LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
CONDENAÇÃO EM MULTA
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
Sumário

I - A lei não prevê, no art.º 27º e 28º do Regulamento das Custas Processuais, o pagamento em prestações da multa aplicada com fundamento em litigância de má-fé, nem a natureza da sanção e autonomia de regime, justifica a aplicação do regime previsto para as custas processuais, no art.º 33º do Regulamento das Custas Processuais.
II - A multa processual é uma penalidade por uma falta ou violação de uma disposição processual injuntiva e pretende sancionar com efeitos imediatos e eficazes essa mesma falta., para obstar a repetidas omissões-violações de normas processuais injuntivas.

Texto Integral

Multa-2182/14.5TBVFR-AK.P1


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SUMÁRIO[1] (art.º 663º/7 CPC):

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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório

No Proc. 2182/14.5TBVFR.25, em 21 de dezembro de 2023, proferiu-se sentença, com a seguinte decisão:

“[…]

- Condenar o requerente AA como litigante de má-fé na multa de quatro unidades de conta e indemnização à parte contrária no montante de €400,00;

[…]”.


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O progenitor AA veio interpor recurso da decisão e em 04 de março de 2024 proferiu-se acórdão no Tribunal da Relação do Porto (ref. Citius 17030795) que apreciou o recurso e confirmou a condenação do apelante como litigante de má-fé e no pagamento da multa aplicada.

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O acórdão transitou em julgado.

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Após baixa definitiva do processo à 1ª instância, através da conta nº ..., com data de 03 de outubro de 2024, procedeu-se à liquidação da multa, por litigância de má-fé, apurando-se o valor de € 408,00.

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Em 03 de outubro de 2024 emitiu-se guia para pagamento e notificou-se o responsável pelo pagamento AA.

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Em 16 de outubro de 2024 AA veio requerer o pagamento da multa em que foi condenado em 6 prestações.

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O Digno Ministério Público promoveu o indeferimento, por falta de fundamento legal.

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Proferiu-se o seguinte despacho:

“Referência 16777614:

Estamos perante multa que não é passível de pagamento em prestações.

Assim, por falta de fundamento legal, indefere-se o requerido”.


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O requerente AA veio interpor recurso do despacho.

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Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões[2]:

9. O recorrente foi confrontado com várias decisões ilegais do Tribunal a quo, violadoras de princípios constitucionais, designadamente e a mais grave de todas, a sua proibição de acesso ao direito.

10. Não fora a experiência profissional do recorrente como advogado e conhecedor das imperfeições da e na justiça, acompanharia o sentimento de incredibilidade de um cidadão médio menos avisado e tenderia a não acreditar que uma senhora juiz seria capaz de violar grosseiramente a Constituição.

11. Mas, mais confuso e incrédulo ficaria se viesse a saber que essa violação viria a ter a impensável cumplicidade deste Venerando Tribunal que julgou improcedente o óbvio e justo recurso perante tal atrocidade à Lei Constitucional.

12. Basta ler o Acórdão onde se diz, mais ou menos o seguinte: “Efetivamente, o recorrente, com o regime de convívios fixado (o tal regime inventado) fica proibido de intentar qualquer incidente de incumprimento do regime de regulação das responsabilidades parentais”.

13. Sinceramente só lido porque contado ninguém vai acreditar.

14. E assim, com a devida vénia por muitas e honrosas exceções protagonizadas por excelentes magistrados, são estas impensáveis decisões que materializam o sentimento de descrédito na justiça portuguesa.

15. E assim ficou o recorrente privado dos convívios com o seu filho. Ora isto não é coisa pouca que se cale.

PROSSEGUINDO NAS CONCLUSÕES

16. Nos presentes autos o Tribunal a quo, insatisfeito com a espantosa decisão suprarreferida, em sede de muitos incidentes de incumprimento ao regime de regulação das responsabilidades parentais, mas não tantos quantos os necessários até que visse feita a merecida justiça que lhe foi sistematicamente negada, privando-o ilegalmente dos convívios regulares com o seu filho, viria a ser fixada a final ao recorrente, pelo Tribunal a quo, uma multa processual de € 400,00, supostamente litigância de má-fé.

