LIQUIDAÇÃO DA PENA
DESCONTO DO PERÍODO DE DETENÇÃO
Sumário

[Sumárioda inteira responsabilidade da relatora]
I. A prisão fixada em dias é contada considerando-se cada dia um período de 24 horas.
II. Caso o arguido tenha sido detido por um período inferior a 24 horas em dois dias diversos, para efeitos de desconto na pena em que foi condenado, tal período de detenção corresponde a um dia.
III. Isto significa que, nestes casos, o desconto de dois dias de detenção constitui uma clara violação do princípio da igualdade do art. 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Texto Integral

= Decisão Sumária =

I. Relatório
No processo sumário n.º 281/24.4PTPDL do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo Local Criminal de Ponta Delgada - Juiz 1, em que é arguido AA com os demais sinais nos autos, foi efectuada o seguinte cômputo de pena pela Sr.ª Juíza a quo, em virtude de não ter homologado a liquidação efectuada pelo Ministério Público, considerando que deviam ser descontados 2 (dois) dias de detenção e não apenas 1 (um) como proposto pelo Ministério Público.
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Não se conformando com a mencionada decisão, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
« 1ª O período de detenção anterior, sofrido pelo condenado, deve ser contado em horas e não em dias, para efeitos de desconto no cumprimento da pena que posteriormente lhe foi aplicada.
2ª Atendendo a que a detenção é sempre referida, no ordenamento jurídico processual penal português, em horas e não em dias – cf. artigos 254.º, n.º 1, 382.º, n.º 3, e 385.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal.
3ª E atendendo ainda ao disposto no art.º 479.º, n.º 1, al. c), do Cód. Proc. Penal, que assim se mostra violado pela decisão recorrida.
4ª Sendo certo que a contagem da detenção em dias originaria também graves situações de injustiça material.
5ª Não contendo o despacho recorrido qualquer fundamentação de direito que justifique a contagem do tempo de detenção em dias e não em horas.
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Deste modo, revogando tal decisão e substituindo-a por outra que homologue a liquidação da pena feita pelo Mº Pº, nos seus precisos termos, V. Ex.ªs farão a costumada Justiça.»
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Notificado para responder, o condenado nada disse.
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Após o exame preliminar do recurso em apreço, afigura-se-me que este deve ser julgado procedente, nos termos do art. 417.º, n.º 6, al. d) do CPP, por uniformização reiterada de entendimento (que também sufragamos).
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A liquidação de pena elaborada pelo Ministério Público, na parte que ora interessa, é a seguinte (transcrição):
«Liquidação da pena:
O condenado AA tem a cumprir nestes autos a pena de 10 meses de prisão.
Encontra-se preso ininterruptamente nestes autos desde 10/03/2025, tendo aqui sofrido um período de detenção anterior inferior a 24 horas, pelo que há a descontar 1 dia.
Assim, atinge:
- os 6 meses da pena em 09/09/2025 (6 meses e desconto de 1 dia no cumprimento da pena – cf. art.º 80.º do Cód. Penal);
- os dois terços da pena em 29/09/2025 (6 meses e 20 dias e desconto de 1 dia no cumprimento da pena – cf. art.º 80.º do Cód. Penal);
- o fim da pena em 09/01/2026 (10 meses e desconto de 1 dia no cumprimento da pena – cf. art.º 80.º do Cód. Penal).»
Por seu turno, reza assim o despacho em crise, na parte que ora interessa, (transcrição):
«Vi a liquidação da pena que antecede, com a qual não concordo, porquanto não subscrevo o entendimento exarado pela Digna Procuradora da República no que respeita ao período a descontar no que tange à detenção sofrida pelo condenado.
Na verdade, na liquidação da pena a fls. ... ..., foi considerado, para efeitos de desconto no cumprimento da pena, um dia de detenção, com o fundamento no facto de o condenado ter estado privado da liberdade por período inferior a 24 horas.
Foi seguido pela Digna Procuradora da República o entendimento de que, tendo-se prolongado a detenção por menos de 24 horas, apenas há a descontar um dia de detenção, ainda que a detenção tenha abrangido dois dias diferentes de calendário (como foi o caso, porquanto o arguido esteve privado da liberdade entre as 23h00 do dia 02/12/2024 e as 00H15 do dia 03/12/2024).
Não é este o meu entendimento.
