CONDENAÇÃO EM CUSTAS
REMANESCENTE DA TAXA DE JUSTIÇA
DECAIMENTO
IMPROCEDÊNCIA
PARTE VENCIDA
AUTOR
RÉU
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
ACESSO À JUSTIÇA
INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO
INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA
CONTA DE CUSTAS
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
Sumário


I – Em face da alteração do artigo 14º, nº 9, do RCP, operada pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março, o pagamento do remanescente da taxa de justiça deve refletir o decaimento de cada uma das partes, quer em casos de vencimento total, quer em casos de vencimento parcial.
II – Esta tese, compatível com a letra da lei, é aquela que melhor respeita o princípio da proporcionalidade e o direito fundamental de acesso à justiça (artigo 20.º, n.º 1, da CRP), decorrendo do elemento racional de interpretação, na sua tríplice vertente histórica, teleológica e sistemática, bem como do princípio da interpretação conforme à Constituição.

Texto Integral


Processo nº 767/14.9TBALQ-D.L1.S1

Recorrentes: AA e Outros Recorrido: Associação Desportiva do Carregado

Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

1. AA e Outros intentaram contra ASSOCIAÇÃO DESPORTIVA DO CARREGADO a presente ação declarativa de condenação, tendo sido proferida sentença, com data de 5/06/2014, que decidiu o seguinte:

«A) No tocante à acção intentada no processo principal, julgar esta acção parcialmente procedente por provada e, em consequência:

1. condenar a R. Associação Desportiva do Carregado a reconhecer o A. BB e a chamada CC como donos e legítimos proprietários do prédio rústico, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...31 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...08 do Livro B-86;

2. condenar a mesma R. a entregar o prédio aludido em 1. ao A. e à chamada, livre e devoluto de pessoas e bens, devendo, para o efeito, demolir e retirar o muro e o portão que instalou no referido prédio no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado da sentença;

3. condenar a R. a pagar ao A. BB e à chamada CC, a quantia de € 500,00 mensais a título de indemnização pelos danos causados com a ocupação indevida do imóvel referido em 1., quantia deverá ser paga desde o mês de Novembro de 2011 até à data da entrega efetiva do imóvel, acrescida da taxa de juro legal sobre o montante total da indemnização que vier a ser devido; e

4. absolver a Ré do pedido de pagamento ao A. BB e à chamada CC de quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória até que aquela concluísse a demolição do muro e a retirada do portão e procedesse à restituição do prédio;

5. absolver a R. do pedido de condenação como litigante de má fé em multa e indemnização compensatória.

A.1) Relativamente à reconvenção deduzida no processo principal, julgar a mesma improcedente por não provada e, em consequência:

1. absolver os reconvindos BB e CC do pedido reconvencional de condenação destes a reconhecerem que a reconvinte detém a posse do prédio aludido na referida acção desde 1951 e que o faz desde essa altura sem interrupção, à vista de toda a gente, pacificamente, utilizando tal espaço de boa fé como fosse sua propriedade;

2. absolver os reconvindos BB e CC do pedido reconvencional de transferência do referido prédio da esfera patrimonial destes para a esfera patrimonial da reconvinte, nomeadamente absolver os reconvindos do pedido da sua condenação no reconhecimento da aquisição da propriedade do prédio em causa pela R. por usucapião.

B) No tocante à acção intentada no processo apenso (apenso A), decide este Tribunal julgar a acção parcialmente procedente por provada e, em consequência:

1. condenar a R. Associação Desportiva do Carregado a reconhecer os AA. DD e outros (AA, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK e LL) como donos e legítimos proprietários do prédio urbano, sito no ..., inscrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob a ficha n.º ...35/060798;

2. condenar a R. Associação Desportiva do Carregado a reconhecer o A. MM como dono e legítimo proprietário do prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de... sob o n.º ...39;

3. condenar a R. a desocupar e a restituir o prédio urbano referido em 1. aos AA. DD e outros;

4. condenar a R. a desocupar e a restituir o prédio rústico referido em 2. ao A. MM;

5. absolver a R. do pagamento de uma indemnização pelos danos decorrentes da não entrega imediata dos prédios referidos em 1. e 2. aos AA. ou do não reconhecimento imediato do direito de propriedade destes sobre os aludidos prédios;

B.1) Relativamente à reconvenção deduzida a título principal no processo que constitui o apenso A, julgar a mesma improcedente por não provada e, em consequência:

1. absolver os reconvindos DD e outros do pedido reconvencional de condenação destes a reconhecerem que a reconvinte detém a posse do prédio aludido em 1. da alínea B) desde 1951 e que o faz desde essa altura sem interrupção, à vista de toda a gente, pacificamente, utilizando tal espaço de boa fé como fosse sua propriedade;

2. absolver o reconvindo MM do pedido reconvencional de condenação deste a reconhecerem que a reconvinte detém a posse do prédio referido em 2. da alínea B) desde 1951 e que o faz desde essa altura sem interrupção, à vista de toda a gente, pacificamente, utilizando tal espaço de boa fé como fosse sua propriedade;

3. absolver os reconvindos DD e outros do pedido reconvencional de transferência do prédio referido em 1. da alínea B) da esfera patrimonial destes para a esfera patrimonial da reconvinte, nomeadamente absolver estes reconvindos do pedido da sua condenação no reconhecimento da aquisição da propriedade do aludido prédio pela R. por usucapião;

4. absolver o reconvindo MM do pedido reconvencional de transferência do prédio referido em 2. da alínea B) da esfera patrimonial destes para a esfera patrimonial da reconvinte, nomeadamente absolver este reconvindo do pedido da sua condenação no reconhecimento da aquisição da propriedade do aludido prédio pela R. por usucapião;

B.2) Quanto à reconvenção deduzida em alternativa no processo que constitui o apenso A, julgar a mesma improcedente por não provada e, em consequência:

5. absolver os reconvindos DD, MM e outros do pedido reconvencional de condenação destes a reconheceremque a reconvinte introduziu nos prédios aludidos em 1. e 2. da alínea B) benfeitorias no valor de Esc. 183.000.000$00, ou seja, 912.800, 20 Euros;

6. absolver os reconvindos DD, MM e outros do pedido reconvencional de condenação destes a reconhecerem que a reconvinte introduziu tais benfeitorias desde 1951 até à presente data de boa fé;

7. absolver os reconvindos DD, MM e outros do pedido reconvencional de condenação destes a reconhecerem que a reconvinte adquiriu por acessão imobiliária a propriedade dos prédios referidos em 1. e 2. da alínea B);

8. absolver os reconvindos DD, MM e outros do pedido reconvencional de se determinar a transferência da esfera patrimonial daqueles para a esfera patrimonial da reconvinte dos prédios aludidos em 1. e 2. da alínea B) mediante o pagamento do valor dos mesmos de Esc. 150.000$00 (€ 748,20).

