Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
PRISÃO PREVENTIVA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE PROCESSUAL
SANAÇÃO
PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ATIVIDADE CRIMINOSA
PERIGO PARA AQUISIÇÃO DA PROVA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
Sumário
(Sumárioda responsabilidade do Relator) I. A falta de fundamentação da decisão ocorre quando é ininteligível o seu discurso decisório, por ausência total de explicação da razão de se decidir de determinada maneira, o que não ocorre quando a ratio decidendi consta de forma percetível da decisão recorrida. II. A nulidade gerada pela falta de fundamentação do despacho de aplicação de medida de coação prevista no artº 194º, nº 6 do C.P.P., como não é qualificada expressamente por lei como insanável (nem nos arts 194º, e artº 119º do C.P.P., nem em qualquer outra disposição legal), está sujeita ao regime de arguição e sanação previstos, respetivamente, nos arts 120º e 121º, ambos do Código de Processo Penal, pelo que, não sendo arguida no prazo fica sanada. III. É intenso o perigo de continuação da atividade criminosa, face à reiteração da atividade de tráfico levada a cabo pelo recorrente, de forma constante (diariamente) e ao longo de mais de um mês, já com alguma dimensão, o que resulta, nomeadamente, da não despicienda quantidade (e variedade) de estupefaciente apreendidos, bem como dos objetos de divisão, pesagem e acondicionamento igualmente apreendidos. IV. Fluindo dos autos que uma parte da prova a produzir no inquérito e, mais à frente no julgamento se baseia nos depoimentos dos consumidores de estupefaciente abastecidos pelo arguido, podemos com segurança, à luz das regras da experiência e comum e perante o caráter organizado da atividade ilícita empreendidas pelo arguido, concluir que é altamente provável que, em liberdade, o arguido possa exercer pressão sobre os aludidos consumidores influenciando o sentido dos seus depoimentos, o que torna intenso o perigo para a instrução probatória dos autos. V. Nem a própria obrigação de permanência na habitação (mesmo sob vigilância eletrónica) é eficaz e suficiente para obstar à continuação da prática delituosa de tráfico e à perturbação da instrução probatória, uma vez que o recorrente continuaria a poder contactar com os seus clientes a partir da sua casa, fazendo com que estes se deslocassem à sua residência ou, por intermédio de cúmplices, continuar a levar a cabo tal atividade, que face aos elevados lucros da atividade em causa, não seriam difíceis de recrutar.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
No âmbito do processo de inquérito nº …., que corre termos no DIAP de ..., foi proferido despacho pelo Juiz de Instrução Criminal, a 28/03/2025, a decretar a prisão preventiva de AA.
*
Inconformado veio o arguido interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões:
«A. O arguido AA, encontra-se preso, em regime de prisão preventiva, desde o passado dia 28 de março de 2024, tal decisão alicerçou-se nos fortes indícios de que será coautor material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-lei 15/93, de 22 de janeiro e um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, 1, alínea a), do Código Penal.
B. Ora ocorre que a ratio subjaz aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade da prisão preventiva consagrados no nosso ordenamento processual penal, não foi respeitada.
C. Porquanto, o arguido é primário, está devidamente enquadrado social e familiarmente e tem hábitos de trabalho e garantia de sustentabilidade em liberdade.
D. O arguido, vive com a sua progenitora e com os seus irmãos, obtendo rendimentos de serviços que presta na área de construção civil, com o mercado de trabalho em constante mutação e necessidade de garantir a subsistência da sua família, tem desenvolvido outras áreas profissionais, nomeadamente, do mercado imobiliário.
E. Atualmente, tem como encargos mensais fixos prestação de crédito habitação no montante de €359,00 (trezentos e cinquenta e nove euros), ao que acrescem cerca de €200,00 (duzentos euros) de contributo para os encargos de subsistência do agregado familiar.
F. A sua manutenção em prisão preventiva, nesta concreta idade e sem prejuízo da gravidade do alegado crime que lhe é imputado, impede qualquer futura ressocialização do mesmo.
G. Além disso, é de conhecimento evidente, do Tribunal “a quo” que aos 30 anos de idade, se atinge uma mistura de juventude, com maturidade, experiência em início de construção de vida.
H. O tempo que o ora recorrente já leva de reclusão - ainda que pareça pouco - exerceu sem dúvida, um fortíssimo e irreparável caráter dissuasor, tanto pelo facto do arguido se encontrar detido, como pelo facto de se ver impedido de começar a melhor fase da sua vida junto da sua companheira e família.
I. Entende o ora arguido que a medida de prisão preventiva não é necessária, adequada e proporcional, violando o disposto no artigo 193.º, do Código de Processo Penal, porquanto, não existe qualquer indício ou prova, até porque nem corresponde à verdade – que o arguido com cariz diário, regular e profissional, procedesse à venda de produto estupefaciente nomeadamente, cocaína, cannabis, MDMA e Liamba.
J. Não podemos ignorar o facto de o ora arguido ser consumidor de produtos estupefacientes, no entanto, ser consumidor não implica uma punição, pelo menos que se conheça, -nulla lege nulla pene.
K. Não existe, nem existiu qualquer tipo ou forma de investigação sobre o aqui arguido AA
L. Dado o que supra se referiu, não entende, com o devido respeito pelo douto Tribunal, que é muito, a desproporcionalidade da medida de coação ora aplicada sem sequer se ter admitido outra medida como, por exemplo, a apresentação no posto policial ou, no máximo, a vigilância eletrónica à distância (OPHVE), e mesmo esta última, salvo melhor opinião, se afigura como desproporcional.
M. Pelo que, face a todo o exposto e à jurisprudência aplicável em casos semelhantes, é incompreensível tal decisão, - como adiante melhor se verá, e que se espera que seja rapidamente alterada.
N. Há ainda, a este propósito, que ter em conta a imposição constitucional presente no artigo 28.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa que determina que a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes outras medidas de coação constantes do catálogo legal.
O. De acordo com o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, constando do citado preceito que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa, ou seja, presume-se inocente e não culpado!
P. Ao ser sujeito a uma medida de coação detentiva da liberdade sem que se conheçam verdadeiramente indícios suficientes e assentes de que praticou conduta ilícita, especialmente grave e suscetível de condenação em pena maior, o arguido ora recorrente deixou de ser presumível inocente para ser considerado presumível culpado.
Q. Cabendo relembrar Vossas Excelências que, de acordo com o artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam os tribunais bem como as forças de segurança.
R. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
S. Mais, um dos princípios basilares de um Estado de Direito é o princípio da liberdade do cidadão, o qual está, no nosso ordenamento jurídico, consagrado no artigo 27º, número 1, da Constituição da República Portuguesa.
T. Acresce ainda que a prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.
U. Assim, no que aos presentes autos diz respeito, não se entende a sujeição a uma medida restritiva da liberdade ao ora arguido face à dúvida razoável e ainda mais quando existem, efetivamente, meios alternativos e menos gravosos à disposição, esta decisão deveria então ser justificada, designadamente por uma ou outra postura do arguido, o que não se vislumbra do despacho.
V. Bem como sempre se dirá que não basta dizer que a medida de coação é a única aceitável nos presentes autos, impõe-se que se diga, de forma fundamentada, porque se afastam liminarmente as outras alternativas.
W. Sendo manifesta a existência de um vício de falta de fundamentação e, consequentemente, impõe-se que o mesmo seja declarado pelos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa.
X. Em momento algum, se dá a conhecer, os meios empregues, a modalidade e circunstâncias da ação, bem como a quantidade e qualidade das substâncias estupefacientes, pelo simples facto de não existirem.
Y. Além do exposto, conforme constitucionalmente defendido, não poderá o douto Tribunal sustentar a prisão preventiva de um cidadão numa apreciação global.
Z. Ademais, a aplicação da prisão preventiva está sujeita não só às condições gerais contidas nos artigos 191.º a 195.º do Código de Processo Penal, em que avultam os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, que infra melhor se explanará, como também está sujeita aos requisitos específicos consagrados no artigo 202.º e os gerais previstos no artigo 204.º Código de Processo Penal.
AA. Sendo que a medida aplicada ao ora arguido, não é suficientemente clara na sua fundamentação, não especifica onde assentou a decisão da medida, foi no alegado elevado perigo de continuação da atividade criminosa e no alegado perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e, eventualmente, de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente para a aquisição da prova?
BB. Vislumbrando-se que, ponderando todos os fatores, nenhum dos requisitos se encontram verificados.
CC. O arguido é um cidadão integro, com princípios e valores bem definidos, que reside de forma permanente e estável com a sua família, sendo evidente que o arguido, antes de ser submetido a prisão preventiva, tinha paradeiro fixo e certo.
DD. Acresce que, o arguido se encontrava socialmente integrado, sendo respeitado no seio da sua comunidade e família, não se vislumbrando, portanto, qualquer tipo de perigo de fuga!
EE. Encontra-se em construção de vida inicial e constituição de família, com a sua companheira de longa data, BB.