17. Dela recorrendo para este Tribunal Superior, agora sem surpresa, uma vez mais, viu o recorrente ser o recurso improcedente e confirmada, pois a sua condenação na sobredita multa.

18. Concluída a acima introdução preliminar, afastado que está o sentimento de revolta e injustiça ali bem patente, evitará comentar o que transitado está e concentrará as conclusões de forma sintética emanadas do supra desenvolvido nas alegações.

19. Assim, inconformado com a douta decisão de improcedência do recurso, o recorrente dele reclamou para a Conferência, cuja decisão foi a de manter o decidido no Acórdão.

20. Inconformado uma vez mais, o recorrente recorreu para o STJ, cujo recurso viria a ser rejeitado por este Venerando Tribunal, o que justificou uma reclamação para o STJ que viria a ser desatendida por extemporânea.

ISTO POSTO:

21. A questão que o recorrente aqui coloca a este Tribunal Superior é muito simples: Saber se, diferentemente da decisão proferida no douto despacho a quo ora recorrida, é ou não, observado casuisticamente o caso concreto, é suscetível da sobredita multa processual ser paga em prestações?

22. Não ignora o recorrente o que sobre tal assunto tem sido proferido em sede jurisprudencial, designadamente que “(...) o RCJ não prevê o pagamento em prestações de multas processuais”.

23. Não obstante, na modesta opinião do recorrente, importa saber se, em abstrato, o facto do RCJ não prever o pagamento de multas processuais em prestações é assumidamente o pensamento e vontade inequívoca do legislador ou se, diferentemente, estamos perante um esquecimento deste, traduzido numa lacuna que, nos termos gerais do direito deve ser suprida pela analogia com outras disposições que permitem o pagamento em prestações.

24. Ora, perscrutados vários acórdãos o que nos é dado a conhecer sobre essa matéria, é que, abstratamente e à partida, as multas processuais, enquanto penalidade injuntiva não incorporam o disposto nos art.º 3.º, 16.º e 33.º do RCP, antes sim, a disposição prevista nos art.º 27.º e 28.º do mesmo regulamento.

25. Observado o art.º 3.º do RCP, aqui se versa sobre as custas processuais que destas fazem parte a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte.

26. Parece, então, que as multas processuais não cabem no n.º 1 do art.º 3.º do RCP.

27. No entanto o n.º 2 deste normativo refere que “(....) as multas e outras penalidades são sempre fixadas de forma autónoma e seguem o regime do presente Regulamento”, ou seja, concede-se, às multas processuais é aplicado o estatuído nos art.º 27.º e 28.º do RCP.

28. Porém e salvo melhor e douta opinião em contrário, não parece ao recorrente, sobressair da letra da lei (leia-se art.º 33.º do RCP), a impossibilidade de o pagamento de multa processual vir a ser paga em prestações.

29. Na ausência de fixação de jurisprudência nesta matéria, recorrem frequentemente os tribunais ao entendimento do Sr. Conselheiro Salvador da Costa que “(...) interpretando este art.º 33.º à letra, ele não comporta o pagamento em prestações das multas ou penalidades, mas apenas de taxa de justiça e dos encargos”.

30. Mas este é, com todo o respeito e consideração devida ao Sr. Conselheiro, o seu entendimento que, ao que se conhece, não foi escrutinado ainda pela doutrina, tão-pouco pelo Tribunal Constitucional.

31. Não há, ao que se sabe, nenhum outro ilustre jurisconsulto que adote ou perfilhe tal entendimento, sendo certo que também não haverá quem opine diferentemente.

32. E nesse sentido os tribunais têm adotado o referido entendimento como a única solução possível para a referida questão, i.é, da inadmissibilidade do pagamento das multas processuais em prestações, como se uniformização/fixação de jurisprudência se tratasse.

33. Poder-se-á, inclusive, pensar e como tal aqui invocar a inconstitucionalidade material da norma prevista no art.º 33.º do RCP no sentido em que parece afastar a possibilidade das multas processuais serem pagas em prestações, em violação, pois, do princípio da igualdade com as demais multas ainda que não processuais.

34. E esta questão não é de somenos importância. Basta pensar no que pode acontecer a quem não tiver possibilidades económicas/financeiras para satisfazer de uma só vez a obrigação, apontando-lhe a justiça o caminho da indigência, exigindo-se-lhe que passe fome, que deixe de pagar a renda, a água, a luz, que deixe de comprar a comida, a medicação ou que vá pedir misericórdia aos seus conhecidos para lhe emprestarem o valor da multa.