Custas pelos autores solidariamente e pela ré, na proporção da respetiva sucumbência, que se fixa em 30% e em 70% respetivamente (cfr. art. 527.º, nºs 1 e 2 do C. P. Civil).»

2. Por Acórdão desta Relação datado de 18/06/2015 foi a apelação julgada improcedente.

3. O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão proferido em 08/09/2016, confirmou o Acórdão da Relação.

4. Estabeleceu-se em ambas as instâncias a responsabilidade das custas pela recorrente/ré.

5. Recebidos os autos e elaborada a conta veio o Autor BB reclamar da mesma, tendo sido decidido, com data de 08-06-2018, o seguinte:

«Conforme decorre dos artigos 529.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e 3.º, n.º 1, do Regulamento, o conceito de “custas” em sentido amplo abrange a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte.

A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada parte ou sujeito processual.

Por outro lado, como ensina o Sr. Conselheiro Jubilado, Dr. Salvador da Costa1: «as ações e os recursos são espécies processuais autónomas para efeito de sujeição a taxa de justiça e a custas stricto sensu». O que significa que não colhe o último argumento – no ponto VII da sua Reclamação – de que o facto de o Supremo Tribunal de Justiça ter condenado a ré em custas, eximiria o autor BB de qualquer responsabilidade tributária.

Por conseguinte, no que respeita ao autor BB vale a condenação em primeira instância (aliás, mantida pela Relação e pelo Supremo), ou seja, «Custas pelos autores solidariamente e pela ré, na proporção da respetiva sucumbência, que se fixa em 30% e em 70% respetivamente (cfr. art. 527.º, nºs 1 e 2 do C. P. Civil)». Como vimos no último despacho de 28-11-2017, a responsabilidade deste autor diz respeito apenas à ação cujo n.º original era o 682/2002 e cujo valor é € 29.927,90. Por isso, a sua solidariedade é apenas com CC.

No entanto, esta questão relevaria apenas para efeitos de custas de parte.

Quanto ao mais assiste-lhe inteira razão, isto é:

- Para efeito da conta deste autor, a ação tem o valor de € 29.927,90;

- Deve ser elaborada uma conta (se não for caso de dispensa), apenas para a espécie “ação”, ficando sem efeito as relativas ao “incidente” e ao “recurso”;

- O valor da UC a considerar é de € 79,81.

- As taxas de justiça pagas pela ação são: € 79,81 + € 79,81 + € 252,45 = € 412,07.

Pelo exposto, julgo a reclamação parcialmente procedente, devendo reformular-se a conta em conformidade com o acima decidido, se não for o caso de dispensa da mesma, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 29.º do Regulamento das Custas Processuais.».

6. Também os Autores NN e outros e AA e outros, reclamaram, tendo sido proferida decisão, do seguinte teor:

«Têm razão os autores quanto ao valor da UC a considerar, o qual deverá ser o de € 79,81. No que respeita à condenação em custas pelas Instâncias e pelo Supremo, importa ter presente que a questão só releva para efeitos de custas de parte.

Dentro da lógica do Regulamento das Custas Processuais que está em vigor há quase dez anos, o reembolso da diferença entre a taxa de justiça paga e a responsabilidade fixada na sentença/acórdão para a parte que a pagou, há de ser feito no âmbito das relações entre as partes e em sede de custas de parte – cf. art. Os 25.º e 26.º do RCP.

A taxa de justiça é o valor que parte paga para impulsionar a ação, o incidente ou o recurso.

Assim, a propósito da elaboração da conta, a expressão “taxas devidas”, da alínea a) do n.º 3 do art.º 30.º do RCP, corresponde às taxas devidas pelo impulso processual.

A fixação da taxa de justiça faz-se em função, quer do valor, quer da complexidade da causa – por força do disposto no art.º 529.º, n.º 2 do CPC.

Não se faz em função do princípio da causalidade. Esse é o princípio que rege a condenação em custas – cf. art.º 527.º do CPC.

Deste modo, improcede a Reclamação na parte em que os autores se pretendem eximir da responsabilidade de 30%, fixada em 1.ª instância e mantida na Relação e no Supremo.

Todavia, como referimos, a taxa de justiça também se faz em funções do valor e, como explicámos no despacho de 28-11-2017, a responsabilidade destes autores diz respeito apenas à causa cujo n.º original era o 94/03.7... e cujo valor é € 2.411.800,20.

Pelo exposto, embora improcedendo a reclamação quanto à pretendida desresponsabilização pelas taxas devidas, as contas respeitantes a estes reclamantes devem ser reformuladas apenas quanto a estes dois aspetos, ou seja, considerando que o valor da causa é de €2.411.800,20 e o valor da UC é de € 79,81.».

7. Decidiu ainda o Tribunal de 1ª instância quanto ao remanescente da taxa de justiça, na parte relevante, o seguinte:

«O valor da causa tinha sido fixado na audiência preliminar de 29-03-2004, pelo que, desde essa data, pelo menos, que as partes sabiam que tinham de pagar a taxa de justiça correspondente ao valor de € 2.411.800,20, e nunca vieram requerer a dispensa depois da entrada em vigor do Regulamento das Custas Processuais e antes da prolação da decisão final.

Nem mesmo, depois da decisão final, quando poderiam ter pedido a Reforma da Sentença quanto a Custas, e não pediram.

O que não nos parece razoável é que se venha agora arguir a inconstitucionalidade material de normas que não foram aplicadas, devido à omissão das partes e/ou dos seus mandatários, por não terem formulado atempadamente a pretensão de dispensa de pagamento da taxa de justiça remanescente, e, consequentemente, terem deixado extinguir o direito de praticar aquele ato, nos termos do n.º 3 do artigo 139.º do CPC.

Pelo exposto, indefiro os requerimentos de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, pois tais direitos estão extintos desde o trânsito em julgado da sentença.».

