RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
INIMPUTABILIDADE
MEDIDAS DE SEGURANÇA
PERIGOSIDADE CRIMINAL
INTERNAMENTO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Sumário


I. O recurso tem por objeto um acórdão do Tribunal da Relação que, revogando uma decisão da 1.ª instância que declarou a inimputabilidade do arguido – mas não lhe aplicou uma medida de segurança, ou seja, uma decisão absolutória, na aceção do artigo 376.º, n.º 3, do CPP – e alterando a matéria de facto provada, aplicou ao arguido uma medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento adequado, com duração máxima de 4 anos, suspensa na sua execução.
II. Por recurso a analogia não proibida, pois que o regime das exceções do artigo 400.º do CPP à regra geral da recorribilidade do artigo 399.º se mostra concebido em função das penas, nomeadamente das penas privativas da liberdade, encontra-se na exceção da parte final da al. e) do n.º 1 do artigo 400.º (“exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância”), conjugado com a regra geral de recorribilidade do artigo 399.º, fundamento para, na coerência interna do sistema, considerar admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
III. Não obstante a invocação formal do vício de erro notório da apreciação da prova (art.º 410.º, n.º 2, al. c), do CPP), a pretensão deduzida em recurso perante a Relação configura materialmente uma impugnação da matéria de facto respeitando o ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP quanto aos pontos da matéria de facto considerados incorretamente julgados e quanto à indicação das provas impondo decisão diversa. 
IV. Uma vez respeitados os pressupostos que permitem a alteração da matéria de facto, apesar do errado fundamento invocado no recurso, esta alteração feita pelo Tribunal da Relação e a tomada de posição quanto à questão da perigosidade do arguido (nos termos do artigo 91.º, n.º 1, do CP) em sentido diverso ao do tribunal de 1.ª instância são admissíveis nos termos da conjugação dos artigos 412.º, 428.º e 431.º, al. b), do CPP.
V. Estando em causa um acórdão do Tribunal da Relação proferido em recurso, não é admissível recurso para o STJ com fundamento nos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP (art.º 432.º, n.º 1, al. b), do CPP), sendo, por conseguinte, rejeitado o recurso nesta parte.
VI. Diferentemente do que alega o recorrente, não ocorre nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação (art.º 379.º, n.º 1, al. a), e 425.º, n.º 4, do CPP), pois que o Tribunal da Relação procedeu ao exame crítico das provas, respeitando o dever de fundamentação constante do artigo 374.º, n.º 2 do CPP, e não omitiu a sua apreciação da informação pericial, que fez em sentido diverso do quanto havia sido feito na 1.ª instância, enfatizando a necessidade de acompanhamento efetivo e regular do arguido.
VII. Para fixação da medida de segurança e determinação da sua suspensão foram devidamente ponderados e analisados a perigosidade do arguido, uma vez alterada a matéria de facto assente, e os limites aplicáveis, nomeadamente, no que respeita ao limite máximo da medida de internamento – que corresponde ao limite máximo da pena aplicável ao ilício típico mais grave dos cometidos (em concurso) pelo arguido (in casu, o crime de perseguição agravado), a que corresponde uma moldura penal de um a cinco anos – e às condições pessoais e sociais deste.
VIII. O artigo 91.º, n.º 1, do CP, «filtra» obrigatoriamente a aplicação de uma medida de segurança de internamento ou da chamada «medida de segurança de substituição» pelo critério da proporcionalidade (art.º 40.º, n.º 3, do CP), que tem como limites a gravidade do facto praticado e a ameaça de outros nele potencialmente contida, definidos pelo máximo da pena correspondente ao tipo de crime cometido pelo inimputável (artigo 92.º, n.º 2, do CP). Limite que, no caso, se mostra ponderado e respeitado.
IX. Consequentemente, não se identifica qualquer fundamento que justifique uma intervenção corretiva na medida de segurança aplicada, a qual não desrespeita o critério de proporcionalidade que preside à sua aplicação em vista da realização das finalidades de proteção dos bens jurídicos ofendidos com a prática dos crimes e de integração do arguido na sociedade, mediante tratamento adequado (artigo 40.º, n.ºs 1 e 3, do CP).

Texto Integral

Acordam em conferência na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. Por sentença de 07.03.2024 proferida pelo Juízo Local Criminal de ... – Juiz ... – do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi decidido:

«(…) julgar a acusação improcedente, por não provada e, em consequência:

A) Declaro o arguido AA inimputável em razão de anomalia psíquica.

B) Absolvo o arguido AA da prática, em autoria material e concurso real, de 1 (um) crime de perseguição agravado, previsto e punível pelo artigo 154.º-A, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. c) por referência ao art.º 132º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal e 1 (um) crime um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1 e 184º, por referência ao art.º 132º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal, de que vinha acusado.

C) Declaro o arguido AA autor de facto qualificável como crime de perseguição agravado, previsto e punível pelo artigo 154.º-A, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. c) por referência ao art.º 132º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal e como crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1 e 184º, por referência ao art.º 132º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal.

D) Não aplico ao arguido AA qualquer medida de segurança;

E) Sem custas.»

2. Inconformado, interpôs recurso o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Guimarães, o qual, por acórdão de 08.11.2024, concedendo provimento ao recurso, decidiu alterar a matéria a matéria de facto – na parte em que dizia que «a anomalia psíquica de que padece (…) não lhe confere perigosidade de vir a cometer factos da mesma espécie», remetendo-a para a matéria de facto não provada – e em consequência decidiu aplicar ao arguido «a medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento adequado, com a duração máxima de 4 (quatro) anos, revogando em conformidade a sentença recorrida, na parte em que decidiu não aplicar ao arguido qualquer medida de segurança», suspensa na sua execução por igual período, mais impondo ao arguido o cumprimento «das seguintes regras de conduta: submeter-se a tratamento/acompanhamento psiquiátrico prescrito para a patologia de que padece, comparecendo às consultas, tomando a medicação e seguindo todas as orientações médicas que lhe forem dadas, sujeitando-se à respetiva fiscalização por parte da DGRSP, e ficando sob vigilância tutelar destes serviços.- obrigação de não contactar por qualquer meio a ofendida BB.»

3. Discordando do decidido pelo Tribunal da Relação, recorre o arguido AA para o Supremo Tribunal de Justiça apresentando motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«A) Do relatório médico-pericial do IML, requerido pelo arguido, datado de 28-08-2023 refere-se a seguinte exposição “quesito número 5 “Tal anomalia a existir e a produzir tais efeitos, faz crer que existe forte probabilidade do arguido voltar a praticar outros factos da mesma espécie do destes autos? R: Não. Atualmente, encontra-se estabilizado e sob tratamento psiquiátrico adequado, não evidenciando critérios para admitir perigosidade de praticar outros factos da mesma espécie dos destes autos.”

B) Dos factos provados resulta que o arguido, através da sua conduta, praticou factos tipificados na lei como um crime de perseguição agravada e crime de difamação agravada.

C) Da matéria de facto apurada nos presentes autos, constata-se que o arguido padece de doença do foro psiquiátrico, que se caracteriza por psicose paranoide em personalidade esquizoide, padecimentos que se mantêm actualmente, sendo de carácter permanente e irreversível.

D) Nesta medida e segundo consta do relatório do exame psiquiátrico junto aos autos, o Senhor Perito médico-legal conclui que o examinando AA “na data dos factos encontrava-se em situação de inimputabilidade.”

E) Resulta, pois, que o arguido padece de uma anomalia psíquica que afecta a sua capacidade de raciocínio, decisão e consequente juízo crítico, o que constitui uma situação de inimputabilidade do mesmo.

F) Nestes termos, terá de se concluir que, por força dessa anomalia psíquica, o arguido era incapaz, no momento da prática dos factos, de avaliar a ilicitude destes ou de se determinar de acordo com essa avaliação, dado que não podia dominar a influência dos referidos factores.

G) Assim, de acordo com o quadro legal e conceptual acima traçado, o arguido AA deve ser considerado inimputável, ficando afastada a possibilidade de lhe ser aplicada uma pena.

H) Observe-se que no acórdão recorrido não foi mencionado em momento algum as considerações médicas tecidas sobre a perigosidade de modo a avaliar o estado psiquiátrico do arguido na data do julgamento, nem sequer os motivos pela qual não se validou tal parecer médico.

I) Tal prova pericial teria inevitavelmente de ser instrumento orientador na decisão judicial, porque fundamental e imparcial para o apuramento da situação psicopatológica do arguido. Ora, ao alterar a matéria de facto relativamente ao estado de perigosidade do arguido sem elementos factuais essenciais que foram requeridos estamos a incorrer no vicio de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

J) Com o devido respeito, tendo em conta o que resulta da lei, o princípio da descoberta da verdade material, e o que se mostrou devidamente apurado, parece-nos que não podia o tribunal a quo ter dado como provado o estado de perigosidade sem que conteúdo do relatório do IML quanto à perigosidade fosse devidamente tido em conta na sua fundamentação.

L) Sucede que a perceção e avaliação da doença mental e a consequente inimputabilidade do arguido são questões que exigem especiais conhecimentos científicos, sobre as quais o perito médico emitiu um juízo técnico-científico claro e afirmativo, e nessa medida, sujeito ao disposto no art. 163.º, n.º 1 do CPP.

M) Pelo que ao omitir em completo o juízo médico pericial, silenciando por completo os documentos provatórios periciais incorreu o referido acórdão em vicio insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

N) No relatório de psicologia datado de 7-03-2019 a Sra. Dra. CC concluiu “o Sr. AA tem-se apresentado vígil, colaborante e com um discurso organizado e coerente ao longo do tempo. Mantém orientação alopsíquica e autopsíquica. Apresenta um humor ligeiramente depressivo e sintomatologia ansiosa um pouco mais evidente, mas controlada. Não revela ideação suicida e não há registo de atividade alucionatória ou delirante. Dito isto, o parecer técnico em psicologia aponta para que o Sr. AA se tem mantido estável do ponto psicopatológico. Em Fevereiro do ano de 2022 o médico psiquiatra Dr. DD concluiu” Trata-se de um doente que na presente data ao exame de estado mental apresenta-se vigil, orientado no tempo e espaço, discurso coerente e lógico, humor sintónico, sem ideação suicida «não apuro atividade delirante ou alucinatória. Em agosto do Ano de 2022 a psicóloga Dra. EE que acompanha o arguido emitiu a seguinte declaração: “Ao longo das consultas o paciente percebeu que o que fez, foi errado, mas segundo ele, não tinha ninguém para o orientar (…) Posso concluir que o AA tem vindo a trabalhar para obter uma melhor autorregulação comportamental e emocional perante eventos potencialmente stressantes.” No relatório de Medicina Legal dos presentes autos criminais, elaborado pela médica perita psiquiatra Dra. FF de 28-08-2023, concluiu-se “Atualmente não se observa, alterações de forma ou do conteúdo do pensamento, nomeadamente não se observa nenhuma ideação paranoide. Mostra capacidade de entender a desadequação do seu comportamento, aqui em análise e expressa arrependimento por esse comportamento, sendo capaz de perceber e temer as consequências legais e pessoais deste processo judicial.”

O) De igual modo a médica perita do IML, Dra. FF ao quesito número 5 “Tal anomalia a existir e a produzir tais efeitos, faz crer que existe forte probabilidade do arguido voltar a praticar outros factos da mesma espécie do destes autos? R: Não. Atualmente, encontra-se estabilizado e sob tratamento psiquiátrico adequado, não evidenciando critérios para admitir perigosidade de praticar outros factos da mesma espécie dos destes autos.”