Embora não desconheça jurisprudência em sentido contrário (como, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/03/2018, P. 53/16.0GDTVD.L1-9, in www.dgsi.pt, e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa proferidos nos processos n.º 28/20.4PGPDL e 130/18.2PGPDL, deste Juízo Local Criminal), entendo que se qualquer privação da liberdade num determinado dia, ainda que por minutos, não pode deixar de determinar o desconto de um dia de prisão, tal significa que se o agente se mantiver detido em dois dias de calendário, consecutivos ou não, ainda que o período de detenção seja, no total, inferior a 24 horas, devem ser descontados dois dias de prisão no cumprimento da pena aplicada (cfr., neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 2/12/2009, P. n.º 488/07.9GAVNG-A.P1, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18/10/2006, P. n.º 0644875, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/09/2018, P. 114/15.2PATVD-A.L1-5, todos in www.dgsi.pt, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/04/2021, proferido no P. n.º 397/19.9JAPDL.L1, não publicado).
Com efeito, se o condenado tivesse sido detido por uns minutos no dia 02/03/2024 e restituído à liberdade e novamente detido por minutos no dia 03/03/2024 e restituído à liberdade, haveria lugar ao desconto de dois dias de detenção (um relativo ao dia 02 e outro ao dia 03, mesmo que o período total de detenção não excedesse as 24 horas.
Assim sendo, no caso dos autos, entendo que deverá haverá lugar ao mesmo desconto de dois dias.
Em meu entendimento, esta é a solução que melhor se adequa à teleologia do artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal, que assenta na ideia básica segundo a qual privações de liberdade de qualquer tipo que o agente tenha sofrido em razão do facto ou factos que integram ou deveriam integrar o objecto de um processo penal, devem, por imperativos de justiça material, ser imputadas ou descontadas na pena a que, naquele processo, o agente venha a ser condenado” [Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Notícias Editorial, p. 297], privações de liberdade essas que abrangem a detenção.
Por conseguinte, tendo sido condenado na pena de 10 (dez) meses de prisão, estando preso ininterruptamente nestes autos desde 10/03/2025, tendo sofrido dois dias de detenção que devem ser descontados no cumprimento da pena e atendendo ao disposto no artigo 479.º, n.º 1, al. b), do C.P.P., o condenado atingirá:
- os 6 meses da pena em 08/09/2025;
- os dois terços da pena em 28/09/2025, e
- o fim da pena em 08/01/2026.
Em face do exposto, não homologo a liquidação da pena que antecede (fls. ... ...).»
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III. APRECIAÇÃO DO RECURSO
O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso do tribunal, cfr. arts. 402.º, 403.º, e 412.º, n.º 1, todos do CPP.
Assim, e vistas as conclusões do recurso, a única questão a decidir é:
- saber se, na liquidação da pena, o período de detenção sofrido pelo arguido deve ser contabilizado em dias ou em horas.
Desta feita, o que aqui está em causa é saber se o período que decorreu entre os dois momentos deve ser contabilizado, para efeitos de desconto na pena, como um dia – entendimento do recorrente – ou como dois dias de detenção – raciocínio seguido no despacho da Sr.ª Juiz a quo.
Ora, de acordo com o disposto no art. 80.º, n.º 2, do Código Penal (doravante CP), é patente que a referência aí feita reporta-se a dias e não a horas.
Já o art. 479.º, n.º 1, al. c) do CPP estabelece que “A prisão fixada em dias é contada considerando-se cada dia um período de vinte e quatro horas (sublinhado nosso).
Não há dúvida, assim, de que o arguido esteve sob detenção, neste processo durante 14 horas e 30 minutos (isto é, entre as 23h00m do dia 02.12.2024 e as 13h30m do dia 03.12.2024 – cfr. auto de participação e detenção sob a Ref.ª 65827431, de 02.12.2024), o que, a ocorrer em qualquer outro momento das 24 horas sem implicar mudança de calendário, daria inequivocamente lugar ao desconto de um dia na liquidação da pena de prisão, nos termos do citado art. 80.º, n.º 1 do CP.
Assim, a interrogação que se coloca, como se diz no o Ac. do TRG de 19.09.2023, referente ao processo n.º 422/20.0GAPTL-B.G1, publicado na página da internet https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRG:2023:422.20.0GAPTL.B.G1.5C/, que nos permitimos de transcrever já que traduz o nosso pensamento, é a de saber se:
«…altera de alguma forma a situação do arguido – dando lugar a dois dias de detenção em vez de um – a circunstância de ele ter ficado privado de liberdade num dia e ter cessado tal situação no dia seguinte, ainda que só tenha decorrido uma hora entre os dois momentos?».
