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LIBERDADE CONDICIONAL
MEIO DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Sumário
I - A liberdade condicional a meio da pena, não sendo de aplicação automática, deve restringir-se a situações com prognóstico unânime pelas pessoas que intervêm no acompanhamento da execução da pena, o que, ponderando os pareceres desfavoráveis do Conselho Técnico e do Ministério Público, não é o caso dos autos. II - O Tribunal deve ser prudente na avaliação da capacidade do condenado para compreender a oportunidade de ressocialização, não devendo correr riscos. A decisão de concessão da liberdade condicional quer-se segura e isenta de dúvidas. III - O recorrente, apesar de frequentar curso com assiduidade, carece ainda de evolução pessoal, mormente por não ter interiorizado o caráter danoso da conduta pela qual foi julgado e condenado. IV - Na verdade, o recorrente ainda não é capaz de assumir um juízo ético de censura pela prática dos crimes. Não se descortina como seja possível concluir que o condenado, uma vez posto em liberdade, a meio da pena, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem praticar crimes, nem que tal libertação seja compatível com a defesa da ordem e da paz social. Mantêm-se as exigências de prevenção especial e geral.
Texto Integral
Acordam as Juízas Desembargadoras da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
I. No Juízo de Execução de Penas de Lisboa, Juiz 7, foi proferida decisão, em 10.04.2025, que negou a concessão de liberdade condicional ao recluso AA
Do Recurso
II. Inconformado, recorreu o condenado AA, rematando a sua motivação com as formulando as seguintes conclusões (transcrição):
«I
A Sentença proferida pelo Tribunal a quo padece de nulidade por falta de fundamentação, nos termos dos artigos 97°, n.° 5, 374°, n.°2 e 379°, n.°1, alínea a) do C.P.P.
II
O Recluso atingiu os 1/2 de uma pena de 7 (sete) anos em que foi condenado em 14/03/2025, atingindo os 2/3 em 14/05/2026.
III
O Recluso é cidadão de nacionalidade ..., não tendo em Portugal família, motivo pelo qual não pode beneficiar de saídas precárias.
IV
Aqueles que lidam diariamente com o Recluso, que convivem com este, que se apercebem da sua personalidade e maneira de ser, referimo-nos, nomeadamente, ao responsável para a área do Tratamento Prisisonal votou favoravelmente a que lhe fosse concedida a liberdade condicional, conforme resulta da ata da Reunião do Conselho Técnico.
V
O Arguido nasceu em .../.../1982, tem atualmente 42 anos de idade;
VI
O Arguido nunca tinha cumprido qualquer pena de prisão.
VII
O Arguido pretende regressar ao seu país onde tem já uma proposta de trabalho como operador de máquina e cortador de ferro.
VIII
A liberdade condicional não é uma medida de clemência ou de recompensa de boa conduta, mas algo que visa criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o condenado possa reconhecer o sentimento de orientação social que se presume enfraquecido por causa da reclusão mas, necessariamente deve ser posto à prova caso a caso, até para o colocar perante si e o responsabilizar pelos seus actos e a gestão em liberdade dos mesmos.
IX
Não se afigura que no caso vertente, seja fundamento suficiente para negar a concessão da liberdade condicional que, no entendimento do Tribunal, o condenado desvalorize a gravidade do crime ou considere a pena excessiva, se dessa sua postura não resulta que há perigo de ele vir a cometer novos crimes.
X
No caso sub judice entende o Recluso que estavam reunidos todos o Requisitos para que o mesmo beneficiasse do regime de Liberdade Condicional.
XI
Assim, ao não conceder a Liberdade Condicional ao Recluso o Tribunal a quo violou os artigos 61°, n° 2 do Código Penal».
Da admissão do recurso
III. Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, em separado, e com efeito devolutivo
Da resposta
IV. Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
ü a decisão recorrida não concedeu a liberdade condicional ao ora recorrente, por referência ao meio da pena (atingido em 14.03.2025), estando em causa a prática dos crimes de contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento e uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos.