P) Dos factos atrás devidamente elencados e documentados resulta que não se pode concluir que o arguido nos últimos dois anos tenha agravado o seu quadro clínico, ou sofrido qualquer agravamento da sua doença mental.

Q) A decisão recorrida, em sede de fundamentação, não procedeu ao exame crítico das provas ou ausência delas, exigido no art.º 374º n.º 2 do Código Processo Penal, como consequência do dever de fundamentação das decisões dos tribunais imposto pelo art.º 205º, n.º 1 da Constituição, violando o disposto nos referidos artigos art.º 205º, n.º 1 da Constituição, art.º 97º, n.º 5 e o art.º 374º n.º 2 ambos do Código de Processo Penal.

R) O receio de repetição há-de dirigir-se à prática de factos ilícitos típicos, que não podem ser de qualquer espécie, mas têm de ser factos ilícitos-típicos graves, de uma gravidade ao menos correspondente à gravidade daquele que foi praticado, e devem ser, em seguida, factos da mesma espécie daquele que foi praticado, o que não significa factos «iguais», integrantes do mesmo tipo de crime, significando, sim, factos que possuam uma conexão substancial com o praticado.

S) Perante a matéria dada como provada e não provada constatou-se que nenhuma das condutas do arguido foi particularmente grave nomeadamente põs em causa a vida ou integridade física. Do relatório da perícia médico-legal resulta que o indivíduo não apresenta perigosidade referindo ainda que deverá ser clinicamente acompanhada e eventualmente medicada.

T) Devendo, em consequência, ser aplicada uma medida de segurança a executar pelo arguido em liberdade, sujeita ao cumprimento de regras de conduta, nomeadamente com sujeição a acompanhamento e tratamento apropriado à condição de que padece, incluindo exames e observações a efetuar por médico especialista de psiquiatria, respeitando todas as prescrições médicas que lhe forem indicadas, e sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção social.

U) Ora, a medida de internamento determinada pelo Tribunal a quo, embora suspensa na sua execução, não se revela adequada nem proporcional às circunstâncias do caso concreto.

V) Relativamente ao quantum determinado da medida de internamento este mostra-se excessivo, sendo, desde logo manifesta a desproporcionalidade.

X) Não se mostrando assim devidamente preenchidos os requisitos para a aplicação de uma medida de internamento pelo prazo de quatro anos devendo ser revogada a sentença recorrida.

Termos em que deverá ser dado provimento ao recurso, e, em consequência, revogado o acórdão recorrido, declarando o arguido inimputável em razão de anomalia psíquica, não aplicando ao arguido qualquer medida de segurança»

4. Respondeu o Ministério Público, elencando as questões suscitadas pelo Arguido em Recurso, da seguinte forma: (i) “[i]nsuficiência para a decisão da matéria de facto provada” (ii) “[e]rro notório na apreciação da prova, (iii) [v]iolação do princípio da proporcionalidade”, e (iv) “[d]eterminação e quantum da medida de internamento decretada”. Concluindo “que o recurso interposto por AA não merece provimento em qualquer dos aspectos por ele suscitados.”

5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, para os efeitos do disposto no artigo 416.º do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, emitido “parecer no sentido de dever ser julgado improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.”

6. Notificados, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido apresentou requerimento a dia 16-05-2025, através de correio eletrónico, em que juntou ao processo relatório de alta do Hospital de 1, datado de 15-05-2025, e apresentou ainda a 16-06-2025 requerimento para junção aos autos de relatório de psiquiatria forense datado de 12-05-2025 e de despacho proferido pelo Ministério Público, no âmbito de um processo de internamento compulsivo – Proc. n.º 555/24.4.9..., autónomo em relação ao processo ora apreciado.

7. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi à conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Apreciando e decidindo.

II. Fundamentação

O acórdão recorrido – factos provados

8. Na síntese do acórdão recorrido, eram as seguintes as questões a decidir pelo Tribunal da Relação: «erro notório na apreciação da prova» e «saber se existe perigosidade por parte do arguido e, como tal, se impõe a aplicação de uma medida de segurança.»

9. A decisão da 1.ª instância em matéria de facto:

9.1. A 1.ª instância havia dado como provado que (transcrição):

«1. Factos Provados

Com relevância para a boa decisão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:

Da acusação pública:

a) BB é Procuradora da República, colocada, à data dos factos infra, na Comarca de ...., Instância Local de ....

b) Nessa qualidade foi titular do inquérito n.º 2591/19.3.9... que correu os seus termos no DIAP de ..., no qual o ora arguido AA era queixoso, processo esse que foi arquivado por despacho de 08.05.2020.

c) Para além disso, corre termos no Juízo Local Criminal de ... o processo de internamento compulsivo n.º 1070/19.3.8..., no qual o ora arguido AA é requerido e no qual BB representa o Ministério Público.

d) Sucede que o ora arguido não concordou com o desfecho do inquérito mencionado em 1., nem aceita a existência do processo de internamento compulsivo que sobre si impende neste Juízo Criminal.

e) Sucede que, ao invés de reagir através dos mecanismos legais de que dispõe, o arguido passou a remeter vários escritos ao inquérito e nomeadamente ao processo n.º1070/19.3.8..., nos quais BB é visada, tanto profissional como pessoalmente.

f) Assim, desde há mais de um ano, o arguido tem vindo a tecer considerações difamatórias sobre as capacidades profissionais de BB, denegrindo-a no processo e colocando em causa a sua imagem perante os operadores judiciários que intervêm no processo.

g) Mais tem vindo a dar conta de que tem investigado a vida pessoal da referida magistrada, não só através de buscas nas redes sociais mas também através de conversas com pessoas de alguma forma ligadas a familiares da mesma, vindo depois expor no processo, os factos pessoais de que consegue ter conhecimento, como sendo a identidade dos seus familiares, que locais frequentam, de onde são naturais, acontecimentos familiares como sendo o falecimento da mãe da participante, data de nascimento, etc, pretendendo mostrar a BB que tudo sabe e descobre sobre a sua vida, importunando-se constantemente e ameaçando-a de forma velada.

h) Das dezenas de requerimentos escritos e muito extensos dirigidos ao processo, destacam-se os seguintes:

i) No requerimento apresentado no processo em 16 de julho de 2020, o arguido escreveu: “eu sei que muitos de vocês param para comer na casa da cera, eu sei o GG é meu amigo, conhecemo-nos à muitos anos, perguntem HH, parece que o pai da procuradora ia lá, eu sei, eu sei tudo. Doidos, sim o tratamento farmacológico funciona com a maioria das pessoas, mas não é perfeito, há efeitos secundários numa minoria, e face ao que eu consigo fazer pois tenho um grande conhecimento e não sou burro, alteram-me a mente e coisas muito más acontecem”.

j) No escrito de 20 de julho de 2020, o arguido escreveu: “Descobri de onde a procuradora era, a idade e informações sobre o pai. Interesse estatal. Fugas no Ministério Público. Tenho nomes e números”.

k) Num escrito remetido ao referido processo em 21 de julho de 2020, o arguido escreveu “vou-lhe fazer uma sugestão procuradora, o trabalho que vou citar aqui é obra de ficção mas sinceramente é das minhas obras favoritas criminais. Death Note, (…) conhece?

Conta a história de um serial killer em massa que andou fugido muitos anos (…) trata-se de um individuo brilhante, aluno de 20´s, filho de um inspetor japonês, que com o tempo se torna um inspector da polícia no próprio caso onde ele é o perpetrador. Isto já não tem muito a ver com o meu argumento, mas a Procuradora devia ver, e tentar fazer um profiling do individuo, é um execelente exercício, eu fiz o mesmo há muitos anos atrás. Vai ajudá-la no seu trabalho. Digo isto porque a Procuradora tem a sua lista de Facebook em aberto. Quero que imagine o imaginável, imagine que o protagonista de Death Note, o Light Yagami, descobria aquele Facebook (…) o individuo a certa parte da história mata metade da equipa de investigação por um erro tão pequeno como esse, veja a história, é interessante, há mentes criminais daquele calibre, honestamente não é preciso uma grande mente, pelo que eu vi ali, eu fazia as perguntas certa e até descobria tudo sobre si, até descobria onde morava e com quem se dava, descobria-a tudo. Eu digo-lhe já, se fosse um individuo do calibre desse Light, ia à vida a Procuradora, a família e os amigos”.

l) No escrito do dia 24 de agosto de 2020 pode ler-se: “(…) sei que a Procuradora supostamente meteu uma queixa contra mim (…) seja como for, caso seja verdade, gostaria de dizer que eu tenho poucos amigos, ou melhor tenho muitos, mas eu sou muito privado na minha vida (…) Entretanto quero dar duas informações, fui ao barbeiro mais uma vez e mais uma vez e obtive informações sobre a Procuradora (…) A moral da história é, nunca deixar nenhuma rede social aberta porque dá sempre problemas (…) Reparei também que a Procuradora fechou a lista de amigos no Facebook, excelente ideia, veio um pouco tarde mas excelente ideia. (…) última nota: Após esta carta fui ver o seu perfil de novo procuradora (…) o seu perfil ainda tem falhas, acho que é num dos primeiros posts que não estão fechados, dá para ver lá comentários do seu pai e de uma senhora que penso ser sua irmã. O seu pai e a sua irmã não fecharam a lista de amigos deles e, no mais, eles comentam esses posts e é fácil correlacionar essas duas pessoas à Procuradora, pois são do mesmo apelido. Ah, já agora uma dica de uma pessoa que até percebe um pouco de pesquisa, a sua irmã (?) diz no perfil que estudou direito a Universidade do ..., outra falha, não deveria dizer nada e sabe porquê? Lembra-se de eu lhe falar que sou amigo do II, certo? O Dr. II é ... da U..., podia explorar a sua irmã apenas falando com o Dr. II. Ah, já agora, o seu pai refere que as flores são do jardim dele, o que aconteceria se eu utilizasse o motor de pesquisa de imagens do Google para saber onde fica esse jardim? Os meus talentos em pesquisa não são aleatórios Procuradora (…) Daí eu dizer, o mínimo deslize pode ser fatal. Mais uma vez recomendo que a Procuradora fale comigo antes de avançar com essa queixa”.

m) No escrito remetido ao processo em 11 de setembro de 2020, o arguido escreveu:

“Lamento a desestruturação anterior, foi parcialmente culpa desta casa, deveriam fazer melhor trabalho em proteger-me no mais a Procuradora foi negligente”.

n) Em 02 de outubro de 2020, o denunciado fez juntar ao processo um requerimento no qual faz constar, para além do mais: “Um pequeno post scriptum para a Procuradora, eu sei que nos cruzamos várias vezes, a Procuradora acha que eu não reparo mas eu reparo”.

o) No escrito remetido ao processo em 08 de outubro de 2020, o arguido escreveu: “O MP mostrou-se incompetente, não me vendo todas as provas, se eu tivesse sido protegido desde o início, não haveria tanta confusão. (…) Recusa por parte do MP em dar me uma chance para me defender com um advogado à minha escolha, tendo-me impingido uma advogada inexperiente (…) Como seu que esse Dr. JJ (psiquiatra) por exemplo não foi comprado? Seria muito conveniente para a Procuradora. Eu conheço muita gente corrupta ligada ao MO, que garantias tenho?”.

p) Entre junho e agosto de 2021, o participado enviou uma mensagem de texto à participante, através da plataforma Messenger, procurando estabelecer diálogo com a mesma, enviando-lhe também um convite de amizade na rede social Facebook, o qual foi rejeitado e bloqueado.

q) Também num escrito remetido ao processo no dia 24 de agosto de 2021, o participado escreve “Acham que eu não conseguia obter uma .55 calibre? Uma 55, uma 22, eu arranjava o calibre que eu quisesse, aqui há umas semanas comprovei numa carta ao MP que eu sei como contactar assassinos contratados e arranjar armas, e só não o faço porque sou muito simpático e não faço tudo o que sei (…para arranjar uma arma eu nem preciso de mexer o meu rabo, eu literalmente consigo uma arma enquanto durmo uma sesta (…)”.

