durante longo período, parte dele nos cuidados intensivos; pensou que iria morrer e ainda hoje revive os acontecimentos como os piores de toda a sua vida; vive, ainda hoje, angustiado, com medo e híper vigilante, com sintomas compatíveis com o distúrbio de stress pós traumático, sendo hoje pessoa mais reservada, mais introvertida e menos atreita ao convívio social e fora de casa.
(...)
Estas considerações encontram particular relevância num caso como o presente, em que o Tribunal é chamado a arbitrar um quantum indemnizatório em moldes muito diversos daqueles em que o agente actua com negligência ou culpa leve como é, tipicamente, o caso nos acidentes de viação. Aqui, contrariamente àquelas situações, a ilicitude e a culpa são particularmente intensas e vincadas (o que confere, até, um certo carácter inusitado aos factos em questão), o que justifica – e determina – a atribuição de valores, quiçá, excepcionalmente elevados, se comparados com aqueles habitualmente encontrados na jurisprudência nacional.
(...)
Mas, compulsando o pedido formulado pelo Autor nesta sede (€ 50 mil), tem-se em conta a mais recente jurisprudência do S.T.J. em matéria de dano não patrimonial – e, em especial, o dano morte, que é o mais valoroso e mais intenso
(...)
Ora, regressando à situação sub judice, leva-se em consideração, por um lado, o elevado grau de culpa do Réu, que agiu livre, deliberada e conscientemente, de forma altamente censurável, tendo os seus actos provocado profunda ofensa à integridade física e psíquica do Autor; por outro lado, sabe-se que, felizmente, para o Autor não remanescem sequelas físicas de cariz definitivo e é de esperar, razoavelmente e à luz das regras da experiência comum, que as sequelas psicológicas tendam a amenizar com o decurso do tempo, levando em conta, também, que o Autor é ainda relativamente jovem e está no máximo da sua vida activa.
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Considerando o enquadramento feito em 1.ª instância, deve começar por dizer-se que se apresenta completo, seja no que diz respeito à avaliação objetiva do ilícito e dos danos não patrimoniais causados, seja no que diz respeito às circunstâncias subjetivas de lesante e lesado.
A gravidade objetiva da ação lesiva é muito elevada, por ser diretamente destinada a afetar o bem de maior valor na ordem jurídica – a vida.
Dir-se-á até que tipifica um comportamento cujo desvalor é o máximo, ou próximo disso, na ordem jurídica.
Não pode merecer senão esse tipo de qualificação o comportamento de alguém que, no decurso de um roubo por si perpetrado, depois de desferir diversos golpes com a coronha da arma, dispare vários tiros na direção de zonas vitais do ofendido, com intenção de o matar (estabelecida em sede de processo criminal), apenas não concretizada por razões alheias à vontade do lesante.
As consequências da ação, também bem descritas na sentença, não podem ser quantificadas num patamar de gravidade equivalente, mas não podem ser desvalorizadas.
É certo que não foram identificadas sequelas físicas permanentes para o lesado e que as consequências psicológicas e emocionais tendem a ser atenuadas com a passagem do tempo.
Isso não invalida o relevo das consequências supra identificadas, desde o simples medo da morte, até ao stress pós-traumático, passando por todo o quadro de angústia, vigilância, insónias e de medo indefinido que suportou.
O quadro de consequências físicas e emocionais para o lesado deve, assim, também ser qualificado de grave.
Saindo do contexto objetivo para o subjetivo, nada de particularmente abonatório para o lesante se apurou que, mesmo não a justificando, permitisse explicar a sua conduta ou mitigar o juízo de culpa formulado.
Há referências no acórdão criminal a ser um toxicodependente em programa de metadona, não sendo claro se se encontrava nalgum período de específica fragilidade relacionada com essa adição, mas este deve ser um contexto a relevar.
No mais, é alguém que foi criminalmente condenado pelo facto e que se encontra em cumprimento de pena e, portanto, inevitavelmente, com muito limitados meios económicos, o que deve também ser considerado.
O juízo sobre a capacidade económica do lesante deve ser contextualizado, por outro lado, pela circunstância de ser a origem dessa insuficiência diretamente decorrente do ilícito objeto de indemnização e, portanto, não poder ser sobrevalorizada.
A simples natureza das coisas faz mitigar esse relevo que, no limite, poderia levar a que nenhuma indemnização por danos não patrimoniais fosse devida sempre que o lesante se colocasse intencionalmente em situação de incapacidade de ganho.
Da parte do lesado, há que atentar ao quadro de recuperação biológica e psíquica e emocional que trilhou, bem como ao restabelecimento da normalidade social da sua vida, v.g., em termos profissionais.