No caso, quer nas motivações de recurso quer no despacho recorrido vem citada jurisprudência dos Tribunais da Relação em abono de cada entendimento.
E prossegue aquele supra citado aresto, dizendo, de forma absolutamente clara e translúcida, que «Quedando-nos pelo Tribunal da Relação de Lisboa (onde uma pesquisa na base de dados da DGSI demonstra ter sido aquele onde mais vezes esta questão foi apreciada), no acórdão de 11 de Setembro de 2018, citado no despacho recorrido, estava em causa a situação de uma arguida que foi detida às 22.08h de um dia, assim permanecendo até às 20.48h do dia seguinte. Aí se defende: “Como a unidade de tempo mais pequena prevista para a contagem da prisão é o dia, correspondente a um período de 24 horas (das 00 horas às 24 horas), tendo a supra mencionada arguida sido detida e libertada em dias diversos (dois), há que proceder ao desconto de dois dias, pois só assim, também a nosso ver, se interpretará devidamente a sobredita norma [o art. 479.º do Código de Processo Penal] e o direito constitucional à liberdade decorrente do Art.º 27º da C.R.P..”
Já o acórdão da mesma Relação invocado pelo Ministério Público nas alegações de recurso vai no sentido oposto, embora também parta da relevância do dia como unidade de tempo. Primeiro, esclarece: “Se a detenção se tiver prolongado por algumas horas, não chegando a atingir a marca das 24 horas, então terá de se considerar que essas horas suplementares se terão de integrar na mais pequena unidade temporal legalmente contemplada; isto é, que terão de se considerar como um dia de desconto”; mas depois acrescenta que “nada na lei aponta ou determina que as 00.00 horas de um dia tenham qualquer relevo ou efeito para o fim de apuramento dos dias de detenção. O que importa são o número de horas, a sua soma aritmética (que até pode resultar de períodos de detenção de algumas horas, em vários dias alternados…) e não a questão de saber se as mesmas decorreram na passagem horária da meia-noite”.
Aí se cita uma eloquente passagem de um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1 de Março de 2018: “Caso o arguido tenha sido detido por um período inferior a 24 horas em dois dias diversos, seguidos ou não, para efeitos de desconto na pena em que foi condenado, tal período de detenção corresponde a um dia”.
No sentido do entendimento defendido pelo recorrente, vai ainda, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de Setembro de 2011, caso em que o período de detenção em causa era ainda mais curto (9 minutos), tendo começado às 23h54m de um dia e terminado às 00h03m do dia seguinte. Aí se compara – o mesmo se podendo fazer com o caso destes autos – a injustiça relativa que constituiria descontar a esse arguido o período de dois dias de detenção, enquanto não se teria dúvidas em descontar apenas um se o mesmo arguido tivesse estado sob detenção nas restantes horas do dia (ou seja, entre as 00h03m e as 23h54m do mesmo dia). Perante os imperativos de justiça material que estão subjacentes ao art. 80.º do Código Penal, “parece afrontar esta mesma ideia o facto de alguém beneficiar de dois dias de desconto na prisão a cumprir quando o período de tempo de detenção que sofreu não foi além de nove minutos. E seguramente afronta a ideia de justiça relativa perante o exemplo, baseado no inverso quanto à hora de detenção e de libertação [apontado no mesmo acórdão]”…» (sublinhados nossos).
Isto significa que, aplicar no caso dos autos, o desconto de dois dias de detenção constituiria uma clara violação do princípio da igualdade do art. 13.º, n.º 1, da CRP.
Ou, como se diz no aresto a que temos aludido «Fazer depender de algo tão aleatório como a circunstância de, na medição convencional do tempo, o arguido ter passado a meia noite detido, para com isso o favorecer - descontando dois dias de detenção em vez de um -, em detrimento de outro que, até detido por mais tempo, o fosse dentro do mesmo dia de calendário, constituiria uma clara violação do princípio da igualdade do art. 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.»
Entende-se, por isso, assistir inteira razão ao recorrente, o que conduz, necessariamente, à revogação do despacho recorrido.
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IV. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos e em conformidade com o disposto no art. 417.º, n.º 6 al. d) do CPP, julgo procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogo o despacho recorrido na parte em que considerou dois dias de desconto na pena, em vez de um dia e homologo a liquidação da pena efectuada pelo Ministério Público elaborado na 1.ª instância.
Sem custas.
Notifique.
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Comunique, de imediato, à 1.ª instância.
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Marlene Fortuna