35. E não Venerandos Desembargadores! Não foi para isso que se fez o 25 de abril e a subsequente Constituição que se lhe seguiu, ideologicamente vinculada à dignidade da pessoa humana.

INCONCEDENDO:

36. Perante o escopo jurídico suprarreferido e concedendo-se o vazio doutrinário e jurisprudencial em tal matéria, prudente seria, assim entende o recorrente, que para resolver a lacuna, dever-se-á recorrer aos princípios gerais do direito, à analogia e, porventura até à equidade, isto é, ao direito subsidiário.

37. E sem mais conclusões recursivas no que a esta questão respeita, temos, pois, aqui identificada com clareza uma impugnação relativa à questão controvertida sobre o pretenso recurso à analogia para pagamento da multa processual de € 400,00 em prestações, como peticionado e negada tal possibilidade por despacho do Tribunal a quo e do qual se recorre.

NULIDADE DO DESPACHO POR:

VIOLAÇÃO PRIMÁRIA DE DIREITO ADJECTIVO POR ERRO DE ESTATUIÇÃO

38. Argui-se a nulidade do despacho, nos termos do art.º 3.º, 27., 28.º e 33.º do RCP e 10.º do Código Civil, porquanto o indeferimento liminar do pedido de pagamento da multa processual em 6 prestações, consubstancia a prática de um ato que a lei não admite e/ou a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve.

39. Por vício de decisão por erros notórios de apreciação de normas jurídicas.

40. A decisão recorrida é nula por errada aplicação do direito, quanto ao facto do tribunal a quo não recorrer, para resolução do caso concreto, ao direito subsidiário, cf. art.º 10.º do C. Civil., preenchendo, por analogia, lacuna no RCP.

Pelo que, quanto ao que a esta parte respeita, deverá o despacho do tribunal a quo ora recorrido ser anulado e substituído por outro que admita o requerimento petitório e subsequente tramitação com vista ao pagamento da multa processual em prestações.

De tal sorte, por esse Venerando Tribunal ad quem, que dispõe da matéria de facto e de direito consignados na fundamentação da decisão recorrida, examinando serena e criteriosamente a prova dos autos.

NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS

Artigos 1.º e 13.º da CRP:

Artigos 3.º, 27.º, 28.º e 33.º do RCP

Artigo 10.º do Código Civil

Termina o apelante por pedir que se julgue o recurso procedente, proferindo-se um outro despacho que revogue a decisão sindicada nos termos propostos, alterando-a no sentido da admissão do requerimento petitório que visa o pagamento da multa processual em que foi condenado em 6 prestações.


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O Digno Ministério Público veio apresentar resposta ao recurso, formulando as seguintes conclusões:

1- O Ministério Público pugna pela total improcedência do recurso.

2- O recorrente mostra-se ciente de que os tribunais superiores decidem uniformemente no sentido da não admissibilidade legal do pagamento das multas/ penalidades em prestações que foi por si requerida e judicialmente indeferida.

3- Neste momento podemos invocar, entre outros: “Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30/6/2010, sendo Relator o Sr. Desembargador Paulo Valério” e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 5/11/2013, sendo Relator o Sr. Desembargador Proença da Costa”.

4- A decisão recorrida assumiu igualmente esse juízo de inadmissibilidade legal, pelo que não merece as críticas que lhe são dirigidas, sendo a fundamentação consentânea à simplicidade e à consolidação legal e jurisprudencial da questão – cf. art.º 152º, n.º 4 e 154º do Cód. Proc. Civil.

5- Os artigos 27º e 28º do Regulamento das Custas Judiciais (doravante) RCJ integram o Capítulo V do Título II relativo a MULTAS e nos mesmos se define as disposições gerais quanto aos limites quantitativos e critérios de fixação das multas e de admissibilidade de recurso; prazo de pagamento; consequência da ausência de pagamento e exclusão dos benefícios concedidos pela isenção de custas ou pelo apoio judiciária ou do vencimento da causa.