FF. Além do acima referenciado, o arguido não tem qualquer forma/meio de perturbar o decurso do inquérito ou da investigação.
GG. Mas, mesmo que assim não se entendesse, sempre se dirá que a perturbação do decurso do inquérito nunca estaria posta em causa com a aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, porquanto, estando confinado à sua habitação, nunca lhe seriam possíveis os contactos que erradamente se alegam poder condicionar depoimentos.
HH. Pelo que, mais uma vez, não se justifica a aplicação da medida de coação de prisão preventiva.
II. Quanto ao último requisito, não existe manifestamente qualquer possibilidade de o arguido continuar o eventual e alegado ato ilícito, primeiramente porque nunca o praticou e depois, e precisamente neste sentido, porque o arguido sempre teve hábitos de trabalho.
JJ. Além disso, encontra-se em início de construção de vida com a sua companheira e pilar necessário para a subsistência da sua família.
KK. E ainda assim, o ora recorrente reside com a sua companheira, pelo que se exclui, de imediato, qualquer possibilidade de continuar eventual e alegado ato ilícito.
LL. Em suma, e resultado do que já se disse, o ora arguido acredita que não existem quaisquer fundamentos razoáveis para lhe ser aplicada qualquer medida de coação, à exceção do TIR, e, havendo lugar à aplicação de uma medida, não pode compreender nem aceitar que lhe seja aplicada a medida mais gravosa.
MM. Importa ainda dizer que de acordo com o princípio da legalidade, ao abrigo do artigo 191.º do Código de Processo Penal, a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei.
NN. Devendo, à luz do princípio da legalidade, a prisão preventiva ser apenas decretada quando, tal como resulta da lei, for adequada e proporcional, nos termos do artigo 193.º do Código de Processo Penal.
OO. As medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
PP. Ou seja, ninguém deve ser condenado em sede de inquérito quando exista uma probabilidade, mesmo que ínfima, de não lhe vir a ser aplicada uma pena não privativa da liberdade.
QQ. Acresce que, a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação.
RR. O que não resulta assente do Despacho que determinou a prisão preventiva do ora recorrente, e do qual aqui se recorre.
SS. Do Despacho, em momento algum resulta justificação, de uma forma minimamente assente em provas irrefutáveis existentes nos autos, de motivo da sujeição à medida mais gravosa.
TT. Fundamentação a que, como já se disse, estava obrigado de acordo com a ratio do artigo 204.º do Código de Processo Penal, de acordo com o Princípio da Legalidade, artigo 191.º do Código de Processo Penal, e também de acordo com o Princípio de Adequação e Proporcionalidade, artigo 193.º do Código de Processo Penal.
UU. A opção por esta medida de coação tem de ser suportada em qualquer facto suficientemente provado, que permita concluir que em virtude da conduta do ora recorrente, é necessário sujeitar o mesmo àquela medida restritiva da liberdade.
VV. Porquanto, a prisão preventiva é a mais gravosa, e bem assim a mais limitativa de direitos, só devendo ser aplicada quando já existiram indícios suficientes de que ao arguido será aplicada a final uma medida detentiva da liberdade, de acordo com o número 2 do artigo 27º da Constituição da República Portuguesa.
WW. Pelo que, sendo uma medida de carácter excecional, a não opção por outra medida de coação deverá ser objetiva e fundamentada em Despacho que aprecie os indícios existentes e os meios de prova que suportaram essa decisão, o que no caso concreto, reitera-se, não ocorreu.
XX. E, a fim de ver garantidos os seus Direitos de Defesa – com consagração constitucional no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa –, o ora recorrente tem o Direito e o Tribunal o especial dever de especificar quais os factos em concreto e meios de prova que os suportem, que levam a aplicar a medida de coação mais gravosa – prisão preventiva – e não qualquer uma outra.
YY. No intuito de ser concedido o direito de o ora recorrente poder “rebater” cada um dos factos e os meios de prova que sustentam tão desproporcional decisão.
ZZ. Assim, ainda que se entenda existirem indícios da prática do crime, haveria que demonstrar em concreto, na fundamentação da decisão, a insuficiência das outras medidas de coação para garantir as necessidades cautelares do processo, ou seja, haveria que evidenciar a absoluta necessidade da medida mais gravosa por ser insuficiente outra, face aos perigos a acautelar, o que não se vislumbra do Despacho ora recorrido.
AAA. Sendo este Despacho uma decisão que pode alterar a vida de qualquer pessoa, nomeadamente a do ora recorrente, que é pessoa integrada socialmente e com uma atividade profissional.
BBB. Acrescendo o facto de parecer ter sido esquecido de acolher no Despacho que o ora recorrido é primário.
CCC. Sempre haverá que considerar e ponderar as consequências nefastas e o carácter altamente repressivo da prisão, que segrega, retirando-lhe a liberdade.
DDD. Pior ainda quando, qualquer imputação de atividade(s) ligada(s) ao tráfico de produtos estupefacientes por parte de ora recorrente é, neste momento, uma mera suposição.
EEE. O que, num Estado de Direito Democrático, nunca se poderá mostrar suficiente para manter alguém em prisão preventiva.
FFF. Daí resultando que a decisão que determine a aplicação de prisão preventiva só respeitará o normativo legal desde que, resulte de Despacho devidamente fundamentado, do ponto de vista fáctico, designadamente elencando quais os motivos que levam à aplicação da medida de coação mais gravosa, se baseie em factos concretos, o que não ocorreu.
GGG. Assim sendo, ao despachar como despachou, sem fundamentar a decisão violou o Tribunal ora recorrido o disposto nos artigos 191.º, 193.º, 202.º, 204.º e 212.º do Código Processo Penal.
HHH. Consequentemente, deverá assim ser declarado NULO ou ANULADO o despacho que determinada a prisão preventiva de AA, por falta de fundamentação fáctica e análise crítica da prova, substituindo-o por outro que o restitua a liberdade e, eventualmente e no limite, o sujeite a outra medida de coação sem o carácter excecional.
III. E ainda porque, a medida de coação aplicada, além de manifestamente desproporcional na presente fase do processo, sempre se dirá violadora do disposto no artigo 193.º do Código de Processo Penal.
JJJ. Pelo que, até existirem outros elementos de prova que permitam concluir com rigor jurídico qual o grau de ilicitude da conduta de AA, o que manifestamente não ocorrerá, deverá este aguardar os ulteriores termos do processo sujeito a outra medida de coação, nomeadamente, a Termo de Identidade e Residência.
KKK. Sendo que se pode admitir enquanto subsistam algumas - que terão sempre de ser fundadas - dúvidas: a obrigação de apresentação no posto policial da área de residência.
LLL. Concluindo-se que não existe alicerce para manter a medida de coação de prisão preventiva, porquanto existem outras medidas que se mostram igualmente adequadas e suficientes às exigências cautelares, princípio da subsidiariedade da prisão preventiva expresso no artigo 202.º do Código de Processo Penal, que deve impreterivelmente ser respeitado.
MMM. Face a todo o exposto, por não se verificarem reunidos quaisquer dos pressupostos ou requisitos que podem determinar a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, deve o Despacho recorrido ser anulado e, consequentemente, ser ao ora recorrente restituída a liberdade.»
Para caso de não ser restituído à liberdade, termina pedindo a aplicação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica.
*
O recurso foi admitido, por despacho proferido de .../.../2025, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
*
Respondeu o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso, com a manutenção da decisão recorrida, e formulando para tanto as seguintes conclusões:
«1. No dia 28 de Março de 2025, o arguido AA viu-lhe aplicada a medida de coação de prisão preventiva, por estar indiciado da prática de factos passíveis de integrar um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, por referência às tabelas I-B, I-C e II-A, todos do Decreto-Lei 15/93 de 22 de Janeiro e um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
2. Tal decisão teve como fundamentos o forte perigo de continuação da atividade criminosa, do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e do perigo para a aquisição de prova.
3. O arguido requer a substituição da medida de prisão preventiva por medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica (OPHVE).
4. O arguido foi intercetado pelos inspetores da Polícia Judiciária quando tinha ido buscar produto estupefaciente e já havia sido observado a vender junto à sua residência.
5. O despacho de aplicação de medida de coação explica porque a medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica (OPHVE) não acautela a continuidade da atividade criminosa, que se pode continuar a fazer, vendendo no domicílio e que efetivamente causaria ainda maior alarme social!
6. O despacho de aplicação da medida de coação não é nulo e todas as condições (viver acompanhado, prover ao sustento da família) não impediram o arguido de praticar os factos que lhe estão indiciariamente, imputados, pelo que, não podem agora abonar a seu favor na alteração da medida de coacção.
7. O princípio da proporcionalidade, da adequação e da necessidade não foi violado, porquanto apenas a medida de coação de prisão preventiva permite debelar os perigos que determinaram a sua aplicação, pelo que se pronuncia o Ministério Público no sentido de que o arguido AA deverá aguardar o decurso do inquérito sujeito a tal medida.».