Idiota, eu nunca contacto alguém que eu saiba que me pode bloquear, a Procuradora BB bloqueou-se no facebook, seu eu quisesse voltaria a contactá-la no Facebook, bloquear não adianta de nada, eu tenho múltiplas contas no Facebook e no Twitter, não acreditam. Vejam aqui este print screen, Procuradora, não é a sua conta de Facebook? Voçê só bloqueou uma conta, se me apetecesse contactava-a com 30 contas, este print screen foi tirado da minha conta secundária, bloquear vale tanto como nada”.

(…)

E por último eu aconselho mesmo a acabar com este processo, eu fui coagido a assinar o termo de LSM, eu tenho áudio, isto não vai acabar bem, pode acontecer que eu exponha o MP ao público, pode ser que aconteça pior, é só para avisar (…).

Por último vou deixar bem claro o que eu quero, não nas minhas palavras mas nas palavras do meu barbeiro HH, do ..., um estabelecimento que eu frequento há mais de 10 anos e também é conhecido do pai da Procuradora BB pois eu seu que o pai dela frequenta esse barbeiro e foi ele que me informou da Procuradora, via informações que lhe foram dadas pelo pai (…)

Eu tenho uma lista infindável de contactos, por isso que eu já avisei centenas de vezes ao MP, eu sou um especialista em obtenção de informação, se alguma coisa sair fora do tribunal eu vou saber, é assim que eu soube que a Procuradora me meteu uma queixa. (…) querem mais informações eu dou!

A mãe da Procuradora morreu jovem e depois o pai da Procuradora casou com uma segunda mulher e isso foi motivo de discórdia e estiveram zangados por causa disso (…) eu tenho muita informação sobre a Procuradora, sei que ela nasceu em ..., dia 9 senão me engano, sei que o nome completo dela é BB, sei que trabalhou em .... previamente, eu tenho informação suficiente para por um dos meus contactos a trabalhar para mim e extrair toda a informação sobre ela (…)”.

r) Em anexo ao aludido escrito, o participado juntou aos autos prints extraídos da conta pessoal do Facebook da magistrada, pese embora o acesso à mesma lhe esteja vedado.

s) No escrito remetido aos autos em 25 de agosto de 2021, o arguido escreveu:

“Quando eu falei para verem Death Note (ver artigo 10) aqui há um ano, foi para vos preparar psicologicamente para o que vinha aí, eu não dou ponto sem nó. Deviam ter mais atenção ao que eu digo, e eu já disse e sou “amigo dos vossos amigos”, eu “frequento os mesmos círculos que vocês” e os vossos amigos “contam-me tudo”.

(…) eu estou a avisar, eu vou levar a um nível extremo, isto porque eu fui ameaçado várias vezes sem protecção do MO, tive de fazer uma investigação doente contra um MP incompetente e ineficiente (…).

t) Resulta de cópia junta pelo arguido ao processo n.º1070/19.3.8... que, em 25 de agosto de 2021, pelas 15 horas e 59 minutos, através do endereço ...., este apresentou uma queixa junto da Procuradoria-Geral Distrital ... contra a participante.

u) No dia 23 de dezembro de 2021, pelas 20.09h, BB recebeu um pedido de mensagem, no chat do Messenger, enviada através de um perfil denominado “AA”.

v) Mais remeteu o arguido, em 5 de dezembro de 2021, escrito dirigido aos Serviços do M.P. de ... onde revela aceder às publicações de Facebook da denunciante, vendo as publicações a mesma.

w) A participante tem visto factos alusivos à sua vida pessoal expostos num processo judicial no qual intervém como magistrada, a que se somam considerações difamatórias quanto à sua capacidade profissional bem como ameaças à vida e integridade física da mesma.

x) O arguido praticou os factos descritos com o propósito concretizado de ofender a honra e consideração pessoal e profissional de BB.

y) Tendo o arguido, com a sua conduta, procurado, de forma reiterada, intimidar e perseguir BB, a qual, em virtude dos comportamentos persecutórios e investigatórios do arguido AA passou a ter medo de se cruzar com o mesmo, sentindo-se incomodada e perturbada com a sua presença em locais que a mesma e seus familiares frequentam, escritos ameaçadores enviados aos processos supra referidos, receando pela sua vida e integridade física.

z) O arguido praticou ainda os factos descritos com o propósito concretizado de perturbar psicologicamente BB, e de provocar-lhe medo e receio pela sua vida e integridade física bem como de prejudicar e limitar os seus movimentos, e que lesava na sua liberdade pessoal, como pretendeu e conseguiu.

aa) Fazendo-a fundadamente crer que, em momento futuro, o arguido atentaria contra a sua integridade física ou vida.

Da audiência:

bb) O arguido, à data dos factos, sofria de doença do foro psiquiátrico, que se caracteriza por psicose paranoide em personalidade esquizoide, padecimentos que se mantêm actualmente, sendo de carácter permanente e irreversível.

cc) Como consequência directa e necessária desta patologia, o arguido não consegue situar-se e determinar-se no âmbito do normativamente adequado, sendo inimputável.

dd) Actualmente, o arguido encontra-se estabilizado e sob tratamento psiquiátrico adequado, pelo que a anomalia psíquica de que padece, não obstante ser permanente e grave, não lhe confere perigosidade de vir a cometer actos da mesma espécie.

ee) O aludido processo de internamento compulsivo que correu termos no Juízo Local Criminal de ... encontra-se findo, sendo que o arguido ali aceitou voluntariamente o tratamento necessário.

(Factos relativos à personalidade e condições pessoais do arguido)

ff) O arguido exerce actividade independente na área da tradução e trabalha, em regime de part-time num cal-center, auferindo quantia não concretamente apurada mas não inferior ao salário mínimo nacional; o arguido beneficia de um subsidio (decorrente de atestado multiuso) de valor não concretamente apurado mas não inferior a €135,00 e uma prestação social (para a inclusão) de valor não concretamente apurado mas não inferior a €300,00.

gg) O arguido vive com a mãe, sendo que contribui para as despesas da habitação com quantia não concretamente apurada, mas não inferior a €100,00 e ainda tem a seu cargo o pagamento de prestações mensais relativas a créditos contraídos, no valor total mensal não concretamente apurado, mas não inferior a €140,00.

hh) O arguido não tem antecedentes criminais conhecidos.»

9.2. E quanto aos factos não provados indica:

«2. Factos Não Provados

Não resultaram, com relevância para a decisão, não provados quaisquer factos.»

10. Conhecendo e decidindo do recurso em matéria de facto, o tribunal da Relação decidiu «conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência:

a). Alterar a matéria de facto, retirando da alínea dd) dos Factos Provados o respetivo segmento final, de onde consta: «a anomalia psíquica de que padece (…) não lhe confere perigosidade de vir a cometer factos da mesma espécie», que passará para os Factos Não Provados; e introduzindo-se na mesma alínea dd) uma nova parte final, de modo a ficar com a seguinte redação: «Atualmente, o arguido encontra-se estabilizado e sob tratamento psiquiátrico adequado, não obstante o que, em face da anomalia psíquica de que padece, permanente e grave, verifica-se a probabilidade séria de aquele venha a cometer factos da mesma espécie dos acima descritos.».

b). Aplicar ao arguido AA a medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento adequado, com a duração máxima de 4 (quatro) anos, revogando em conformidade a sentença recorrida, na parte em que decidiu não aplicar ao arguido qualquer medida de segurança.

c). Suspender a execução da medida de segurança de internamento com o limite máximo de 4 (quatro) anos, igualmente pelo período máximo de 4 (quatro) anos, mediante o cumprimento pelo arguido das seguintes regras de conduta:

-. submeter-se a tratamento/acompanhamento psiquiátrico prescrito para a patologia de que padece, comparecendo às consultas, tomando a medicação e seguindo todas as orientações médicas que lhe forem dadas, sujeitando-se à respetiva fiscalização por parte da DGRSP, e ficando sob vigilância tutelar destes serviços.

- obrigação de não contactar por qualquer meio a ofendida BB.

- Devendo ser realizadas na 1ª instância as necessárias diligências à efetivação das condições da suspensão.»

11. A decisão recorrida encontra-se fundamentada nos seguintes termos (transcrição):

«A perigosidade criminal é um conceito jurídico, definido no artigo 91.º do Código de Processo Penal, que ocorre sempre que por virtude da anomalia psíquica de que o inimputável padece e da gravidade do facto ilícito típico que cometeu, exista fundado receio de que ele venha a praticar outros factos da mesma espécie.

Como conceito jurídico que é, o juízo sobre a perigosidade criminal não integra o juízo técnico ou científico a emitir pelos peritos, sendo ao tribunal que sobre ele compete decidir, sem as limitações estabelecidas para a prova pericial, no artigo 163.º n.º 2 do CPP.1

No caso em apreço, o tribunal a quo fez constar, na al. dd) dos Factos Provados, que «Actualmente, o arguido encontra-se estabilizado e sob tratamento psiquiátrico adequado, pelo que a anomalia psíquica de que padece, não obstante ser permanente e grave, não lhe confere perigosidade de vir a cometer actos da mesma espécie.»

Para tal, e como consta da motivação, considerou «determinante o relatório de perícia de psiquiatria de fls. 330 a 332.», bem como, «No que concerne às condições pessoais e actuais do arguido … o depoimento do mesmo que se mostrou claro e coerente, sendo certo que não foi produzida prova que o infirmasse.»

Explicando depois, num ponto intitulado Escolha e determinação da medida de segurança, que chegou à conclusão da inexistência de perigosidade da seguinte forma:

«Considerando o relatório pericial junto aos autos a fls. 330 e ss., do qual resulta entre o mais que o arguido estando correctamente medicado não apresenta características de perigosidade. Além do mais, da prova produzida em audiência não resultou que o arguido após o cometimento dos factos em apreço tenha voltado a cometer outros ilícitos. O arguido encontra-se medicado, estabilizado e sob tratamento psiquiátrico adequado. Mostra-se inserido social, profissional e familiarmente. Deste modo, permite-se concluir que o arguido não venha a cometer factos semelhantes aos que agora apreciamos, pelo que se nos afigura estarmos perante uma situação em que não há perigosidade por banda do inimputável.»

Olvidou, porém, o Tribunal, que no mesmo relatório pericial em que se ancora, que se encontra junto aos autos e por ser citado na motivação faz parte integrante dela, consta também:

- A anomalia psíquica de que o arguido padece encontra-se diagnosticada desde 2010;

- Na data dos factos, o arguido sofreu um episódio psicótico, com ideação persecutória de teor paranoide e alterações do comportamento caracterizadas por impulsividade de litigância;

- A anomalia psíquica de que o arguido padece é uma doença grave e permanente, que necessita de acompanhamento psiquiátrico e de tratamento contínuo e regular (cf. esclarecimentos prestados pela senhora perita médica que elaborou o relatório);

- No relatório clínico de Psiquiatria do Hospital de 2 de 17.11.2021, citado no relatório pericial, pode ler-se: “...seguido na consulta de Psiquiatria, do Hospital 3, desde 2010, com o diagnóstico de perturbação da personalidade de tipo esquizoide...afirmando não cumprir medicação por sua iniciativa desde o início de Novembro...”.