8. Emitidas que foram as guias de pagamento da taxa de justiça remanescente, vieram os ora recorrentes reclamar da emissão das mesmas.

Pelo que, por despacho proferido a 20.09.2021, decidiu-se que:

«As guias para pagamento da conta de custas n.º ...21 foram emitidas correctamente (como bem refere o Ministério Público, foram efectuadas de acordo com o despacho proferido em 24.05.2018), e das mesmas resulta o grau de responsabilidade fixado a título de custas pela sentença proferida em 05.06.2014: ou seja, de 30% para os autores e 70% para a ré.

Por outro lado, e como bem argumenta a ré, o âmbito de aplicação do citado artigo 14.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, limita-se às situações em que exista vencedor da acção em percentagem de 100%.

Acresce que os autores não apresentaram qualquer nota discriminativa e justificativa de conta de custas de parte, pelo que não existem “custas de parte suplementares”. Razão pela qual se indefere o requerido pelos autores.».

9. Deste despacho os autores vieram interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação, que decidiu o seguinte:

«Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos Autores na parte em que determina que as guias emitidas o foram em conformidade com a conta efectuada nos autos e normas relativas às custas processuais.

Custas pelos apelantes».

10. AA e Outros, Autores/Recorrentes, notificados do Acórdão do Tribunal da Relação de 18.03.2022, vêm requerer a interposição de Recurso de Revista Excecional do mesmo para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 672º, nº 1, a), b) e c), do CPC, recurso este que sobe em separado e tem efeito meramente devolutivo (cfr. arts. 675º, nº 2, e 676º, nº 1, a contrario, ambos do CPC), formulando as seguintes conclusões:

«1ª A única questão agora em causa nesta Revista tem que ver com o âmbito de aplicação do art. 14º, nº 9, do Regulamento das Custa Processuais (RCP):

a. ao contrário do que se decidiu no Acórdão recorrido, deve entender-se que, independentemente da posição processual de cada parte, o art. 14º, nº 9, do RCP se aplica aos casos de vencimento total e aos casos de vencimento parcial substancial, como o que nos ocupa, onde os Autores foram vencedores em grande medida (70%), respondendo apenas por 30% das custas processuais devidas na 1ª Instância e não tendo qualquer responsabilidade pelas custas devidas nos 2 recursos interpostos pela R., que foram julgado improcedentes;

b. assim, nos termos do art. 14º, nº 9, do RCP, deverão ser emitidas 2 guias que reflitam o decaimento/vencimento de cada uma das partes: (i) uma em nome da Ré, na medida do seu decaimento e consequente responsabilidade, e (ii) outra em nome dos AA., também na medida do respetivo decaimento já decidido no processo.

Se assim não for, estar-se-á a impor aos AA. o pagamento de € 27.000 (70% de € 39.665,82), que são da responsabilidade da R., devendo depois os AA. pedir à R. pagamento destes € 27.000 a título de custas de parte.

2ª Revista excecional por oposição do Acórdão recorrido com o Acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa de 29.10.2019, Proc. nº 994/12.3TBCSR.L2-1 – Art. 672º, nº 1, c), do CPC.

As decisões dos 2 Acórdãos em confronto estão em manifesta contradição:

a. o Acórdão recorrido interpreta e apenas aplica o regime do art. 14º, nº 9, do RCP aos casos em que o responsável pelo impulso processual obtenha ganho total de causa: só assim o responsável fica dispensado de pagar a totalidade do remanescente.

b. pelo contrário, o Acórdão fundamento interpreta e aplica o preceituado no art. 14º, nº 9, do RCP também aos casos em que o responsável pelo impulso processual obtenha ganho parcial de causa, dispensando-o de pagar a totalidade do remanescente, devendo a conta de custas elaborada refletir o grau de responsabilidade de cada parte.

Os dois Acórdãos em oposição foram proferidos no domínio da mesma legislação: artigo 14º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro – ‘RCP’, na redação conferida pela Lei n.º 27/2019, de 28/03) e sobre a questão em causa, pelo que se conhece, não existe jurisprudência uniformizada por este Venerando Tribunal.

A interpretação que deve prevalecer é a que foi sufragada no Acórdão fundamento.

As razões que suportam este entendimento são, entre outras, as seguintes:

c. As que vêm referidas no Acórdão fundamento, em especial nos trechos que ficaram citados no nº 9 destas Alegações;

d. O facto de essa ser a única solução que garante as exigências dos diversos direitos e princípios estruturantes fundamentais do nosso sistema jurídico-constitucional, designadamente do princípio da proporcionalidade, do direito fundamental de acesso ao Direito e aos Tribunais, do direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo, também quanto aos custos que envolve esse acesso aos Tribunais (arts. 2º, 13º, 18º, nº 2, 20º e 266º da Constituição).

e. A situação que aqui nos ocupa demonstra à evidência a inconstitucionalidade, por violação dos princípios e direitos fundamentais referidos na alínea anterior, da interpretação adotada no Acórdão recorrido do art. 14º, nº 9, do RCP: por via dessa interpretação, impor-se-á aos AA./Recorrentes o pagamento de € 27.000 (70% de € 39.665,82), que são da responsabilidade da R., devendo depois os AA./Recorrentes diligenciar quanto necessário para obter da R./recorrida a devolução desses € 27.000 a título de custas de parte.

Com o devido respeito, esta solução não faz sentido e viola ostensivamente a jurisprudência do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 615/2018, de 21-11-2018 (processo nº 1200/17, 1ª Secção), adiante citado.

E é evidente que não faz sentido, (i) seja pelo enorme esforço financeiro que se impõe a uma das partes no pagamento de um valor que não deve (neste caso € 27.000 – a grande generalidade das famílias portuguesas não tem este valor disponível), (ii) seja pelo esforço e risco de a parte substancialmente vencedora da causa ter que interpor uma ação judicial contra a outra parte substancialmente vencida que não pague as custas de parte que lhe sejam depois apresentadas, (iii) seja ainda pelo facto de se impor à parte substancialmente vencedora o risco de insolvência da parte substancialmente vencida que não pagar as custas de parte, ficando assim definitivamente a parte substancialmente vencedora sem poder reaver o valor que pagou (um valor que não devia ao Tribunal).

3ª Revista excecional por estarem em causa (i) questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, e (ii) interesses de particular relevância social – art. 672º, nº 1, a), e b), do CPC.