6- O art.º 33º do RCJ que integra o Título III relativo a Liquidação, pagamento e execução das custas, Capítulo II sobre o pagamento das mesmas estatui os limites quantitativos, requisitos e critérios para o pagamento de custas em prestações.

7- Considerado o conceito de custas (art.º 3º, n.º 1 do RGJ) ; o regime das multas (art.º 27º e 28º do RCJ) e a fixação autónoma das multas e penalidades e a imposição legal de seguirem o regime do RCJ (art.º 3º, n.º2 do RGJ) afigura-se indubitável de que não é – no quadro normativo a que o tribunal está vinculado- legalmente admissível autorizar o pagamento da multa em que o recorrente foi condenado por litigante de má –fé em prestações.

8- Não se vislumbra, pois, qualquer erro na aplicação do direito ou “nulidade do despacho por VIOLAÇÃO PRIMÁRIA DE DIREITO ADJETIVO POR ERRO DE ESTATUIÇÃO”.

9- O recorrente entende que os critérios gerais do direito, designadamente, o princípio da igualdade deveria ser invocado pelo Tribunal a fim de avaliar dos fundamentos do requerimento de pagamento prestacional e que são os da dificuldade económica e insolvência pessoal do recorrente que diz ser do conhecimento oficioso do tribunal.

Haveria assim um tratamento igualitário em relação ao regime das custas.

10. O legislador já previu que constitui critério de fixação da multa /penalidade “a situação económica do agente” (art.º 27º, n.º 4 do RGJ) desse modo se atendendo às situações de maior precariedade económica, pelo que não existem princípios que imponham de novo o recurso a tal critério para a decisão que o recorrente pretende que seja controvertida, não se perfectibilizando qualquer lacuna / de previsão e de estatuição) – cf. art.º 9º e 10º do Cód. Civil Interpretação das Leis, Integração das Lacunas . Aplicação do Princípio da Analogia, Prof Doutor J. Oliveira Ascensão.

11. Não se pode aceitar o recurso a analogia, interpretação extensiva, equidade ou direito subsidiário sugerido pelo recorrente.

12. Salvador da Costa ensina que: “Parece que tal interpretação extensiva não é aqui admitida” (…) Propendemos, por isso, em interpretar a lei no sentido de que ela não permite o pagamento das multas ou penalidades em prestações, independentemente de serem ou não incluídas no ato de contagem”. – cf. Salvador da Costa, “Regulamento das Custas Processuais Anotado, 2013, 5ª Edição, pág. 370.

12. O Ministério Publico entende que não foram violadas normas jurídicas e que deve manter –se o despacho impugnado.

Termina por pedir que se julgue improcedente o recurso.


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O recurso foi admitido como recurso de apelação, com subida em separado, como Apenso AK.

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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art.º 639º do CPC.

As questões a decidir:

- nulidade do despacho, com fundamento no art.º 615º/1 d) CPC;

- se deve ser admitido o pagamento em prestações da multa aplicada por litigância de má-fé;

- da inconstitucionalidade da norma prevista no art.º 33º do Regulamento das Custas Processuais.


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2. Os factos

Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório.


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3. O direito

Nas conclusões de recurso, sob os pontos 9 a 20, o apelante tece considerações diversas pelo facto de não ver acolhida a sua posição em recurso de anteriores decisões e da decisão que o condenou no pagamento da multa por litigância de má-fé.

Ao tribunal de recurso apenas cumpre reapreciar a decisão sob recurso, o despacho proferido em 25 de outubro de 2024 (ref. Citius 135416144) que indeferiu o pagamento em prestação da multa aplicada, por sentença, com trânsito em julgado.

O trânsito em julgado da decisão impõe-se à parte e ao tribunal de recurso e por isso, nesta sede o tribunal de recurso não pode sancionar a decisão que aplicou a multa, por estar coberta pela força do caso julgado (art.º 619ºCPC).

Improcedem, nesta parte, as conclusões de recurso.


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- Nulidade do despacho -

Nas conclusões de recurso, sob os pontos 38 a 40, o apelante suscita a nulidade do despacho recorrido.

No que concerne às nulidades o Código de Processo Civil prevê duas realidades distintas.

A lei prevê, por um lado, as nulidades das decisões (em sentido lato abrangendo sentenças, acórdãos e despachos), que se encontram previstas, taxativamente, no art.º 615º CPC.