- A declaração médica de Psiquiatria do Hospital 3, de 03.03.2023 – que é data posterior à cessação do tratamento em regime compulsivo, também citada no relatório pericial, consigna: “…perturbação da personalidade do grupo A, evidenciando risco de desestruturação psicótica perante situações de stress major…”

- na resposta ao quesito 6, no final do relatório pericial, a senhora perita médica fez constar que deveria ser dispensada a presença do arguido em juízo, uma vez que poderia descompensar o seu estado mental.

Deste contexto fático resulta inequivocamente que o arguido padece de doença do foro psiquiátrico: Psicose Paranoide em Personalidade Esquizoide, diagnosticada desde 2010, a demandar acompanhamento psiquiátrico e tratamento contínuo e regular, evidenciando risco de desestruturação psicótica perante situações de stress major.

Dos mesmos factos decorrendo que há registos médicos anteriores de falhas e incumprimentos pelo arguido, no que toca à efetividade do tratamento médico adequado e prescrito para a doença do foro psiquiátrico de que padece, indispensáveis para que se mantenha compensado.

Neste contexto, é o próprio relatório pericial a prognosticar, que em situações que venham a ser sentidas pelo arguido como de stress major, que é facto notório acontecerem inúmeras vezes, sem anúncio prévio, na vida de qualquer pessoa, haverá risco de descompensação psicótica (como já ocorreu no passado).

As consequências dessa descompensação serão sempre inesperadas, mas da análise do teor do relatório pericial, sua conjugação com os factos praticados pelo arguido e as regras da experiência, nelas não pode deixar se incluir o fundado receio de que o arguido venha a cometer outros factos da mesma espécie daqueles que se encontram em causa nos autos. Os quais, relembra-se, foram praticados com consistência e regularidade, durante período superior um ano, sempre sobre a mesma vítima, e precisamente por causa da doença do foro psiquiátrico de que o arguido padecia e continua a padecer.

Resulta também das regras da experiência, que é relativamente frequente as pessoas com doenças do foro psiquiátrico do tipo daquela de que padece o arguido deixarem de cumprir o tratamento que lhes está medicamente prescrito, mesmo que vivam com familiares.

Basta uma breve análise aos processos de internamento involuntário tramitados em qualquer juízo local criminal do país para se chegar logo a essa constatação e, ainda, que há inúmeras situações de incumprimento do tratamento médico prescrito, que são humanamente impossíveis de ser evitadas por familiares, que apenas podem espoletar com sucesso o competente processo de tratamento/internamento involuntário perante descompensações já num estado avançado (quando se verificam os respetivos pressupostos legais). Até lá, resta-lhes assistir, quantas vezes dolorosa e desesperadamente, ao agravamento dos sintomas, sem a mínima hipótese de conseguir que o doente, um adulto, retome/prossiga o tratamento médico psiquiátrico de que necessita.

De tudo assim decorrendo que não pode subsistir a subsunção dos factos ao direito realizada pelo tribunal a quo, no que concerne à inexistência de perigosidade criminal do arguido, por esse juízo enfermar de contradição lógica com os factos que se provaram e violar as regras da experiência (como acabou de se demonstrar), inquinando a sentença, nesse ponto, do vício do erro notório, previsto na al. c), do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.

A reparação do vício de que padece a sentença pode ser feita nesta instância, nos termos do disposto no artigo 431.º, al. a) do Código de Processo Penal, uma vez que os autos dispõem de todos os elementos probatórios que sustentaram a decisão recorrida.

Para esse efeito, terá de se retirar da alínea dd) dos Factos Provados, o respetivo segmento final, de onde consta: «a anomalia psíquica de que padece (…) não lhe confere perigosidade de vir a cometer factos da mesma espécie», que passará para os Factos Não Provados; e introduzindo-se na mesma alínea dd) uma nova parte final, de modo a ficar com a seguinte redação: «Atualmente, o arguido encontra-se estabilizado e sob tratamento psiquiátrico adequado, não obstante o que, em face da anomalia psíquica de que padece, permanente e grave, verifica-se a probabilidade séria de aquele venha a cometer factos da mesma espécie dos acima descritos

Revogando-se em conformidade a sentença recorrida.


*


A medida de internamento.

Por referência à factualidade considerada apurada (já com a alteração acabada de efetuar) e ao disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e 91.º, n.º 1 do Código Penal, temos assim que:

- o arguido AA é inimputável;

- foi autor de factos qualificáveis como crime de perseguição agravado, previsto e punível pelo artigo 154.º-A, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. c) por referência ao art.º 132º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal e como crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1 e 184º, por referência ao art.º 132º, n.º 2, al. l), todos igualmente do Código Penal;

- em face da anomalia psíquica de que padece, permanente e grave, verifica-se a probabilidade séria de aquele venha a cometer factos da mesma espécie dos acima descritos.

O internamento de inimputáveis que praticaram um ou mais factos ilícitos típicos e que devam ser considerados perigosos, encontra-se regulado nos artigos 91.º e segs. do Código Penal.

O limite mínimo do internamento encontra-se fixado na lei, no n.º 2 do artigo 91.º, mas apenas nos casos em que estejamos perante crime contra as pessoas ou crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a 5 anos.

Para todos os outros casos, nos quais se inclui o dos autos – em que temos dois crimes contra as pessoas, mas nenhum deles punível com pena de prisão superior a 5 anos – o limite mínimo do internamento não está fixado na lei penal.

Cessando o internamento quando o Tribunal de Execução das Penas verificar que findou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 92.º. (…)

Quanto ao prazo máximo do internamento, a lei, no n.º 2 do artigo 92.º, fá-lo corresponder ao limite máximo da pena aplicável ao tipo de crime cometido pelo inimputável2.

Em casos de concurso de crimes, como acontece nos autos, e embora a lei não preveja expressamente essa hipótese, cremos que tal limite terá de coincidir com o da pena correspondente ao crime mais grave, nos termos do citado n.º 2 do artigo 92.º, a não ser que se verifique a situação descrita no n.º 3 da mesma disposição legal.

Na verdade e como a propósito se pode ler no acórdão do STJ, de 16.10.2013, relatado por Maia Costa , «a lei não prevê outro limite para além do estabelecido nesse preceito [n.º 2 do art. 92.º]. Por outro lado, o art. 77.º do CP não admite o cúmulo jurídico de penas abstratas. Por fim, a acumulação material dos limites máximos das molduras penais redundaria numa medida completamente desproporcionada, violando-se assim o disposto no n.º 3 do art. 40.º do CP. A única solução que se mostra compatível com o sistema é, pois, a aplicação do n.º 2 do art. 92.º: o limite máximo da medida de internamento, em caso de concurso de crimes, é o da pena correspondente ao crime mais grave.»

Esta é também a solução propugnada por Paulo Pinto de Albuquerque3

O limite máximo do internamento no caso em apreço é pois de cinco anos de prisão, por corresponder ao limite máximo da pena aplicável ao ilícito típico mais grave dos cometidos pelo arguido, que é o de perseguição agravado, previsto e punível pelo artigo 154.º-A, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. c) por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal, a que corresponde a moldura legal de prisão de um a cinco anos.

Ora, nestes casos, é unicamente o prazo máximo de internamento que o Tribunal que o decreta tem e pode fixar.

É que a medida de segurança de internamento de inimputáveis é um verdadeiro tratamento a que o internado vai ser submetido, que termina quando a perigosidade criminal que o determinou tiver cessado. Estando apenas legalmente definido, e em regra, o seu prazo máximo, findo o qual o internado tem de ser posto em liberdade, independentemente de ter ou não cessado aquele seu estado de perigosidade, por imposição constitucional, já que o artigo 30.º, n.º 1 da Constituição afasta definitivamente as medidas de segurança sem duração definida, ainda que, no n.º 3 do mesmo preceito, admita a sua prorrogação sucessiva, mas sempre mediante decisão judicial.

Pelo que, in casu, impor-se-ia a aplicação ao arguido da medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento adequado, com a duração máxima de cinco anos.

Porém, tendo o recorrente Ministério Púbico limitado o pedido de condenação a uma medida de segurança determinada em quatro anos, não pode este tribunal de recurso exceder essa pretensão recursiva, sob pena de proferir decisão surpresa e incorrer em nulidade da decisão por excesso de pronúncia4. Motivo pelo qual terá de se fixará em quatro anos a duração máxima da medida de segurança de internamento.


*


A suspensão da execução da medida de internamento.

O artigo 98.º do Código Penal consagra os pressupostos e regime da suspensão da execução do internamento, que configura como uma autêntica medida de segurança de substituição, nos seguintes termos:

«1 - O tribunal que ordenar o internamento determina, em vez dele, a suspensão da sua execução se for razoavelmente de esperar que com a suspensão se alcance a finalidade da medida.

2 - No caso previsto no n.º 2 do artigo 91.º, a suspensão só pode ter lugar verificadas as condições aí enunciadas.

3 - A decisão de suspensão impõe ao agente regras de conduta, em termos correspondentes aos referidos no artigo 52.º, necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regimes de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados.

4 - O agente a quem for suspensa a execução do internamento é colocado sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção social. É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 53.º e 54.º

5 - A suspensão da execução do internamento não pode ser decretada se o agente for simultaneamente condenado em pena privativa da liberdade e não se verificarem os pressupostos da suspensão da execução desta.

6 - É correspondentemente aplicável:

a) À suspensão da execução do internamento o disposto no artigo 92.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 93.º;

b) À revogação da suspensão da execução do internamento o disposto no artigo 95.º»

A suspensão da execução do internamento, a decretar pelo Tribunal de julgamento, está assim dependente de um juízo de prognose de que através dela será ainda possível alcançar as finalidades da medida decretada.

O fim último das medidas de segurança é comum ao das penas, reconduzindo-se à proteção dos bens jurídico-criminais e à reintegração do agente na sociedade, como consagra expressamente o artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal5.

Apresentam no entanto as medidas de segurança também funções muito particulares de prevenção especial e recuperação social, através do tratamento da anomalia psíquica de que é portador o inimputável perigoso e da neutralização da sua perigosidade criminal através do internamento6.

Como se pode ler a propósito no Acórdão do STJ de 15.03.2017, proc. n.º 98/15.7JAGRD.C1.S1, «A suspensão da execução do internamento reclama que o tribunal adquira uma convicção fundada quanto à necessidade preventiva-especial de neutralização da perigosidade criminal e, no caso dos crimes referidos no n.º 2 do art. 91.º do CP, quanto à necessidade preventivo-geral de pacificação social, não imporem o internamento do inimputável. Em suma, que num juízo de prognose, a liberdade se mostre adequada às necessidades de prevenção especial de recuperação do inimputável e de inocuização ou neutralização da perigosidade criminal, através do tratamento da anomalia psíquica, e de prevenção geral positiva de pacificação social. Neste entendimento, consideramos que não há razões de censura da decisão quanto à não suspensão da execução do internamento.»

Ora, no caso em apreço, apurou-se que o arguido está atualmente a efetuar o tratamento médico prescrito para a doença do foro psiquiátrico de que padece, encontrando-se estabilizado. Exerce uma atividade profissional independente na área da tradução e trabalha ainda, em regime de part-time, num call-center, auferindo quantia não concretamente apurada, mas não inferior ao salário mínimo nacional. Vive com a mãe, contribuindo para as despesas domésticas, tendo ainda a seu cargo o pagamento de prestações mensais relativas a créditos contraídos.

Neste contexto, e num juízo de prognose, afigura-se-nos ser razoavelmente de esperar que com a suspensão do internamento, condicionada ao cumprimento de regras de conduta, se podem ainda alcançar as finalidades da medida de segurança, sendo a liberdade do arguido ainda compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.

Por conseguinte, suspender-se-á a execução da medida de internamento do arguido, com o limite máximo de 4 anos, igualmente pelo período máximo de 4 anos, mediante a sujeição ao tratamento/acompanhamento psiquiátrico prescrito para a patologia de que padece e a obrigação de não contactar por qualquer meio a ofendida BB.

12. Pela sua relevância, importa verificar a fundamentação da decisão da 1.ª instância em matéria de facto (transcrita na decisão recorrida), que, na parte que agora interessa, é do seguinte teor:

«Escolha e determinação da medida de segurança

Considerando o relatório pericial junto aos autos a fls. 330 e ss., do qual resulta entre o mais que o arguido estando correctamente medicado não apresenta características de perigosidade. Além do mais, da prova produzida em audiência não resultou que o arguido após o cometimento dos factos em apreço tenha voltado a cometer outros ilícitos. O arguido encontra-se medicado, estabilizado e sob tratamento psiquiátrico adequado. Mostra-se inserido social, profissional e familiarmente. Deste modo, permite-se concluir que o arguido não venha a cometer factos semelhantes aos que agora apreciamos, pelo que se nos afigura estarmos perante uma situação em que não há perigosidade por banda do inimputável.

Assim sendo, é forçoso concluir não existir necessidade da aplicação de uma medida de segurança.»

13. No recurso para a Relação, o Ministério Público limitou-se a questionar a decisão não aplicação de medida de segurança, nos seguintes termos (cfr. acórdão recorrido):

(…)

4.ª) (…) o Tribunal deu ainda como provado o seguinte:

- o arguido, à data dos factos, sofria de doença do foro psiquiátrico, que se caracteriza por psicose paranoide em personalidade esquizoide, padecimentos que se mantêm atualmente, sendo de carácter permanente e irreversível;

- como consequência direta e necessária desta patologia, o arguido não consegue situar-se e determinar-se no âmbito do normativamente adequado, sendo inimputável;

- atualmente, o arguido encontra-se estabilizado e sob tratamento psiquiátrico adequado, pelo que a anomalia psíquica de que padece, não obstante ser permanente e grave, não lhe confere perigosidade de vir a cometer atos da mesma espécie.

5.ª) Em consequência, o Tribunal recorrido decidiu julgar improcedente a pronúncia e: (…) decidiu não aplicar ao arguido qualquer medida de segurança.

6.ª) É apenas este último segmento da sentença que o Ministério Público pretende questionar em sede de recurso, por não se concordar com a mesma na parte em que deu como provado que inexistia perigosidade [cf. parte final da alínea dd)] e, em consequência, decidiu não aplicar ao arguido qualquer medida de segurança.

7.ª) Efetivamente, da conjugação do relatório pericial junto a folhas 330 a 332, associada à resposta ao objeto da perícia e aos esclarecimentos à perícia prestados em audiência de julgamento pela Exma. Perita Médica, Dr.ª FF, resulta o seguinte:

- o arguido padece de Psicose Paranóide em Personalidade Esquizoide, com ideação persecutória e alterações do comportamento associadas (impulsividade e litigância);

- a doença em questão caracteriza-se por uma “personalidade doentia, com risco de fazer surtos, como tem acontecido desde 2009, em que o doente fica psicótico”;

- trata-se de uma doença grave, permanente, que necessita de acompanhamento psiquiátrico e de tratamento regular ao longo da sua existência (cf. gravação media studio desde minuto 1:51 até ao minuto 3:27);

- com esta personalidade (esquizoide) existe um risco acrescido de psicotizar (cf. gravação media studio minuto 16:00 a 16:06);

- os traços de personalidade vão-se manter ao longo da vida;

- o arguido necessita de acompanhamento regular e assertivo;

- há o risco de recidivas pelo facto de deixar tomar a medicação;

- estes traços de personalidade não são mutáveis;

- trata-se de personalidades frágeis, ultrassensíveis e que eventualmente carecem e merecem do ponto de vista psiquiátrico um acompanhamento muito regular e assertivo (cf. gravação media studio desde o minuto 20:30 até ao 21:52).

8.ª) Quanto à situação familiar do arguido, de acordo com as declarações do próprio, fez-se constar do relatório o seguinte:

“Diz que foi abandonado pelo pai quanto tinha oito meses de idade e que foi criado até aos 15 anos de idade pelos avós maternos, entretanto falecidos. Acerca dos seus pais conta: “estão divorciados desde 201...…mas separados desde 199...…com oito meses ele abandonou-me (…) o meu pai era alcoólico a minha mãe tem doença psiquiátrica…um transtorno delirante…faz gastos exagerados…o meu pai está num Lar desde 201...…eu não visito o meu pai.

O examinado vive com a sua mãe. Diz que não tem filhos, nem teve nenhuma relação de união de facto”.

9.ª) Entende o Ministério Público que, tendo em conta os esclarecimentos prestados pela Exma. Perita Médica quanto à caracterização da doença de que padece o arguido, a conclusão que deveria ter sido extraída pelo Tribunal quanto à perigosidade do arguido de, no futuro, cometer atos da mesma espécie ou natureza, tinha de ser a inversa, ou seja, o Tribunal a quo deveria ter dado como provada a existência de tal perigosidade.

10.ª) Efetivamente, para concluir que não há perigosidade do inimputável, o tribunal a quo baseia-se:

- no relatório pericial, segundo o qual estando o arguido corretamente medicado não apresenta características de perigosidade;

- no não conhecimento de que o arguido tenha praticado outros factos ilícitos após o cometimento destes;

- no facto de o arguido estar medicado, estabilizado e sob tratamento psiquiátrico adequado;

- na circunstância de o arguido se mostrar inserido social, profissional e familiarmente.

11.ª) Porém, tais argumentos não são suficientes para se concluir pela inexistência de perigosidade (…).

12.ª(…) dificilmente se entende que se defenda a inexistência de perigosidade quando efetivamente nos respetivos relatórios médicos se alude a Riscos efetivos de descompensação perante situações de maior stress.

13.ª) A tudo acresce que a afirmação da sua integração familiar é falaciosa, pois, como decorre linearmente das declarações do arguido prestadas em sede de audiência de julgamento e do próprio relatório pericial, aquele vive apenas com a mãe, sendo que não beneficia de suporte familiar coeso e equilibrado, pois não mantém relação afetiva com o pai e a mãe padece de doença psiquiátrica (cf. gravação media studio 00:03 a 00:18).

14.ª) Ora, o juízo de que trata o artigo 91.º do Código Penal não integra o juízo técnico ou científico a emitir pelos peritos, cabendo antes ao tribunal decidir do mesmo sem os condicionalismos estabelecidos no artigo 163.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, pois a perigosidade criminal, como a inimputabilidade penal, não é um conceito médico-científico, mas essencialmente jurídico.

15.ª) Se é certo que a sujeição a acompanhamento médico e medicamentoso permite controlar o risco de repetição de novos factos da mesma espécie, não é menos verdade que a garantia de que a perigosidade não ocorre não pode ficar dependente de um elemento cuja concretização é deixada a cargo do arguido, quando são fundados os riscos de que, atentas as características da sua personalidade, num processo terapêutico unicamente dependente da sua iniciativa para que se efetive, sem falhas nem interrupções, o mesmo se sujeite ao tratamento de que decisivamente carece para obstar à probabilidade de vir repetir a sua conduta típica e ilícita.

16.ª) Sem essa garantia, que os factos do processo não fornecem, é temerário admitir que, sem a aplicação de uma medida de segurança fica afastada a probabilidade de que o arguido venha a cometer outros factos da mesma espécie.

17.ª) Ora, não podia o Tribunal a quo ignorar os esclarecimentos prestados pela Exma. Perita Médica em audiência de julgamento, designadamente que os “traços de personalidade vão-se manter ao longo da vida”, que o arguido necessita de “acompanhamento regular e assertivo”, que esta doença se caracteriza por uma personalidade frágil, existindo “um risco acrescido de psicotizar”.

18.ª) Por outro lado, importa salientar as declarações prestadas pela testemunha KK, oficial de justiça colocada na Secção ... do Tribunal de ..., que referiu que atualmente o arguido continua a dirigir escritos a processos, sendo que os últimos são dirigidos à Dr.ª LL, Juíza do ..., sendo que também manda requerimentos dirigidos a um inquérito do Ministério Público queixando-se contra diversas pessoas, psiquiatras e outros profissionais dessa área, colocando os nomes completos das pessoas (cf. gravação media studio minuto 04:20 a 05:10).

19.ª) Perante tal factualidade, aliada às características da doença e da personalidade do arguido, forçoso se torna concluir que o juízo de prognose a efetuar aponta no sentido de se verificar um perigo real e efetivo de cometimento de factos da mesma espécie daqueles que estão em causa nos presentes autos.

20.ª) Em suma, entendemos que a sentença padece de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, ou seja, os esclarecimentos prestados pela Exma. Perita em audiência de julgamento conjugados com os princípios gerais da experiência comum impunham a conclusão contrária quanto à perigosidade do arguido, devendo o Tribunal a quo ter concluído no sentido da sua verificação e na necessidade de aplicação de uma medida de segurança.

21.ª) Ao não tê-lo feito, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 163.º e 127.º do Código de Processo Penal e 91.º do Código Penal, incorrendo no invocado vício de erro notório da apreciação da prova.

22.ª) Deste modo, nos termos do artigo 431.º, alínea a), do Código de Processo Penal, entende-se que o Tribunal ad quem deverá alterar a matéria de facto dada como provada na alínea dd), eliminando a parte final em que se refere que “não lhe confere perigosidade de vir a cometer actos da mesma espécie”, passando a constar da mesma apenas o seguinte: “Atualmente, o arguido encontra-se sob tratamento medicamentoso e encontra-se estabilizado”.

23.ª) Deverá ainda o Tribunal ad quem acrescentar à matéria de facto provada o seguinte:

- A anomalia psíquica de que o arguido padece encontra-se diagnosticada desde 2010 (cf. relatório pericial de fls. 331 e ss.);

- Na data dos factos, o arguido sofreu um episódio psicótico, com ideação persecutória de teor paranoide e alterações do comportamento caracterizadas por impulsividade de litigância (cf. relatório pericial de fls. 332);

- A anomalia psíquica de que o arguido padece é uma doença grave e permanente, que necessita de acompanhamento psiquiátrico e de tratamento contínuo e regular (cf. esclarecimentos prestados pela Exma. Sr.ª Perita Médica em audiência de julgamento);

- Em virtude da anomalia psíquica grave e permanente de que padece e das características da sua personalidade, existe perigo de o arguido vir a praticar outros factos ilícitos típicos da mesma espécie dos supra descritos;

- A progenitora do arguido padece de doença do foro psiquiátrico (cf. Declarações do arguido).

24.ª) Nos termos dos artigos 91.º e 98.º do Código Penal, face à gravidade dos factos (perseguição de uma Magistrada do Ministério Público), à reiteração e duração e da conduta do arguido (superior a um ano) e à demais factualidade provada, designadamente de que o arguido se encontra estabilizado e sob tratamento medicamentoso, que atualmente não carece de internamento e que trabalha, entende-se que deverá ser aplicada ao arguido medida de segurança de internamento, fixada em 4 (quatro) anos, suspensa na sua execução por igual período, sob condição de:

- o arguido se submeter a tratamento/acompanhamento psiquiátrico para a patologia de que padece, comparecendo às consultas, tomando a medicação e submetendo-se a todas as orientações médicas que lhe forem dadas, e de se sujeitar à fiscalização por parte da DGRSP;

- o arguido não contactar por qualquer meio a ofendida BB, durante todo o período da duração de medida de segurança.»