Esta Revista vem também interposta ao abrigo do art. 672º, nº 1, a) e b), do CPC, verificando-se in casu os requisitos da sua admissão: a. ‘dupla conforme’ entre as decisões judiciais em causa (Acórdão recorrido e Despacho da 1ª instância de 11.10.2021); b. uma questão que, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito; e c. estarem em causa interesses de particular relevância social.

As razões que determinam a procedência deste recurso passam pelas seguintes razões:

a. O Acórdão recorrido (i) interpretou e aplicou o art. 14º, nº 9, do RCP sem atender às necessárias conexões e exigências dos princípios e direitos fundamentais envolvidos na questão a decidir (o elemento sistemático da hermenêutica jurídica), (ii) limitando-se a uma aparente interpretação literal do preceito (apesar do sentido normativo daí extraído não resultar necessariamente da letra da lei) e (iii) sem atender às consequências daí resultantes, (iv) tudo num inaceitável e ultrapassado positivismo legalista que ignora de todo os interesses envolvidos e a axiologia valorativa essencial da ordem jurídica.

Ao contrário do que se decidiu no Acórdão recorrido, o art. 14º, nº 9, do RCP, independentemente da posição das partes, aplica-se aos casos de vencimento total e aos casos de vencimento parcial, como é o caso, onde os AA./Recorrentes foram vencedores em grande medida (70%), respondendo apenas por 30% das custas processuais devidas na 1ª Instância e não tendo qualquer responsabilidade pelas custas devidas nos 2 recursos interpostos pela R., que foram julgado improcedentes.

Os AA. não têm que pagar a dívida de € 27.000 que a Recorrida tem para com o Tribunal: é o Estado que deve cobrar essa dívida, não podendo impor esse encargo e risco a terceiros.

b. Para além de não ser esse o sentido normativo que resulta do art. 14º, nº 9, do RCP, esse resultado é impedido pela própria racionalidade do sistema. A conta de custas do processo tem que refletir desde logo a proporção de vencimento e decaimento de cada parte: é o que se pretende com o novo regime deste art. 14º, nº 9, do RCP.

A metodologia adotada pela Secretaria do Tribunal de 1ª instância (que não refletiu na Conta esse vencimento/decaimento) era, de facto, a lógica do Regulamento das Custas Processuais antes da alteração promovida pela Lei nº 27/2019, de 28 de Março.

Hoje a solução legal consagrada no RCP é outra: a Conta e as Guias devem ser logo elaborada e emitidas de acordo com a responsabilidade de cada parte pelas custas devidas. Se assim tivesse acontecido, as Guias emitidas aos AA./Recorrentes (i) não só não teriam calculado qualquer valor devido pelos mesmos nos 2 recursos interpostos pela R./Recorrida e julgados improcedentes (da sua inteira responsabilidade, portanto), (ii) como, na 1ª Instância, só teria calculado 30% do valor total a cargo dos AA./Recorrentes, o que não aconteceu.

c. A R. é uma pequena Associação Desportiva que, naturalmente, não terá sequer ativos pelo valor das custas que terá que suportar: ao Tribunal e depois aos AA./Recorrentes.

Deste modo, existe um efetivo e elevado risco de, por inexistência de património, os AA./Recorrentes nada venham a receber por conta dos € 27.000 que terão que pagar ao Tribunal por conta.

d. É inconcebível que se imponha esse esforço e risco a um cidadão (AA./Recorrentes) que, devido a uma conduta ilegal de outro (a R./Recorrida), se viu forçado a recorrer aos Tribunais, nos quais viu substancialmente reconhecida (70%) a sua posição e pretensões.

Os AA./Recorrentes já pagaram ao Estado os valores devidos pelos atos processuais praticados (€ 3.372,08 – cfr. Conta de 16.07.2021) e pretendem pagar o remanescente da sua dívida, isto é, 30% do valor das custas. O que não aceitam é pagar a dívida que a R./Recorrida tem para com o Tribunal.

e. A atual redação do art. 14º, nº 9, do RCP em causa foi inspirada em critérios de proporcionalidade, visando, essencialmente, não onerar excessivamente a parte que viu substancialmente reconhecida a sua posição no processo: a interpretação que o Tribunal reconhecido fez dessa norma impede e subverte essa pretensão essencial do legislador (obrigando aqui ao pagamento integral das custas pela parte que (i) venceu em larga medida na 1ª instância e (ii) totalmente nas instâncias recursivas.

Mais concretamente, a atual redação do art. 14º, nº 9, do RCP foi inspirada/determinada pela jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional que ficou citada, que o Acórdão recorrido viola ostensivamente.

4ª A interpretação do art. 14º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais no sentido que o regime aí prescrito só se aplica aos casos de vencimento total e não também aos casos de vencimento parcial relevante, independentemente da posição da parte, viola, pelo menos, os direitos fundamentais de acesso ao Direito e aos Tribunais e a um processo judicial equitativo, bem como os princípios da proporcionalidade, da justiça, da igualdade e do Estado de Direito (arts. 2º, 13º, 20º e 266º da Constituição).

Nestes termos,

Pelas razões que ficaram expostas, deve esta Revista Excecional ser admitida e julgada procedente, revogando-se o Acórdão recorrido e, consequentemente, o Despacho da 1ª instância de 11.10.2021, determinando-se a emissão de novas guias nos termos do art. 14º, nº 9, do RCP e na medida da efetiva e já decidida responsabilidade das partes pelas custas devidas.

Em qualquer caso, os AA./Recorrentes são vencedores a 100% nas instâncias recursivas, motivo pelo qual, ainda que se entendesse no sentido em que entendeu o Acórdão recorrido (o que apenas se pondera por mera cautela de patrocínio, sem conceder), nos termos do referido art. 14º, nº 9, do RCP, os valores devidos pelos Autores a título de remanescente da taxa de justiça devida nos recursos (interpostos pela Ré e julgados improcedentes) deverão ser diretamente imputados à Ré na Conta de custas.

Se esta revista não for admitida nos termos do regime da revista excecional, deverá ser admitida nos termos gerais, designadamente do art. 629º do CPC».