Também este raciocínio não deve, porém, fazer esconder a gravidade do ato sofrido e as consequências para o lesado, sejam as conhecidas, seja uma ponderação das que podem vir a manifestar-se no futuro.
A conclusão a tirar, em termos de avaliação conclusiva de facto, é que o tribunal ponderou adequadamente, a nível objetivo e subjetivo, a situação dos autos.
Em termos de ponderação jurídica do juízo de equidade, o tribunal a quo tomou como perspetiva decisória os parâmetros de decisão estabelecidos pelo STJ, mais especificamente no que concerne ao dano morte, ou indemnização pelo dano de perda da vida.
O critério seguido também se apresenta correto, não só porque o referencial de jurisprudência é pertinente em geral, como o é especialmente, num caso de avaliação de danos não patrimoniais decorrentes de um atentado contra a vida do lesado.
Essa circunstância, mesmo que não sucedida no resultado, permite uma identificação próxima de todos os sofrimentos relacionados com o medo, ou mesmo a presciência, da morte e as dores e angústias relacionadas.
Se não permite identificar com o dano perda da vida a se, o que justifica uma diminuição do valor da indemnização face a essa referência, por outro lado vê acrescer todo o conjunto de consequências psíquicas e emocionais acima referidas, que um lesado do dano morte não suportará – todo o sofrimento e stress posterior.
Em todo o caso, o critério decisório de chamar à colação a jurisprudência relativa à quantificação do dano morte mostra-se adequado, como se mostra adequado quantificar os danos não patrimoniais do caso em grau inferior a esse referencial - a vida, apesar de afetada gravemente, foi preservada, e só essa circunstância justifica esta conclusão.
Chegando a este ponto, a última questão a apreciar será a de saber se o referencial pecuniário adotado é correto ou pode ser considerado excessivo (se pecar por defeito, não tendo sido interposto recurso pelo lesado, a questão não tem pertinência).
Diz-se na decisão recorrida, repescando afirmações constantes de jurisprudência superior, que devem ser afastados critérios miserabilistas e afirmada a existência de orientações jurisprudenciais do STJ de quantificação do dano vida em valores situados entre os €50.000 e os €100.000.
Essa referência aos padrões de quantificação deve ser considerada, em geral, correta (a propósito, veja-se: - O dano morte na jurisprudência das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça – Sumários de acórdão de 2016 a 2021, stj.pt)5, e, por todos, acórdão STJ de 25/2/2021 (Rosa Tching, dgsi.pt)6
Sem prejuízo, importa não olvidar que se tem verificado um consistente aumento dos valores indemnizatórios por danos não patrimoniais, alinhado com essa recusa de padrões miserabilistas, podendo referir-se, a título meramente exemplificativo, o acórdão do STJ de 8/6/17 (Prazeres Beleza, dgsi.pt) em que foi entendida adequada uma indemnização por danos não patrimoniais equivalente a €80.000 na sequência de uma afetação orgânica - perfuração intestinal, com 16 pontos de perda funcional.7
Tudo ponderado, considera-se que a decisão de 1.ª instância, por ter ponderado adequadamente os elementos de facto relevantes para a quantificação da indemnização, seja a nível objetivo (gravidade da ação e das suas consequências), seja a nível subjetivo (consideração da situação de lesante e lesado), deve ser mantida.
É o que se decide, improcedendo também o recurso, nesta parte.
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Em conclusão, deve ser concedida apelação quanto à alteração da decisão de facto relativa à quantificação das despesas com a prática desportiva (treinador e material, neste se incluindo vestuário e calçado), no mais mantendo-se a decisão recorrida.
É o que se decide, a final. –
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III. Decisão:
Face ao exposto, concede-se parcialmente a apelação relativa à matéria de facto, passando os factos provados 36 e 37 a ser agrupados num único, com o seguinte teor:
O Autor despendeu na prática de exercício físico por recomendação médica decorrente do trauma sofrido o valor total de €2700, entre dezembro de 2019 e julho de 2022, com a contratação de sessões de treino em grupo e aquisição de material desportivo para esses treinos.
Em consequência, concede-se parcial apelação, fixando o valor global da indemnização devida em €41.659,84 (quarenta e um mil seiscentos e cinquenta e nove euros e oitenta e quatro cêntimos), mantendo-se, em tudo o mais, a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, sem prejuízo de apoio judiciário.
Notifique-se e registe-se. –
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Lisboa, 10-07-2025,
João Paulo Vasconcelos Raposo
Ana Cristina Clemente
Susana Gonçalves
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1. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
2. jurisprudência.pt - Pesquisa de jurisprudência Portuguesa
3. ::: Jurisprudência do STJ (boletim interno)
4. 0002000042.pdf
5. danomorte.pdf
6. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
7. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça