AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
DOMÍNIO PÚBLICO
DOMÍNIO PRIVADO
DOMÍNIO PÚBLICO MARÍTIMO
DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
LEI APLICÁVEL
INTERESSE PÚBLICO
PRESUNÇÃO LEGAL
ÓNUS DA PROVA
TÍTULO DE AQUISIÇÃO
JUSTO TÍTULO
MEIOS DE PROVA
PROVA DOCUMENTAL
TRANSMISSÃO DE PROPRIEDADE
Sumário


I - Quem pretender obter o reconhecimento da propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, tem de demonstrar, além da sua titularidade atual, que aqueles terrenos eram objeto de propriedade particular ou comum, antes de 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas (artigo 15º, nº 2, da Lei nº 54/2005, de 15 de novembro).
II - O regime probatório estabelecido no art. 15.º impõe que a demonstração da propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, se faça documentalmente (nº 2).
III - Divergindo a jurisprudência quanto à necessidade de tal prova dever ser feita por referência apenas, a dois momentos históricos: o mais antigo e o atual, ou, igualmente, por referência a toda a história de transmissões do bem.
IV - Em qualquer das posições jurisprudenciais, a exigência de rigor documental terá de ter em consideração as possíveis mutações da estrutura fundiária, por via de desanexações e anexações várias respeitantes ao terreno e, as dificuldades genéticas de demonstrar realidades e sequências prediais e registais desde o século XIX.
V - Não é impeditivo do afastamento da presunção de dominialidade do Estado provar a propriedade particular de determinado terreno antes de 31 de dezembro de 1864, com base em documento (escritura pública de ..51) que, referindo embora, a confrontação do terreno a sul com “rochas do mar”, se extrai da demais prova documental, que essa expressão é, no histórico do terreno, equivalente à expressão “mar”.
VI - Nomeadamente, quando desse terreno referido como confrontante a sul com “rochas de mar” se desanexou um outro, cuja descrição predial passou a mencioná-lo como confrontante a sul com “mar”.

Texto Integral

Acordam, na 6ª secção, no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. AA e mulher BB, e LESS.URB – IMÓVEIS, LDA., intentaram a presente ação declarativa comum, para reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos (art. 15º da Lei nº 54/2005, de 15/11) contra o Estado Português, tendo formulado os seguintes pedidos:

a) Ver declarada afastada a presunção de dominialidade do réu sobre a faixa de terreno, com a largura de cinquenta metros, contados desde o LPMAVE (linha da praia mar das águas vivas equinociais), que incide sobre a parcela rústica do prédio identificado nos articulados 1. e 2. da P.I.;

b) Reconhecer que o prédio dos autores, na sua parte rústica, não obstante ocupar uma parcela da margem pública, é propriedade privada, porque objeto de propriedade ou posse particular desde data anterior a 31 de dezembro de 1864.

2. Para o efeito, alegam que são donos de um prédio misto sito em “AS... João”, freguesia de Al..., descrito a seu favor sob o nº ...03 da Conservatória do Registo Predial de Al..., cuja parcela rústica confronta a Sul com “Rochas do Mar”, estando essa confrontação a uma distância inferior a 50 metros da linha definida pelo limite máximo da praia-mar das águas vivas equinociais (LPMAVE).

Prédio esse que foi formado pela anexação de cinco outros prédios, encontrando-se estes na esfera jurídica de particulares desde antes de 1864, o que, para efeitos do nº 2 do art. 15º da Lei nº 54/2005 de 15 de novembro (Lei que estabelece a Titularidade dos Recursos Hídricos), permite afastar a presunção de dominialidade do Estado incidente sobre as suas parcelas, nomeadamente, na sua parte rústica e a menos de cinquenta metros da LPMAVE.

À cautela, sustentam os AA., ocorrer a posse efetiva do prédio desde data anterior a 31 de dezembro de 1864, uma vez que o foreiro, para além de detentor de propriedade, ainda que em forma imperfeita, tem a posse efetiva do prédio, podendo desse modo aproveitar-lhes o nº 3 do mesmo art. 15º.

Ainda à cautela, referem que, apenas a partir de 1926 a presunção de domínio público passou a integrar a “faixa mínima com 50 metros de largura contada a partir da linha do máximo prea mar”, podendo esta até então, ser do domínio particular, o que, onerando os AA. a terem de provar o direito de propriedade particular apenas a partir da dominialização pública, ou seja, apenas a partir de 1926, se propõem fazer.

Apresentaram documentos.

3. O Estado contestou, pedindo que a ação seja julgada improcedente.

Juntou documentos.

4. Após os articulados foi proferido saneador-sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo o Estado Português do pedido.

5. Entendeu a primeira instância que, no caso, a prova documental permite demonstrar que os prédios objeto de transação em 1964, 1962, 1961, 1951, 1882, situam-se na mesma área geográfica do que agora é dos Autores, podendo coincidir em parte com a área do prédio deste e, foram transacionados terrenos privados.

Mas já não permite demonstrar que aqueles prédios, objeto de transação, têm a mesma localização e correspondem à mesma exata área geográfica do dos Autores, hoje descrito com o n.º ...03.

Ficando, assim, por demonstrar a exata coincidência entre o prédio atual e os anteriores, nomeadamente na sua confrontação a sul com rocha do mar.

6. Inconformados os Autores recorreram de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Évora proferido acórdão que confirmou a sentença recorrida, negando provimento ao recurso.

7. Entendeu a Relação que:

- Não pode ser afastada a presunção de dominialidade se o documento essencial apresentado – uma escritura de aquisição de ..51 – não refere uma confrontação direta com o mar, mas antes com “rocha do mar”, o que nos remete para uma costa rochosa.

- Visto que não está demonstrada qual a composição e largura dessa costa rochosa, que na data daquela escritura se interpunha entre o terreno e o mar – costa rochosa que ainda hoje existe naquele local – ou sequer que o direito de propriedade foi exercido sobre essa faixa rochosa de terreno, não pode a ação proceder.

- Não é possível estabelecer que o prédio descrito sob o nº ...03 teve origem no descrito sob o n.º ..98, e que este é o prédio escriturado no ano de ..51.

8. De novo inconformados vieram os Autores recorrer de revista, assim concluindo:

1ª A admissibilidade deste recurso resulta do art. 671º, nºs. 1 e 3, e, subsidiariamente, do art. 672º, nº 1, a) e b), do CPC

2ª O Direito e os critérios probatórios legais a aplicar na decisão da causa terão que ter em consideração as dificuldades genéticas de demonstrar realidades e sequências prediais e registais desde o Séc. XIX.

Neste contexto, o Acórdão recorrido decidiu o seguinte:

a. “(…) entendemos que o interessado sempre terá de demonstrar a exata configuração do terreno em relação ao qual foi exercido o direito de propriedade desde antes de 1864, e que é sobre esse mesmo terreno que pretende o afastamento da presunção de dominialidade” (pág. 18, 1º parágrafo, in fine);

b. “Ou seja, a parte tem o dever de demonstrar qual o exato terreno sobre o qual pretende obter o afastamento da presunção de dominialidade, e que foi sobre esse mesmo terreno que o direito de propriedade privada foi exercido desde antes de 1864” (pág. 16, 2º parágrafo);

c. por outro lado, subscreveu a seguinte tese “(…) a prova (necessariamente documental, como se enfatizou) tem que ser segura, direta e sem margem para qualquer dúvida” (pág. 16, primeiras 3 linhas);

Este recorte dos critérios e exigências probatórias a cargo dos proprietários que se vêm onerados com as exigências estabelecidas no art. 15º, nº 2, da Lei nº 54/2005 restringe de forma inadmissível a capacidade probatória desses cidadãos, pelo que a interpretação efetuada no Acórdão recorrido desse preceito legal viola as exigências dos direitos fundamentais a um processo equitativo e a uma tutela jurisdicional efetiva (o que é devido a estes cidadãos é o conhecido due process law), bem como os princípios estruturantes da proporcionalidade, da proibição de indefesa e do Estado de Direito, tutelados nos arts. 2 e 20º da Constituição.

Na verdade, para além de terem que provar factos relativos a 1868 (2 séculos atrás), sob pena de o seu direito de propriedade se extinguir a favor do Estado, não faz sentido que, para além desse difícil objeto, ainda se lhes imponham especiais deveres probatórios, o que também viola o princípio da igualdade dos cidadãos. Isto é, relativamente aos cidadãos abrangidos pela previsão normativa do art.15º da Lei nº 54/2005 e neste tipo de processo, não pode exigir-se mais do que se exige a todos os cidadãos em processos judiciais.

3ª O Acórdão recorrido proferiu as seguintes decisões:

a. que o prédio ..98 (de onde provém o atual prédio dos Recorrentes nº ....03 – facto 6) não corresponde ao que foi objeto da escritura de ..51 (factos 11 e 34), pois na certidão daquele ..98 refere-se que o mesmo confronta a sul com ‘mar’ e nessa escritura refere-se que o prédio aí transmitido confronta a sul com ‘rocha de mar’ (págs. 14-16 do Acórdão recorrido);

b. depois, analisando o histórico desse prédio ..98, entendeu-se que não havia uma correspondência sequencial com o que foi objeto daquela escritura de ..51 (págs. 16-17 do Acórdão recorrido).

3ª.1 Na primeira decisão o Acórdão recorrido entendeu que o prédio ..98 (de onde provém o atual prédio dos Recorrentes nº ....03 – facto 6) não corresponde ao que foi objeto da escritura de ..51 (factos 11 e 34), pois na certidão daquele ..98 refere-se que o mesmo confronta a sul com ‘mar’ e nessa escritura refere-se que o prédio aí transmitido confronta a sul com ‘rocha de mar’ (págs. 14-16 do Acórdão recorrido).

Foi só por esta diferente designação terminológica da confrontação a sul que o Acórdão recorrido decidiu que os 2 prédios em causa não correspondiam à mesma propriedade.

Esta decisão não fez uma correta leitura dos factos e documentos que resultam dos autos, designadamente pelas seguintes razões principais:

a. A relatividade da terminologia utilizada (mar e rocha de mar) não permite concluir que, só por isso (diferente terminologia na confrontação a sul), estes 2 prédios (o ..98 e aquele que foi objeto da escritura de ..51) não correspondam ao mesmo.

b. Aliás, demonstrando de pleno a relatividade terminológica em causa, mesmo das entidades oficiais, importa atender a um aspeto decisivo a que o Acórdão recorrido não atendeu: na descrição do registo predial do prédio ..99 refere-se num momento inicial que o mesmo confronta a sul com ‘o mar’ e, logo a seguir, passa a referir-se que o mesmo confronta a sul com ‘rochas do mar’ (cfr. as 2 primeiras anotações dessa certidão junta como Doc. 25 à p.i.).

c. Em terceiro lugar, importa atender a outro aspeto essencial: vem demonstrado nos autos que o prédio ..47 foi desanexado do ..98 (facto 17); ora, se atentarmos na confrontação a sul desse prédio ..47, verifica-se que o mesmo confronta a sul com o mar (facto 17) !!, sendo certo que, por ter sido desanexado do primeiro, a confrontação teria que ser a mesma. Fica assim de pleno demonstrado o desacerto desta decisão do Acórdão recorrido.

d. Em quarto lugar, basta constatar a descrição e confrontações dos 2 prédios em causa (..98 e o que foi objeto da escritura de ..51) para se poder concluir com segurança que correspondem à mesma propriedade.

Do que fica demonstrado nestas 4 alíneas podemos seguramente concluir o seguinte:

(i) o Acórdão recorrido concluiu que o prédio nº ..98 (do qual provém, embora não diretamente, o atual prédio dos Recorrentes ....03 – facto 6) não corresponde ao prédio que foi objeto da escritura de ..51, unicamente pelo facto de a confrontação a sul não ser designada com a mesma terminologia;

(ii) no entanto, seja pela descrição/confrontações dos 2 prédios em causa, seja pela relatividade/irrelevância terminológica em causa, pode seguramente concluir-se que se trata da mesma propriedade.

3ª.2 Na segunda decisão, analisando o histórico do prédio ..98 (de onde provém, indiretamente o atual ...03 dos Recorrentes – facto 6), entendeu-se que não havia uma correspondência sequencial com o que foi objeto daquela escritura de ..51.

Esta decisão também não pode proceder por enfermar de vários erros nos pressupostos:

a. Composição do atual prédio ....03 e a sua correspondência com o prédio ..98 (de CC).

O prédio ....03 é resultado da anexação dos referidos 5 prédios (..47, ..64, ..67, ..68 e ..64), sendo que o ..64 foi desanexado do prédio ..47 e este foi desanexado do prédio ..98 (o prédio mais antigo, o original em termos registais).

Ora, este prédio original foi adquirido pela escritura de 24.4.1851 por CC, avó do Dr. DD, que herda de seus pais, DD e EE.

Refere-se no Acórdão recorrido que no testamento de ........1884 da viúva de CC, FF, o prédio comprado pelo seu falecido marido, CC, em 24.4.1851, não se encontra referido no testamento.

No entanto, esse facto (essa não referência) em nada afeta a sequência que aqui se defende e explica-se pela constatação de o testamento da viúva FF respeitar apenas à sua terça na herança do casal e não à totalidade dos bens imóveis, ficando de fora a terça do seu marido e a dos seus filhos, já herdeiros dos bens da parte do pai, que não se encontram descritos em lado algum, uma vez que CC faleceu sem testamento, como está referido no seu assento de óbito, datado de ... de ... de 1860 (este testamento da FF foi junto como Doc. 13 à p.i. e este assento de óbito foi junto como Doc. 12 à p.i.).

b. Por outro lado, relembremos a descrição do prédio na escritura de ..51: "[...] uma fazenda no sítio da O..., nas AS..., desta freguesia, que consta de vinha e figueiras, isenta, que confronta do nascente com o dito comprador, do poente com GG desta vila, do norte com estrada, e do sul com rocha do mar, cuja propriedade ele vendedor tem vendido a ele comprador em diferentes quinhões, os quais somam, os mesmos na quantia de cento e sessenta e sete mil réis […]” (factos 12 e 34).

Comparemos agora essa descrição com a descrição do testamento do Dr. DD de ........1948: "Pelo que respeita às propriedades da O... e AS... – o seguinte: Deixo ao caseiro daquelas propriedades, de nome HH – ou José da O... – todos esses bocados de terras, incluindo o denominado “N...” – ficando excluído deste legado a casa a nascente e que eu habito temporariamente, e que consta de um rés-do-chão antigo e de um anexo com primeiro andar – como excluído fica toda a cerca contigua do lado nascente, a pequena mata a sul e a cerca com vinha e árvores de fruto. – Também fica excluído deste legado a parte da propriedade com figueiras situada nos barrocais do lado do mar. O usufruto das propriedades a este caseiro deixado ficam igualmente cativos em benefício da minha afilhada II, que usará para este caseiro – José da O... – da mesma benevolência que para com os todos sempre tivera" (este testamento do Dr. DD foi junto como Doc. 7 à p.i., sublinhado nosso).

E, por fim, chame-se à colação a já referida descrição do prédio ..98: "[...] prédio misto, composto por casas de habitação, rés-do-chão e 1.º andar, com uma eira contígua do lado Nascente, pequena mata a Sul, e cerca de vinha e árvores de fruto, barrocais do lado do mar, no sítio da O..., ou AS..., desta freguesia e concelho de Al..., a confrontar do Nascente com JJ; do Norte com caminho; do Poente com KK e outro, e HH, ou José da O..., e do Sul, com o mar [...]".

Conclusão: não há qualquer dúvida razoável que o prédio descrito como ..98 é o que herdou o Dr. DD dos seus pais, DD e EE, o qual foi comprado pelo seu avó, CC, que, na sua origem, era uma fazenda, situada no mesmo sítio da O..., AS..., onde havia vinha e figueiras, algo que se mantém em 1948 e em 1961.

Como é óbvio, não se pode esperar que as descrições dos terrenos/prédios se mantenham inalteráveis, é algo que não faz sentido pressupor.

