Sumário:
I. No âmbito do incidente de suprimento do consentimento, a audição directa e pessoal do beneficiário por parte do juiz, prevista no art. 139.º, n.º 1, do Código Civil e art. 897.º, n.º 2, do CPC, representa a concretização de um princípio estruturante em que assenta o novo regime de acompanhamento dos maiores, o princípio da imediação.
II. A norma do art. 897.º, n.º 2, do CPC, de cariz imperativo veda ao juiz a possibilidade de prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, como um autêntico dever.
III. A perícia e outras diligências instrutórias já não se situam ao nível da imperatividade ou obrigatoriedade, mas antes no âmbito da conveniência ou oportunidade, mas sempre orientadas pelos princípios acima enunciados, sem perder de vista a natureza de jurisdição voluntária.
IV. Sem a realização de perícia médica e apenas com base nas suas declarações, não é possível afirmar, sem hesitações e com o necessário grau de certeza, que a requerida está no gozo pleno das suas capacidades de tal modo que é capaz de exercer, plena, pessoal e conscientemente os seus direitos ou cumprir os seus deveres no âmbito do processo de maior acompanhado, para poder dar o seu consentimento para o prosseguimento do mesmo, ou seja, de conduzir validamente o processo judicial.
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Apelação n.º 1056/25.9T8LLE.E1
(1.ª Secção Cível)
Relator: Filipe César Osório
1.º Adjunto: Elisabete Valente
2.º Adjunto: António Fernando Marques da Silva
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ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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I. RELATÓRIO
Processo Especial de Acompanhamento de Maior
INCIDENTE DE SUPRIMENTO DO CONSENTIMENTO
1. As partes
Requerente – AA
Requerida – BB
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2. Objecto do litígio – SUPRIMENTO DO CONSENTIMENTO NO ÂMBITO DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
O Requerente instaurou contra a Requerida o presente Processo Especial de Acompanhamento de Maior com Suprimento de Autorização da beneficiária onde pede seja decretado um regime de acompanhamento e apoio permanente à Beneficiária nos termos supra indicados, ao abrigo dos artigos 891.º e ss., do CPC, com os fundamentos que entendeu relevantes para o caso concreto.
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3. Foi proferido o seguinte despacho inicial [transcrição]:
Do incidente de suprimento de autorização
O Requerente não junta qualquer documento que comprove a alegada situação da beneficiária.
Com efeito, retira-se da petição que o Requerente alicerça o pedido de acompanhamento em “suposições” quanto ao estado de saúde de sua mãe, sendo que também resulta do ali alegado que a mesma foi representada por mandatário no âmbito de processo de inventário, ali nada tendo sido suscitado quanto à sua capacidade de exercício.
Assim, configurando o suprimento do consentimento um incidente, sendo os presentes de autos de jurisdição voluntária, podendo o tribunal realizar as diligências que entender necessárias para proferir a decisão que melhor sirva os interesses em causa (veja-se o Ac. TRL, de 02.07.2020, proc. 18153/18.0T8LSB-B.L1-6, disponível em www.dgsi.pt), com vista a apreciar e decidir se a beneficiária se encontra ou não em condições de prestar a sua autorização determino a sua audição e, bem assim, a inquirição de CC, com quem a mesma, alegadamente, reside, designando para o efeito o próximo dia 22 de Abril de 2025, pelas 12h00.
Notifique o Ilustre Mandatário, o Ministério Público e o próprio Requerente.
Cite a beneficiária, por contacto pessoal por oficial de justiça.
Notifique e convoque a filha da beneficiária, CC, melhor identificada no requerimento inicial, devendo a mesma diligenciar por assegurar a comparência de sua mãe.
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4. A beneficiária apresentou Contestação onde impugna os factos que lhe são imputados e apresenta a sua versão dos mesmos concluindo a pedir a improcedência do pedido do Requerente.
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5. Em 22 de abril de 2025 foi ouvida a beneficiária, ora Requerida e dispensada a inquirição de CC, consignando-se em acta, para além do mais, o seguinte:
“De imediato a Mm.ª Juiz passou à audição da beneficiária que decorreu da seguinte forma:
Questionada para dizer o nome, disse BB.