11. Associação Desportiva do Carregado, ré e recorrida nos presentes autos, apresentou contra-alegações, que terminou do seguinte modo: «Nestes termos e nos demais de Direito que Vs. Exas. doutamente suprirão, não deve ser judicialmente admitido o Recurso Excepional de Revista apresentado pelos Recorrentes, por ilegal; se assim se não entender, o que apenas por mero dever de patrocínio e enquanto hipótese de raciocínio se concebe, deverá ser negado provimento a tal Recurso, antes se confirmando o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, com a fundamentação adoptada, ou, subsidiariamente, com a fundamentação alegada pela Recorrida, como é de elementar JUSTIÇA!».

12. Por Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 25 de março de 2025, já transitado em julgado, foi admitido o recurso de revista ao abrigo da al. d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, por contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29-10-2019, proferido no proc. nº 994/12.3TBCSR.L2-1, invocado pelos recorrentes como acórdão fundamento.

13. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (cfr. artigos 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 1, 608.º, n.º 2, e 679.º do CPC), a questão essencial a decidir consiste em determinar se o artigo 14.º, n.º 9, do RCP, deve aplicar-se aos casos em que haja uma condenação parcial do responsável pelo impulso processual e, nesse caso, se as partes só estão obrigadas ao pagamento de uma parte proporcional do remanescente da taxa de justiça.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A) Os factos

Os elementos fácticos pertinentes para a decisão são os seguintes:

- No âmbito da ação intentada no processo apenso (apenso A), decidiu o tribunal de 1.ª instância julgar a ação parcialmente procedente e, no tocante a custas, condenou os autores e a ré no seu pagamento, na proporção da respetiva sucumbência, que fixou em 30% e em 70% respetivamente;

- Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 18/06/2015 foi a apelação julgada improcedente, decisão que foi confirmada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/09/2016, estabelecendo-se em ambas as decisões dos tribunais superiores a responsabilidade das custas pela ré.

- A conta reportada aos autos e após reclamação nos termos sobreditos, foi elaborada no Apenso correspondente ao Proc. nº 767/14.9TBALQ-A, em 16/07/2021, e nesta figura como valor da taxa de justiça cível o montante de 39.359,82 euros, devido quer pela Ré, quer pelos Autores;

- As guias foram emitidas em 2/08/2021, em conformidade com a conta elaborada, sendo o valor devido pela ré de 35.649,47 euros (dada a multa de €714, deduzidas as taxas de justiça pagas no valor de €4.262,56 e PAE não utilizado de €161,79, e somando-se o valor da taxa de justiça supra aludida no valor de €39.359,82); quanto às guias emitidas e cujo pagamento se reporta aos AA. o valor é de €36.131,95 (dada a multa de €306, deduzidas as taxas já pagas no valor de €3.372,08 e PAE de saldo não utilizado de €161,79, somando-se igualmente o valor da taxa de justiça no valor de €39.359,82).

B) O Direito

1. A questão a decidir consiste em saber se é devida pelos autores a taxa de justiça remanescente, a que alude o artigo 6º, nº7, do Regulamento das Custas Processuais (RCP), pelo valor de 39.359,82 euros, em vez da circunscrição desse dever de pagamento à proporção do vencimento.

Está em causa saber se o âmbito de aplicação do artigo 14.º, n.º 9, do RCP, que prevê que o responsável pelo impulso processual, que não seja condenado a final, seja dispensado do pagamento do remanescente da taxa de justiça, se restringe aos casos de ausência total de condenação do responsável pelo impulso processual ou se abrange também os casos de condenação parcial.

O acórdão recorrido seguiu a primeira das orientações, tendo, para o efeito, recorrido à seguinte argumentação aduzida também no Acórdão da Relação de Lisboa, proferido no proc. nº 1057/14.2TVLSB.L1-6, datado de 21-10-2021, cujos excertos reproduz: «(…) independentemente dos motivos que subjazem à dispensa do pagamento prévio de parte da taxa de justiça contemplado no artigo 6.º, n.º 7, do RCP, ela não equivale a um caso de isenção de pagamento (previstos no artigo 4.º do RCP). A dispensa do pagamento prévio não desonera o sujeito processual beneficiário da liquidação da taxa devida pela utilização e prestação do serviço judiciário, constituindo tão-somente um diferimento ou protelamento do pagamento. A taxa de justiça, enquanto contrapartida relativa ao custo do serviço judiciário prestado, há de ser exigível e paga oportunamente» (…) «Mais complexa se afigura, porém, a resposta referente à análise sobre a proporcionalidade stricto sensu desta solução legislativa. Desde logo por não dever ignorar-se as especificidades que caracterizam a situação do réu que, no final do processo, vem a ser absolvido do pedido. A sua posição é diferente da assumida pelo autor da ação. Na verdade, não traduzindo a dispensa do pagamento prévio de parte da taxa de justiça qualquer forma de isenção, mas antes um mero adiamento do momento em que a parte será obrigada a liquidá-la, como contrapartida do serviço de justiça por si impulsionado, não oferece dificuldade de maior aceitar que o autor, mesmo tendo tido ganho de causa, total ou parcialmente, deverá proceder, no final da ação, após a elaboração da conta, ao pagamento da sua própria taxa, ou seja, do remanescente de que foi previamente dispensado. Quando se exige do autor que garanta o pagamento da taxa de justiça ainda em dívida, com o ónus de subsequentemente reaver tal quantia do réu, a título de custas de parte, do que se trata é de prevenir a transferência da responsabilidade individual dos sujeitos processuais para a comunidade».

3. Dispõe o artigo 14.º, n.º 9, do RCP que «Nas situações em que deva ser pago o remanescente nos termos do n.º 7 do artigo 6.º, o responsável pelo impulso processual que não seja condenado a final fica dispensado do referido pagamento, o qual é imputado à parte vencida e considerado na conta a final».

O acórdão recorrido interpretou este preceito legal de forma restrita, sustentando a circunscrição do seu âmbito de aplicação aos casos em que o autor do impulso processual fica totalmente vencedor, isto é, não seja condenado a final, nem total nem parcialmente.

No mesmo sentido do entendimento propugnado no acórdão recorrido foi também proferido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-03-2023, (processo n.º 2209/14.0TBBRG-C.G1.S1), onde se pode ler que «Quanto à interpretação do n.º 9 do art. 14.º do RCP, na redacção introduzida pela Lei n.º 27/2019, acompanha-se o entendimento de que a dispensa prevista em tal norma tem lugar apenas em caso de vencimento total».