*
Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta remeteu para a resposta apresentada pelo Ministério Público em primeira instância.
*
Foi proferido despacho a efetuar o exame preliminar, mantendo o efeito e regime de subida atribuídos ao recurso.
Corridos os vistos, foram os autos à conferência.
Nada obsta à prolação de acórdão.
***
II. OBJETO DO RECURSO
Em conformidade com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J. de 19/10/1995 (in D.R., série I-A, de 28/12/1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Atendendo às conclusões apresentadas, importa decidir se o despacho recorrido padece do vício de falta de fundamentação, se não se verificam os perigos elencados no despacho recorrido (perigo de continuação da atividade criminosa, de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e para a aquisição de prova), e se a prisão preventiva aplicada deve ser substituída por outra medida de coação, nomeadamente pela medida obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, face aos princípios da proporcionalidade, necessidade e adequação.
***
III. FUNDAMENTAÇÃO
A) A decisão recorrida e seus fundamentos
a) O despacho recorrido é do seguinte teor:
«A detenção do arguido foi legal, porquanto efetuada ao abrigo dos pressupostos previstos nos artigos 254.º, n.º 1, alínea a), 255.º, n.º 1, alínea a), 256.º, n.º 1 e 259.º, alínea b), todos do Código de Processo Penal, tendo–se considerado indiciada a prática, pelos mesmos, de crime previsto e punível pelo artigo 21.º, número 1 do Decreto-Lei número 15/93, de 22 de Janeiro.
O detido foi apresentado em juízo no prazo previsto nos artigos 28º da Constituição da República Portuguesa e 141º do Código de Processo Penal, tendo sido feita a comunicação a que se refere o artigo 58º, número 2, do mesmo diploma, pelo que vão validadas as supra aludidas detenções.
Tendo em conta o teor de todos os elementos dos autos, em especial auto de noticia por detenção de 17.02.2025, auto de apreensão da mesma data, fotografias, teste rápido e exame de pesquisa de álcool no ar expirado, CRC, auto de interrogatório de arguido perante Magistrado do Ministério Publico, exame LPC, auto de noticia por detenção do dia 27.03.2025, auto de diligencia externa, auto de revista e apreensão, auto de busca e apreensão, reportagem fotográfica de 27.03.2025, auto de busca e apreensão da viatura, testes rápidos e de pesagem do estupefaciente apreendido, relatórios de exame pericial ao produto estupefaciente apreendido, consignando-se que o arguido exerceu o seu direito ao silencio, consideram-se fortemente indiciados todos os factos elencados pelo Ministério Publico, que se dão por integralmente reproduzidos.
Mais se indicia que:
• Do CRC do arguido não constam registos da prática de crimes.
• O arguido declarou estar desempregado, viver com a mãe e irmãos, e obter rendimentos de cerca de 600/700€ mensais de serviços pontuais que presta na área da construção civil.
• Tem como encargos mensais fixos prestação de credito habitação no montante de 359€, ao que acrescem cerca de 200€ de contributo para os encargos de subsistência do agregado familiar.
• Reside em Portugal desde ...,
*
Não obstante o silencio do arguido, do qual nenhum significado se extrai, impedindo apenas o Tribunal de tomar conhecimento da sua versão dos acontecimentos, a conjugação do acervo probatório junto aos autos, acima elencado, demonstra com consistência a ocorrência dos factos nos exatos termos imputados, designadamente pelas descrições que constam dos autos de noticia e de vigilâncias efetuadas pelos OPC’s respetivos, que atestam os factos imputados, descrições a tomar em consideração em momento subsequente dos autos, por via de declarações dos OPC’s intervenientes, e demais prova documental e pericial que atesta a qualidade e quantidade do estupefaciente e demais objetos apreendidos na posse do arguido, seja por si transportados, seja na sua residência, seja no automóvel que usava.
Idêntica motivação serve a indiciação dos factos atinentes ao exercício da condução sob efeito do álcool, factos presenciados por OPC e atestada a TAS por via do exame de pesquisa de álcool realizado.
Em suma, o teor dos meios de prova suprarreferidos indiciam fortemente que o arguido, desde, pelo menos, fevereiro de 2025, se dedica, de forma diária, regular e profissional, à venda de estupefacientes, nomeadamente cocaína, cannabis, MDMA e liamba e que na execução dessa sua atividade, procedeu à venda direta a diversos compradores, em encontros presenciais observados por OPC, concretamente no dia 27 de março de 2025, pelas 19h48; pelas 19h55; pelas 20h40; pelas 21h55, momento em que foi intercetado e detido.
Mais se indicia fortemente, pelo teor da prova documental e pericial que possuía na sua residência o estupefaciente apreendido, e objetos conexos com a preparação e embalamento de estupefaciente.
Face ao exposto, encontra-se fortemente indiciada a prática, pelo arguido, de factos subsumíveis ao crime de tráfico de estupefaciente, previsto e punível pelo artigo 21º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, com uma pena de quatro a doze anos de prisão.
Poder-se-á equacionar a integração das condutas do arguido no tipo atenuando do artigo 25º do mesmo diploma legal, como o alvitrou a defesa, mas sem sucesso.
Estabelece o artigo 21º, número 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, que “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser em venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artº 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.
Relativamente ao tráfico de menor gravidade, estabelece a alínea a) do artigo 25º do mesmo diploma, que “se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI”.
Como se referiu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21-8-2018, proc. número 451/13.0 TABJA-G.E1, in www.dgsi.pt, “Atenta a jurisprudência referida, há, pois, que distinguir entre os casos graves (traficante comum - artº 21º), os muitos graves (grande traficante - artº 24º) e os pouco graves (pequeno traficante - artº 25º), sob pena de esvaziamento deste último preceito. E a conclusão sobre o elemento típico da “considerável diminuição da ilicitude do facto” terá de resultar de uma valoração global deste, tendo em conta não só as circunstâncias referidas, de forma não taxativa, no citado artº 25º, mas ainda outras que, na sua globalidade, sejam integradoras da diminuição acentuada da ilicitude, devendo esta ser aferida face à ilicitude que é típica do artº 21º, a qual, além do mais, se expressa na moldura penal abstrata que lhe corresponde.”
Pois que, como já anteriormente se havia referido no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 13-9-2006, proc. número 06P1916, in www.dgsi.pt, “Terão de se integrar no art. 25.º do DL 15/93, de 22-01, todos os casos de tráfico que, à luz do senso comum, sejam efetivamente de pequena, e não apenas pequeníssima ou insignificante dimensão.”
Importa, com base na factualidade fortemente indiciada nos autos e recorrendo a critérios de razoabilidade, aferir a qualificação da atividade do arguido enquanto pequeno traficante, traficante comum ou grande traficante.
Tal análise será conduzida com fundamento em diversos elementos probatórios constantes dos autos, permitindo enquadrar a dimensão da atividade como de pequena, média ou grande escala.
Para o efeito, relevar-se-ão, nomeadamente, os meios empregues, a modalidade e circunstâncias da ação, bem como a quantidade e qualidade das substâncias estupefacientes, numa apreciação global e não atomizada dos factos.
No caso concreto, a atividade do arguido pauta-se pelo contacto direto com os consumidores em locais previamente acordados, sendo objeto de transação não apenas cannabis-resina, mas também cocaína, esta última conhecida como droga dura, atento o seu potencial aditivo.
Ainda que os factos indiciados tenham ocorrido num período temporal relativamente curto, a quantidade e qualidade das substâncias detidas, conjugadas com a posse de equipamento próprio para a sua preparação e embalamento, demonstram, de forma inequívoca, que o arguido se dedica ao tráfico de estupefacientes de modo estruturado e organizado, constituindo esta a sua principal fonte de subsistência, sem prejuízo do subsequente apuramento do grau de pureza das substâncias.
A distribuição de substâncias de elevado poder aditivo a múltiplos consumidores potencia o impacto lesivo da conduta, evidenciando uma especial danosidade social, traduzida na circulação de milhares de doses individuais diárias de cocaína e cannabis.
A expressiva quantidade de estupefaciente, aliada à apreensão de instrumentos típicos da atividade (balanças de precisão, telemóveis, material de acondicionamento, entre outros), afasta um juízo de diminuta ilicitude, enquadramento do arguido como um mero traficante de rua – este com atividade esporádica e de oportunidade, indiciando, antes, uma atividade estruturada e reiterada.
Neste contexto, não se afigura admissível qualquer juízo de diminuição considerável da ilicitude dos factos indiciados, impondo-se, pelo contrário, o reconhecimento de que os atos indiciados correspondem ao enquadramento jurídico consignado pelo Ministério Publico.
*
Sabido é que a aplicação de medidas de coação que não sejam o Termo de Identidade e Residência depende da verificação da existência de:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou,
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
Circunstâncias estas conhecidas por “pericula libertatis”.
Como se sabe, a escolha das medidas de coação a aplicar deve ser norteada pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade, quer isto dizer, que não deve ser aplicada medida mais grave que a que, no caso concreto, for apta a debelar os perigos que se verificarem.