Quando CC comprou essa fazenda (o qual tinha vindo a comprar ao vendedor em vários quinhões ou fazendas, como se menciona na escritura de ..51) ainda não possuía parte edificada, mas com a geração do filho DD e neto Dr. DD veio entretanto a ser construída uma parte urbana e outra manteve-se rústica.

Além disso, não se pode questionar a passagem sucessória deste bem imóvel e de todos os outros que faziam parte da herança do casal, CC e sua mulher FF, pois, apesar de o primeiro não ter feito testamento quando faleceu em 1860, houve uma transmissão sucessória direta (legal) para os seus filhos e mulher, como seus únicos e legítimos herdeiros. São bens que nunca saíram da mesma família/linhagem.

4ª Porque, na economia do Acórdão recorrido, se verifica que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, devem os autos baixar às instâncias nos termos e para os efeitos do art. 682º, nº 3, do CPC.

Se não se entender nos termos que se deixaram expostos na Conclusão anterior, importa atender ao regime do art. 682º, nº 3, do CPC: se o Supremo Tribunal de Justiça entender que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, o processo deverá voltar às Instâncias para o efeito.

Este retorno às Instâncias sai reforçado quando se constate, como é o caso, que o Tribunal da Relação não promoveu quanto devia/necessário (incumprindo, entre outros, os poderes/deveres vinculados estabelecidos no art. 411º do CPC e no art. 662º, nºs. 1 e 2, do CPC) para apurar todos os factos relevantes para a descoberta da verdade material e para a aplicação do bom Direito.

Um dos fatores decisivos que aponta neste sentido prende-se com o facto de, pela primeira vez no processo, o Acórdão recorrido ter introduzido questões que até aí não tinham sido discutidas.

Referimo-nos à questão da confrontação a sul do prédio ..98 e do que foi objeto da escritura de ..51 (‘mar’ e ‘rocha do mar’), que abordámos no nº 11 destas Alegações, e referimo-nos também à sequência predial que o Acórdão recorrido, nas suas palavras, não descortinou (cfr., supra, nº 12).

De entre as diligências a promover nas Instâncias (como a junção de eventuais novos documentos que se entendam relevantes), deverá ter lugar uma perícia jurídico-histórico-registal aos documentos do processo, no sentido da sua adequada leitura, interpretação e efeitos/consequências quanto ao que aqui se pretende apurar.

E o objeto dessa perícia deve ser constituído, pelo menos, pelos factos e conclusões a retirar relativamente às questões referidas nos nºs. 9, 11 e 12 destas Alegações.

Como se referiu, a perícia que vem requerida terá como objeto prova documental/documentos, pelo que ficam afastadas algumas interpretações restritivas do regime do art. 15º, nº 2, da Lei nº 54/2005, no sentido que a prova neste tipo de processo só pode ser efetuada por documentos: o que se pretende é que essa perícia esclareça documentos e os factos aí atestados, pelo que essa hipotética restrição não se aplica in casu.

De qualquer forma, recorde-se, a jurisprudência deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça admite neste tipo de processos outros meios de prova para além da prova documental.

Assim, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.11.2021, proc. nº 2960/14.5TBSXL.L1.S1 que se deixou citado.

Aliás, como se poderá verificar pela leitura deste Acórdão, nesse processo (também proposto nos termos e para os efeitos do art. 15º da Lei nº 54/2005) teve lugar uma perícia para apurar factos relevantes.

Nestes termos,

Pelas razões que ficaram expostas e pelas que este Venerando Supremo Tribunal doutamente suprirá, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o Acórdão recorrido, e (i) ser deferido, por provado, o petitório que vem formulado na petição inicial ou, se assim não se entender, (ii) deverá o processo baixar às instâncias a fim de ser ampliada a decisão de facto nos termos que ficaram expostos, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito (art.. 682º, nº 3, do CPC).

O Réu apresentou contra-alegações, de onde se extraem as seguintes conclusões:

1. Os AA. argumentam que a diferença entre a menção a “rocha do mar” na confrontação a Sul, constante da escritura de ..51 e a referência a “mar” na confrontação a Sul, da certidão do artº ..98, é meramente terminológica, não traduzindo uma realidade diversa.

2. Conforme julgado provado nos nºs. 11 e 12:

3. “CC adquiriu um terreno a LL, oficial de canteiro, em ... de ... de 1851, conforme escritura exarada no Cartório Notarial de Al....

4. Nessa escritura, o prédio aparece descrito da seguinte forma: “… fazenda no sítio da O..., nas AS..., desta freguesia, que consta de vinha e figueiras, isenta, que confronta do nascente com o dito comprador, do poente com MM, desta vila, do norte com estrada, e do sul com rocha do mar”.

5. Como ali é mencionado, esse terreno constava de vinha e figueiras e confrontava a Sul com “rocha do mar”.

6. A escritura não descreve o terreno como integrando as rochas, existentes a Sul, mas que com elas confinava e também não diz que confina com o mar, mas com as rochas do mar.

7. É essa a prova que resulta dos documentos que se reportam a data anterior a 31 de Dezembro de 1864, como exige o artº 15º, nº 2, da Lei nº 54/2005.

8. No caso dos autos, existindo no local, a Sul do prédio, uma área rochosa e, a sul desta, o oceano atlântico, não pode afirmar-se que a diferença é meramente terminológica.

9. Pelo contrário, face às mencionadas características do local, essa divergência terminológica corresponde antes a uma real e efetiva diferença substancial.

10. A confrontação a Sul com o “mar” só surge na descrição do prédio nº ..98 a fls. 126vº do Livro B15 [conforme julgado provado sob o nº 6], do ano de 1961, data bem posterior à exigida na apontada norma.

11. Os autos não esclarecem essas questões e era aos AA. que cabia demonstrar, documentalmente, nos termos do nº 2, do artº 15º, da Lei nº 54/2005, que o prédio confinava a Sul com o mar, desde data anterior a 1864, como agora pretendem, e que não realizaram.

12. Afigura-se ao Ministério Público que foi isso mesmo que o Acórdão recorrido pretendeu transmitir quando mencionou que “a parte tem o dever de demonstrar qual o exato terreno sobre o qual pretende obter o afastamento da presunção de dominialidade, e que foi sobre esse mesmo terreno que o direito de propriedade privada foi exercido desde antes de 1864.”

13. Não é sobre todo o prédio nem sobre as restantes parcelas do prédio, se porventura uma parte do mesmo estiver abrangida sobre a presunção e outra não, é sobre a parcela efetivamente afetada pela presunção.

14. No que tange ao segundo dos motivos invocados no Acórdão recorrido importa considerar que no caso se comunga das considerações expendidas no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora no sentido de que não foi realizada a prova de que o prédio atualmente descrito sob o nº ...03 teve origem no prédio descrito sob o nº ..98 e que este é o prédio transmitido pela escritura de ..51, nos termos ali explanados.

15. No caso dos autos não se detetam quaisquer contradições na decisão de facto e afigura-se que a matéria apurada é suficiente para a tomada da decisão de direito.

16. Nomeadamente, no que tange à confrontação a Sul do prédio dos AA. afigura-se claro que, face às características do local, “rocha do mar” é diverso de “mar”.

17.

18. A questão colocada é de interpretação da declaração constante na escritura, que deve ser realizada à luz do disposto no artº 236º, do Cód. Civil, o que se afigura que não poderá ser realizado pela perícia requerida, pelo que essa diligência é completamente desnecessária e supérflua pelo que não pode ser admitida a sua realização.

Por tudo o exposto, negando provimento ao recurso e confirmando a decisão recorrida, Vªs. Exªs. afirmarão a JUSTIÇA!

II. Da admissibilidade da Revista e seu objeto

A Revista normal foi considerada inadmissível por decisão transitada em julgado, face à dupla conformidade decisória.

A Formação por acórdão de 21-05-2025 concluiu pela relevância jurídica e social da questão objeto de recurso, conducente à admissão da revista excecional.

Questões jurídicas que se discutem no caso e “que têm a ver com o direito probatório e com as exigências do ónus probatório que recai sobre os proprietários que se vêm confrontados com o regime do art. 15.º da Lei n.º 54/2005: para além de terem que demonstrar factos relativos a 1868, os proprietários nas situações aí previstas ainda têm que demonstrar (i) o trato sucesso integral dos seus imóveis (ii) a exata configuração do terreno em relação ao qual foi exercido o direito de propriedade antes de 1864 (iii) devendo a prova ter que ser direta e sem margem para qualquer dúvida.”.

Tendo a mesma por objeto apreciar se a prova efetuada pelos Recorrentes se mostra apta a afastar a presunção de dominialidade pública marítima.

Caso, assim não se entenda, apreciar da necessidade de ampliação da matéria de facto, baixando os autos às instâncias para o efeito.

III – Mostra-se provada a seguinte factualidade :

1. Os autores figuram como donos do prédio em referência1.

Consta da descrição predial o seguinte quanto a composição e confrontações:

Terra de semear com árvores, horta e jardim. 1.º edifício térreo, com 12 compartimentos e 1 casa de banho, destinado a habitação, com a superfície coberta de 378 m2, inscrito na matriz sob o artigo ..44.º. 2.º edifício térreo que se compõe de: lado direito – 2 compartimentos, 1 sala comum, 1 casa de banho; Frente – 2 compartimentos, sala comum e 1 casa de banho; Lado esquerdo – 1 compartimento e 1 casa de banho e 2 garagens, com a área coberta de 477,36 m2 e área descoberta de 152,36 m2, inscrito na matriz sob o artigo ..49.º.

Nascente - HH, II e NN;

Norte - HH e caminho;

Poente - KK e OO;

Sul – Rochas do Mar – fls. 223 v.

(arts. 1.º e 2.º da petição inicial)

2. Esse prédio está inscrito na matriz rústica respetiva sob n.º 24 da Secção ... e nas matrizes urbanas sob os artigos ..44 e ..49 – fls. 23 e ss. (arts. 3.º e 4.º da petição inicial)

3. Este prédio esteve descrito sob o n.º ..37 e foi formado pelos descritos sob os nºs. ..47 a fls. 151, ..64 a fls. 159 v., ..67 a fls. 161 e ..68 a fls. 161v, todos do livro B-15; e ..64 a fls.66, do livro B-17, da referida Conservatória (arts. 5.º, 9.º a 11.º da petição inicial)

4. Os limites da parte rústica (artigo cadastral 24 da secção ... da freguesia de Al...O...), do lado sul, encontram-se a uma distância inferior a 50 metros da linha definida pelo limite máximo da praia-mar das águas vivas equinociais (LPMAVE) – fls. 26/243 (art. 6.º da petição inicial)

5. As parcelas urbanas encontram-se a uma distância do mar superior a 50 metros da LPMAVE (linha da praia-mar das águas vivas equinociais) – fls. 26/27/243 (art. 7.º da petição inicial)

6. Este prédio resulta da desanexação, de uma parcela da parte rústica do prédio descrito sob o n.º ..98 a fls. 126 vº do Livro B15. Por seu turno, este prédio encontra-se descrito como Prédio misto, composto por casas de habitação, rés-do-chão e 1.º andar, com uma eira contígua do lado Nascente, pequena mata a Sul, e cerca de vinha e árvores de fruto, barrocais do lado do mar, no sítio da O..., ou AS..., desta freguesia e concelho de Al..., a confrontar do Nascente com JJ; do Norte com caminho; do Poente com KK e outro, e HH, ou José da O..., e do Sul, com o mar – fls. 79 v. (art. 17.º da petição inicial)

7. Foi inscrito a favor de II, solteira, maior, por lhe ter ficado a pertencer na qualidade de herdeira do remanescente dos bens deixados, em testamento, por Dr. DD, juiz de Direito aposentado, o prédio descrito sob o n.º ..98 – fls. 80 (art. 18.º da petição inicial)

8. O qual fez testamento cerrado em ... de ... de 1948, aberto em ... de ... de 1953 – fls. 46 v. (art. 20.º da petição inicial)

9. DD era filho de DD e de EE – fls. 28/30 v. (art. 22.º da petição inicial)

10. E neto paterno de CC e FF - fls. 28 (art. 23.º da petição inicial)

11. CC adquiriu um terreno a LL, oficial de canteiro, em ... de ... de 1851, conforme escritura exarada no Cartório Notarial de Al... – fls. 107 v. (art. 24.º da petição inicial)

12. Nessa escritura, o prédio aparece descrito da seguinte forma: “… fazenda no sítio da O..., nas AS..., desta freguesia, que consta de vinha e figueiras, isenta, que confronta do nascente com o dito comprador, do poente com MM, desta vila, do norte com estrada, e do sul com rocha do mar.” – fls. 107 v. (art. 25.º da petição inicial)

13. Este CC faleceu em ... de ... de 1860, sem testamento, tendo deixado viúva (FF) e cinco filhos – fls. 38 v. (arts. 26.º e 27.º da petição inicial)

14. FF faleceu em ... de ... de 1889, tendo deixado em testamento de 1884 ao herdeiro DD, seu filho, casado com EE, um quarto de fazenda no sítio das Fontainhas desta freguesia, e bem assim mais as casas pertencentes à mesada dela dita testadora, denominadas, a D... e osAlt..., correspondentes – fls. 40 v. (arts. 28.º e 29.º da petição inicial)

15. Em 10 de abril de 1948, o Dr. DD, fez testamento cerrado, aberto em ... de ... de 1953, no qual deixa ao seu caseiro HH “… as propriedades da O... e AS..., incluindo o denominado N...”, ficando excluído deste legado a casa a nascente e que eu habito temporariamente, e que consta de um rés-do-chão antigo, e de um anexo com 1.º andar – como excluído fica toda a cerca contígua do lado nascente, a pequena mata a sul, e a cerca com vinha e árvores de fruto. Também fica excluído deste legado a parte da propriedade com figueiras situada nos barrocais do lado do mar.

O usufruto das propriedades a este caseiro deixadas, ficam igualmente cativos em benefício da minha afilhada II, que usará para este caseiro -José da O...- da mesma benevolência …” - fls. 46 v. (art. 30.º da petição inicial)

16. Todos os restantes bens ficaram para a afilhada II.

17. Do prédio ..98 foi desanexado o prédio com a descrição ..47, a fls.151 do Lº B-15. que ficou com a seguinte descrição: Prédio rústico, composto de Barrocais, com mata de pinheiros, no sítio da O..., ou AS..., desta freguesia e concelho de Al..., que constitui parte da parte rústica do prédio descrito sob o n.º ..98, a fls 126 do Lº B-15, Confronta de nascente com II; do norte com caminho que separa os barrocais da parte arável; do poente com KK e outro; e do sul, com o mar – fls. 93 (art. 32.º da petição inicial)

18. Esta desanexação teve origem na venda que II fez a KK por escritura de ... de ... de 1961 – fls. 88 (art. 33.º da petição inicial)

19. Do prédio ..47 foi desanexado o prédio ..64, a fls 159 do Lº B-15 (C.N.Al...), que ficou descrito como: “Prédio rústico, constituído por uma courela de terra de barrocais, no sítio da O..., ou AS..., desta freguesia e concelho de Al..., a confrontar de nascente com KK; do norte com caminho que separa os barrocais da parte arável; do poente com KK e outro; e do sul com o mar” - fls. 70 v. (art. 35.º da petição inicial)

20. O prédio descrito sob o n.º ..64 foi transmitido como prédio autónomo, em venda que KK e mulher fizeram a PP por escritura de ... de ... de 1961 – fls. 72 v./71 (art. 36.º da petição inicial)

21. QQ, primeira mulher de RR, faleceu em ... de ... de 1864, tendo, por sua morte, sido abertos autos de Inventário e partilhas no Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira.

22. Sob a verba 25 consta o seguinte prédio: “Uma fazenda no referido sítio das AS..., chamada o P..., que consta de figueiras e vinha, e as mais árvores que na mesma se acharem,, que parte do nascente com SS; do Norte e poente com estradas, e sul com TT e com quem mais deve e haja de partir e confrontar, foreiro a metade da parte do poente em quinhentos e trinta e três reis aos herdeiros de UU, de Lisboa, com a natureza de fateosim foral, que deve parar em poder dos diretos senhorios, e sendo bem vista e examinada pelos louvados, calcularam o seu rendimento líquido anual, em dois mil e quinhentos réis, e avaliaram o referido foro, em cinquenta mil réis” – fls. 59 v. e ss. (arts. 38.º a 40.º da petição inicial)

23. Este prédio foi adjudicado, como meação, ao viúvo, RR.

24. Em ... de ... de 1882, por escritura pública de compra e venda realizada entre RR e (2.ª) mulher, VV, um prédio foi vendido ao DD, já referido, pai do Dr. DD – fls. 163 (art. 42.º da petição inicial)

25. O prédio é descrito como: “… uma propriedade rústica no sítio das AS..., desta freguesia, que houveram em meação no inventário orfanológico a que se procedeu por óbito de sua falecida mulher e antecessora QQ, e consta de terras de semear e figueiras, partindo do nascente, com WW, Sul com XX, Norte e poente com estradas e com quem mais deva e haja de partir e confrontar, foreira em quinhentos e trinta a três reis anuais a dona YY.” (art. 43.º da petição inicial)

26. No testamento cerrado do filho do comprador, Dr. DD, tal propriedade vem incluída no legado feito ao caseiro HH (José da O...);

27. E onerada com o usufruto a favor da herdeira II.

28. A propriedade aparece descrita na Conservatória sob o n.º 5849 – fls. 169 v. (art. 47.º da petição inicial)

29. E dela veio a ser desanexada, em 1962, a parcela que passou a constituir o prédio descrito sob o n.º ..67, da forma seguinte: “ … um prédio rústico que se compõe de terra de semear, com árvores no sítio da O..., ou AS... desta freguesia, a confrontar de nascente com ZZ (pelo mesmo que separa a vinha existente na propriedade desta, da terra arável), de norte com HH; do sul, com KK e PP, e do poente com KK e outro, sendo a sua profundidade no sentido sul-norte de setenta metros a contar da parte interna do muro que o separa do caminho existente a sul, e isto, quer pelo lado nascente quer pelo seu lado poente, é parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o número ..49” (doc 21) [certidão ..67]

30. HH e mulher venderam a KK, casado com AAA, por escritura de ... de ... de 1962 o prédio que está identificado como sendo parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho [Al...] sob o n.º ..49, a fls. 152, do livro B 15 e inscrito na respetiva matriz sob os arts. rústicos ..62.º, ..77.º, ..81.º e ..88.º – fls. 147 v. (art. 49.º da petição inicial)

31. Quanto ao prédio ..68, foi desanexado do ..67 – fls. 153 (art. 51.º da petição inicial)

32. Para ser vendido, por KK e AAA, a BBB e mulher, PP, por escritura de ... de ... de 1962, a BBB – fls. 155 (art. 52.º da petição inicial)

33. O prédio ..99 aparece descrito como sendo um “... prédio rústico, no sítio das AS..., da freguesia e concelho de Al..., que se compõe de terra de semear e vinha, a confrontar do nascente com Dr. DD, de Norte com o mesmo e outro, do Poente com CCC, DDD e EEE e outros; e do Sul, com mar …” – fls. 159 v. (art. 55.º da petição inicial)

34. Por escritura de venda de bens de raiz, de ... de ... de 1851, celebrada entre CC e mulher (os avós do Dr. DD), e LL foi alienado o seguinte prédio: “… fazenda no sítio da O..., nas AS..., desta freguesia, que consta de vinha e figueiras, isenta, que confronta do nascente com o dito comprador, do poente com GG, desta vila, do norte com estrada, e do sul com rocha do mar.” (arts. 56.º e 57.º da petição inicial)

35. GG tinha um filho, de nome FFF, que casou em 1857 – fls. 125 v. (art. 59.º da petição inicial)

36. Este, por sua vez, teve um filho, de nome GGG, que casou em 1898, com HHH – fls. 127 v. (art. 60.º da petição inicial)

37. HHH era filha legítima de III e JJJ – fls. 127 v (art. 61.º da petição inicial)

38. E foram testemunhas desse casamento KKK e LLL, irmãos da noiva – fls. 127 v. (art. 62.º da petição inicial)

39. III faleceu em ... de ... de 1898 – fls. 130 v. (art. 63.º da petição inicial)

40. JJJ faleceu em ... de ... de 1898 – fls. 132 v. (art. 64.º da petição inicial)

41. A testemunha do casamento referido, LLL, era filho de III, e de JJJ (art. 65.º da petição inicial)

42. Casou com MMM em ... de ... de 1904 – fls. 135 (art. 66.º da petição inicial)

43. Na véspera do casamento celebrou-se no Cartório Notarial de Al... uma escritura pública de contrato antenupcial com separação de bens, e comunhão de adquiridos – fls. 138 v. Nesta escritura, o noivo leva para o casal dois bens imobiliários, entre os quais, “… uma fazenda no sítio das AS..., desta freguesia de Al..., que se compõe de terra de semear com figueiras e vinha, que confina do nascente com DD; do norte, com o mesmo DD e NNN; Poente com GGG, OOO e outro; e Sul, com rocha do Mar, foreira em sessenta réis anuais a quem pertencer”

44. Em 14 de julho de 1960 foi inscrita a aquisição do prédio a favor de PPP, casado com QQQ, por ser este o único herdeiro de seus pais, LLL e MMM – fls. 142 v. (art. 69.º da petição inicial)

45. Em 15 de novembro de 1960, PPP, e mulher, venderam um prédio rústico que se compõe de terra de semear, com vinha e pinheiros, no sítios das AS... João, desta freguesia e concelho [Al...], a confrontar, do nascente com herdeiros do doutor DD, do norte com RRR, do poente com SSS, DDD e EEE, e do sul com rochas do mar, ainda não descrito na Conservatória do Registo Predial de Al... (…) e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..75.º, a KK, casado com AAA; e TTT, casado com UUU - fls. 112 v. Foi nessa altura aberta a descrição, com o n.º ..99 que passou a ser a seguinte: “... prédio rústico, no sítio das AS..., da freguesia e concelho de Al..., que se compõe de terra de semear e vinha, a confrontar do nascente com Dr. DD, de Norte com o mesmo e outro, do Poente com CCC, DDD e EEE e outros; e do Sul, com mar …” (art. 71.º da petição inicial)

46. Por escritura de ... de ... de 1964 (fls 92 do Lº B-9 do C. N. Al...), KK e mulher vendem uma parte do prédio ..99, a BBB e mulher, PP – fls. 117 v. (art. 73.º da petição inicial).

IV – O Direito

Os Autores intentaram a presente ação com o objetivo de obter a declaração de que, por si e antepossuidores, são proprietários e possuidores, desde data anterior a 31 de dezembro de 1864 e até ao presente, da faixa de terreno, com a largura de cinquenta metros, contados desde o LPMAVE (linha da praia mar das águas vivas equinociais), que incide sobre a parcela rústica do prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Al..., a favor dos Autores, sob o nº ...03, alegando que este teve origem no descrito sob o n.º ..98, adquirido pelo seu antecessor CC por escritura de ... de ... de 1851. O que lhes permite afastar a presunção de dominialidade sobre tal parcela.

Fundaram, assim, a sua causa de pedir no disposto no art. 15.º n.ºs 1, 2 e 3 da Lei 54/2005, de 15 de novembro, sucessivamente alterado pelas Leis 78/2013, 34/2014 e 31/2016.

É sabido que nos termos do art. 3.º desta Lei, o domínio público marítimo compreende:

«a) As águas costeiras e territoriais; (…)

e) As margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das marés.»

E, o domínio público marítimo pertence ao Estado – art. 4.º.

Nos termos do art. 11º:

«1 - Entende-se por margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas.

2 - A margem das águas do mar, bem como a das águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias, tem a largura de 50 m.

(…)

5 - Quando tiver natureza de praia em extensão superior à estabelecida nos números anteriores, a margem estende-se até onde o terreno apresentar tal natureza.