Objeto e âmbito do recurso

14. O recurso tem por objeto um acórdão do Tribunal da Relação que, revogando uma decisão absolutória, na aceção do artigo 376.º, n.º 3, do CPP – segundo o qual «[s]e o crime tiver sido cometido por inimputável, a sentença é absolutória; mas se nela for aplicada medida de segurança, vale como sentença condenatória para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo anterior e de recurso do arguido» – proferida pelo tribunal da 1.ª instância, aplicou ao arguido uma medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento adequado, com duração máxima de 4 (quatro) anos, suspensa na sua execução.

Por recurso a analogia não proibida, pois que o regime das exceções do artigo 400.º do CPP à regra geral da recorribilidade do artigo 399.º se mostra concebido em função das penas, nomeadamente das penas privativas da liberdade, encontra-se na exceção da parte final da al. e) do n.º 1 do artigo 400.º (“exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância”), conjugado com a regra geral do artigo 399.º, fundamento para, na coerência interna do sistema, considerar admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. 7

15. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sendo limitado ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do mesmo diploma), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão de direito, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça não é um segundo recurso da decisão da 1.ª instância, mas um recurso do acórdão da Relação que conheceu do recurso daquela decisão8. Como se tem afirmado9, os recursos judiciais não servem para conhecer de novo da causa; constituem meio processual («remédio processual»10) destinado a garantir o direito de reapreciação de uma decisão de um tribunal por um tribunal superior, havendo que, na sua disciplina, distinguir dimensões diversas, relacionadas com o fundamento do recurso, com o objeto do conhecimento do recurso e com os poderes processuais do tribunal de recurso, a considerar conjuntamente11.

Questão prévia: da modificabilidade da matéria de facto pelo Tribunal da Relação

16. Poderia suscitar-se a questão prévia de saber se o Tribunal da Relação poderia ter modificado a matéria de facto nos termos em que o fez (supra, 9 a 11), por considerar existir erro notório na apreciação da prova, “no que concerne à inexistência de perigosidade criminal do arguido, por esse juízo enfermar de contradição lógica com os factos que se provaram e violar as regras da experiência (como acabou de se demonstrar), inquinando a sentença, nesse ponto, do vício do erro notório, previsto na al. c), do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.”

17. Não está ora em discussão a inimputabilidade do arguido, que foi decidida em ambos os arestos no mesmo sentido, com base no diagnóstico sustentado em perícia psiquiátrica realizada de que o arguido padece de anomalia psíquica, de “psicose paranoide em personalidade esquizoide” (cfr. alínea bb) da matéria de facto provada, supra ponto 9.1. e não alterada no aresto do Tribunal ad quem), que determinou a sua incapacidade de, no momento da prática dos factos, avaliar a ilicitude dos mesmos - artigo 20.º do Código Penal (“CP”).

Como tem sido assinalado, a questão da inimputabilidade, incluída no capítulo do Código Penal referente aos «pressupostos da punição» do facto, constitui, «mais do que uma causa de exclusão, verdadeiramente um obstáculo à determinação» ou «à comprovação da culpa»12.

A questão controvertida no caso em apreço prende-se outrossim com a questão da perigosidade criminal do arguido, pressuposto da aplicação ao arguido de uma medida de segurança – artigos 40.º, n.º 3, e 91.º do Código Penal, onde se lê:

“Artigo 40.º

Finalidades das penas e das medidas de segurança

1. A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

(…)

3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente.

“Artigo 91.º

Pressupostos e duração mínima

1. Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.”

Daqui se extraem três pressupostos distintos que têm de ser verificados para se decidir pela aplicação de uma medida segurança de internamento:

i. A prática de um facto ilícito típico;

ii. Por quem, no momento da prática do facto e por força de anomalia psíquica, era incapaz de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação – a inimputabilidade, nos termos do artigo 20.º do CP;

iii. Sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que o inimputável venha a cometer outros factos da mesma espécie – a perigosidade.

Verificamos assim que o conceito de perigosidade criminal se traduz no “fundado receio de que [o arguido] venha a cometer outros factos da mesma espécie”, e que para integração deste conceito deve o tribunal verificar e ponderar dois pressupostos: (i) a anomalia psíquica, e (ii) a gravidade do facto praticado. Só uma vez ponderados estes dois elementos e verificados no caso concreto, se poderá considerar verificada a perigosidade criminal do agente, que, conjuntamente com a prática de facto ilícito criminal e a sua inimputabilidade (art. 20.º do CP), poderá dar lugar à aplicação de uma medida de segurança.

Subjacente à indagação da perigosidade criminal do agente, sempre estará um juízo de prognose realizado pelo julgador, mediante a apreciação que faça da prova, que deverá incluir a prova pericial, nomeadamente relatório de perícia de psiquiatria realizada ao arguido; no entanto, sempre será do tribunal a última palavra. Neste sentido, vide Figueiredo Dias, em Direito Penal Português – Parte Geral II - As consequências jurídicas do crime, 1993 (págs. 443 e ss.): «Já em vários pontos da nossa exposição tivemos de haver-nos com a necessidade, também aqui presente, de o tribunal emitir um juízo de prognose. Esta tarefa constitui sem dúvida – e de uma forma particular em matéria de aplicação de medidas de segurança – uma das mais difíceis e delicadas de todo o âmbito político-criminal, por isso que tem a ver com uma questão tão problemática como é a da previsibilidade e determinabilidade do comportamento humano. A ciência criminológica, em geral, e as singulares ciências humanas, em especial, são aqui chamadas a desempenhar um papel de relevo muito particular, sendo absolutamente fundamental para o efeito o resultado da perícia criminológica, psiquiátrica ou psicológica que porventura que porventura venha a ter (e em muitos casos deverá ter (…) lugar. Apesar disto, porém. – e apesar dos avanços que a ciência criminológica tem experimentado em matéria de previsibilidade do comportamento humano, no que toca tanto aos chamados métodos estatísticos (nomeadamente as tábuas de prognose), como à prognose (clínica) individual – não é ao perito, nem à ciência criminológica, que pertence decidir a questão da perigosidade, mas apenas estabelecer as bases da decisão, cabendo esta sempre, em último termo ao tribunal.».13

18. Dispõe o artigo 410.º, n.º 1, do CPP, que, sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. Estabelecendo o n.º 2 que, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, «desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova.

Pretendendo impugnar a decisão em matéria de facto, questionando erro de julgamento dos factos e das provas, deve o recorrente, nos termos do n.º 3 do artigo 412.º do mesmo diploma, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, se for o caso, as provas que devem ser renovadas, estabelecendo o n.º 6 do mesmo preceito que o tribunal procede à audição ou visualização das passagens das gravações indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

19. As relações conhecem de facto (artigo 428.º do CPP) nos recursos em que é impugnada a matéria de facto, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 412.º do CPP, sendo que a lei processual não atribui às relações poderes de conhecimento oficioso de erros de julgamento em matéria de facto (que se distinguem dos vícios previstos no artigo 410.º do CPP).

O conhecimento dos vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, entre os quais se inclui o de erro notório na apreciação da prova – o qual, sendo manifesto, ostensivo e evidente à observação do leitor, se traduz num vício de lógica da decisão resultante do texto da decisão, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, que não se confunde com o erro de julgamento na apreciação da prova produzida em audiência –, limita-se pelo texto da decisão recorrida, não sendo admissível o apelo a elementos exteriores que não constem desse texto14.

20. É assim que, em harmonia com estas disposições, o artigo 431.º do CPP impõe exigentes requisitos e restrições aos poderes das relações para modificação, em recurso, das decisões proferidas em matéria de facto, ao dispor que:

Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou

c) Se tiver havido renovação da prova.”

A Relação não está, assim, impedida de, se necessário, embora com fortes restrições, alterar a matéria de facto constante da sentença da 1.ª instância, mesmo que não seja interposto recurso da decisão em matéria de facto, por alegado erro de julgamento [caso previsto na al. b)]. Porém, como se consignou nos acórdãos de 22.06.2022 e de 19.12.2023, proferidos nos processos 215/18.5JAFAR.E1.S1 e 1066/16.7T9CLD.C3.S1, em www.dgsi.pt, que se seguem, esta possibilidade só pode ocorrer por via e na sequência da verificação e declaração de vício a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP nas condições impostas pelos artigos 426.º e 431.º, al. a), do CPP, em vista da superação desse vício, para uma boa decisão de direito; assim, havendo arguição de (ou detetado) vício do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, o Tribunal da Relação deve verificar se «é possível decidir da causa» (artigo 426.º, n.º 1, do CPP) com os «elementos de prova que constam do processo», excluindo a documentação (gravação) da prova em audiência, a qual, sublinha-se, apenas pode servir de base à modificação da decisão em matéria de facto «se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º»15

Com efeito, como se extrai da história do artigo 431.º do CPP, introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25/08, este preceito veio suprir uma lacuna do regime processual do direito ao recurso em matéria de facto (cfr., a este propósito, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 322/93 e respetivos votos de vencido), inspirando-se no artigo 712.º («Modificabilidade da decisão de facto»), n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil de 1961, então vigente, segundo a qual, «[a] decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida».

21. Ao analisar o recurso interposto pelo Ministério Público da decisão proferida em 1.ª instância, no qual se lê, designadamente, em sede conclusiva: “6.ª) É apenas este último segmento da sentença que o Ministério Público pretende questionar em sede de recurso, por não se concordar com a mesma na parte em que deu como provado que inexistia perigosidade [cf. parte final da alínea dd)] e, em consequência, decidiu não aplicar ao arguido qualquer medida de segurança.”, podemos constatar que, não obstante a invocação formal do vício de erro notório da apreciação da prova previsto no artigo 410.º do CPP, a pretensão deduzida configura materialmente uma impugnação da matéria de facto, fundada na identificação de um erro de julgamento, por discordância da apreciação da prova feita em 1.ª instância, em linha com a distinção supra evidenciada.

Tal impugnação encontra-se devidamente fundamentada e estruturada, respeitando os pressupostos formais exigidos pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º, do CPP, porquanto identifica de modo claro o ponto de facto impugnado - a parte final da alínea dd) dos factos provados, que corresponde à questão da (in)existência de perigosidade do arguido, e indica, de forma expressa, as concretas provas que entende imporem decisão diversa da recorrida, onde se incluem as declarações periciais prestadas e audiência de julgamento, identificando as passagens das gravações, em concreto, em que se funda a impugnação e entendendo ser desnecessária a renovação da prova (cf. pontos 7.ª a 18.ª, identificados em supra 13).

Com efeito, o Ministério Público interpôs recurso com fundamento na discordância da valoração probatória efetuada, entendendo “da conjugação do relatório pericial junto a folhas 330 a 332, associada a resposta ao objeto da perícia e aos esclarecimentos à perícia prestados em audiência de julgamento pela Exma. Perita”, relativamente à caracterização da patologia de que padece o arguido resultava conclusão diametralmente oposta à do tribunal a quo: a de que se verificava a perigosidade do arguido para a prática futura de atos da mesma natureza, nos termos do artigo 91.º do Código de Processo Penal, devendo o tribunal a quo tê-la dado como provada. Entende o Ministério Público que a prova em que se baseou o tribunal de 1ª instância não seria suficiente para se concluir pela inexistência de perigosidade, concluindo: “[e]m suma, entendemos que a sentença padece de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, ou seja, os esclarecimentos prestados pela Exma. Perita em audiência de julgamento conjugados com os princípios gerais da experiência comum impunham a conclusão contrária quanto à perigosidade do arguido, devendo o Tribunal a quo ter concluído no sentido da sua verificação e na necessidade de aplicação de uma medida de segurança.”