Questionada para dizer quantos anos tem, disse 87 anos.
Questionada para dizer o dia do aniversário disse ...-....
Questionada para dizer onde reside, disse em Local 1 há cerca de 2 ou 3 anos e que mora com a filha que se chama CC.
Questionada para dizer se sabe porque foi chamada a vir ao Tribunal, disse que sim, porque o filho quer que ela vá viver com ele ou que vá para um lar.
Questionada para dizer que dia é hoje, disse 19 de abril não soube dizer o ano, porque estava nervosa, mas que a Páscoa foi há 2 ou 3 dias.
Questionada para dizer se tem netos disse que sim, que a filha tem dois filhos.
Disse ainda que reside com a filha, e que já não pode fazer esforços porque foi operada ao coração, e por isso tem que tomar medicação e que tem um pacemaker.
Disse ainda que tem uma senhora que fica com ela quando a filha tem que se ausentar.
Disse que gosta de viver com a filha, porque cuida bem dela, dá-lhe a medicação que o médico receita e vai sempre com ela às consultas.
Declarou não dar autorização para o processo prosseguir.
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Seguidamente, a Mm.ª Juiz deu a palavra aos Ilustres Mandatários presentes que usaram da palavra para o efeito, e à Exmª. Senhora Procuradora da República, que declarou nada ter a requerer.
Depoimento gravado em suporte digital com duração de 23 minutos e 05 segundos.
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Seguidamente, pela Mmª. Juiz foi proferido o seguinte:
DESPACHO
Considerando o objeto do presente incidente, tendo-se procedido à audição da beneficiária e em face das declarações da mesma, o Tribunal entende que não se mostra necessária a produção de quaisquer outras provas, por conseguinte dispense a filha CC, que havia sido convocada para ser inquirida.
Notifique.
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Seguidamente, a Mm.ª Juiz deu a palavra aos Ilustres Mandatários presentes que declaram nada ter a requerer, e à Exmª. Senhora Procuradora da República que, no uso da palavra, alegou sustentando não estarem reunidos os pressupostos para o suprimento do consentimento.
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Seguidamente, pela Mmª. Juiz foi proferido o seguinte:
DESPACHO
Oportunamente abra conclusão dos autos para que seja proferida decisão”.
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6. Sentença em Primeira Instância:
Foi proferida sentença em primeira instância com o seguinte dispositivo [transcrição]:
«INCIDENTE DE SUPRIMENTO DA AUTORIZAÇÃO
AA instaurou a presente acção de acompanhamento de maior com vista a serem definidas medidas de acompanhamento a sua mãe BB, sem dispor de autorização da mesma e requerendo o seu suprimento.
Alegou que a mãe reside com a irmã, que não tem qualquer contacto com as mesmas e que suspeita que a mãe já não estará nas suas faculdades mentais, apresentando lapsos de memória e discurso confuso, sendo que não reconhece as pessoas, porquanto acenou-lhe e a mesma não teve qualquer tipo de reacção.
Mais alega que a mesma se encontra incapaz de entender e manifestar a sua vontade, requerendo o suprimento da sua autorização para intentar a presente acção.
O Requerente não juntou qualquer documento ou informação clínica que ateste o estado de saúde da beneficiária e a impossibilidade de esta dar, de forma livre e consciente, a necessária autorização.
Ora, conforme decorre do artigo 141.º do Código Civil, podem instaurar a acção especial de acompanhamento de maior: o próprio beneficiário (alínea a); o cônjuge ou unido de facto deste ou a qualquer seu parente sucessível, desde que autorizados por aquele (alínea b) e o Ministério Público, independentemente dessa autorização (alínea c).
No que concerne aos parentes sucessíveis do beneficiário (como é o caso dos autos), a autorização deste pode ser suprida pelo tribunal quando, em face das circunstâncias, o beneficiário não a possa dar, de forma livre e consciente, ou ainda quando existir um outro fundamento atendível, devendo em tais circunstâncias esse pedido de suprimento ser formulado aquando da instauração da acção e em cumulação com o pedido de acompanhamento nela requerido (arts. 141.º, n.ºs 2 e 3 do CC e 892.º, n.º2 do CPC).