6 - A largura da margem conta-se a partir da linha limite do leito. Se, porém, esta linha atingir arribas alcantiladas, a largura da margem é contada a partir da crista do alcantil. (…)»

O art. 15º da mesma Lei prevê a possibilidade, e respetivas regras, de reconhecimento de direitos adquiridos por particulares sobre parcelas de leitos e margens públicos.

Dispondo:

«1 - Compete aos tribunais comuns decidir sobre a propriedade ou posse de parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, cabendo ao Ministério Público, quando esteja em causa a defesa de interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais, contestar as respetivas ações, agindo em nome próprio.

2 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868.

3 - Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa.

(…)»

A presunção de domínio público passou a estar prevista desde o Decreto Régio de 31 de dezembro de 1864 e, a partir de 22 de março de 1868 (data da entrada em vigor do Código Civil de 1867) passou também a estabelecer-se essa presunção relativamente às arribas alcantiladas.

Sendo estes os marcos temporais a que devem os interessados recuar a prova da propriedade privada com vista a afastar a presunção de dominialidade pública.

O Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 326/20152, já se pronunciou sobre o regime probatório fixado no art. 15.º, referindo que:

Este regime jurídico persegue, como se perceciona, um equilíbrio entre, por um lado, o princípio do respeito pelos direitos adquiridos dos particulares, e, por outro, a conveniência de que as margens de águas públicas, por condicionarem a utilização dessas águas, integrem o domínio público, ou seja, estejam sujeitas a um regime especial de direito público caracterizado por um reforço das medidas de proteção das coisas que o integram.

Por isso, mesmo quando o particular logre comprovar o seu direito de propriedade sobre margens de águas públicas, o legislador dispõe de diversos mecanismos para instituir a eventual afetação pública desses terrenos, tais como o direito de preferência em caso de alienação forçada ou voluntária, a expropriação e a constituição de servidões administrativas (cfr. os artigos 16.º e 21.º, da Lei n.º 54/2005).”

Assim, concluiu o tribunal Constitucional que o interesse público subjacente à dominialidade pública das águas justifica o regime probatório estabelecido no art. 15.º, configurando este um justo equilíbrio entre os interesses, públicos e privados, em presença.

Regime esse que, primando pelo rigor probatório, impõe a exigência de que a demonstração da propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, se faça documentalmente (cit. nº 2).

E, não tendo o legislador tomado posição quanto ao tipo de documentos admissíveis para efeitos de prova, tal prova documental pode realizar-se através de quaisquer documentos.

Essa prova documental deverá sustentar que a parcela de terreno se encontrava na propriedade de particulares antes do estabelecimento da presunção de dominialidade, divergindo a jurisprudência quanto à necessidade de tal prova dever ser feita por referência apenas, ao mais antigo e ao atual momento histórico ou, igualmente, quanto a toda a história de transmissões do bem.

São exemplos dessa divergência:

- O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-11-2021, P. 2960/14.5TBSXL.L1.S1 (Clara Sottomayor), segundo o qual:

«I - No âmbito do regime previsto no artigo 15º, nº 2, da Lei nº 54/2005, de 15 de novembro (que estabelece a titularidade dos recursos hídricos), na redação atual dada pela Lei nº 34/2014, de 19 de junho, pretendendo o interessado obter o reconhecimento da propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, tem de demonstrar, além da sua titularidade, que aqueles terrenos eram objeto de propriedade particular ou comum, antes de 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas, por título legítimo (à luz do Código Civil de Seabra), não sendo necessária a prova de toda a história de transmissões do bem e do reatamento do trato sucessivo até ao momento presente.

II - O entendimento amplo do preceito, segundo o qual o particular interessado deve fazer prova que o terreno permaneceu na condição de “propriedade privada” desde 1864 até ao momento atual, para além de não ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 9º, nº 2, do Código Civil), não está de acordo com a presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), nem é exigido pela razão de ser do regime jurídico em causa, que teve por objetivo a proteção de direitos adquiridos.»

E, na posição contrária:

- O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-02-2023, P. 457/18.3T8ABF.E1.S1 (Fernando Batista), que refere:

« Para a prova da propriedade de bens do domínio hídrico, a que alude o art. 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, tem o Autor, não apenas fazer a prova de que o imóvel estava na propriedade particular quando se estabeleceram as presunções de dominialidade – isto é, tem de demonstrar que o terreno cuja propriedade privada reclama já era propriedade privada antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, tratando–se de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868, demonstração que se fará mediante prova de que a propriedade privada em causa foi adquirida por título legítimo, antes daquele marco temporal – , como também que nessa condição se manteve até à data actual; ou seja, a presunção de dominialidade terá de ser afastada relativamente a toda a “história” do bem, pois não há garantia de que o bem não tenha ingressado, depois das datas referidas nesse diploma, e por qualquer motivo admissível no domínio público.

O acórdão recorrido, ultrapassando tal polémica, concluiu pela improcedência da pretensão dos Autores/recorrentes, por duas diferentes razões, concorrentes.

1ª - Considerou não terem os Autores provado relativamente ao prédio mais antigo, o confronto a sul com o “mar”, mas apenas com “rocha do mar”;

2ª – Considerou não terem os Autores provado a correspondência física entre o prédio atual e aquele, mais antigo.

Lê-se no acórdão recorrido:

- Na escritura de ... de ... de 1851 na qual os AA. estabelecem a origem da sua propriedade, surge um terreno descrito da seguinte forma:

“…fazenda no sítio da O..., nas AS..., desta freguesia, que consta de vinha e figueiras, isenta, que confronta do nascente com o dito comprador, do poente com MM, desta vila, do norte com estrada, e do sul com rocha do mar”;

“… a escritura não diz que o terreno em causa confrontava por esse lado com o mar, mas antes com “rocha do mar”, realidades físicas estas que não são coincidentes”;

- Da observação das fotografias aéreas juntas (de 2004, 2018 e 2024) pode depreender-se que “ … a costa naquele local é rochosa, irregular e desenvolve-se em barrancos com sucessivos desníveis em direção ao mar, sendo que, em alguns locais, tais rochas terminam no mar, e noutros terminam em areais de praia – desconhecendo-se se tais areais estão sempre a descoberto das águas do mar, ou se estas os cobrem de forma regular ou episódica”.

“Não pode ser afastada a presunção de dominialidade se o documento essencial apresentado – uma escritura de aquisição de ..51 – não refere uma confrontação direta com o mar, mas antes com “rocha do mar”, o que nos remete para uma costa rochosa. Visto que não está demonstrada qual a composição e largura dessa costa rochosa, que na data daquela escritura se interpunha entre o terreno e o mar – costa rochosa que ainda hoje existe naquele local – ou sequer que o direito de propriedade foi exercido sobre essa faixa rochosa de terreno, não pode a ação proceder.”

“… a parte tem o dever de demonstrar qual o exato terreno sobre o qual pretende obter o afastamento da presunção de dominialidade, e que foi sobre esse mesmo terreno que o direito de propriedade privada foi exercido desde antes de 1864”.

“Não é possível estabelecer que o prédio descrito sob o nº ...03 teve origem no descrito sob o n.º ..98, e que este é o prédio escriturado no ano de 1851.”

Pretendem os recorrentes com a presente revista demonstrar que o acórdão recorrido fez uma interpretação excessivamente restrita dos critérios e exigências probatórias a cargo dos proprietários onerados com a prova estabelecida no art. 15º nº 2 da Lei nº 54/2005, violando o direito fundamental a um processo equitativo e a uma tutela jurisdicional efetiva, bem como os princípios estruturantes da proporcionalidade, da proibição da indefesa e do Estado de Direito, tutelados nos artºs 2º e 20º da Constituição.

E que, uma correta leitura dos documentos demonstra que a diferente designação terminológica nos confrontos a sul, entre “mar” (nalguma descrição predial) e “rocha do mar” (na escritura de compra e venda) é relativa.

Dando como exemplo, a descrição do registo predial do prédio ..99 (do qual foi desanexado o prédio ..64 que integra o atual dos Autores) que, num momento inicial refere que este confronta a sul com “o mar” e, num segundo momento refere que o mesmo confronta a sul com “rochas do mar”.