Por outro lado, é de considerar também que as medidas de coação a aplicar devem ser escolhidas tendo em conta a pena que previsivelmente virá a ser aplicada ao arguido.
Mais, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação apenas devem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação.
Analisemos então as necessidades cautelares do caso concreto.
No presente caso, entende-se que, face à forma arreigada e organizada como a conduta indiciada foi praticada, ao numero de transações observadas num espaço de horas e à quantidade e qualidade do estupefaciente apreendido na posse do arguido, à precariedade financeira do arguido ainda que se considerem os rendimentos que declarou, não documentados, e aos encargos que declarou, tendo presente o facto do conhecimento geral, de esta atividade proporcionar ganhos fáceis e avultados, existe um forte perigo de continuação da atividade criminosa, ainda mais vincado pela circunstancia de o arguido ter prestado declarações perante Magistrado do Ministério Publico há pouco mais de um mês, no âmbito destes autos e esse contacto com o sistema de justiça não ter tido qualquer efeito inibitório.
Existe também um real perigo de perturbação da ordem e tranquilidade publicas, porquanto é frequente a existência de ilícitos como o que está em análise nos presentes autos nesta comarca, criando grande miséria social, insegurança e sentimento de medo a todos quantos aqui residem, a qual é necessário acautelar. A que acresce que grande parte do estupefaciente em causa (cocaína) se integra no chamado grupo das “drogas duras”, a quais possuem considerável potencial aditivo.
Existe também perigo para a aquisição de prova, uma vez que a investigação ainda não atingiu o seu termo, sendo previsível a pretensão de recolha de prova testemunhal, de cidadãos a identificar, inseridos seja na cadeia de distribuição, seja como compradores/consumidores, todos conhecidos do arguido, será expectável que este, agora ciente da pendencia dos autos e das suas consequências, procure pressiona-los interferindo no sentido das declarações ou inibindo as potenciais testemunhas de prestar declarações.
Por fim, o tráfico de estupefacientes, quando exercido na via pública e em zonas residenciais, constitui fator de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, potenciando o alarme social. Tal atividade ilícita fomenta a prática de crimes conexos, nomeadamente contra a propriedade, frequentemente associados à obtenção de meios para consumo.
O fluxo constante de indivíduos nos locais de transação, acentua o sentimento de insegurança. Paralelamente, a utilização de espaços públicos e comuns para o tráfico contribui para a sua degradação e abandono, acentuando a desvalorização urbanística e o sentimento de vulnerabilidade coletiva, tudo isto evidenciando perigo de perturbação da tranquilidade publica.
Identificadas as exigências cautelares, importa agora lançar mão dos princípios que presidem à escolha da(s) medida(s) de coação aplicáveis (cf. art.º 193º do CPP).
O legislador impõe que as medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Consigna também o legislador o principio da subsidiariedade das medidas privativas de liberdade, impondo que estas só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação, e bem assim que, a privação de liberdade em ambiente prisional só poderá ser decretada quando a obrigação de permanência na habitação se revele insuficiente para satisfazer as exigências cautelares.
Refletindo nos princípios gerais acima referidos, temos que a necessidade de aplicação de medida de coação diferente de TIR resulta da identificação de perigos, cuja concretização importa acautelar.
A adequação da medida de coação ao caso concreto passará pela escolha daquela(s) que se revela(m) apta(s) a evitar o perigo de continuação da atividade criminosa, de perturbação do inquérito na aceção acima adiantada e de perturbação da tranquilidade publica.
No que respeita à proporcionalidade, haverá que balancear a medida ou medidas de coação a aplicar, à gravidade do ilícito indiciado e a pena que previsivelmente será aplicada ao arguido, em caso de condenação por tais factos.
Tendo em conta a atividade organizada, estruturada e representativa do modo de vida do arguido, o tipo de estupefaciente envolvido e a circunstância de se indiciar ser fonte principal de rendimentos do arguido, a quem não são conhecidos rendimentos documentados, evidencia elevada ilicitude.
Acresce, ainda no campo da proporcionalidade, que a despeito da ausência de antecedentes criminais registados, a quantidade e qualidade de estupefaciente apreendido, correspondente indiciariamente (por aplicação dos critérios previstos na Portaria 94/96 de 26.11) a cerca de 2800 doses de cocaína, 1200 de cannabis; 9400 doses de MDMA; e doses residuais de liamba; associado ao facto de o arguido ter revelado total indiferença pelo sistema de justiça, com o qual contactou a 17.02.2025, sem qualquer eficácia inibitória, permitem um juízo de prognose de aplicação de pena de prisão efetiva, em caso de condenação.
Assim sendo, e atendendo aos princípios da legalidade, adequação às necessidades cautelares concretas e proporcionalidade à gravidade dos factos, princípios esses espelhados nos artigos 191º, 192º e 193º do Código de Processo Penal, entende-se ser a medida de coação de prisão preventiva a única adequada ao caso concreto.
Importa referir que no caso dos autos, a medida de obrigação de permanência na habitação, ainda que sujeita a vigilância eletrónica, não se revela suficiente para impedir a continuação da atividade criminosa e a perturbação da ordem e tranquilidade públicas, porquanto o arguido, tendo mostrado terem capacidade organizativa e possuir os contactos que lhe permitem transacionar estupefaciente ao longo do tempo, sempre poderá, por intermédio de cúmplices, levar a cabo tal atividade. Cúmplices esses que, face aos elevados lucros da atividade em causa, não serão provavelmente difíceis de recrutar.
Pelo exposto, e atendendo ao disposto nos artigos 193º, 195º, 202º, número 1 al. a) e 204º als. b) e c), todos do Código de Processo Penal, com referência aos artigos acima referidos que tipificam ilícitos penais a este arguido imputado, decide-se aplicar ao arguido as seguintes medidas de coação:
a) Termo de Identidade e Residência, previsto no artigo 196º do Código de Processo Penal, já prestado;
b) Prisão preventiva, prevista no artigo 202º do mesmo diploma.»
*
Os factos elencados pelo Ministério Público e que a decisão recorrida considerou fortemente indiciados (que deu por integralmente reproduzidos) são os seguintes.
«1. O arguido AA, pelo menos desde o mês de Fevereiro de 2025 que se dedica, com cariz diário, regular e profissional, à venda de produto estupefaciente nomeadamente, cocaína, cannabis, MDMA e Liamba.
2. Na concretização de tal negócio, o arguido procedeu à venda directa de produto estupefaciente, em concreto cannabis, cocaína MDMA e Liamba, a diversos compradores que o contactavam presencialmente para o efeito.
3. No dia 27 de Março de 2025, cerca das 19h:48m, o arguido AA saiu da sua residência sita na ... e encontrou-se com um indivíduo do sexo masculino cuja identificação ainda não se logrou apurar, e dirigiram-se ao estabelecimento comercial “...”.
4. Quando abandonaram o citado estabelecimento comercial, o arguido AA entregou ao citado indivíduo do sexo masculino um pacote com produto estupefaciente de qualidade e quantidade não concretamente apurada, a troco de quantia não determinada, após o que cada um seguiu o seu caminho.
5. No mesmo dia 27 de Março de 2025, cerca das 19h:55m, o arguido AA saiu da sua residência e encontrou-se com um indivíduo do sexo feminino cuja identificação ainda não se logrou apurar, encetando conversa.
6. A determinada altura, o arguido AA entregou à citada pessoa do sexo masculino um pacote com produto estupefaciente de qualidade e quantidade não concretamente apurada, a troco de quantia não determinada, após o que cada um seguiu o seu caminho.
7. Também no dia 27 de Março de 2025, cerca das 20h:40m, o arguido AA, após ter conduzido o seu veículo automóvel de matrícula BI-..-TS até ao ..., sito na ..., voltou à sua residência apeado, onde um indivíduo do sexo masculino cuja identificação ainda não se logrou apurar, o esperava junto à zona lateral esquerda do prédio.
8. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido AA entregou ao citado indivíduo do sexo masculino um pacote com produto estupefaciente de qualidade e quantidade não concretamente apurada, a troco de quantia não determinada, após o que cada um seguiu o seu caminho.
9. Cerca das 21h:55m, o arguido AA voltou a sair da sua residência e dirigiu-se para junto de dois veículos automóveis que tinham acabado de estacionar naquela rua, com matrículas CC e DD.
10. De um daqueles veículos automóveis, pessoa cuja identidade não se logrou ainda apurar, entregou ao arguido AA uma embalagem com 514,20 gramas de Cocaína, que o arguido colocou debaixo do braço, regressando novamente ao prédio onde habitava.
11. Nesse momento, pelos inspetores da Polícia Judiciária foi dada ordem de detenção ao arguido AA, à qual este obedeceu.