ü a decisão recorrida mostra-se devidamente fundamentada, fazendo uma acertada avaliação dos relatórios instrutórios, bem como das declarações prestadas pelo recorrente, não padece das irregularidades e/ou nulidades invocadas, não ocorrendo violação de qualquer preceito legal, nomeadamente dos artigos 32.º, n.º 5 e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 97.º, n.º 5, e 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, ou do artigo 61.º, nº 2, do Código Penal;
ü há que considerar as exigências de prevenção especial porquanto o condenado deve evoluir no sentido de interiorizar o significado da pena e a gravidade da sua conduta, de forma a não a repetir;
ü o recorrente está a cumprir pena pela prática de uma atividade criminosa muito grave, pelo que deve demonstrar um percurso prisional consolidado e revelador de que atingiu as diversas etapas do tratamento penitenciário;
ü têm particular relevância, no caso, as necessidades de prevenção geral a satisfazer, atenta a gravidade dos crimes cometidos, o número de vítimas afetado, os valores envolvidos e as suas repercussões ao nível da comunidade em geral, tornando-se necessário dissuadir a prática deste tipo de condutas e premente a reposição da confiança dos cidadãos no efeito tutelar das normas violadas;
ü a continuação da execução da pena impõe-se para que haja consolidação do efeito de pacificação, decorrente da tranquilização da consciência jurídica geral, iniciada com a imposição de sanção adequada;
ü assim, exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico impedem para já a liberdade, ainda que condicionada, a qual seria mal tolerada pela comunidade globalmente considerada;
ü a concessão da medida, antecipando a liberdade quando ainda faltam mais de 3 anos para o termo global das penas não seria compreendida pelo cidadão comum e afrontaria, sem dúvida, as finalidades que devem presidir à execução da pena de prisão, deixando sem tutela eficaz os bens jurídicos protegidos;
ü a decisão recorrida fez correta interpretação e aplicação do direito, mormente, do art. 61º n.ºs 2 als. a) e b) do Código Penal, pelo que deve ser mantida».
Do parecer nesta Relação
V. Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Públio que, aderindo à fundamentação do Ministério Público junto da primeira instância, emitiu parecer concluindo pela improcedência do recurso.
Da resposta ao parecer
VI. Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, nada foi acrescentado.
VII. Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
OBJETO DO RECURSO
O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar. Se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
1. Da nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação.
2. Da concessão de liberdade condicional ao recluso, com referência ao meio da pena que se encontra a cumprir.
DA DECISÃO RECORRIDA
Da decisão recorrida consta o seguinte (transcrição): «SENTENÇA I - Relatório
Foram instaurados os presentes autos com vista à eventual concessão de liberdade condicional ao condenado AA, já identificado nos autos, em reclusão no Estabelecimento Prisional de ....
O Conselho Técnico prestou os necessários esclarecimentos, mais tendo sido emitido parecer maioritariamente desfavorável à concessão de liberdade condicional, assim como o Ministério Público emitiu, posteriormente ao referido Conselho Técnico, parecer desfavorável à concessão de liberdade condicional.
Ouvido o recluso, em Auto de Declarações, após a realização do Conselho Técnico, o mesmo não requereu a produção de provas suplementares, autorizando a eventual colocação em liberdade condicional.
* II - Saneamento
O tribunal é competente, o processo é o próprio, não há nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
* III - Os Factos
Considerando a análise conjugada dos elementos existentes nos autos, em especial a certidão da decisão condenatória, o CRC, a ficha biográfica, o auto de audição do recluso, a acta da realização do conselho técnico, o parecer do Ministério Público, o parecer do Sr. Director do E.P., o relatório da DGRS e o relatório dos SEE do EP, pode dar-se como demonstrado o seguinte quadro factual:
1. Cumpre uma pena única de 7 anos de prisão, à ordem do processo nº 809/21.1PBCSC, pela prática dos crimes de contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento e uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos.
2. Atingiu metade da pena em execução em 14/03/2025, atingirá os dois terços em 14/05/2026, os cinco sextos em 14/07/2027 e o termo da pena está previsto para 14/09/2028.
3. Fora as condenações supra, o recluso foi julgado e condenado, em ..., pela prática de crimes “(…) contra a liberdade, dignidade e outros direitos protegidos das pessoas, incluindo o racismo e a xenofobia (…)”, sendo condenado em pena de prisão, suspensa na sua execução.