Requereu, assim, que, ao abrigo do disposto no artigo 431.º, alínea a), do Código de Processo Penal, fosse alterada a matéria de facto constante da alínea dd), sendo eliminada a menção final de que a situação clínica do arguido “não lhe confere perigosidade de vir a cometer actos da mesma espécie” devendo apenas constar: “Atualmente, o arguido encontra-se sob tratamento medicamentoso e encontra-se estabilizado”.”

22. Da leitura da fundamentação constante do acórdão recorrido (supra 10 e 11), resulta que o Tribunal da Relação conheceu o vício de erro notório na apreciação da prova, acolhendo o enquadramento jurídico propugnado pelo Ministério Público para concluir pela perigosidade do arguido, em sentido contrário ao tribunal a quo. Assim, entendeu não poder «subsistir a subsunção dos factos ao direito realizada pelo tribunal a quo, no que concerne à inexistência de perigosidade criminal do arguido, por esse juízo enfermar de contradição lógica com os factos que se provaram e violar as regras da experiência (como acabou de se demonstrar), inquinando a sentença, nesse ponto, do vício do erro notório, previsto na al. c), do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.»

Todavia, analisando com maior detalhe essa mesma fundamentação, constata-se que o tribunal ad quem não aponta para qualquer desconformidade intrínseca à decisão recorrida, que evidencie, por si, o vício de erro notório na apreciação da prova, conforme invocado, mas antes exprime discordância com a conclusão de facto alcançada pela 1.ª instância, em confronto com os meios de prova apreciados pelo tribunal de 1.ª instância, em linha com a distinção supra identificada (vide 18. a 21.) trata-se aqui da identificação de um erro de julgamento, e não de um erro vício. É o que claramente resulta quando afirma: «Olvidou, porém, o Tribunal, que no mesmo relatório pericial em que se ancora, que se encontra junto aos autos e por ser citado na motivação faz parte integrante dela, consta também: - A anomalia psíquica de que o arguido padece encontra-se diagnosticada desde 2010; - Na data dos factos, o arguido sofreu um episódio psicótico, com ideação persecutória de teor paranoide e alterações do comportamento caracterizadas por impulsividade de litigância; - A anomalia psíquica de que o arguido padece é uma doença grave e permanente, que necessita de acompanhamento psiquiátrico e de tratamento contínuo e regular (cf. esclarecimentos prestados pela senhora perita médica que elaborou o relatório); - No relatório clínico de Psiquiatria do Hospital de 2 de 17.11.2021, citado no relatório pericial, pode ler-se: “...seguido na consulta de Psiquiatria, do Hospital 3, desde 2010, com o diagnóstico de perturbação da personalidade de tipo esquizoide...afirmando não cumprir medicação por sua iniciativa desde o início de Novembro...”. - A declaração médica de Psiquiatria do Hospital 3, de 03.03.2023 – que é data posterior à cessação do tratamento em regime compulsivo, também citada no relatório pericial, consigna: “…perturbação da personalidade do grupo A, evidenciando risco de desestruturação psicótica perante situações de stress major…”- na resposta ao quesito 6, no final do relatório pericial, a senhora perita médica fez constar que deveria ser dispensada a presença do arguido em juízo, uma vez que poderia descompensar o seu estado mental.». Com base no conhecimento do erro vício previsto no artigo 410.º do CPP, não pode a Relação atender a prova gravada por esta não se incluir na previsão da al. a) do artigo 431.º do CPP, o que constituiria uma nulidade de sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

23. Atendendo ao discurso argumentativo subjacente quer ao recurso interposto pelo Ministério Público, quer à decisão recorrida, da Relação, impõe-se concluir que a questão controvertida – a valoração da perigosidade do arguido – se reconduz a uma questão de apreciação e valoração da prova, sujeita ao princípio da livre apreciação, previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, e in casu, materialmente, foi identificado um erro de julgamento, isto é, a divergência quanto à apreciação e valoração da prova face à decisão da 1.ª instância, suscetível de ser apreciado apenas em sede de impugnação da matéria de facto.

No aresto recorrido o douto Tribunal da Relação identifica um erro notório de apreciação da matéria de facto, previsto no art. 410.º, n.º 2, c), do CPP, quanto ao ponto dd) da matéria de facto da decisão de 1.º instância, onde se lê: «dd) Actualmente, o arguido encontra-se estabilizado e sob tratamento psiquiátrico adequado, pelo que a anomalia psíquica de que padece, não obstante ser permanente e grave, não lhe confere perigosidade de vir a cometer actos da mesma espécie.”» (supra 9.1.). Que altera fazendo passar a constar “«Atualmente, o arguido encontra-se estabilizado e sob tratamento psiquiátrico adequado, não obstante o que, em face da anomalia psíquica de que padece, permanente e grave, verifica-se a probabilidade séria de aquele venha a cometer factos da mesma espécie dos acima descritos.» (supra 11, sublinhado nosso).16

No entanto, uma vez que, no que respeita à modificação da matéria de facto operada na decisão sob recurso, foram cumpridos todos requisitos legais enunciados podia o Tribunal da Relação alterar a alínea dd) da matéria de facto, e consequentemente, alterar o juízo sobre a perigosidade do arguido, não já com base no artigo 410.º do CPP, mas sim por via do artigo 412.º, n.º 3 e 431.º, al. b), do CPP.

Uma vez respeitados os pressupostos legais quanto à alteração da matéria de facto, apesar do errado fundamento invocado, esta alteração feita pelo Tribunal da Relação e a tomada de posição quanto à questão da perigosidade do arguido (nos termos do artigo 91.º, n.º 1, do CP) em sentido diverso ao do tribunal de 1.ª instância são admissíveis nos termos da conjugação dos artigos 412.º, 428.º e 431.º, al. b), do Código de Processo Penal.

Do mérito do recurso

24. Tendo em conta as conclusões da motivação, este Tribunal é chamado a apreciar e decidir:

a) Se a decisão recorrida sofre do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) Se a decisão recorrida foi proferida com violação do dever de fundamentação;

b) Se ocorre violação do princípio da proporcionalidade e da lei na determinação e quantum da medida de internamento decretada.

Quanto à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

25. Invoca o recorrente que “ao alterar a matéria de facto relativamente ao estado de perigosidade do arguido sem elementos factuais essenciais que foram requeridos estamos a incorrer no vicio de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” e que, ao “omitir em completo o juízo médico pericial, silenciando por completo os documentos provatórios periciais incorreu o referido acórdão em vicio insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.”

26. De acordo com o disposto no artigo 46.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário), «[f]ora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito».

Nos termos do artigo 434.º do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, “[o] recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”, as quais dizem respeito aos recursos de decisões das relações proferidas em 1.ª instância e aos recursos de acórdãos proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo, que, por força desta alteração legislativa, passaram a admitir recurso para o Supremo Tribunal de Justiça “com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP”.

Na parte que agora interessa, dispõe ao artigo 410.º que: «2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; (…)»

27. Na situação em apreço estamos perante recurso de acórdão da Relação proferido em recurso, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP.

Conforme jurisprudência firme deste tribunal, não é, nestes casos, admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º – em que se incluem os vícios da decisão recorrida cujo suprimento pode fundar uma decisão de reenvio, nos termos do artigo 426.º, n.º 1, do CPP17.

Isto sem prejuízo do conhecimento oficioso destes vícios em vista da boa decisão de direito, que possa ser prejudicada ou afetada pela sua subsistência, como igualmente se tem sublinhado, o que não se evidencia da decisão recorrida.

Nesta conformidade, o recurso deve ser rejeitado nesta parte, por a decisão não admitir recurso com fundamento nos vícios invocados [artigo 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, al. b), do CPP].

Quanto à nulidade da decisão por violação do dever de fundamentação

28. Vem o recorrente invocar a nulidade da decisão por omissão do «exame crítico das provas ou ausência delas, exigido nos termos do art.º 374º n.º 2 do Código Processo Penal, como consequência do dever de fundamentação das decisões dos tribunais imposto pelo art.º 205º, n.º 1 da Constituição, violando o disposto nos referidos artigos art.º 205º, n.º 1 da Constituição, art.º 97º, n.º 5 e o art.º 374º n.º 2 ambos do Código de Processo Penal.» (cfr. 3 supra).

29. Dispõe o artigo 379.º, n.º 1, do CPP que “é nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º (…)

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Por sua vez, o artigo 374.º, n.º 2, estabelece que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

O artigo 425.º, n.º 4 estabelece que “é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379.º e 380.º (…)”.

Tal normativo reflete o princípio da fundamentação, “consagrado no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República, o qual se traduz na obrigatoriedade de o tribunal especificar os motivos de facto e de direito da decisão – n.º 4 do artigo 97.º deste Código. Tal princípio, relativamente à sentença penal concretiza-se, porém, mediante uma fundamentação reforçada, que visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a actividade interpretativa da lei e sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da actividade decisória […]. A lei impõe, pois, que o tribunal não só dê a conhecer os factos provados e os não provados, para o que os deve enumerar, ou seja, indicar um a um, mas também que explicite expressamente o porquê da opção (decisão) tomada, o que se alcança através da indicação de exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, isto é, dando a conhecer as razões pelas quais valorou ou não valorou as provas e a forma como as interpretou, impondo, ainda, obviamente, o tratamento jurídico dos factos apurados, com subsunção dos mesmos ao direito aplicável […]” (Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, H. Gaspar et alii, Almedina, 2014, pp. 1168 e 1169).

Como se afirmou no acórdão de 27.11.2019, Proc. n.º 3073/19.9T8GMR-S1, o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais resulta, como é conhecido, de razões que se extraem do princípio do Estado de direito, do princípio democrático e da teleologia jurídico-constitucional dos princípios processuais, que implicam, para além do mais, a necessidade de justificação do exercício do poder estadual, de modo a possibilitar o seu controlo por parte dos destinatários e dos tribunais superiores, assim se conferindo garantia efetiva ao direito de defesa, incluindo o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição. A fundamentação das decisões dos tribunais, constituindo um princípio de boa administração da justiça num Estado de Direito, representa um dos aspetos do direito a um processo equitativo protegido pelo artigo 6.º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos, a qual impõe o dever de os tribunais motivarem adequadamente as suas decisões, de acordo com a sua natureza (assim, o acórdão do TEDH de 09.07.2007, no caso Tatishvili c. Rússia, n.º 1509/02, e outros nele mencionados)”.

30. Diferentemente do que alega o recorrente, o Tribunal da Relação procedeu ao exame crítico das provas, respeitando o dever de fundamentação constante do artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, e não omitiu a sua apreciação da informação pericial, que fez, sublinhando-a em sentido diverso do quanto havia sido feito na 1.ª instância, enfatizando a necessidade de acompanhamento efetivo e regular do arguido, conforme ponto 11 supra. O tribunal ad quem ponderou a natureza da anomalia psíquica em causa, as considerações periciais, o comportamento do arguido e as regras da experiência comum para concluir pela perigosidade criminal do arguido e a necessidade de uma medida de segurança adequada – neste caso, de internamento –, suspensa na sua execução.

Resulta claro que o recorrente pretende questionar o sentido da valoração, e consequente fundamentação, tecida pelo tribunal ad quem, por discordar do seu sentido e não por esta ser omissa ou insuficiente. A mera circunstância do arguido recorrente discordar da ponderação efetuada pelo Tribunal ad quem não preenche a aludida nulidade, não correspondendo, em verdade, a qualquer vício ou nulidade sindicável no âmbito do presente recurso.

É, assim, quanto a esta questão, improcedente o recurso interposto.