12. No interior da residência do arguido AA, sita na ..., aquele tinha ainda na sua posse os seguintes produtos estupefacientes:
- 561,89 gramas de cocaína;
- 602,14 gramas de cannabis;
- 948,11 gramas de MDMA;
- 16,72 gramas de Liamba;
-5 (cinco) balanças de precisão;
- Facas para cortar o produto estupefaciente e sacos de plástico herméticos para individualização do produto estupefaciente;
- €595,50 (quinhentos e noventa e cinco euros), em moeda do Banco Central Europeu;
- 19 (dezanove) telemóveis e smartphones.
13. A isto acresce que, no 17 de Fevereiro de 2025, cerca das 02h:30m, o arguido AA conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com matrícula BI-..-TS na ..., em ....
14. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido AA submetido a teste de deteção de álcool no sangue pelo ar expirado, acusou uma TAS de 1.61 g/l, que depois de efetuado o desconto do erro máximo admissível se fixou em 1.530 g/l.
15. Nesta madrugada de dia 27 de Fevereiro de 2025, arguido AA tinha ainda na sua posse, no interior de um saco de plástico colocado na parte de dentro da porta dianteira esquerda do citado veículo automóvel, devidamente individualizado em 40 (quarenta) saquetas plásticas herméticas, cannabis resina com o peso líquido de 62.425 gramas, THC de 13.0, que permitia conseguir 162 (cento e sessenta e duas doses).
16. E uma bolota de cannabis resina com o peso de 9.355 gramas, com THC de 29.7 e que permitia conseguir 55 (cinquenta e cinco) doses.
17. O arguido AA não tem descontos na segurança social, não lhe sendo conhecida entidade patronal.
18. O produto estupefaciente acima descrito e que foi apreendido nos autos, era detido pelo arguido AA com a finalidade de o ceder a terceiros a título oneroso.
19. Os objetos acima descritos, que foram apreendidos nos autos ao arguido AA eram utilizados na atividade de cedência dos produtos estupefacientes a terceiros.
20. O dinheiro apreendido à ordem dos autos e que era detido pelo arguido AA, nos termos descritos acima era única e exclusivamente produto da venda de estupefacientes a terceiros.
21. O arguido AA atuou sempre de forma livre e consciente, bem sabendo as características, natureza e efeitos dos produtos estupefacientes que transacionava, em concreto, cannabis, cocaína MDMA e Liamba.
22. O arguido AA conhecia a natureza e características das substâncias estupefacientes que adquiria, manuseava, doseava, detinha, cedia, transportava e vendia a terceiros, sabendo tratar-se de cannabis, cocaína, MDMA e Liamba, estando ciente que a sua detenção, cedência ou venda a terceiros lhe estava vedada por lei.
23. Ao decidir conduzir nas condições descritas, o arguido AA sabia que o fazia com uma taxa de álcool superior ao permitido por lei.
24. O arguido AA, ao atuar da forma descrita, fê-lo com o propósito concretizado de vender produto estupefaciente a terceiros, fazendo desta atividade um modo de vida, bem sabendo que a posse, transporte, detenção, cedência, guarda e venda de tais produtos e substâncias é proibida e tipificada na lei como crime.
25. O arguido AA agiu sempre de forma livre, deliberada, voluntária e consciente, bem sabendo que as condutas por si empreendidas, consubstanciam a prática de ilícito criminal».
***
*
B) Da apreciação do recurso
Entende o recorrente que o douto despacho recorrido sofre do vício de falta de fundamentação, uma vez que não justifica o porquê de o Tribunal não ter aplicado outra medida de coação, nem os perigos e indícios com base em concreto factos e provas em que estes se baseiam.
Defende, ainda, o recorrente que a decisão recorrida “não é suficientemente clara na sua fundamentação, não especifica onde assentou a decisão da medida” se “foi no alegado elevado perigo de continuação da atividade criminosa”, “no alegado perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e, eventualmente, de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente para a aquisição da prova”. Acresce que, “entende o ora arguido que a medida de prisão preventiva não é necessária, adequada e proporcional (…), porquanto, não existe qualquer indício ou prova, até porque nem corresponde à verdade que o arguido com cariz diário, regular e profissional, procedesse à venda de produto estupefaciente nomeadamente, cocaína, cannabis, MDMA e Liamba”.
Desde já se refere que o recurso, na parte em que imputa falta de fundamentação à decisão recorrida, é infundado, por completa ausência de adesão à realidade.
Vejamos porquê.
A ensaiada falta de fundamentação é reportada, pelo arguido, à sua tese de que o despacho recorrido não terá justificado porque é que não aplicou medida de coação diversa da prisão preventiva e por não ser clara quanto ao perigo em que assenta, ou seja, se se baseia no perigo de continuação da atividade criminosa, no perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas ou no perigo de perturbação do inquérito.
Porém, lida a fundamentação do despacho recorrido, verificamos que o mesmo afasta expressamente a aplicação, ao caso, da obrigação de permanência na habitação (e, por maioria de razão, das outras medidas de coação menos gravosas), aduzindo para o efeito um conjunto de argumentos, que permitem a conclusão de que, face aos concretos perigos que convoca e bem explica (e que não é só um, mas todos os três referidos no parágrafo anterior), só a prisão preventiva se revela suficiente a atalhá-los.
O recorrente pode discordar dos fundamentos constantes do despacho recorrido, utilizados para a afastar as outras medidas de coação menos gravosas que a prisão preventiva, o que não pode é dizer que o despacho não justifica o afastamento de tais medidas, por tal não corresponde à realidade.
Acresce que, o despacho recorrido fundamenta devidamente o juízo de forte indiciação e a ocorrência dos perigos que convoca, explicando os meios de prova em que se baseia aquele juízo e justificando estes perigos com recurso à indicação de factos concretos (e não de forma vaga ou genérica, como erradamente aventa o recorrente).
Desde logo, o despacho recorrido afastou a aplicação de outras medidas de coação, fundamentando que, “a medida de obrigação de permanência na habitação, ainda que sujeita a vigilância eletrónica, não se revela suficiente para impedir a continuação da atividade criminosa e a perturbação da ordem e tranquilidade públicas, porquanto o arguido, tendo mostrado terem capacidade organizativa e possuir os contactos que lhe permitem transacionar estupefaciente ao longo do tempo, sempre poderá, por intermédio de cúmplices, levar a cabo tal atividade. Cúmplices esses que, face aos elevados lucros da atividade em causa, não serão provavelmente difíceis de recrutar”.
Quanto à ocorrência de “forte perigo de continuação da atividade criminosa”, a decisão recorrida concluiu pela sua verificação “face à forma arreigada e organizada como a conduta indiciada foi praticada, ao numero de transações observadas num espaço de horas e à quantidade e qualidade do estupefaciente apreendido na posse do arguido, à precariedade financeira do arguido ainda que se considerem os rendimentos que declarou, não documentados, e aos encargos que declarou, tendo presente o facto do conhecimento geral, de esta atividade proporcionar ganhos fáceis e avultados”. Concluiu ainda que, o forte perigo de continuação da atividade criminosa é “ainda mais vincado pela circunstância de o arguido ter prestado declarações perante Magistrado do Ministério Publico há pouco mais de um mês, no âmbito destes autos e esse contacto com o sistema de justiça não ter tido qualquer efeito inibitório”.
Fundamentou que «existe também um real perigo de perturbação da ordem e tranquilidade publicas, porquanto é frequente a existência de ilícitos como o que está em análise nos presentes autos nesta comarca, criando grande miséria social, insegurança e sentimento de medo a todos quantos aqui residem, a qual é necessário acautelar. A que acresce que grande parte do estupefaciente em causa (cocaína) se integra no chamado grupo das “drogas duras”, a quais possuem considerável potencial aditivo».
Acresce que, «o tráfico de estupefacientes, quando exercido na via pública e em zonas residenciais, constitui fator de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, potenciando o alarme social. Tal atividade ilícita fomenta a prática de crimes conexos, nomeadamente contra a propriedade, frequentemente associados à obtenção de meios para consumo”.
Por outro lado, «o fluxo constante de indivíduos nos locais de transação, acentua o sentimento de insegurança. Paralelamente, a utilização de espaços públicos e comuns para o tráfico contribui para a sua degradação e abandono, acentuando a desvalorização urbanística e o sentimento de vulnerabilidade coletiva, tudo isto evidenciando perigo de perturbação da tranquilidade publica.»
Concluiu também pela verificação do “perigo para a aquisição de prova, uma vez que a investigação ainda não atingiu o seu termo, sendo previsível a pretensão de recolha de prova testemunhal, de cidadãos a identificar, inseridos seja na cadeia de distribuição, seja como compradores/consumidores, todos conhecidos do arguido, será expectável que este, agora ciente da pendencia dos autos e das suas consequências, procure pressiona-los interferindo no sentido das declarações ou inibindo as potenciais testemunhas de prestar declarações”.