4. Tem registada 1 infracção disciplinar, de .../.../2023.
5. Não beneficiou de medidas de flexibilização da pena.
6. Cumpre a pena em regime comum.
7. O recluso assume a prática dos factos criminais, justificando-os com problemas financeiros decorrentes do facto de estar desempregado. Não obstante o facto de verbalizar sentimentos de arrependimento, não reconhece o dano da sua conduta para cada uma das vítimas, titulares dos cartões contrafeitos, assim como para as entidades bancárias lesadas. Tal atitude remete para défices de interiorização no que tange à gravidade do comportamento criminal e danos causados. Para além de considerar excessiva a condenação imposta, adota um discurso com enfoque nas repercussões nefastas da reclusão para si, pelo que, no nosso entender, subsistem necessidades de reinserção social ao nível pessoal, relacionadas com atitudes e reconhecimento das convenções sociais.
8. No E.P., frequenta curso EFA B1 Escolar com assiduidade.
9. No E.P. encontra-se laboralmente inativo.
10. No exterior conta com o apoio da sua esposa na .... Em liberdade perspectiva trabalhar na ... como ... e ...
11. Pretende retornar à ... quando libertado. IV- O Direito
1. O instituto da liberdade condicional assume “um carácter de última fase de execução da pena a que o delinquente foi condenado e, assim, a natureza jurídica – que ainda hoje continua a ser-lhe predominantemente assinalada – de um incidente (ou de uma medida) de execução da pena privativa de liberdade. O agente, uma vez cumprida parte da pena de prisão a que foi condenado (pelo menos metade em certos casos, dois terços noutros casos) vê recair sobre ele um juízo de prognose favorável sobre o seu comportamento futuro em liberdade, eventualmente condicionado pelo cumprimento de determinadas condições (…) que lhe são aplicadas. Foi, desta forma, uma finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização que conformou a intenção político-criminal básica da liberdade condicional desde o seu surgimento”1.
2. São pressupostos de natureza formal de tal instituto os seguintes:
a) O consentimento do condenado (artigo 61º, nº 1, do Código Penal, doravante CP), o que se verificou no caso concreto;
b) O cumprimento de pelo menos 1/2 da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas (artigos 61º, nºs 2, 3 e 4 e 63º, nº 2, do CP), o que também ocorre, já que o recluso cumpriu mais de ½ da pena de prisão.
3. São requisitos de ordem material:
a) O já referido juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado quando colocado em liberdade (als. a) e b), do artigo 61º, do CP), o qual assenta, de forma determinante, numa apreciação sobre a evolução da personalidade do condenado durante o tempo de execução da prisão (juízo atinente à prevenção especial positiva ou de ressocialização);
b) Um juízo de prognose favorável sobre o reflexo da libertação do condenado na sociedade (juízo atinente à prevenção geral positiva), ou seja, sobre o seu impacto nas exigências de ordem e paz social. V - Aplicação do Direito aos Factos
O recluso tem passado criminal sendo esta a sua 1ª reclusão.
Não beneficiou de Medidas de Flexibilização da Pena, L.S.J. ou L.C.D. o que importa no sentido de testar o seu comportamento, nomeadamente a sua adesão a comportamentos normativos, em liberdade (sendo certo que, tratando-se de cidadão estrageiro sem apoio em Portugal o não usufruto destas medidas não terá as consequências processuais que tem nas situações de regular cumprimento da pena por parte de cidadãos com família ou apoio em Portugal).
Tem um percurso disciplinar com 1 infracção disciplinar registada, de 2023.
Investiu na sua permanência no E.P. em termos escolares.
Demonstra pouca consciência crítica face aos factos por cuja prática foi condenado. Não demonstrou vontade/capacidade em alterar o seu percurso de vida.
O recluso revela uma personalidade imatura e impreparada para respeitar os comandos jurídico criminais que a vida da sociedade impõe, avultando uma fragilidade ao nível da interiorização da conduta criminal, sendo fraco o seu juízo crítico e, consequentemente, a sua motivação para a mudança, factores estes que não transmitem garantias suficientes de que aquele tenha criado os contraestímulos adequados à tendência criminosa e aptidão para se reinserir socialmente.