Ora, no caso dos autos, apesar de o Requerente não ter alegado factos concretos, mas apenas suspeitas, nem ter procedido à junção de qualquer documento quanto ao estado clínico da beneficiária, que justifique, sem mais, o suprimento da sua autorização, considerando que o objectivo único deste tipo de acções é a salvaguarda e a defesa dos interesses desta, entendeu o Tribunal que se impunha a sua audição, o que determinou oficiosamente.
Assim, e com vista a aferir da existência de fundamento atendível para suprimento da respectiva autorização, procedeu-se à audição da Requerida/beneficiária, a qual constituiu mandatário e apresentou Contestação.
E, atentos os elementos existentes nos autos, o princípio da imediação e as declarações da beneficiária, com relevo para a decisão deste incidente, apurou-se:
1- A beneficiária nasceu no dia ... de ... de 1938.
2- Deambula pelos seus próprios pés e tem uma apresentação cuidada.
3 - Mostra-se orientada na sua pessoa, no tempo e no espaço.
4 - Compreende o que lhe é solicitado.
5- Apresenta um discurso lúcido e coerente, não aparentando qualquer alteração de memória ou das suas faculdades mentais.
6- Sabe identificar os seus familiares.
7- Após ter sido citada para os termos deste incidente, constituiu mandatário e contestou.
8- Tem noção das suas necessidades básicas.
9 -Recusa qualquer contacto ou proximidade com o Requerente, seu filho.
10- Reside com a filha, CC, que lhe presta todos cuidados que necessita e sendo sua vontade que assim continue.
11- Compreende o objecto da presente acção.
12- Recusa dar autorização para o prosseguimento da acção.
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O Ministério Público promoveu o indeferimento do suprimento da autorização.
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Cumpre apreciar e decidir.
A Lei n.º 49/2018, de 14.02, criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os tradicionais institutos da interdição e da inabilitação. Essa Lei introduziu uma mudança de paradigma e uma nova filosofia no estatuto das pessoas portadoras de incapacidade, o qual passou a centrar-se exclusivamente na defesa dos interesses das mesmas, quer ao nível pessoal, quer ao nível patrimonial, reduzindo a intervenção ao mínimo possível, isto é, ao necessário e suficiente de molde a garantir, sempre que possível, a autodeterminação e a capacidade da pessoa maior incapacitada.
Este novo paradigma trouxe grandes modificações na ordem jurídica, quer em termos substantivos, quer em termos processuais.
O decretamento de uma medida de acompanhamento terá que decorrer de uma impossibilidade suficientemente forte e não meramente indiciária de uma pessoa maior encontrar-se de modo pleno, pessoal e consciente impedida de exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres no âmbito da sua capacidade jurídica e relativamente aos seus interesses pessoais (130.º; 138.º Código Civil). Para o efeito, o tribunal deve partir da presunção de que toda a pessoa adulta está habilitada a governar a sua pessoa e os seus bens, tendo as medidas de acompanhamento um carácter excepcional, de acordo com o princípio da intervenção mínima no âmbito da restrição dos direitos fundamentais (18.º, n.º 2 Constituição).
Deste modo, uma medida de acompanhamento de uma pessoa maior só se justifica quando esta revelar uma inaptidão básica para autogovernar e autodeterminar a sua vida, tanto pessoal, como patrimonial, existindo factores que, de um modo global ou particular, reduzem ou eliminam a voluntariedade e consciência dos seus actos, em função dos seus juízos de capacidade, os quais devem ser aferidos em concreto e não em abstracto. Assim, sempre que uma pessoa tenha a capacidade mental mínima para tomar decisões racionais e desempenhar tarefas como um agente racional, não se justifica qualquer medida limitadora da sua capacidade jurídica, podendo até serem implementadas outras medidas de apoio, mas fora do âmbito do acompanhamento legal, como a assistência pessoal, os cuidados informais ou o acolhimento familiar.