Alegam ainda que, vindo demonstrado nos autos que, do prédio ..98 (objeto da escritura de ........1851, donde consta a expressão “rocha do mar”) foi desanexado o prédio ..47, passando este a figurar como confrontando a sul com o “mar” (facto17), a confrontação daquele ..98, a sul, há de ter-se, igualmente, como sendo com “mar”.

Logo, a diferença entre “mar “ e “rocha do mar” na confrontação a sul, mostra-se relativa e irrelevante.

Por fim, apelam os recorrentes ao confronto da descrição e confrontação dos dois prédios em causa (o ..98, objeto da escritura de ..51 e, o atual ....03) donde se conclui com segurança que se reportam à mesma propriedade.

Apreciemos, pois.

Os AA. lograram provar que são titulares do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de L... (Alg..) sob o n.º ...03 estando este descrito como confrontando a sul com “rochas do mar” (facto1).

Provaram igualmente que os limites da parte rústica (artigo cadastral 24 da secção... da freguesia de Al.../O...), do lado sul, encontram-se a uma distância inferior a 50 metros da linha definida pelo limite máximo da praia-mar das águas vivas equinociais (LPMAVE) (facto 4).

E que o prédio dos AA. (atual ....03, anteriormente descrito sob o nº ..37)) resulta da desanexação de uma parcela da parte rústica do prédio descrito sob o nº ..98 (facto 6).

Bem como resulta da anexação dos descritos sob os nºs. ..47, ..64, ..67 e ..68 e ..64 (facto 3).

A propósito destes referidos prédios nºs ..98, ..47 e ..64, revelam os factos o seguinte histórico:

A escritura de .../.../1851 respeitante ao prédio ..98 e que teve como comprador CC (o facto 6 estabelece que o atual prédio ....03 dos AA. resulta da desanexação de uma parcela da parte rústica do prédio ..98), descreve o prédio da seguinte forma:

“… fazenda no sítio da O..., nas AS..., desta freguesia, que consta de vinha e figueiras, isenta, que confronta do nascente com o dito comprador (CC), do poente com MM, desta vila, do norte com estrada, e do sul com rocha do mar.” (facto 12)

O atual prédio ....03 dos AA. recorrentes, tem a seguinte composição e confrontações:

“Terra de semear com árvores, horta e jardim. 1.º edifício térreo, com 12 compartimentos e 1 casa de banho, destinado a habitação, com a superfície coberta de 378 m2, inscrito na matriz sob o artigo ..44.º. 2.º edifício térreo que se compõe de: lado direito – 2 compartimentos, 1 sala comum, 1 casa de banho; Frente – 2 compartimentos, sala comum e 1 casa de banho; Lado esquerdo – 1 compartimento e 1 casa de banho e 2 garagens, com a área coberta de 477,36 m2 e área descoberta de 152,36 m2, inscrito na matriz sob o artigo ..49.º.

Nascente - HH, II e NN;

Norte - HH e caminho;

Poente - KK e OO;

Sul – Rochas do Mar – (facto 1)

Primeira conclusão: a sul, têm ambos, o prédio de origem (..98) na escritura de ..51, e o atual (....03) na descrição predial, uma mesma designada confrontação de “rochas do mar”.

Extrai-se, ainda, dos factos provados, quanto ao prédio ..98, o mais antigo em termos registais, de onde o atual dos AA. foi desanexado (facto 6), que:

- Foi este adquirido por CC por escritura de .../.../1851 (factos 11 e 12), tendo este falecido em 1860, sem testamento, e deixado viúva, FF e cinco filhos, um dos quais o herdeiro DD casado com EE, recebeu tal propriedade (factos 10 a 14) , tendo este um filho com o mesmo nome (Dr. DD), o qual por testamento cerrado de .../.../1948, aberto em .../.../1953, transmitiu à sua afilhada II, todos os bens que não foram deixados ao caseiro, nomeadamente a parte da propriedade com figueiras situada nos barrocais do lado do mar (factos 15 e 16).

- Por sua vez, deste prédio ..98 foi desanexado o prédio ..47 (facto 17), que ficou com a seguinte descrição:

Prédio rústico, composto de B..., com mata de pinheiros, no sítio da O..., ou AS..., desta freguesia e concelho de Al..., que constitui parte da parte rústica do prédio descrito sob o n.º ..98, a fls 126 do Lº B-15, Confronta de nascente com II; do norte com caminho que separa os barrocais da parte arável; do poente com KK e outro; e do sul, com o mar(facto 17)

Ou seja, daquela desanexação surge ex novo uma confrontação a sul com o “mar”, e já não com “rochas do mar”, como constava da confrontação a sul do prédio donde o mesmo provém (..98).

Esta desanexação teve origem na venda que II fez a KK por escritura de ... de ... de 1961 (facto 18).

Por sua vez, deste prédio ..47 foi desanexado o prédio ..64, que ficou descrito como: “Prédio rústico, constituído por uma courela de terra de barrocais, no sítio da O..., ou AS..., desta freguesia e concelho de Al..., a confrontar de nascente com KK; do norte com caminho que separa os barrocais da parte arável; do poente com KK e outro; e do sul com o mar - fls. 70 v. (facto 19)

O prédio descrito sob o n.º ..64 foi transmitido como prédio autónomo, em venda que KK e mulher fizeram a PP por escritura de ... de ... de 1961 (facto 20).

Deste relato histórico de atos jurídicos resulta que as expressões “rocha do mar” e “mar” na confrontação a sul do prédio ..64 (incluído no prédio dos AA.), proveniente do prédio ..47 (igualmente incluído no prédio dos AA.) e, por sua vez, proveniente este, do prédio ..98 (do qual o dos AA. foi desanexado), se equivalem.

A expressão “rocha do mar” da atual descrição na confrontação a sul do prédio dos Autores é, assim, compatível com a expressão “mar”, não devendo ser, por isso, impeditiva do afastamento da presunção de dominialidade, nos termos previstos no art. 15º da Lei nº 54/2005, de 15 de novembro.

Sendo, igualmente, exemplo dessa compatibilidade, a descrição do prédio ..99, contíguo ao prédio ..98 (adquirido por CC por escritura de .../.../1851), como se expõe na factualidade provada:

- Em 15 de novembro de 1960, PPP, e mulher, venderam um prédio rústico que se compõe de terra de semear, com vinha e pinheiros, no sítios das AS... João, desta freguesia e concelho [Al...], a confrontar, do nascente com herdeiros do doutor DD, do norte com RRR, do poente com SSS, DDD e EEE, e do sul com rochas do mar, ainda não descrito na Conservatória do Registo Predial de Al... (…) e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..75.º, a KK, casado com AAA; e TTT, casado com UUU ;

- Foi nessa altura aberta a descrição, com o n.º ..99 que passou a ser a seguinte: “... prédio rústico, no sítio das AS..., da freguesia e concelho de Al..., que se compõe de terra de semear e vinha, a confrontar do nascente com Dr. DD, de Norte com o mesmo e outro, do Poente com CCC, DDD e EEE e outros; e do Sul, com mar …” - (facto 45)

Ou seja, este prédio surge descrito na escritura de venda como confrontando a sul com “rochas do mar” e, na mesma altura foi descrito no registo predial como confrontando a sul com “mar”.

Podendo concluir-se que, à semelhança da duplicidade de expressões usadas na documentação alusiva ao prédio ..99, também relativamente ao prédio ..98, contíguo àquele e, o mais antigo no referencial histórico apresentado pelos Autores, a expressão “rocha do mar” na sua confrontação a sul, é equivalente à expressão “mar”.

Demonstrada documentalmente a equiparação da expressão “rocha do mar” e “mar” na confrontação a sul, quer do atual prédio dos AA., quer do prédio nº ..98 escriturado em ..51, vejamos se estes correspondem entre si.

O que passa por, previamente, demonstrar que o prédio ..98 é o que foi objeto da escritura de ..51, demonstração posta em causa no acórdão recorrido.

Retomemos os factos, impondo-se comparar a descrição e confrontações dos 2 prédios em causa.