Verificam-se, assim, as apontadas necessidades de prevenção especial.
Por outro lado, entendemos que se evidenciam necessidades de prevenção geral, exigências de tutela do ordenamento jurídico concretizadas na reafirmação da validade e vigência da norma penal violada. O tempo de manutenção da reclusão não pode alhear-se do sentimento social de profunda reprovação que decorre da lesão dos bens jurídicos protegidos, pelo que a colocação na situação de liberdade condicional, neste momento, abalaria a confiança da consciência jurídica comunitária no seu sistema protetor de bens jurídico criminais e a pena deixaria de ter utilidade como instrumento de pacificação social.
Conforme refere, bem, o Digno Magistrado do Minitério Público no antecedente parecer:
“(…) Acresce que têm particular relevância, no caso, as necessidades de prevenção geral a satisfazer, atenta a gravidade dos crimes cometidos (levantamentos em caixas ATM, com utilização de cartões com gravação dos dados previamente capturados dos cartões usados em ATM pelos legítimos titulares), o número de vítimas afetado e os valores envolvidos (ascendendo o ganho ilegítimo obtido a dezenas de milhares de euros - cfr. tabela indicada no ponto 6 da matéria de facto provada do acórdão condenatório) e as repercussões ao nível da comunidade em geral, sendo necessário dissuadir a prática deste tipo de condutas e premente a reposição da confiança dos cidadãos no efeito tutelar das normas violadas. (…)”.
O cidadão comum não compreenderia o beneficio tão cedo da libertação, ainda que condicionada.
Concordamos assim com o Ministério Público e o Conselho Técnico, sendo ainda prematura a concessão da liberdade condicional. VI - Dispositivo
Em conformidade com as disposições legais supra referidas, decide-se não conceder ao condenado AA a liberdade condicional.
*
Notifique e comunique ao processo da condenação e à DGRS.
*
Renovação da instância em 1 ano (e 2/3 da pena em 14/05/2026), solicitando-se 60 dias antes a junção de relatórios, a juntar em 30 dias».
FUNDAMENTAÇÃO
1. Da nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação.
Sustenta o recorrente que a sentença é nula por falta de fundamentação, apelando aos artigos 374º e 379º do CPP.
Por imperativo constitucional, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei – cfr. artigo 205º da CRP.
Tal exigência constitucional permite, por um lado, possibilitar a sindicância das decisões judiciais e, por outro, convencer os destinatários e cidadãos em geral da sua correção e justiça e foi acolhido:
- no Código de Processo Penal, no seu artigo 97º, nº 5, que consagra o princípio geral que vigora sobre a fundamentação dos atos decisórios: "os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão";
- no Código de Processo Penal, no artº 374º, nº 2. Nos termos do artº 374º do CPP, sobre os requisitos da sentença, ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
E diz-nos o artº 379º, nº 1, al. a), do CPP, que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do artigo 374º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 389º-A e 391º-F.
Tendencialmente, qualquer ato decisório deve bastar-se a si mesmo, de modo a que aos seus destinatários não seja necessário consultar qualquer outra peça processual ou documento, sendo o grau de exigência de fundamentação mais elevado no caso da sentença, o que se compreende por ser o ato decisório por excelência, razão pela qual a falta de fundamentação fere de nulidade a mesma, conforme já se aludiu supra.
Quanto ao exame crítico das provas, o artigo 374º nº 2 do Código de Processo Penal impõe, a propósito do requisito da fundamentação, que a sentença mesma contenha a «exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
A apreciação da prova é livre, mas não pode ser arbitrária, tem de alicerçar-se num processo lógico-racional, de que resultem objetivados, à luz das máximas de experiência, do senso comum, de razoabilidade e dos conhecimentos técnicos e científicos, os motivos pelos quais o Tribunal valorou as provas naquele sentido e lhes atribuiu aquele significado global e não outro qualquer.
A omissão do exame crítico das provas importa a nulidade da sentença, nos termos do art. 379º, nº 1, al. a), do CPP.