A sua arguição é feita de harmonia com o nº2, 3, 4 do art.º 615º, uma vez no próprio tribunal em que foi proferida a decisão, e outras vezes, em via de recurso, no tribunal ad quem.

Estas nulidades são vícios que afetam a validade formal da sentença em si mesma e que, por essa razão, projetam um desvalor sobre a decisão, do qual resulta a inutilização do julgado na parte afetada.

A par destas nulidades, a lei prevê as nulidades processuais que “[…] são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais”[3].

Atento o disposto nos art.º 195º e seg. CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.

Porém, como refere ALBERTO DOS REIS há nulidades principais e nulidades secundárias, que presentemente a lei qualifica como “irregularidades”, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos[4].

As nulidades principais estão previstas, taxativamente, nos art.º 186º a 194º e 196º a 198º do CPC e por sua vez as irregularidades estão incluídas na previsão geral do art.º 195º CPC e cujo regime de arguição está sujeito ao disposto no art.º 199º CPC.

O inconformismo do apelante contra a solução de direito, apontando à decisão erro na aplicação do direito, não configura uma irregularidade processual, por não estar em causa a prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.

O apelante insurge-se contra o mérito da decisão, sendo o recurso o meio próprio para reagir contra a decisão – art.º 627º CPC.

Acresce referir, que o erro na aplicação do direito não configura qualquer das nulidades previstas no art.º 615º/1 CPC.

A nulidade da sentença/despacho está relacionada com vícios intrínsecos do próprio ato.

A sentença na sua formulação pode conter vícios de essência, vícios de formação, vícios de conteúdo, vícios de forma, vícios de limites[5].

As nulidades da sentença incluem-se nos “vícios de limites e de estrutura” considerando que nestas circunstâncias, face ao regime do art.º 615º CPC, a sentença não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia[6].

O Professor ANTUNES VARELA no sentido de delimitar o conceito, face à previsão do art.º 668º CPC, e atual art.º 615º CPC, advertia que: “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário […] e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”[7].

Os vícios que determinam a nulidade da sentença/despacho respeitam à estrutura ou aos seus limites.

A indevida aplicação do direito prende-se com o mérito da decisão, a demandar por isso, a reapreciação dos seus fundamentos e não constitui por isso, qualquer dos vícios previstos no art.º 615º CPC.

Improcedem, nesta parte, as conclusões de recurso.


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- Do pagamento em prestações -

Nos pontos 21 a 37 das conclusões de recurso, o apelante insurge-se contra o despacho recorrido, por entender que por recurso à analogia se deve autorizar o pagamento da multa em prestações.

A questão a apreciar consiste em determinar se face ao regime previsto no Regulamento das Custas Processuais (abreviadamente RCP) se admite o pagamento em prestações da multa aplicada em incidente de litigância de má-fé.

Conforme determina o art.º 3º/1 RCP “as custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte”.

Prevê o nº 2 do mesmo preceito que “as multas e outras penalidades são sempre fixadas de forma autónoma e seguem o regime do presente Regulamento”.

As multas e outras penalidades não são consideradas custas processuais, sendo certo que pela sua natureza as custas processuais representam a despesas necessária à obtenção em juízo da declaração de um direito ou da verificação de determinada situação fático-jurídica[8].

O regime das multas consta dos art.º 27º e 28º do Regulamento das Custas Processuais.

Prevê-se no art.º 27º/3 RCP que “nos casos de condenação por litigância de má-fé a multa é fixada entre 2UC e 100UC”.

O art.º 28ºRCP determina os procedimentos de liquidação da multa e prazo de pagamento, nos seguintes termos:

“1 – Salvo disposição em contrário, as multas são pagas no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão que as tiver fixado.

2-Quando a multa deva ser paga por parte que não tenha constituído mandatário judicial ou mero interveniente no processo, o pagamento só é devido após notificação por escrito de onde constem o prazo de pagamento e as cominações devidas pela falta do mesmo.

3. Não sendo paga a multa após o prazo fixado, a respetiva quantia transita, com um acréscimo de 50%, para a conta de custas, devendo ser paga a final.

4. Independentemente dos benefícios concedidos pela isenção de custas ou pelo apoio judiciário ou do vencimento na causa, as multas são sempre pagas pela parte que as motivou”.