Por outro lado, as medidas de acompanhamento devem ser sujeitas a um teste de proporcionalidade, determinando-se em concreto o que é necessário, adequado e na justa medida para preservar os interesses legítimos da pessoa acompanhada e não de qualquer outra (145.º, n.º 1 Código Civil) – como sejam os interesses patrimoniais de terceiros, inclusivamente de familiares.
E, entre as alterações processuais introduzidas encontra-se aquela referente à legitimidade para requerer este tipo de processos especiais.
Conforme já supra referido, sendo intentada por parente sucessível, como é o caso dos autos, o mesmo deve estar munido de autorização do beneficiário ou requerer o suprimento da mesma no caso de este não esta em condições de a prestar.
Ora, os factos apurados permitem concluir que a Requerida se mostra capacitada para, querendo, de forma livre e consciente, dar a sua autorização para a presente acção, não se justificando nem sendo legalmente possível o seu prosseguimento contra a sua vontade, uma vez que declarou expressamente não o dar, sob pena de violação do seu direito à liberdade e autodeterminação (art. 26.º do CRP).
Assim, em face do exposto, indefere-se o pedido de suprimento de autorização da beneficiária.
E, uma vez que não se encontra munido da necessária autorização (sendo que a Requerida/beneficiária também declarou expressamente não a dar), o Requerente carece de legitimidade para intentar e fazer prosseguir a presente acção, e, consequentemente, absolve-se a Requerida/beneficiária da instância (arts. 141.º, n.º1, 141.º, n.º2, a contrario, do Código Civil e arts. 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea e), 578.º, todos do Código de Processo Civil).
(…)».
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7. Recurso de apelação do Requerente:
O Requerente interpôs recurso de apelação da sentença pedindo a revogação da decisão recorrida, com as legais consequências, nomeadamente a realização de perícia médico-psiquiátrica à beneficiária e o prosseguimento dos autos para apreciação do mérito do pedido de acompanhamento, com as seguintes conclusões [transcrição]:
«1.- O presente recurso tem por objeto a decisão que indeferiu o pedido de suprimento de autorização da beneficiária para a propositura de ação de acompanhamento de maior, absolvendo a mesma da instância.
2.- Tal decisão assenta exclusivamente na impressão subjetiva colhida pelo Tribunal durante a audição informal da beneficiária, sem que tenha sido ordenada a realização de qualquer perícia médico-psiquiátrica, não obstante a evidente controvérsia quanto ao seu estado de saúde mental.
3.- A beneficiária, com 87 anos de idade, demonstrou, durante a diligência de audição, múltiplos sinais de desorientação, dificuldades de memória, confusão temporal e dependência funcional da filha com quem reside, circunstâncias que, de forma objetiva, impunham a realização de perícia especializada.
4.- A ausência de perícia médico-psiquiátrica traduz-se numa insuficiência de instrução da causa, violando o princípio da descoberta da verdade material e o dever de averiguação oficiosa do Tribunal, nos termos do artigo 411.º do CPC e do regime especial do acompanhamento de maior (artigos 138.º e 140.º do Código Civil; artigos 891.º, n.º 2, 897.º e 986.º, n.º 1 do CPC).
5.- A convicção do Tribunal fundou-se em factos dados como provados sem o devido suporte técnico e sem a realização de diligências essenciais para aferir a capacidade da beneficiária para emitir vontade livre e esclarecida, o que é particularmente grave tratando-se de um processo de jurisdição voluntária com finalidade protetiva.
6.- O Tribunal desconsiderou a possibilidade de que a vontade expressa pela beneficiária se encontrasse condicionada por influência ou dependência da filha com quem reside, não tendo ponderado os indícios objetivos de vulnerabilidade, isolamento relacional e falta de autonomia revelados no seu discurso.