De todo o modo, as nulidades do artº 379º do CPP, entre as quais a que resulta da falta de fundamentação (cfr. nº 1, al. a), do artº 379º e artº 374º, nº 2), são apenas para as sentenças ou acórdãos e já não para os despachos. Sobre esta questão, vide parágrafo 1 da anotação ao artigo 379º do CPP da autoria de José Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Coimbra, Almedina, 2023, págs. 808; vide ainda o acórdão desta 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 04.06.2024, relatora Alda Tomé Casimiro, processo 100/17.8T9ALQ-B.L1-5. E a decisão recorrida é isso mesmo: uma decisão, na forma de despacho e não de sentença, que não concedeu a liberdade condicional, pese embora a mesma se autointitule de sentença.
E só é causa de nulidade (no caso das sentenças) ou de irregularidade (no caso de despachos, aqui nos termos do artº 123º do CPP), a falta absoluta de fundamentação, não se verificando os apontados vícios perante uma fundamentação deficiente.
Como se lê na decisão recorrida, antes de se elencarem os factos de forma discriminada, justificou-se que esse juízo tem por base “a análise conjugada dos elementos existentes nos autos, em especial a certidão da decisão condenatória, o CRC, a ficha biográfica, o auto de audição do recluso, a acta da realização do conselho técnico, o parecer do Ministério Público, o parecer do Sr. Director do E.P., o relatório da DGRS e o relatório dos SEE do EP”.
A decisão recorrida está fundamentada, na medida em que elenca os factos provados e motiva a sua convicção de um modo tal que pode ser sindicada pelos seus destinatários e também por este Tribunal.
Improcede este segmento do recurso.
2. Da concessão de liberdade condicional ao recluso, com referência ao meio da pena que se encontra a cumprir.
A liberdade condicional constitui uma forma (a par da suspensão da execução ou do regime de prova) de execução da pena de prisão.
O instituto da liberdade condicional surgiu historicamente como uma providência que, procurando responder ao aumento significativo da reincidência observado no segundo quartel do século XIX, visava essencialmente promover a ressocialização de delinquentes condenados a penas de prisão de média ou de longa duração, através da sua libertação antecipada – uma vez cumprida, naturalmente, uma parte substancial daquelas – e deste modo, de uma sua gradual preparação para o reingresso na vida livre, assumindo a sua libertação condicional e antecipada, um caráter de última fase de execução da pena.
A decisão sobre a liberdade condicional deve ser encontrada sob pontos de vista exclusivamente preventivos, não comportando a possibilidade de atribuição de qualquer relevo ao grau de culpa do agente, afirmado anteriormente na determinação da medida concreta da pena.
Saliente-se, previamente, que, se a propósito da aplicação das penas, o artigo 40.º, nº 1, do CP, dispõe que estas visam a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, a propósito da execução das penas de prisão, preceitua o artigo 42.º, nº 1, do CP, que a execução da pena de prisão, servindo de defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, se deve orientar no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.
No caso em apreço, estamos perante a indagação sobre a verificação dos pressupostos previstos no artigo 61.º, n.º 2, do Código Penal, para a concessão de liberdade condicional ao meio da pena.
A liberdade condicional é um incidente da execução da pena de prisão, com acolhimento legal nos artigos 61.º a 64.º do Código Penal e 173.º a 188.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.
Lê-se no ponto 9 do preâmbulo do Código Penal que “definitivamente ultrapassada a sua compreensão como medida de clemência ou de recompensa por boa conduta, a libertação condicional serve, na política do Código, um objetivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.”
Diz-nos o artigo 61º do Código Penal, sobre pressupostos e duração da liberdade condicional, que:
1 - A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.
2 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes;
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
3 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.
4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena.
5 - Em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena.
6 - (Revogado.)»
Ou seja, a concessão de liberdade condicional, ao meio da pena, está dependente da verificação dos seguintes pressupostos:
- Que o recluso aceite ser libertado condicionalmente (n.º 1);
- Que o recluso tenha cumprido metade da pena e, no mínimo, 6 meses (n.º 2);
- Que exista a formulação de um juízo de prognose favorável, no sentido de que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, bem como que a libertação se revele compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social (n.º 2, als. a e b).