Quanto à violação do princípio da proporcionalidade na determinação do quantum da medida de segurança

31. Invoca o recorrente uma violação do princípio da proporcionalidade e uma incorreta concretização da medida de internamento, ao alegar: “U) Ora, a medida de internamento determinada pelo Tribunal a quo, embora suspensa na sua execução, não se revela adequada nem proporcional às circunstâncias do caso concreto. V) Relativamente ao quantum determinado da medida de internamento este mostra-se excessivo, sendo, desde logo manifesta a desproporcionalidade” (supra 3).

32. Uma vez assente a alteração da qualificação da perigosidade do arguido [cfr. pontos 16 a 23], convoca-se o quanto foi dito pelo Tribunal da Relação quanto à finalidade das medidas de segurança: «[o] fim último das medidas de segurança é comum ao das penas, reconduzindo-se à proteção dos bens jurídico-criminais e à reintegração do agente na sociedade, como consagra expressamente o artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal. Apresentam no entanto as medidas de segurança também funções muito particulares de prevenção especial e recuperação social, através do tratamento da anomalia psíquica de que é portador o inimputável perigoso e da neutralização da sua perigosidade criminal através do internamento.»

Prescreve o artigo 40.º do Código Penal as finalidades das medidas de segurança aplicadas no Processo Penal, “1 - A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. (…) 3 - A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente.”.

O sistema sancionatório do direito Penal Português assenta em dois polos - a aplicação de penas, que tem como pressuposto e limite a culpa, e as medidas de segurança que consistem numa reação à perigosidade criminal do agente.18

Também sobre as finalidades das medidas de segurança, pode ver-se Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, p. 424 e ss, “De acordo com a razão histórica e político-criminal do seu aparecimento, as medidas de segurança visam – tanto no momento da sua aplicação, como no da sua execução – a finalidade genérica de prevenção do perigo de cometimento, no futuro, de factos ilícito-típicos pelo agente. Elas são por isso orientadas, ao menos prevalentemente, por uma finalidade de prevenção especial ou individual da repetição da prática de factos ilícitos-típicos. Por outras palavras ainda, as medidas de segurança propõe-se a obstar, no interesse da segurança da vida comunitária, à prática de factos ilícitos-típicos futuros através de uma actuação especial-preventiva sobre o agente perigoso”.

Conforme jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, quanto à adequação da fixação de medida de segurança e sua suspensão, convoca-se o Acórdão de 09-07-2003, Proc. n.º 03P2016 (Leal Henriques):

“O artº 98º do CP prevê a possibilidade da suspensão da execução da medida de segurança do internamento, completando assim o regime contemplado no art.º 94º do mesmo diploma (liberdade para prova).

Trata-se, no fundo, da realização do princípio da menor intervenção que deve estar presente, sempre que possível, no momento da aplicação de qualquer pena ou medida de segurança que implique restrição da liberdade.

Permite-se assim que, através de tal suspensão, o agente inimputável tenha a possibilidade de gozar de um regime não institucional ou extra muros que pontencie um tratamento para os seus males sem o peso da clausura, que nem sempre, como é sabido, conduz a resultados satisfatórios.

Na verdade, e ao contrário do que acontece com a suspensão da pena - em que funciona uma verdadeira coacção psicológica sobre o arguido sujeitando-o a uma pressão no sentido de não voltar a delinquir - na suspensão da medida de segurança de internamento não se usa, como é óbvio, o seu livre arbítrio, tentando-se apenas influenciá-lo para um tratamento que impeça a reiteração de novos actos violentos.

Aproxima-se, assim, pois, do regime de prova.

Neste contexto, será sempre preferível a opção por um regime ambulatório, devidamente acompanhado, desde que se anteveja que essa via, preferível a todos os títulos aos regimes fechados, possa conduzir a resultados positivos.

Como o sistema "joga" com previsões ou prognoses, por natureza sempre aleatórias, contém naturalmente um certo risco, na medida em que, no domínio das doenças do foro mental, é sempre de esperar desvios susceptíveis de contrariar todas as previsões.

Mas mesmo assim não há que recuar quando essa suspensão possa oferecer uma possibilidade, ainda que mínima, mas necessariamente sustentável, de surtir efeito.

E mais: constitui até um poder-dever do julgador determinar essa mesma suspensão se for razoavelmente de esperar que assim se atinge a sua finalidade que é a protecção de bens jurídicos através da reintegração do agente na sociedade e da neutralização da sua perigosidade por via da cura.

Assim, observados os pressupostos formais que vêm enumerados no art.º 98º do CP, deve o julgador privilegiar este regime igualmente protector sempre que observada a exigência básica que é a de uma expectativa razoável de, com a suspensão, se lograr alcançar a finalidade contida na medida de internamento.»

33. Para fixação da medida de segurança e determinação da sua suspensão, foi ponderada e analisada a perigosidade do arguido – uma vez alterada a matéria de facto assente - e os limites aplicáveis, nomeadamente, no que respeita ao limite máximo do internamento, que corresponde ao limite máximo da pena aplicável ao ilício típico mais grave dos cometidos pelo arguido, in casu, o crime de perseguição agravado, a que corresponde uma moldura penal de um a cinco anos, às condições pessoais e sociais do arguido. É esta posição sustentada jurisprudencial e doutrinalmente no aresto recorrido.

Como se tem sublinhado19, o artigo 91.º, n.º 1, do CP, «filtra» obrigatoriamente a aplicação de uma medida de segurança de internamento ou da chamada «medida de segurança de substituição» pelo critério da proporcionalidade, que tem como limites a gravidade do facto praticado e a ameaça de outros nele potencialmente contida, definidos pelo máximo da pena correspondente ao tipo de crime cometido pelo inimputável (artigo 92.º, n.º 2, do CP). Limite que, no caso, se mostra ponderado e respeitado.

Do exposto resulta que não se identifica qualquer fundamento que justifique uma intervenção corretiva na medida de segurança aplicada, a qual, nesta medida, não desrespeita o critério de proporcionalidade que preside à sua aplicação, em vista da realização das finalidades de proteção dos bens jurídicos ofendidos com a prática dos crimes e de integração do arguido na sociedade, mediante o seu tratamento adequado.

É, assim, negado, também quanto a esta parte, provimento ao recurso.

III. Decisão.

34. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Rejeitar o recurso interposto pelo arguido por inamissibilidade quanto à invocação de vícios da decisão recorrida;

b) Em tudo o mais, julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 9 de julho de 2025.

José Luís Lopes da Mota (relator)

Carlos Campos Lobo

Jorge Raposo

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1. Cf., precisamente neste sentido, F. Dias, Consequências jurídicas do crime, 1993, pp 443-445 e Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e in dubio pro reo, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora-1997, p. 98 (nota 218).

2. Apenas excecionalmente, nos casos do n.º 3 do artigo 92.º, e sempre em casos de crimes puníveis com pena de prisão superior a oito anos, podendo funcionar a prorrogação do internamento por períodos sucessivos de dois anos, até se verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem.

3. Comentário do Código Penal, 2.ª ed. p. 332 e 333.

4. Neste sentido, e entre outros, cf. o acórdão do STJ de 19.06.201, proc. nº 273/17.JAAVR.P1.S1 relatado por Gabriel Catarino, disponível em www.dgsi.pt.

5. É neste fim último das medidas de segurança que se encontra a razão de ser do regime especial consagrado no artigo 91º nº2 do Código Penal para aqueles casos em que o facto praticado corresponde a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena superior a 5 anos de prisão.

6. Cfr. Taipa de Carvalho, Direito Penal – Parte Geral, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2008, p. 76.

7. No sentido da recorribilidade, embora com fundamento normativo diverso, sem considerar a alteração da al. e), aditada posteriormente pela Lei n.º 94/2021, de 21/12 – alteração que agora se considera dever ser levada em conta, em total paralelismo com o regime de recurso estabelecido em função das penas aplicadas, assim se reconhecendo garantias equivalentes do direito ao recurso (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição) – cfr. o acórdão deste Supremo Tribunal de 07-02-2018 (Raul Borges), Proc. n.º 248/14.0GBCNT.C1.S1 -3.ª, onde se lê: «Concluindo: o quadro de irrecorribilidade previsto nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP visa apenas definição de patamares de recorribilidade sendo impostas penas de prisão, ou no caso da alínea e), pena não privativa de liberdade, não sendo de aplicar em caso de condenação em medida de segurança privativa de liberdade, como é o caso. Sendo assim, há que convocar a regra geral, prevista no artigo 399.º (Princípio geral), que estabelece: É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças, e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei. Assim sendo, é de concluir pela admissibilidade do recurso.»

8. Assim, refletindo jurisprudência reiterada, por todos, o acórdão de 02-10-2019, Proc. 3622/17.7JAPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt, com abundante citação de jurisprudência.

9. Por todos, o acórdão de 13.04.2023, Proc. n.º 270/19.0SFLSB-J.L1.S1, em www.dgsi.pt.

10. Assim, o acórdão de 26.06.2019, proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt e jurisprudência citada

11. Assim, Castanheira Neves, «A distinção entre a questão-de-facto e a questão-de-direito e a competência do Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de “revista”», in Digesta, Coimbra Editora, 1995, pp. 523ss, e acórdãos de 15.02.2023, Proc. n.º 1964/21.6JAPRT.P1.S1, e de 26.06.2019, proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, e jurisprudência e doutrina neles citada, em www.dgsi.pt.

12. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, GestLegal, 2019, p. 666-667. Cfr. também Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3.ª ed. Católica Editora, p. 179, Miguez Garcia/ Castela Rio, Código Penal Parte Geral e Especial, Almedina, 2014, p. 154, Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, 2.ª ed. Coimbra Editora, 2104, p. 469.

13. Também Cristina Líbano Monteiro, em Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», 1997, pág. 91-92, «A intervenção conformadora da noção de probabilidade na definição do perigo subjectivo parece, assim, remeter o juízo que sobre ela se pede ao tribunal para o complexo domínio das prognoses. E nesse domínio está presente com rara acuidade, a questão da dúvida.»

14. Como uniformemente se tem afirmado, citando-se, por todos, o acórdão de 16.10.2024, Proc. n.º 253/21.0T9FND.C1.S1, em www.dgsi.pt, que a partir de agora se segue de perto.

15. Sublinhando este ponto, Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2000, p. 368, onde se lê: «Não havendo lugar a reenvio para novo julgamento [por existirem os vícios do n.º 2 do artigo 410.º], a decisão do tribunal da 1.ª instância em matéria de facto pode ser impugnada (art.º 431.º): a) Se do processo constarem todos os elementos de prova quer serviram de base á decisão; b) Se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos termos do artigo 412.º, n.º 3; c) Se tiver havido renovação da prova. (…) Havendo documentação da prova, para que o tribunal possa modificar a decisão em matéria de facto, é necessário que esta tenha sido impugnada» (no mesmo sentido, Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, Católica Editora, 2007, p. 1181).

16. A conclusão de que se verifica “probabilidade séria de que aquele venha a cometer factos da mesma espécie”, deve ser baseada e fundada na matéria de facto, mas não é em si mesma uma conclusão de facto, mas sim matéria de Direito. Por outras palavras, a densificação do conceito de perigosidade, corresponde ao conteúdo normativo próprio da tarefa do julgador, que se baseará na matéria de facto dada como assente, mas que com esta não se confunde.

17. Cfr., por todos, o acórdão de 25.06.2025, Proc. 138/22.3PLLRS.L1.S1, em www.dgsi.pt.

18. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, GestLegal, 2019, pág.98

19. Cfr. Cristina Líbano Monteiro, loc. cit. p. 139ss.