Por sua vez, o art.º 33º do RCP, com a epígrafe “Pagamento das Custas em Prestações” estabelece que “quando o valor a pagar seja igual ou superior a 3UC, o responsável pode requerer, fundamentadamente, o pagamento das custas em prestações de acordo com as seguintes regras: […]”.

Tendo presente este quadro legal é de concluir que o legislador estabeleceu regimes distintos para as custas e para as multas processuais, quanto à forma de pagamento. Apenas o devedor de custas pode requerer, verificadas certas circunstâncias, o pagamento das custas em prestações.

Nos art.º 27 e 28 não se prevê o pagamento em prestações da multa aplicada.

A diferença de regimes e a natureza da multa aplicada, sanção determinada pelo caráter ilícito da conduta processual, impedem a aplicação ao pagamento da multa do regime previsto para as custas processuais. Não se verifica qualquer vazio legislativo a justificar o recurso à analogia (art.º 10ºCC), como defende o apelante.

Neste sentido se pronunciou o Ac. Rel. Coimbra 30 de junho de 2010, Proc. 154/08. 8TATNV-A.C1 (acessível em www.dgsi.pt):

“Quanto à inadmissibilidade do pagamento em prestações da multa processual em que a recorrente foi condenada devido à falta a uma audiência de julgamento, ela decorre imediatamente do facto de aquele regulamento não prever, de modo pensado, nessa possibilidade. Não se trata, como pretende a recorrente, de uma lacuna, um esquecimento do julgador, a ser suprida pela analogia com outras disposições que permitem o pagamento faseado. Decisivamente, porque não há qualquer similitude com o pagamento em prestações duma multa pela prática de um crime ou com uma situação de dívida por custas: a multa processual é uma penalidade por uma falta ou violação de uma disposição processual injuntiva e pretende sancionar com efeitos imediatos e eficazes essa mesma falta, porque de outro modo, isto é, a permitir o aliviamento da sanção através do pagamento em prestações ou outras formas de diferimento ou prolação no tempo, estaria encontrada a fórmula para incentivar repetidas omissões-violações de normas processuais injuntivas”.

No mesmo sentido, Ac. Rel. Évora 05 de novembro de 2013, Proc. 450/08.4TAETZ-A.E1 e Ac. Rel. Porto 14 de maio de 2014, Proc. 31/12.8FAPRT-A.P1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).

Observa SALVADOR DA COSTA, em anotação ao art.º 33 RCP, com argumentos que fazemos nossos: “[a] letra e o fim deste normativo, tendo em conta o disposto no art.º 9º, nº3, do CC, não comportam o pagamento em prestações das multas ou penalidades “lato sensu”, ainda que incluídas na conta. Não é caso da sua interpretação extensiva, porque não se vislumbra ter o legislador expressado menos do que pretendia”[9].

Argumenta, ainda, o apelante que seguindo a interpretação defendia no despacho se cria uma situação de desigualdade por não se ponderar a situação económica do obrigado ao pagamento da multa.

Contudo, não se pode invocar o princípio da igualdade de tratamento, quando estamos perante dois institutos diferentes e com finalidades distintas. Por outro lado, na determinação do montante da multa, como determina o art.º 27º/4 RCP, considera-se “a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património”. Não é de todo exato afirmar que a situação económica do agente não seja ponderada, de acordo com um juízo de proporcionalidade.

Desta forma, não se justifica aplicar às multas processuais, o regime do pagamento em prestações previsto em sede de custas processuais. Não merece censura o despacho recorrido, que indeferiu a pretensão do apelante.

Improcedem as conclusões de recurso, sob os pontos 21 a 37.


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- Da inconstitucionalidade do art.º 33ºRCP -

No ponto 33 das conclusões de recurso, o apelante suscita a inconstitucionalidade material da norma prevista no art.º 33º do RCP, por considerar que o citado preceito “parece afastar a possibilidade das multas processuais serem pagas em prestações, em violação, pois, do princípio da igualdade com as demais multas ainda que não processuais”.

Defende que a decisão viola o disposto no art.º 1º e 13º da Constituição da República Portuguesa.