Em sentido divergente, o acórdão fundamento (Acórdão da Relação de Lisboa de 29-10-2019, Proc. nº 994/12.3TBCSR.L2-1) interpretou o n.º 9 do artigo 14.º como sendo suscetível de abranger, não só os casos em que o responsável pelo impulso processual obtém vencimento total na causa, mas também os casos de vencimento parcial, entendendo que «(…) a exigência de pagamento de taxa de justiça ao réu que foi absolvido – totalmente ou em larga medida –, obrigando-o a reaver o que pagou ao Estado, da parte contrária, por via do mecanismo das custas de parte, é injusta e violadora do princípio da proporcionalidade decorrente do art. 18º, nº2 da Constituição», e concluindo que «(…) o legislador fixou a dispensa de pagamento da taxa de justiça remanescente, nas ações de valor superior a 275.000,00€, para a parte que não deu causa ao processo, obtendo vencimento a final, aqui se englobando quer as hipóteses de vencimento total quer parcial – sendo neste caso refletido na conta a elaborar o grau de responsabilidade fixado na decisão – porquanto a ratio da regulação é similar para as duas situações, impondo-se essa interpretação (art. 9º do Cód. Civil); assim, se o pagamento que for devido deve ser “imputado à parte vencida”, deve sê-lo, necessariamente, na medida do vencimento/decaimento».

Vejamos.

4. A conta de custas é elaborada pela secretaria, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão final, de harmonia com o julgado em última instância e abrangendo as custas da ação, dos incidentes, dos procedimentos e dos recursos, sendo elaborada uma só conta por cada sujeito responsável pelas custas, multas e outras penalidades, que abrange o processo principal e os apensos (artigos 29.º, n.º1 e 30.º, n.ºs 1 e 2, do RCP).

Nas causas de valor superior a 275.000,00 euros, como é o caso, o remanescente da taxa de justiça devida é considerado a final, nos termos que decorrem do artigo 6º, nº7, não se colocando no caso concreto a hipótese de dispensa do seu pagamento, que não foi requerida pelas partes, nem oficiosamente ponderada pelo juiz.

A anterior redação do artigo 14.º, n.º 9 do RCP (Lei n.º 7/2012), antes da alteração efetuada pela Lei n.º 27/2019, de 28-03, dispunha que «Nas situações em que deva ser pago o remanescente nos termos do n.º 7 do artigo 6.º e o responsável pelo impulso processual não seja condenado a final, o mesmo deve ser notificado para efetuar esse pagamento, no prazo de 10 dias a contar da notificação da decisão que ponha termo ao processo». Esta norma visava garantir e obter, com um maior grau de eficácia, o pagamento das taxas de justiça devidas pela utilização da máquina judiciária, impedindo, por razões de sustentabilidade financeira, que o risco de não pagamento voluntário da parte vencida onerasse a comunidade e o Estado.

O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 615/2018, de 21-11-2018, decidiu no processo de fiscalização concreta da constitucionalidade n.º 1200/17, em relação ao preceito oriundo desta Lei n.º 7/2012, «Julgar inconstitucional a norma que impõe a obrigatoriedade de pagamento do remanescente da taxa de justiça ao réu que venceu totalmente o processo, obrigando-o a pedir o montante que pagou em sede de custas de parte, resultante do artigo 14.º, n.º 9, do RCP». Se bem que não existe na Constituição um princípio geral de gratuidade da justiça, o Tribunal Constitucional entendeu que para o réu totalmente absolvido e tendo em conta as especificidades da sua posição processual, o acesso à justiça deve ser gratuito, referindo que a liberdade do legislador tem como limite a «ideia de equivalência nos encargos», bem como «o princípio da proporcionalidade na atuação geral do legislador (decorrente do princípio do Estado de Direito, previsto no artigo 2.º), em especial relativamente à restrição do direito fundamental de acesso à justiça que está contida na exigência de uma taxa de justiça (artigos 18.º e 20.º da Constituição)».

O juízo de inconstitucionalidade proferido baseou-se no princípio da proporcionalidade, conforme se pode ler na sua fundamentação: «A exigência do pagamento do remanescente da taxa de justiça ao réu que, por ser absolvido do pedido, venceu totalmente a acção civil e, por conseguinte, não é condenado em custas, obrigando-o a obter o montante que pagou em sede de custas de parte, revela-se […] uma solução inconstitucional porque comprime excessivamente o direito fundamental de acesso à justiça, previsto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, impondo um ónus injustificado face ao interesse público em presença em violação do princípio da proporcionalidade decorrente do artigo 18.º, n.º 2º, da Constituição»1.

Na sequência do juízo de inconstitucionalidade do referido normativo, o legislador alterou a redação do preceito, no sentido de desvincular o vencedor (quer ocupe a posição de autor, quer ocupe a posição de réu) de pagar o remanescente da taxa de justiça, assim o dispensando do ónus de ter de exigir ao vencido, a título de custas de parte, a devolução do montante pago, correndo o risco da insolvência deste ou da sua incapacidade financeira e da ausência de bens penhoráveis.

Nesta medida, na sequência das alterações promovidas pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março, o artigo 14.º, n.º 9, do RCP passou a dispor que «Nas situações em que deva ser pago o remanescente nos termos do n.º 7 do artigo 6.º, o responsável pelo impulso processual que não seja condenado a final fica dispensado do referido pagamento, o qual é imputado à parte vencida e considerado na conta final», assim visando desonerar a parte vencedora, independentemente de ocupar a posição processual de autor ou de réu, desse encargo e da álea de a outra parte não ter solvência para a reembolsar.

A propósito desta alteração normativa, alguma doutrina (cfr. Salvador da Costa, As Custas Processuais, Análise e Comentário, 8.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, pp. 138 e ss) restringiu o seu alcance aos casos de vencimento parcial, com o seguinte fundamento:

«A expressão normativa “o qual é imputado à parte vencida e considerado na conta final” significa que a parte vencida é responsável pelo pagamento do remanescente da taxa de justiça, de cujo pagamento a parte vencedora é dispensada, e que o respetivo valor é inserido na conta final do processo a débito da primeira.

Esta nova solução legal conforma-se com o princípio tendencial da justiça gratuita para a parte vencedora, na medida em que a dispensa de exigir o referido remanescente à parte vencida, a título de custas de partes, evitando-lhe o risco da impossibilidade ou da dificuldade da sua cobrança.