Por último, fundamentou o juízo de forte indiciação, no teor do «auto de noticia por detenção de 17.02.2025, auto de apreensão da mesma data, fotografias, teste rápido e exame de pesquisa de álcool no ar expirado, CRC, auto de interrogatório de arguido perante Magistrado do Ministério Publico, exame LPC, auto de noticia por detenção do dia 27.03.2025, auto de diligencia externa, auto de revista e apreensão, auto de busca e apreensão, reportagem fotográfica de 27.03.2025, auto de busca e apreensão da viatura, testes rápidos e de pesagem do estupefaciente apreendido». Porquanto «a conjugação do acervo probatório junto aos autos, acima elencado, demonstra com consistência a ocorrência dos factos nos exatos termos imputados, designadamente pelas descrições que constam dos autos de noticia e de vigilâncias efetuadas pelos OPC’s respetivos, que atestam os factos imputados, descrições a tomar em consideração em momento subsequente dos autos, por via de declarações dos OPC’s intervenientes, e demais prova documental e pericial que atesta a qualidade e quantidade do estupefaciente e demais objetos apreendidos na posse do arguido, seja por si transportados, seja na sua residência, seja no automóvel que usava». E «idêntica motivação serve a indiciação dos factos atinentes ao exercício da condução sob efeito do álcool, factos presenciados por OPC e atestada a TAS por via do exame de pesquisa de álcool realizado».
A decisão recorrida mostra-se, pois, fundamentada e bem fundamentada, nos segmentos devidos, não padecendo da invocada nulidade.
Ademais, constitui entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência que o normativo legal aplicável, que visa garantir o desiderato constitucional da necessidade de fundamentação das decisões judiciais (artº 205º da Constituição da República Portuguesa), como meio indispensável ao alcance de um processo equitativo e não arbitrário, penaliza apenas a falta absoluta de fundamentação da decisão, não padecendo do vício da nulidade aquela que contém uma fundamentação deficiente, medíocre ou mesma errada.
A falta de fundamentação da decisão, seja ela um mero despacho ou uma sentença, há de revelar-se pela ininteligibilidade do discurso decisório, por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira1.
Ora, a decisão recorrida, não só se mostra fundamentada, como até está suficiente e devidamente fundamentada, como se pode ver das partes acima transcritas.
É quanto basta para se concluir que não se verifica a apontada falta de fundamentação.
Mas mesmo que se verificasse, estaríamos perante uma nulidade sanável a qual, por assim ser, estava a sujeita a prazo de arguição, que não foi respeitado, pelo que se teria sanado.
Na verdade, a falta de fundamentação do despacho de aplicação de medida de coação (diversa de termo de identidade e residência) gera nulidade em conformidade com o disposto no artº 194º, nº 6 do Código de Processo Penal.
Não se tratando de nulidade expressamente qualificada por lei como insanável (nem no artº 194º, nem no artº 119º, ambos do Código de Processo Penal, nem ainda em qualquer outra disposição legal), estava sujeita ao regime de arguição e sanação previstos, respetivamente, nos arts 120º e 121º, ambos do Código de Processo Penal.
*
Vejamos agora se se verificam os apontados perigos de continuação da atividade criminosa, de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e para a aquisição de prova, e se a prisão preventiva aplicada deve ou não ser substituída por outra medida de coação, nomeadamente pela medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, face aos princípios da proporcionalidade, necessidade e adequação.
Defende o recorrente que não se verificam os apontados perigos em concreto e que, assim, a prisão preventiva devia ter sido substituída por outra medida de coação menos gravosa, nomeadamente e no limite pela obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, por estas se revelarem suficientes, adequadas e proporcionais às exigências cautelares que se fazem sentir nos presentes autos. Tanto mais que, segundo o recorrente aventa, nem sequer há elementos nos autos que demonstrem ter o arguido cometido o crime de tráfico, mas apenas meras suposições.
Vejamos.
Para a aplicação de qualquer medida de coação, com exceção do termo de identidade e residência, é necessária a existência, para além de indícios, pelo menos suficientes (mas fortes quanto às medidas privativas da liberdade e quanto às previstas no artº 200º do Código de Processo Penal), da prática de crime (com gravidade crescente de penas, em função da maior gravidade das medidas) e a verificação de exigências cautelares (artº 191º, nº 1 do Código de Processo Penal), que são, nos termos do artº 204º, nº 1 do Código de Processo Penal, a ocorrência de:
“a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas”.
Verificando-se um dos apontados perigos, as medidas de coação “devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas” (artº 193º, nº 1 do Código de Processo Penal).
Por força do disposto no artº 193º, nº 2 do Código de Processo Penal, só pode ser aplicada medida privativa da liberdade (prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação), quando as outras medidas de coação sejam inadequadas ou insuficientes para as finalidades cautelares do caso, devendo, entre ambas, ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação (em detrimento da prisão preventiva).
Quando as outras medida se revelem inadequadas e insuficientes é aplicável prisão preventiva, desde que se verifique alguma das situações previstas no artº 202º, nº 1 do Código de Processo Penal, entre as quais, nos termos da alínea a) do citado número e artigo, “houver fortes indícios de prática de crime de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos”.
A decisão recorrida elencou os factos fortemente indiciados e fundamentou de forma completa e bem ancorada nos meios de prova, que cita e analisa de forma racional e crítica, porque concluiu – e bem - que tais factos estão fortemente indiciados.
Estamos, assim, perante a existência de fortes indícios da prática pelo arguido recorrente de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível, com pena de prisão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, pelo artº 21º, nº 1 do D.L. nº 15/93, com referência às Tabelas Anexas I-B, I-C e II-A, (e de um crime de condução sob influência do álcool).
Atendendo, à quantidade e à qualidade e variedade do produto estupefaciente apreendido (cocaína, cannabis, MDMA e Liamba), à dimensão da atividade do arguido, que com caráter diário, regular e profissional procedeu à venda de produtos estupefacientes a várias pessoas, numa conduta que se verificava desde o passado mês de fevereiro, bem como ainda a gravidade revelada pela circunstância de se tratar de estupefaciente destinado à venda a terceiros, é de concluir que é elevado o grau de ilicitude dos factos.
Veja-se que o arguido, num só dia, tinha em seu poder 561,89 gramas de cocaína, 602,14 gramas de cannabis, 948,11 gramas de MDMA, 16,72 gramas de Liamba, cinco balanças de precisão, facas para cortar o produto estupefaciente e sacos de plástico herméticos para individualização do produto estupefaciente, €595,50 (quinhentos e noventa e cinco euros) em numerário e 19 telemóveis e smartphones.
Como bem se refere na decisão recorrida “a quantidade e qualidade das substâncias detidas, conjugadas com a posse de equipamento próprio para a sua preparação e embalamento, demonstram, de forma inequívoca, que o arguido se dedica ao tráfico de estupefacientes de modo estruturado e organizado, constituindo esta a sua principal fonte de subsistência, sem prejuízo do subsequente apuramento do grau de pureza das substâncias. A distribuição de substâncias de elevado poder aditivo a múltiplos consumidores potencia o impacto lesivo da conduta, evidenciando uma especial danosidade social, traduzida na circulação de milhares de doses individuais diárias de cocaína e cannabis. A expressiva quantidade de estupefaciente, aliada à apreensão de instrumentos típicos da atividade (balanças de precisão, telemóveis, material de acondicionamento, entre outros), afasta um juízo de diminuta ilicitude, enquadramento do arguido como um mero traficante de rua – este com atividade esporádica e de oportunidade, indiciando, antes, uma atividade estruturada e reiterada.”
É comumente sabido que os produtos estupefacientes têm elevado potencial aditivo e efeitos nocivos para a saúde e a sua venda e consumo geram muita criminalidade secundária associada, como roubos e furtos, contribuindo para agudizar o sentimento de insegurança da comunidade.
Estamos, assim, não só perante um crime de grande gravidade absoluta (em comparação com outros tipos de crime) e relativa (em comparação com outros crimes ainda compreendidos no tipo legal previsto pelo artº 21º, nº 1 do D.L. 15/93), mas também que provoca graves malefícios (não só para a saúde, mas também por corroer os aliceces de qualquer sociedade) e gera elevado sentimento de insegurança na comunidade e intranquilidade pública.
É intenso o perigo de continuação da atividade criminosa, face à reiteração da atividade de tráfico (indiciariamente) levada a cabo pelo recorrente, de forma constante (diariamente) e ao longo de pelo mais de um mês, já com alguma dimensão, o que resulta, nomeadamente, da não despicienda quantidade (e variedade) de estupefaciente apreendidos, bem como dos objetos de divisão, pesagem e acondicionamento igualmente apreendidos.
Como muito bem realça a decisão recorrida, em análise que sufragamos, “no presente caso, entende-se que, face à forma arreigada e organizada como a conduta indiciada foi praticada, ao numero de transações observadas num espaço de horas e à quantidade e qualidade do estupefaciente apreendido na posse do arguido, à precariedade financeira do arguido ainda que se considerem os rendimentos que declarou, não documentados, e aos encargos que declarou, tendo presente o facto do conhecimento geral, de esta atividade proporcionar ganhos fáceis e avultados, existe um forte perigo de continuação da atividade criminosa, ainda mais vincado pela circunstancia de o arguido ter prestado declarações perante Magistrado do Ministério Publico há pouco mais de um mês, no âmbito destes autos e esse contacto com o sistema de justiça não ter tido qualquer efeito inibitório”.