7.- Afigura-se violado o princípio da proporcionalidade na restrição dos direitos fundamentais da beneficiária, bem como o princípio da intervenção mínima, na medida em que se inviabilizou liminarmente a apreciação do mérito da ação de acompanhamento sem prévia averiguação técnico-científica sobre a real capacidade da mesma.
8.- O suprimento judicial da autorização está legalmente previsto para situações em que o beneficiário não a possa prestar de forma livre e consciente ou por outro fundamento atendível (art. 141.º, n.º 2 do Código Civil), cabendo ao Tribunal diligenciar no sentido do apuramento rigoroso dessa condição, o que manifestamente não sucedeu.
9.- Ao decidir sem perícia e com base em elementos subjetivos, o Tribunal violou o disposto nos artigos 138.º, 139.º e 140.º do Código Civil, bem como os artigos 411.º, 891.º, 897.º e 986.º do CPC, comprometendo a justa composição do litígio e a proteção dos interesses da beneficiária».
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8. Resposta
A Requerida/Beneficiária apresentou contra-alegações onde conclui do seguinte modo [transcrição]:
«1. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença indeferiu o pedido de suprimento de autorização da beneficiária e, consequentemente, absolveu a Requerida/beneficiária da instância (arts. 141.º, n.º1, 141.º, n.º2, a contrario, do Código Civil e arts. 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea e), 578.º, todos do Código de Processo Civil).
2. O interesse do Recorrente prende-se não com o bem estar físico e mental da Recorrida – até porque em mais de uma década este nunca o preocupou – mas apenas com o desfecho do processo de Inventário n.º 4485/21.3..., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de Vila Nova de Famalicão – Juiz 3.
3. Foi o Recorrente que deu o impulso processual que originou os presentes autos, incorrendo sobre este o ónus de prova e alegação. Apesar disso, o Recorrente não apresentou qualquer prova relativamente aos “factos” que este alegou, não escondendo nunca que tais “factos”, não passavam de presunções.
4. Apesar dos vícios claros que feriam de nulidade a Petição Inicial do Recorrente, que podiam inclusive ditar a rejeição liminar da mesma, decidiu – Bem! – o Tribunal a quo iniciar o incidente de suprimento de consentimento da Requerida (ora Recorrida).
5. Resultou do seu depoimento que a Recorrida se encontra com faculdades para discernir sobre o seu futuro, bem como é capaz de gerir o seu património e quando instada para o efeito, afirmou não prestar o seu consentimento para o prosseguimento dos autos.
Acresce que,
6. Para que um Recurso que assente na matéria de facto seja atendível, não basta ao Recorrente fazer a sua interpretação do depoimento da Requerida (ora Recorrida), tecendo as suas conclusões com base nessa enviesada interpretação. – Vide a este respeito o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09/02/2023, com o n.º de Processo 4390/22.6T8GMR.G1, disponível em dgsi.pt
7. Não se vislumbrando fundamentos de facto ou direito para alterar a decisão Recorrida.
8. Muito bem andou o douto Tribunal a quo ao decidir como decidiu, devendo tal entendimento ser mantido na íntegra.
9. Salvo melhor opinião, este entendimento do Recorrente carece em absoluto de qualquer sentido e razão.
10. Por conseguinte, em face do exposto, a douta decisão recorrida não merece qualquer reparo, devendo manter-se nos seus precisos termos.».
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9. Admissão do recurso
O tribunal a quo admitiu o recurso.
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10. Objecto do recurso – questão a decidir:
– Saber se era necessária a realização de perícia médico-psiquiátrica.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
11. Os factos são aqueles que constam do relatório supra.
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12. Enquadramento jurídico – Saber se era necessária a realização de perícia médico-psiquiátrica:
12.1. O Regime Jurídico do maior acompanhado foi criado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, que veio reformar a disciplina das incapacidades dos maiores, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, introduzindo modificações ao Código Civil e estabeleceu critérios de orientação no regime da incapacidade de exercício de adultos.