Cumpre determinar se estão reunidos os pressupostos para apreciar da inconstitucionalidade suscitada e adiantando a resposta, somos levados a considerar que não estão reunidos os requisitos que permitam aferir da conformidade da interpretação da norma com a Lei Fundamental.

A respeito da conformidade da interpretação das normas jurídicas com o direito constitucional refere GOMES CANOTILHO: “[o] princípio da interpretação das leis em conformidade com a constituição é fundamentalmente um princípio de controlo (tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autónoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentre os vários significados da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de normas polissémicas ou plurisignificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a constituição”[10].

A inconstitucionalidade deve ser suscitada de forma processualmente adequada junto do tribunal que proferiu a decisão, de forma a obrigar ao seu conhecimento (art.º 72º LTC).

Recai sobre o recorrente o ónus de colocar a questão de inconstitucionalidade, enunciando-a de forma expressa, clara e percetível e segundo os requisitos previstos na lei.

Por outro lado, pretendendo questionar certa interpretação de um preceito legal, deverá o recorrente especificar claramente qual o sentido ou dimensão normativa do preceito ou preceitos que tem por violador da Constituição, enunciando com precisão e rigor todos os pressupostos essenciais da dimensão normativa tida por inconstitucional.

Esta tem sido a interpretação desenvolvida pelo Tribunal Constitucional, como disso dá nota, entre outros, o Ac.do Tribunal Constitucional nº 560/94 (acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) quando observa:”[d]e facto, a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo, quando tal questão se coloca perante o tribunal recorrido a tempo de ele a poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver – o que, obviamente, exige que quem tem o ónus da suscitação da questão de constitucionalidade a coloque de forma clara e percetível.

Bem se compreende que assim seja, pois que, se o tribunal recorrido não for confrontado com a questão da constitucionalidade, não tem o dever de a decidir. E, não a decidindo, o Tribunal Constitucional, se interviesse em via de recurso, em vez de ir reapreciar uma questão que o tribunal recorrido julgara, iria conhecer dela ex novo.

A exigência de um cabal cumprimentos do ónus da suscitação atempada – e processualmente adequada – da questão de constitucionalidade não é, pois –[…]-, uma “mera questão de forma secundária”. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se, sobre a questão de constitucionalidade e para que o Tribunal Constitucional, ao julga-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão”.

No caso presente o apelante indica os preceitos constitucionais que considera violados. Contudo, não enuncia o segmento interpretativo adotado que contraria tais preceitos constitucionais, o que impede a apreciação da constitucionalidade.

Por outro lado, a mera afirmação de que existe inconstitucionalidade na aplicação de determinadas normas, - art.º 33º RCP -, não equivale a suscitar, validamente, uma questão de inconstitucionalidade normativa.

A válida imputação de inconstitucionalidade a uma norma (ou a uma sua dimensão parcelar ou interpretação), impõe, a quem pretende atacar, na perspetiva da sua compatibilidade com normas ou princípios constitucionais, determinada interpretação normativa, indicar concretamente a dimensão normativa que considera inconstitucional, o que também não ocorre no caso concreto. A indevida aplicação da lei não configura só por si uma violação de preceitos constitucionais.

Nesta perspetiva, considera-se que o apelante não suscitou, validamente, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, pelo que, improcedem, nesta parte as conclusões de recurso sob o ponto 33.


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Nos termos do art.º 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante.

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III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão.


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Custas a cargo do apelante.

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Porto, 26 de junho de 2025
(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art.º 131º, 132º/2 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Manuel Domingos Fernandes
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] Seguiu-se a numeração que consta da peça processual, na qual as conclusões se iniciam com o número 9.
[3] MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pág. 156.
[4] ALBERTO DOS REIS Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, pág. 357.
[5] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, vol. III, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito, 1982, pág. 297.
[6] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, ob. cit., pág. 308.
[7]ANTUNES VARELA, J.M.BEZERRA, SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 686.
[8] Cf. SALVADOR DA COSTA, As Custas Processuais, 10ª edição, Almedina, Coimbra, junho, 2014, pág. 81
[9] SALVADOR DA COSTA, As Custas Processuais, ob. cit., pág., 236.
[10] J.J. GOMES CANOTILHO Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, (7ª Reimpressão) Coimbra, Almedina, 2003, pág.1226.