No caso em apreço, mostram-se verificados os dois primeiros pressupostos, de índole formal, e que se têm que ver com o consentimento do condenado e com o período de prisão já cumprido.
Contudo, não é isso que sucede no que concerne ao terceiro pressuposto, que é substancial ou material, e que assegura finalidades de prevenção especial e geral, a que acrescem as finalidades de execução das penas que, de acordo com o artigo 42º n.º 1 do Código Penal, consistem na proteção dos bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade.
Ora, a concessão da liberdade condicional mostra-se dependente da verificação cumulativa deste último pressuposto, que, no caso em apreço, o tribunal recorrido entendeu não estar verificado, com a seguinte fundamentação:
« O recluso tem passado criminal sendo esta a sua 1ª reclusão.
Não beneficiou de Medidas de Flexibilização da Pena, L.S.J. ou L.C.D. o que importa no sentido de testar o seu comportamento, nomeadamente a sua adesão a comportamentos normativos, em liberdade (sendo certo que, tratando-se de cidadão estrageiro sem apoio em Portugal o não usufruto destas medidas não terá as consequências processuais que tem nas situações de regular cumprimento da pena por parte de cidadãos com família ou apoio em Portugal).
Tem um percurso disciplinar com 1 infracção disciplinar registada, de 2023.
Investiu na sua permanência no E.P. em termos escolares.
Demonstra pouca consciência crítica face aos factos por cuja prática foi condenado. Não demonstrou vontade/capacidade em alterar o seu percurso de vida.
O recluso revela uma personalidade imatura e impreparada para respeitar os comandos jurídico criminais que a vida da sociedade impõe, avultando uma fragilidade ao nível da interiorização da conduta criminal, sendo fraco o seu juízo crítico e, consequentemente, a sua motivação para a mudança, factores estes que não transmitem garantias suficientes de que aquele tenha criado os contraestímulos adequados à tendência criminosa e aptidão para se reinserir socialmente.
Verificam-se, assim, as apontadas necessidades de prevenção especial.
Por outro lado, entendemos que se evidenciam necessidades de prevenção geral, exigências de tutela do ordenamento jurídico concretizadas na reafirmação da validade e vigência da norma penal violada. O tempo de manutenção da reclusão não pode alhear-se do sentimento social de profunda reprovação que decorre da lesão dos bens jurídicos protegidos, pelo que a colocação na situação de liberdade condicional, neste momento, abalaria a confiança da consciência jurídica comunitária no seu sistema protetor de bens jurídico criminais e a pena deixaria de ter utilidade como instrumento de pacificação social.
Conforme refere, bem, o Digno Magistrado do Minitério Público no antecedente parecer:
“(…) Acresce que têm particular relevância, no caso, as necessidades de prevenção geral a satisfazer, atenta a gravidade dos crimes cometidos (levantamentos em caixas ATM, com utilização de cartões com gravação dos dados previamente capturados dos cartões usados em ATM pelos legítimos titulares), o número de vítimas afetado e os valores envolvidos (ascendendo o ganho ilegítimo obtido a dezenas de milhares de euros - cfr. tabela indicada no ponto 6 da matéria de facto provada do acórdão condenatório) e as repercussões ao nível da comunidade em geral, sendo necessário dissuadir a prática deste tipo de condutas e premente a reposição da confiança dos cidadãos no efeito tutelar das normas violadas. (…)”.
O cidadão comum não compreenderia o beneficio tão cedo da libertação, ainda que condicionada.
Concordamos assim com o Ministério Público e o Conselho Técnico, sendo ainda prematura a concessão da liberdade condicional».
Significa isto que o recorrente carece ainda de evolução pessoal, mormente por não ter interiorizado o caráter danoso da conduta pela qual foi julgado e condenado.
E como refere a decisão recorrida, o condenado, estando em regime comum, ainda não beneficiou de medidas de flexibilização, o que é fundamental para se concluir pela efetiva motivação para a mudança, sendo necessario esse teste.