O modelo de protecção da pessoa maior vulnerável orienta-se essencialmente pelos princípios estruturantes, substantivos e processuais, seguintes (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/06/20221, Henrique Antunes, proc. n.º 289/21.1T8CVL.C1, www.dgsi.pt):
«- Unidade: a tutela da pessoa incapaz é instrumentalizada através de um único instituto jurídico: o maior acompanhado, recusando-se, na definição dos seus pressupostos ou da consequência que se deve associar à incapacidade, qualquer efeito estigmatizante (art.º 138.º do Código Civil);
- Proporcionalidade: a intervenção é limitada ao mínimo essencial, preservando em toda a extensão possível a capacidade de autodeterminação que a pessoa ainda titula, apenas se admitindo a representação – substituição - nos casos em que a pessoa incapaz não disponha da competência para formar a sua vontade ou para a exteriorizar. A pessoa é apoiada, de modo a que possa manifestar a sua vontade com a ajuda de outrem, orientado, objetiva e subjetivamente, pela defesa da autonomia e dos interesses do acompanhado. A intervenção orienta-se pelo princípio da capacidade e não pelo princípio contrário - o da incapacidade (art.ºs 145.º, n.º 1, e 147.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).
- Subsidiariedade: o acompanhamento é a ultima ratio da intervenção, sendo admitido apenas nos casos em que os seus objetivos não possam ser adequadamente prosseguidos pela simples atuação de deveres de assistência e cooperação decorrentes de outras situações jurídicas, como, v.g., do casamento
- deveres conjugais - ou da relação de parentalidade - deveres parentais ou filiais (art.º 140.º, n.º 2 do Código Civil);
- Necessidade: o conteúdo do acompanhamento é determinado pelo concreto grau de incapacidade de que o acompanhado é portador, devendo a sentença que o decreta, definir com precisão o âmbito do acompanhamento, sem vinculação ao que tiver sido pedido. O apoio na tomada de decisões é variável, na forma e na intensidade, de modo a corresponder às concretas necessidades da pessoa que dele necessita (artº 145.º, nº 2 do Código Civil).
- Revisibilidade: por aplicação de um princípio de contingência, o acompanhamento é submetido a um princípio injuntivo de revisibilidade, visando adequá-lo, em cada momento, à situação da pessoa incapaz, aumentando ou diminuindo a intensidade da intervenção, ou no limite, fazendo-a cessar (art.º s 149.º, nº 1, e 155.º do Código Civil).
- Centralidade pessoal: o acompanhamento toma como centro de gravidade a pessoa e a vontade do acompanhado, a promoção do bem-estar e a recuperação da pessoa incapaz, sendo ordenado pelo fundamento final da sua capacitação (art.º 140.º, nº 1, do Código Civil).
- Controlabilidade: a atuação do acompanhante é submetida a um controlo jurisdicional – do juiz e do Ministério Público - mais intenso, exigindo-se a intervenção do tribunal sempre que esteja em causa atos de particular importância ou os interesses do acompanhante e do acompanhado se mostrem conflituantes (art.º 150º, nº 3, do Código Civil).
- Autonomia: o acompanhamento é construído como um benefício e não como uma sujeição, apenas sendo admitido a pedido ou com autorização da pessoa limitada na sua capacidade, que também é admitida a pedir a sua cessação; sendo o acompanhamento pedido por terceiros, exige-se o prévio suprimento do consentimento da pessoa requerida, só se admitindo a continuação do procedimento caso se conclua pelo carácter injustificado da recusa, por aquela, do consentimento (art.º 141.º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
- Integração: o instituto do acompanhamento é conjugado com o mandato com vista ao acompanhamento – instituto cuja admissibilidade deixa de ser controversa – assegurando-se a sua livre revogabilidade e, no caso de ser decretado o acompanhamento, a verificação de que não foi sugerido ou extorquido à pessoa incapaz, tomando-o em consideração na definição do conteúdo do acompanhamento e na designação da pessoa do acompanhante (art.º 156.º, n.ºs 1 a 4, do Código Civil).