O prédio ..98 mostra-se descrito como:

“Prédio misto, composto por casas de habitação, rés-do-chão e 1.º andar, com uma eira contígua do lado Nascente, pequena mata a Sul, e cerca de vinha e árvores de fruto, barrocais do lado do mar, no sítio da O..., ou AS..., desta freguesia e concelho de Al..., a confrontar do Nascente com JJ; do Norte com caminho; do Poente com KK e outro, e HH, ou José da O..., e do Sul, com o mar - (facto 6)

O prédio escriturado em 1851 mostra-se descrito como:

“… fazenda no sítio da O..., nas AS..., desta freguesia, que consta de vinha e figueiras, isenta, que confronta do nascente com o dito comprador, do poente com MM, desta vila, do norte com estrada, e do sul com rocha do mar.”(facto 12)

De tal confronto surge uma correspondência de localização, de confrontos a norte e sul (variáveis fixas), e de produção (vinha e árvores de fruto / vinha e figueiras), entre o prédio nº ..98 e o que foi objeto da escritura de ..51. Sendo naturalmente mutável a identificação dos proprietários a nascente e a poente, porque respeitante a diferentes adquirentes dos terrenos contíguos, que se sucedem no tempo.

Pelo que, mostra-se demonstrada essa correspondência, ou seja, que o prédio escriturado em ..51 corresponde ao prédio nº ..98.

Importa, por fim, aferir se o prédio dos AA. (nº ....03) corresponde àquele nº ..98.

Resulta da factualidade provada que:

O prédio ....03 é resultado da anexação de 5 prédios (..47, ..64, ..67, ..68 e ..64), sendo que o ..64 foi desanexado do prédio ..47 e, este, por sua vez, foi desanexado do prédio ..98 (o original em termos registais) (factos 3, 6 e 17 ).

Este ..98 foi adquirido pela escritura de........1851 por CC, avô do Dr. DD, que o herdou de seus pais, DD e EE (factos 11, 13, 14 e 34).

Deste conjunto de alterações na sua estrutura fundiária mostra-se possível concluir que o prédio dos AA. anexou um prédio que provém de duas sucessivas desanexações do prédio mais antigo (o prédio mãe ..98), mantendo a confrontação a sul, onde se integra a parcela reivindicada.

Assim, ao contrário do acórdão recorrido, consideramos que os AA. demonstraram, não só, que o terreno escriturado em ..51 confrontava a sul com o mar, como que tal terreno é o mesmo que veio a ser descrito no prédio n.º ..98.

Mostrando-se assim observado o primeiro requisito previsto no nº 2 do art. 15º da Lei nº 54/2005 de 15 de novembro – o de que o terreno cuja propriedade privada os Autores reclamam era propriedade privada antes de 31 de dezembro de 1864.

Sucede que os Autores lograram igualmente demonstrar, a par da originária propriedade privada do bem, que este se manteve no domínio privado, a partir daquela data.

Fizeram-no a partir do histórico dos 5 prédios de onde provém o seu atual prédio (facto 3)

Assim, relativamente aos prédios ..98, ..47 e ..64, extrai-se da factualidade provada, a passagem sucessória ou testamental do prédio ..98 que fazia parte da herança do casal, CC e sua mulher FF, para o filho DD, deste para o seu filho como o mesmo nome (Dr. DD) e de seguida por testamento para II, que transmitiu em venda a KK o prédio ..47 desanexado do ..98, tendo aquele comprador por sua vez desanexado deste, o prédio ..64 vendendo-o a PP (factos 7, 8, 9, 10, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19 e 20).

Por sua vez o prédio ..64 que veio a integrar igualmente o atual prédio dos Autores, foi desanexado do prédio ..99, na sequência da sua compra por BBB e mulher a KK e mulher VVV........1851VVV em ........1964 (facto 46).

Este ..99 fora comprado a PPP (facto 45) que, por sua vez o recebera de seu pai LLL (que o levou para o casamento em regime de separação de bens) (factos 42 e 43).

LLL e WWW (irmãos), eram filhos de III e de JJJ, mas foi a LLL que coube tal prédio, que o levou para o casamento (factos 37, 39, 41 e 43).

A escritura de........1851 refere este prédio como confrontante com o escriturado, assim constando “que confronta…do poente com MM” (factos 34, 35 e 36).

Também o histórico dos prédios ..49, de onde foi desanexado o prédio ..67 e deste o ..68, compondo estes últimos o atual prédio dos Autores, revela a permanência destes sob o domínio privado.

QQ, primeira mulher de RR, faleceu em ... de ... de 1864, tendo, por sua morte, sido abertos autos de Inventário, no qual sob a verba 25 consta descrito um prédio sito nas AS..., que consta de figueiras e vinha e que veio a ser adjudicado ao viúvo RR, que o vendeu em 1882 a XXX, casado com EE tendo tido um filho, Dr. DD (factos 21, 24 e 25).

Este Dr. XXX fez testamento cerrado, tendo deixado o prédio ..49 ao caseiro HH, com usufruto a favor de YYY (factos 26 a 28).

Do prédio ..49 foi desanexado o prédio nº ..67, vendido por HH e mulher a KK e, do prédio ..67 foi desanexado o prédio nº ..68, vendido por aquele KK a ZZZ e PP em ........1962 (factos 29, 30, 31 e 32).

Podemos, pois, concluir que, mesmo no entendimento mais amplo e exigente do art. 15º nº 2 da Lei nº 54/2005, de 15 de novembro, os Autores recorrentes lograram provar que a parcela de terreno que reclamam como “propriedade privada” estava sob a esfera privada desde antes de 1864 e nesse domínio permaneceu até à atualidade.

Está, assim, afastada a presunção de dominialidade que recai sobre a mesma.

Sumário:

1 - Quem pretender obter o reconhecimento da propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, tem de demonstrar, além da sua titularidade atual, que aqueles terrenos eram objeto de propriedade particular ou comum, antes de 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas (artigo 15º, nº 2, da Lei nº 54/2005, de 15 de novembro).

2 - O regime probatório estabelecido no art. 15.º impõe que a demonstração da propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, se faça documentalmente (nº 2).

3 - Divergindo a jurisprudência quanto à necessidade de tal prova dever ser feita por referência apenas, a dois momentos históricos: o mais antigo e o atual, ou, igualmente, por referência a toda a história de transmissões do bem.

4 - Em qualquer das posições jurisprudenciais, a exigência de rigor documental terá de ter em consideração as possíveis mutações da estrutura fundiária, por via de desanexações e anexações várias respeitantes ao terreno e, as dificuldades genéticas de demonstrar realidades e sequências prediais e registais desde o século XIX.

5 - Não é impeditivo do afastamento da presunção de dominialidade do Estado provar a propriedade particular de determinado terreno antes de 31 de dezembro de 1864, com base em documento (escritura pública de ..51) que, referindo embora, a confrontação do terreno a sul com “rochas do mar”, se extrai da demais prova documental, que essa expressão é, no histórico do terreno, equivalente à expressão “mar”.

6 - Nomeadamente, quando desse terreno referido como confrontante a sul com “rochas de mar” se desanexou um outro, cuja descrição predial passou a mencioná-lo como confrontante a sul com “mar”.

III – Decisão:

Pelo exposto, decide-se conceder a revista e revogar o acórdão recorrido, declarando-se afastada a presunção de dominialidade do Réu sobre a faixa de terreno, com a largura de cinquenta metros, contados desde o LPMAVE (linha da praia mar das águas vivas equinociais), que incide sobre a parcela rústica do prédio identificado nos articulados 1. e 2. da P.I. e, reconhecer que o prédio dos Autores, na sua parte rústica, não obstante ocupar uma parcela da margem pública, é propriedade privada, porque objeto de propriedade ou posse particular desde data anterior a 31 de dezembro de 1864.

Sem custas, atenta a isenção de que beneficia o recorrente Estado.

Lisboa, 09 de julho de 2025

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Maria do Rosário Gonçalves (1ª Adjunta)

Cristina Coelho (2ª Adjunta)

__________________________________________________

1. A presente descrição reporta-se ao prédio descrito sob o nº ....03 dos AA.↩︎

2. Relatado por João Pedro Caupers e disponível em

  https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20150326.html↩︎