Justamente por isso, em sede de reunião do conselho técnico ocorrido em 03.04.2025, apenas a responsável para a área do tratamento penitenciário deu parecer favorável à concessão da liberdade condicional, tendo todos os demais membros emitido parecer desfavorável.
Todos os elementos do processo – relatório da DGRSP, parecer do Conselho Técnico e parecer do Ministério Público - apontam no sentido da decisão que veio a ser tomada, ou seja, a de não concessão da liberdade condicional.
O recorrente, apesar de frequentar curso com assiduidade, não assume a consequência danosa da sua conduta que motivou a sua condenação, pelo que não interiorizou ainda a gravidade dos atos que praticou.
Estando o condenado a cumprir uma pena de 7 anos de prisão, pela prática de crimes de contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento e uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos; tendo sido julgado e condenado, em ..., pela prática de crimes “(…) contra a liberdade, dignidade e outros direitos protegidos das pessoas, incluindo o racismo e a xenofobia (…)”, sendo condenado em pena de prisão, suspensa na sua execução; tendo registada uma infração disciplinar e mantendo fragilidades ao nível da capacidade de descentração e de empatia face às vítimas, não pode ser-lhe já concedida a liberdade condicional, por referência ao cumprimento de metade da pena.
Na verdade, o recorrente ainda não é capaz de assumir um juízo ético de censura pela prática dos crimes. Não se descortina como seja possível concluir que o condenado, uma vez posto em liberdade, a meio da pena, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem praticar crimes, nem que tal libertação seja compatível com a defesa da ordem e da paz social. Mantêm-se as exigências de prevenção especial e geral.
Nessa decorrência, e porque, no caso em análise, as exigências de prevenção geral são também elevadas, nos termos que constam da decisão recorrida, a concessão da medida, executada que se mostra apenas metade da pena, atingiria e beliscaria as finalidades que devem presidir à execução da pena de prisão, deixando sem tutela eficaz os bens jurídicos protegidos.
Por outro lado, a liberdade condicional a meio da pena, não sendo de aplicação automática, deve restringir-se a situações com prognóstico unânime pelas pessoas que intervêm no acompanhamento da execução da pena, o que, ponderando os pareceres desfavoráveis do Conselho Técnico e do Ministério Público, não é o caso dos autos.
O tribunal deve ser prudente na avaliação da capacidade do condenado para compreender a oportunidade de ressocialização, não devendo correr riscos. A decisão de concessão da liberdade condicional quer-se segura e isenta de dúvidas.
Como se lê no acórdão da Relação de Coimbra de 11.12.2024 (relatora Alcina da Costa Ribeiro, processo nº 549/21.TXCBR-G.L1, publicado na dgsi), “a liberdade condicional só pode ser concedida quando o decisor conclua que o recluso reúne as condições que, razoavelmente, criam a expectativa de que, uma vez colocado em liberdade, pautará a sua conduta conforme às normas sociais. Quando não seja possível expectar tal comportamento futuro, então a liberdade condicional deve ser negada”.
Aqui chegados, a libertação antecipada do recorrente, com referência ao meio da pena que vem cumprindo, não é ainda possível. O recorrente ainda tem um caminho a trilhar, mormente em sede do seu juízo crítico.
Em face do exposto, não estando verificados os pressupostos da concessão da liberdade condicional, desgnadamente os previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2, do artigo 61.º do Código Penal, há que manter a decisão de não concessão da liberdade condicional ao recorrente, a qual se estribou na observância dos legais pressupostos.
Improcede, destarte, o recurso.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, acordam as juízas desembargadoras deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto pelo condenado AA, confirmando a decisão recorrida.
Condena-se o recorrente nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça devida em 3 Ucs – artigo 513º do Código de Processo Penal.
Notifique.
O presente acórdão foi integralmente processado a computador e revisto pela signatária relatora, seguindo-se a nova ortografia excetuando na parte em que se transcreveu texto que não a acolheu, estando as assinaturas de todos os Juízes apostas eletronicamente – art. 94º, nº 2, do CPP.
Lisboa, 1 de julho de 2025
Ana Cristina Cardoso
Sandra Oliveira Pinto
Alexandra Veiga
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1. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 528.