Mas é seu pressuposto que se trate de vencimento e decaimento integral. Se assim não for, ou seja, tratando-se de vencimento e decaimento parcial, o remanescente da taxa de justiça é incluído na conta de custas de uma e de outra das partes, o mesmo é dizer que este normativo só se aplica no caso de o responsável pelo impulso processual não ser condenado a final».

O Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 812/2021, de 26-10-2021, chamado a pronunciar-se, num processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, sobre a conformidade desta interpretação normativa à Constituição, decidiu «Não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 14.º, n.º 9, do RCP, na interpretação segundo a qual, nas situações em que deva ser pago o remanescente nos termos do n.º 7 do artigo 6.º, o autor deve assumir o pagamento da taxa de justiça devida, independentemente da medida do vencimento ou decaimento da causa».

Todavia, o juízo de não inconstitucionalidade proferido pelo Tribunal Constitucional não significa qualquer opção sobre qual a melhor interpretação do direito infraconstitucional, em sede de cânones hermenêuticos, cuja aplicação apenas compete aos tribunais comuns. Ou seja, o facto de uma determinada interpretação normativa não padecer do vício de inconstitucionalidade não tem por efeito que seja a única interpretação possível da lei nem que seja a mais adequada, pois a análise destas questões não cabe nas competências do Tribunal Constitucional. Haverá, pois, de interpretar o sentido da lei, tendo em conta os vários elementos de interpretação ou fatores hermenêuticos usados pela ciência jurídica e legitimados pelo artigo 9.º do Código Civil: o elemento gramatical, o elemento histórico, o elemento sistemático e o elemento teleológico.

5. A letra da lei constitui o ponto de partida e o limite da interpretação, devendo o resultado da interpretação literal ser confrontado com os restantes fatores hermenêuticos dos quais destacamos pela sua importância, o elemento teleológico e o elemento sistemático, ambos referidos no artigo 9.º do Código Civil, nas expressões «o pensamento legislativo» e «unidade do sistema jurídico», bem como o elemento histórico, que se reporta ao contexto da lei e às razões que presidiram à sua elaboração.

Com as alterações introduzidas ao artigo 14.º, n.º 9, do RCP, pela Lei 27/2019 de 28-03, o legislador eliminou a regra que obrigava a parte vencedora a suportar, solidariamente com a parte vencida, o remanescente da taxa de justiça devida, nas ações de valor superior a 275.000,00 euros, pelo respeito devido aos direitos dos cidadãos no acesso à justiça.

Quid iuris para os casos em que a parte onerada com o remanescente da taxa de justiça foi apenas parcialmente condenada, a final, mas vencedora em relação a uma parte do pedido? Deve manter-se, em relação ao remanescente da taxa de justiça, a mesma proporção da condenação em custas? Ou, pelo contrário, deve a parte parcialmente vencedora ser onerada com a totalidade do remanescente da taxa de justiça, repercutindo, a posteriori, o que pagou a mais em sede de custas de parte?

6. Regressemos aos contornos do caso concreto.

No caso vertente, os autores não obtiveram vencimento total da causa e foram condenados em custas em 30%, a proporção do seu decaimento, pretendendo pagar o remanescente da taxa de justiça na medida desta proporção e não o valor de 39.359, 82 euros, solidariamente com a ré, conforme levado à conta.

A letra da lei refere expressamente o caso do «responsável pelo impulso processual que não seja condenado a final», sem mencionar os casos de vencimento parcial tão comuns na prática judiciária.

O julgador terá de recorrer para interpretar o texto da norma em causa à letra do preceito, à finalidade da norma ou à ratio legis: garantir a tendencial gratuidade do acesso à justiça para a parte vencedora. Está assim colocado no centro da argumentação jurídica a necessidade de respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos e a pertinência de uma interpretação conforme à Constituição.

Num quadro evolutivo em que o legislador revogou a anterior redação do artigo 14.º, n.º 9, do RCP (que obrigava a parte vencedora a pagar por inteiro o remanescente da taxa de justiça e a exigir a devolução do montante pago à parte vencida em sede de custas de parte), por respeito a um Acórdão do Tribunal Constitucional que entendeu que tal solução normativa comprimia excessivamente o direito fundamental dos cidadãos de acesso à justiça (artigo 20.º, n.º 1, da CRP), deve assumir-se a intenção do legislador de respeitar, na nova estipulação normativa consagrada, esse direito dos cidadãos de acordo com um princípio de proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP).

Assim, entendemos que a circunstância de o vencimento não ser total não tem por consequência a exclusão do caso dos autos do âmbito de aplicação da norma, que, a nosso ver, abrange no seu espírito estas hipóteses de vencimento parcial. O princípio da proporcionalidade não pode deixar de ser relevante como critério interpretativo da lei, nos casos em que o responsável pelo impulso processual, apesar de ser condenado a final, vence parcialmente a ação. Se o autor da iniciativa processual obtém ganho de causa, ainda que apenas parcialmente, não faz sentido, à luz da finalidade da alteração legislativa e do referido princípio da proporcionalidade, entender que continue a suportar o remanescente da taxa de justiça solidariamente com a outra parte. É que, na proporção em que a parte venceu, continua a ser aplicável o princípio da tendencial gratuidade do serviço prestado pelo Estado, o que não é compatível com o risco da insolvência da contraparte.

Entendemos ser esta a lógica que preside à norma aplicável, sendo contraditório com a ratio da norma, onerar o autor da iniciativa processual, a quem os tribunais reconheceram razão (ainda que apenas parcialmente) com um pagamento que cabe à outra parte (na medida do decaimento dessa parte). O argumento usado no acórdão recorrido, tributário da fundamentação desenvolvida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 615/2018, de que o réu apenas se defende, mas não tem iniciativa de pôr em ação a máquina judicial, não colhe, pois isso significa admitir que, quem defende os seus direitos de forma ativa, propondo uma ação, seja tratado com desfavor em relação ao réu, devendo presumir-se que, na medida em que o réu perdeu parcialmente a causa, deu origem ex ante a uma situação que tornou necessária a reação judicial do autor. Julgamos, pois, não ser adequado que o sujeito que, por exemplo, vê os seus direitos de personalidade violados ou incumpridos os contratos nos quais confiou, seja, de algum modo desincentivado de recorrer aos tribunais para fazer valer os seus direitos, ou seja considerado como o principal responsável pelos custos da justiça, quando, na verdade, apenas foi responsável parcialmente e na proporção do seu vencimento. O interesse público ou da comunidade em remeter a questão do remanescente da taxa de justiça para as custas de parte, não pode ser aplicável no que concerne à medida ou proporção em que a parte, seja autor ou réu, conseguiu obter ganho de causa.