Fluindo dos autos e dos factos fortemente indiciados que uma parte não despicienda da prova, ainda a produzir no inquérito e após novamente em julgamento se baseia nos depoimentos dos consumidores de estupefacientes a que o arguido indiciariamente tem fornecido tais produtos, podemos com segurança, no caso concreto, à luz das regras da experiência e comum e perante o caráter organizado da indiciada atividade ilícita empreendidas pelo arguido, formular um juízo de prognose no sentido de que, é altamente provável que o ora recorrente, em liberdade, possa exercer pressão sobre os aludidos consumidores influenciando o sentido dos seus depoimentos.
Verificam-se, assim, intensos perigos concretos de continuação da atividade criminosa e de perturbação do decurso do inquérito e da instrução probatória dos autos, o que bastaria para fundar a aplicação de medida de coação apta a atalhá-los, sempre ficando prejudicado o conhecimento dos demais perigos.
Por outro lado, não podemos olvidar, conforme acima exposto, e pelas razões já apontadas, que o crime em investigação, atentas as suas consequências e dimensão, provoca sentimentos de insegurança e intranquilidade no povo, em nome quem os Tribunais, constitucionalmente (artº 202º, nº 1 da CRP), administram a justiça.
Pelas razões expostas, só a prisão preventiva deste arguido se revela adequada e necessária às exigências cautelares do caso concreto, é a única que se revela suficiente para impedir os perigos acima assinalados e é proporcional à gravidade dos factos e à pena que previsivelmente virá a ser aplicada ao arguido em julgamento. Vale por dizer que todas as outras medidas de coação, incluindo a obrigação de permanência na habitação, são insuficientes e inadequadas para a realização das finalidades acima referidas.
Tal como a decisão recorrida, também nós concluímos que, pelas razões supra expostas, não vemos que qualquer outra medida de coação, que não a prisão preventiva, consiga acautelar o forte perigo de continuação da atividade criminosa verificado, já que este arguido recorrente, em liberdade ou com a imposição da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, poderá (sendo obviamente previsível que o faça) continuar a desenvolver aquela atividade.
Na verdade, a obrigação de permanência na habitação, mesmo sob vigilância eletrónica, não é eficaz nem suficiente para obstar à continuação da prática delituosa de tráfico, uma vez que o recorrente continuaria a poder contactar com os seus clientes a partir da sua casa, fazendo com que estes se deslocassem à aludida residência ou, por intermédio de cúmplices, poderia continuar a levar a cabo tal atividade, que face aos elevados lucros da atividade em causa não seriam difíceis de recrutar.
Do exposto resulta, assim, bem demonstrado que, in casu, nem sequer a obrigação de permanência na habitação é suficiente para impedir o recorrente de continuar a delinquir e para repor na comunidade o sentimento de segurança e tranquilidade posto em crise pela conduta do arguido e fortemente indiciada nos autos, para já não falar do perigo para a aquisição da prova.
Por último, e diversamente do referido pelo arguido, existem fortes indícios nos autos dos factos descritos no despacho recorrido (estes por remissão para a douta promoção que o antecede) e integradores da prática pelo arguido do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº 21º, nº 1 do D.L. 15/93 (e do crime de condução sob efeito do álcool). Os quais resultam claramente demonstrados (conforme refere a douta decisão recorrida), face ao teor do «auto de noticia por detenção de 17.02.2025, auto de apreensão da mesma data, fotografias, teste rápido e exame de pesquisa de álcool no ar expirado, CRC, auto de interrogatório de arguido perante Magistrado do Ministério Publico, exame LPC, auto de noticia por detenção do dia 27.03.2025, auto de diligencia externa, auto de revista e apreensão, auto de busca e apreensão, reportagem fotográfica de 27.03.2025, auto de busca e apreensão da viatura, testes rápidos e de pesagem do estupefaciente apreendido». Porquanto «a conjugação do acervo probatório junto aos autos, acima elencado, demonstra com consistência a ocorrência dos factos nos exatos termos imputados, designadamente pelas descrições que constam dos autos de noticia e de vigilâncias efetuadas pelos OPC’s respetivos, que atestam os factos imputados, descrições a tomar em consideração em momento subsequente dos autos, por via de declarações dos OPC’s intervenientes, e demais prova documental e pericial que atesta a qualidade e quantidade do estupefaciente e demais objetos apreendidos na posse do arguido, seja por si transportados, seja na sua residência, seja no automóvel que usava». E «idêntica motivação serve a indiciação dos factos atinentes ao exercício da condução sob efeito do álcool, factos presenciados por OPC e atestada a TAS por via do exame de pesquisa de álcool realizado».
Destarte, bem andou o Tribunal recorrido em aplicar ao arguido a medida de coação de prisão preventiva.
Improcede, assim, o recurso interposto.
***
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordamos em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra o douto despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 (quatro) U.C a taxa de justiça devida.
Comunique de imediato à primeira instância.
*
Lisboa, 26 de junho de 2025.
Os Juízes Desembargadores, Eduardo de Sousa Paiva Ivo Nelson Caires B. Rosa (com declaração de voto que segue) Marlene Fortuna
Declaração de voto
Apesar de acompanhar a decisão que consta do acórdão quanto à manutenção da medida de coação de prisão preventiva, não acompanho os fundamentos do acórdão quanto ao conhecimento da nulidade invocada e quanto à presença dos perigos de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e de perturbação do decurso do inquérito na modalidade de aquisição e conservação da prova, pelos seguintes fundamentos:
Da nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação.
Alega o recorrente que o despacho recorrido viola o disposto no artigo 97º nº 5 do CPP por não se mostrar devidamente fundamentado quanto aos motivos pelos quais considera que mais nenhuma medida de coação era suficiente e eficaz para acautelar os perigos identificados e nem quanto aos perigos que indicou.
A necessidade de fundamentação do despacho que aplica medidas de coação, com exceção do termo de identidade e residência, mostra-se reafirmada pelo nº 6 do 194º do CPP, sendo que a lei comina como nulidade o vício de falta de fundamentação do despacho que aplica medidas de coação, com exceção do TIR.
Ora, tratando-se de uma nulidade processual a mesma, por não se enquadrar entre as nulidades insanáveis previstas no artigo 119º do CPP e por o legislador não a cominar como tal, constitui uma nulidade sanável sujeita ao regime de arguição previsto no artigo 120 nº 3 do CPP e ao regime de sanação previsto no artigo 121º do mesmo diploma legal.
Deste modo, estando a nulidade em causa sujeita ao regime de invocação e sanação das nulidades em geral, decorrente dos arts. 120.° e 121º, do CPP, pelo que tinha de ser invocada no prazo de dez dias (art. 105.°, n.º 1, do CPP), se outra coisa não resultar do nº 3 do mesmo art.. 120.°, nomeadamente da sua alínea a), que impõe que a nulidade deve ser arguida «antes que o ato esteja terminado», tratando-se de nulidade de ato a que o interessado assista.
Há que dizer que, quanto às irregularidades processuais, assim como quanto às nulidades processuais, com exceção das nulidades insanáveis, as mesmas não podem, no âmbito do processo penal, ser arguidas em sede de recurso, mas sim em sede de reclamação perante o juiz do processo e só após decisão proferida por este sobre tal nulidade é que poderá eventualmente haver recurso.
“As nulidades processuais devem ser suscitadas perante o tribunal em que as mesmas foram cometidas e, caso a requerente se não conforme com a decisão proferida sobre o requerimento de arguição de nulidade, desta caberá recurso” Acórdão do TRL de 20 de Abril de 2015.
Conforme resulta do artigo 379º nº 2 do CPP, as nulidades da sentença, por terem um regime distinto das restantes nulidades processuais, é que são normalmente arguidas e conhecidas em sede de recurso.
Assim sendo, não compete ao Tribunal da Relação, como pretende o recorrente, conhecer, em primeira mão, da nulidade processual em causa, tanto mais que a existir recurso, como existiu no caso concreto, nunca poderia ter como fundamento a prática desses vícios processuais, mas sim sindicar, em sede de recurso, a decisão do juiz de instrução criminal que incidir sobre vícios processuais perante ele invocados.
Em suma, a apreciação, em recurso, da nulidade prevista no artigo 194º nº 6 do CPP - por falta de fundamentação do despacho que aplicou medida de coação - pressupõe que tal nulidade foi previamente arguida perante o tribunal a quo e por este decidida. Se essa questão não foi suscitada na 1.ª instância, nem o tribunal recorrido sobre ela se pronunciou, não pode a mesma ser suscitada na motivação do recurso que tem por objeto a apreciação da decisão que aplicou a medida de coação.
Nesta conformidade, por se mostrar sanada a alegada nulidade e por o Tribunal da Relação ser materialmente incompetente para conhecer, em primeira mão, de nulidades processuais sanáveis relativa a atos processuais da primeira instância, a pretensão da recorrente teria de improceder apenas com base neste argumento.