A distinção entre a posição de autor e a de réu, a que procedeu o Acórdão n.º 615/2018, para além de constituir na economia dos fundamentos do Acórdão um mero obiter dictuum, não teve respaldo na alteração legislativa efetuada, que beneficia a parte vencedora sem qualquer especificação quanto à posição processual ocupada, não tendo, portanto, força persuasiva como argumento para a interpretação do artigo 14.º, n.º 9, do RCP aqui em causa.

A exigência do pagamento do remanescente da taxa de justiça ao autor que venceu a ação cível parcialmente, obrigando-o a obter o montante que pagar em excesso em sede de custas de parte e a correr o risco de ter de instaurar nova ação judicial caso estas não sejam prontamente pagas pela contraparte2, tem por consequência que este seja tratado, nos casos de insolvência do réu, como quem perde a ação totalmente, resultado interpretativo que se encontra fora da ratio legis e da lógica de proporcionalidade que presidiu à norma.

A tese do acórdão recorrido constitui uma interpretação normativa que suscita problemas de constitucionalidade porque impõe à parte que obtém vencimento parcial na ação um ónus injustificado, em face do interesse público em presença, pondo assim em causa o princípio da proporcionalidade decorrente do artigo 18.º, n.º 2º, da Constituição. Mas não se torna necessário demonstrar a sua inconstitucionalidade, bastando a invocação do princípio da interpretação conforme à Constituição. No limite, não faz sentido, à luz dos critérios valorativos com que o legislador abordou a questão, que uma parte totalmente vencedora fique isenta do remanescente da taxa de justiça e outra que fique vencedora em 90% tenha de pagar a totalidade do remanescente da referida taxa solidariamente com a outra parte, correndo o risco da incapacidade financeira desta.

No mesmo sentido acabado de defender, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-05-2024 (processo n.º 1561/19.6T8PDL-A.L2-A.S1), que, a propósito desta problemática, concluiu que «A razão de ser da nova redacção do n.º 9 do artigo 14.º do Regulamento das Custas Processuais é o princípio da proporcionalidade, na vertente de proporcionalidade em sentido estrito — ora, na perspectiva do princípio da proporcionalidade, na vertente de proporcionalidade em sentido estrito, é indiferente a circunstância de o responsável pelo impulso processual ter vencido totalmente o processo ou de o ter vencido quase totalmente».

7. Tudo ponderado, entendemos que esta tese, que é a do acórdão fundamento, é a que melhor respeita o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP) e o direito fundamental de acesso à justiça (artigo 20.º, n.º 1, da CRP). Tal não significa necessariamente que a interpretação normativa adotada no acórdão recorrido viole normas e princípios constitucionais. Mas, em caso de dúvida sobre a interpretação mais adequada de uma norma plurissignificativa – i.e., compatível com dois sentidos distintos – deve o intérprete optar pelo sentido mais conforme à Constituição e que promove a maximização dos direitos fundamentais.

Em cumprimento desta orientação, conclui-se que a conta deve ser reformada para refletir a responsabilidade dos autores a título de custas, ponderando-se o grau de decaimento das partes.

Em consequência, os agora autores estão apenas obrigados ao pagamento de uma parte proporcional do remanescente da taxa de justiça em função do respetivo decaimento, suportando 30% desse valor e a ré 70%, sendo o Estado a correr o risco da insolvência da ré.

Em consequência, revoga-se o acórdão recorrido.

8. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:

I – Em face da alteração do artigo 14º, nº 9, do RCP, operada pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março, o pagamento do remanescente da taxa de justiça deve refletir o decaimento de cada uma das partes, quer em casos de vencimento total, quer em casos de vencimento parcial.

II – Esta tese, compatível com a letra da lei, é aquela que melhor respeita o princípio da proporcionalidade e o direito fundamental de acesso à justiça (artigo 20.º, n.º 1, da CRP), decorrendo do elemento racional de interpretação, na sua tríplice vertente histórica, teleológica e sistemática, bem como do princípio da interpretação conforme à Constituição.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

a) conceder a revista e revogar o acórdão recorrido;

b) condenar os autores ao pagamento de 30% do remanescente da taxa de justiça e os réus ao pagamento de 70%.

Custas da revista pela recorrida.

Supremo Tribunal de Justiça, 9 de julho de 2025

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

António Magalhães (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.º Adjunta)

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1. Esta posição não é consensual no Tribunal Constitucional que, no Acórdão n.º 25/2014, proferido no processo de fiscalização concreta n.º 698/22, já entendeu, em sentido diverso, «Não julgar inconstitucional o artigo 14.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, na redação conferida pela Lei n.º 7/2012, de 13 de fevereiro, na interpretação ínsita no acórdão recorrido, segundo a qual impõe a obrigatoriedade de pagamento do remanescente da taxa de justiça ao demandado que venceu totalmente a ação, obrigando-o a pedir o montante que pagou em sede de custas de parte, quando o mesmo deduziu pedido reconvencional que foi julgado parcialmente improcedente». Todavia, não se trata, na verdade, de jurisprudência contraditória, na medida em que neste caso, diferentemente do caso subjacente ao Acórdão n.º 615/2018, o réu que pretendia a isenção do remanescente da taxa de justiça tinha deduzido reconvenção, diferença que o Tribunal Constitucional considerou relevante.↩︎

2. Embora se reconheça que a parte vencedora (ou parcialmente vencedora) da ação dispõe de outras vias menos onerosas para obter a compensação dos valores que despendeu a título de taxas de justiça, tais como a remessa à parte responsável da respetiva nota discriminativa e justificativa para que esta proceda ao pagamento (artigo 25.º, n.º 1, do RCP) e a cobrança em execução de sentença (artigo 25.º, n.º 3, do RCP) ou a instauração de execução por custas que será apensada à execução por custas intentada pelo Ministério Público, nos termos do n.º 3 do artigo 36.º do RCP, ainda assim sempre suportará os riscos da insolvência da contraparte.↩︎