Com efeito, estando a alegada nulidade sanada, não pode o Tribunal da Relação, como no entendimento que fez vencimento, conhecer da referida nulidade para concluir que o despacho está devidamente fundamentado e que a nulidade invocada não existe.
***
Quanto ao perigo de perturbação da investigação (para o inquérito e para a aquisição da prova).
Em relação a este perigo, o mesmo tem de suportar-se em factos que indiciem a atuação do arguido com o propósito de prejudicar a investigação, não bastando a mera possibilidade de que tal aconteça para que possa afirmar-se a existência deste perigo. Assim, perante a existência concreta deste perigo, a aplicação da medida de coação, nomeadamente uma medida restritiva da liberdade, terá como propósito prevenir a ocultação e a adulteração, bem como garantir as disponibilidade e genuinidade de elementos de prova.
O despacho recorrido fundamentou a presença dos perigos, quanto ao arguido recorrente, pelo seguinte modo: “uma vez que a investigação ainda não atingiu o seu termo, sendo previsível a pretensão de recolha de prova testemunhal, de cidadãos a identificar, inseridos seja na cadeia de distribuição, seja como compradores/consumidores, todos conhecidos do arguido, será expectável que este, agora ciente da pendencia dos autos e das suas consequências, procure pressiona-los interferindo no sentido das declarações ou inibindo as potenciais testemunhas de prestar declarações”.
Como facilmente se constata, estamos perante meras especulações, considerações vagas e conclusivas, desacompanhadas de qualquer suporte factual e de elementos probatórios. Com efeito, do despacho recorrido não se alcança, dado que não contém qualquer facto indiciado ou elemento de prova a sustentar essas afirmações, em que medida o arguido, aqui recorrente, tem em marcha ou pretende colocar em ação atitudes com vista a destruir ou tornar ineficaz a prova já adquirida e consolidada no processo (perigo para a conservação da prova), ou em que medida pretende neutralizar a aquisição de outros elementos de prova que ainda não constam do processo (perigo para a aquisição da prova). Na verdade, para restringir a liberdade de alguém, com base neste concreto perigo, a lei exige muito mais do que meras especulações, considerações vagas ou conclusivas, a lei exige a presença de factos concretos e elementos de prova que, de forma fundada, sustentem esses factos.
Assim, perante ausência concreta de fundamentos entendo que não é possível sustentar a presença do perigo em causa, motivo pelo qual não é possível, à luz deste concreto perigo, justificar a aplicação de qualquer medida de coação para além do TIR.
Passando agora ao perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
O despacho recorrido justificou a presença deste perigo pelo seguinte modo: «existe também um real perigo de perturbação da ordem e tranquilidade publicas, porquanto é frequente a existência de ilícitos como o que está em análise nos presentes autos nesta comarca, criando grande miséria social, insegurança e sentimento de medo a todos quantos aqui residem, a qual é necessário acautelar. A que acresce que grande parte do estupefaciente em causa (cocaína) se integra no chamado grupo das “drogas duras”, a quais possuem considerável potencial aditivo». Acresce que, «o tráfico de estupefacientes, quando exercido na via pública e em zonas residenciais, constitui fator de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, potenciando o alarme social. Tal atividade ilícita fomenta a prática de crimes conexos, nomeadamente contra a propriedade, frequentemente associados à obtenção de meios para consumo”. Por outro lado, «o fluxo constante de indivíduos nos locais de transação, acentua o sentimento de insegurança. Paralelamente, a utilização de espaços públicos e comuns para o tráfico contribui para a sua degradação e abandono, na acentuando a desvalorização urbanística e o sentimento de vulnerabilidade coletiva, tudo isto evidenciando perigo de perturbação da tranquilidade publica.».
Como sabemos, as medidas de coação apenas têm finalidades processuais e não de proteção do próprio arguido ou de defesa da sociedade.
A este propósito refere Maia Costa: “A utilização da prisão preventiva como forma de impedir a continuação da atividade criminosa constitui claramente uma medida de defesa social, uma medida de segurança, mais até do que antecipação de pena, o que viola frontalmente diversos princípios constitucionais, entre os quais a presunção de inocência. Por outro lado, a prisão preventiva como meio de salvaguarda da ordem e da tranquilidade públicas serve fins de prevenção geral (a salvaguarda das famosas expectativas comunitárias), mas não é evidentemente uma medida cautelar do processo, violando também o princípio da presunção de inocência” (RMP Out/Dez 2002, nº 92, 74 e 75).
Com a reforma do CPP em 2007 (Lei nº 48/2007) passou a exigir-se que a perturbação da ordem e da tranquilidade públicas seja grave e imputável à pessoa do arguido, retirando-se “o cunho estritamente objetivo ao requisito geral” (exposição de motivos da Proposta de Lei) enfatizando-se a preocupação de compatibilização desta al. c) com a natureza estritamente processual prevista no art. 191º e com o princípio da presunção de inocência.
Neste mesmo sentido, se pronunciou o Conselheiro Manuel Joaquim Braz, a propósito das alterações introduzidas pela Reforma de 2007, in As medidas de coação no Código de Processo Penal Revisto – Algumas notas”, in CJ, ano XXXII, tomo IV - ao escrever: «Acerca das condições de aplicação das medidas, foi alterada a redação da alínea c) do artº 204º, exigindo-se agora quanto ao requisito de perturbação da ordem e tranquilidade que o perigo seja de perturbação grave e seja imputável ao arguido. Na Exposição de Motivos explica-se que desse modo se retira o “cunho estritamente objetivo” a esse requisito geral de aplicação de medidas de coação».
Assim, não será o mero clamor público ou repercussão que um determinado caso tem na opinião pública, na comunicação social ou nas redes sociais que poderá ser utilizado como fundamento para afirmar a existência de perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas. Com efeito, o elemento literal da interpretação da norma em causa confirma o que acabamos de dizer: o que legítima a aplicação e a manutenção da medida de coação não é uma qualquer perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, mas sim que o arguido perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas. A perturbação tem de ser causada pelo arguido ou a este imputável e esse comportamento de ser um comportamento futuro e provável e não o próprio crime cometido.
Para além disso, a perturbação só será grave quando a pessoa do agente instale na comunidade onde o mesmo está inserido, não apenas um mero sentimento de indignidade ou revolta, mas que instale um sentimento de medo na comunidade levando a modificar os hábitos de quem aí vive, coartando várias liberdades públicas.
Com efeito, o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas deve ser entendido como reportando-se ao previsível comportamento do arguido e não ao crime por ele indiciariamente cometido e à reação que o mesmo pudesse gerar na comunidade.
Tendo em conta o caso concreto, nomeadamente o facto de o arguida não ser residente na ilha ..., o processo estar a ser julgado em outra região do país e geograficamente distante do local onde arguida alegadamente praticou os factos e perante a ausência de qualquer facto ou elemento de prova que indicie que a arguida recorrente virá a adotar comportamentos ou atitudes que irão comprometer de forma grave a ordem e tranquilidade públicas, faz com que, à luz deste perigo, não seja possível sustentar a manutenção da medida de coação imposta. Com efeito, o despacho recorrido, ao remeter para o despacho inicial, justificou a existência do perigo em causa não num comportamento da arguida, mas sim na natureza e gravidade do crime indiciado.
Ora, estes argumentos estão reservados, se for caso disso, para outra fase processual, nomeadamente para a fase de julgamento onde, em sede de medida da pena, o tribunal os irá ponderar e os irá fazer refletir na reação penal que presumivelmente virá a ser imposta.
Citando aqui o Ac. da Relação de Lisboa de 2-7-2003, proferido no processo nº 5372/2003-3 “Salvo o devido respeito, não a podemos acompanhar neste segmento da fundamentação uma vez que a interpretação da alínea c) do artigo 204º que está na base dessa consideração conflitua de uma forma clara com a presunção de inocência do arguido constitucionalmente consagrada (artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa) uma vez que atribui às medidas de coação em geral, e à prisão preventiva em particular, finalidades próprias das penas e não finalidades estritamente processuais como exige o artigo 191º do Código de Processo Penal”.
As medidas de coação têm apenas finalidades cautelares e não de pacificação social, não cumprindo antecipar para as fases preliminares do processo razões de prevenção geral positiva que apenas deverão ser ponderas aquando da aplicação das penas.
Tendo por base este entendimento, e dado que não vislumbramos qualquer motivo para, em concreto, temer que o arguido recorrente possa vir a pôr em causa a ordem e a tranquilidade públicas, consideramos que, neste momento, não se mostra verificado o assinalado perigo.
Por todo o exposto, não acompanho, dada a ausência de suporte factual e probatória a decisão que fez vencimento quanto à presença deste perigo.
Deste modo, o único perigo concreto que se mostra presente é o perigo de continuação da atividade criminosa.
Ivo Rosa
_______________________________________________________
1. Sobre a questão da fundamentação das decisões judiciais cfr., entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/01/2018 e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/05/2019 (acessíveis em www.dgsi.pt)