- Flexibilidade procedimental: o decretamento do acompanhamento ocorre no contexto de um processo que, em termos substanciais, é de jurisdição voluntária, com a consequente atribuição ao tribunal de largos poderes inquisitórios e instrutórios e da possibilidade de adotar a providência que melhor se adeque à situação jurídica da pessoa incapaz (artºs 891, nº 1 e 897, nº 1, do CPC e 145.º, n.º 1, proémio, do Código Civil)».
Estes princípios são essenciais para se poder compreender o nível de tutela que a lei pretende conceder com o regime do maior acompanhado, enquanto realização infraconstitucional das liberdades e direitos da pessoa maior vulnerável, sem perder de vista a este propósito a Convenção de Nova Iorque de 2007 (Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência) e o respetivo Protocolo Adicional,e a Recomendação do Conselho da Europa n.º R (99), do Conselho da Europa, adoptada pelo Comité de Ministros de 23 de Fevereiro de 1999.
Nesta sequência, “O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.” – cfr. art. 140.º, n.º 1, do CPC.
Então, o acompanhamento de maior só é decretado se estiverem preenchidas duas condições, sendo uma positiva: tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e para aplicar uma das medidas enumeradas no artigo 145.º, do Código Civil, e uma condição negativa: o tribunal não deve decretar aquela medida se os deveres de cooperação e assistência forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.
Como corolário do princípio da autonomia, acima enunciado, o acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público. (cfr. art.º 141.º, n.º 1, do Código Civil).
O tribunal pode ainda suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível (cfr. art. 141.º, n.º 2, do Código Civil).
Compete assim ao tribunal controlar se existe justificação para suprir a falta de autorização do beneficiário.
A propósito da legitimidade activa, Miguel Teixeira de Sousa entende o seguinte:
«A hipótese em que o acompanhamento é requerido pelo cônjuge ou unido de facto ou por um parente sucessível do beneficiário merece alguma atenção. Antes de mais, importa ter presente que a autorização concedida pelo beneficiário ao cônjuge, ao unido de facto ou ao parente sucessível nada tem a ver com uma autorização para o representar na acção. O cônjuge, o unido de facto e o parente sucessível não vão actuar como representantes, mas antes como partes, isto é, como requerentes do processo de acompanhamento de maiores. A situação não é, assim de representação, mas de substituição processual voluntária: o beneficiário é a parte substituída e o cônjuge, o unido de facto ou o parente sucessível a parte substituta.
Sendo junta ao processo a autorização do beneficiário, cabe ao tribunal a importante tarefa de verificar se esse beneficiário está em condições de a conceder ao seu cônjuge ou unido de facto ou ao seu parente.
Trata-se de um importante controlo que o tribunal deve realizar de forma tão minuciosa quanto possível, dado que não se pode partir do princípio nem que o autorizante está em condições de conceder a autorização, nem de que esse autorizante estando em condições de o fazer, quis efectivamente conceder essa autorização.
Os poderes inquisitórios que são atribuídos ao tribunal em matéria de facto e de prova pela remissão constante do artigo 891.º, n.º 1, [CPC] para o regime dos processos de jurisdição voluntária podem ser aqui muito relevantes.
(…)
Isto significa que cabe sempre ao tribunal controlar se se justifica suprir a falta de autorização do beneficiário.
Repete-se aqui o que acima se disse sobre o controlo da concessão de autorização: também o suprimento da falta de autorização do eventual beneficiário deve ser cuidadosamente ponderado pelo tribunal, dado que não é justificável partir do princípio nem de que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização» («O regime de acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais», AA.VV., O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Centro de Estudos Judiciários – Coleção Formação Contínua, 2019: 47) [sublinhado nosso]».
Miguel Teixeira de Sousa, O regime de acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais», AA.VV., O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, cit., pág. 48. (citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/06/20222, Henrique Antunes, proc. n.º 289/21.1T8CVL.C1, www.dgsi.pt).
O tribunal deve recusar o suprimento se, em face das provas produzidas, se dever concluir, sem hesitação, que o beneficiário dispõe da capacidade para conceder a autorização ao requerente e que não existe motivo ponderoso para aquele suprimento.
O processo especial de acompanhamento de maior está regulado nos artigos 891.º e ss., do CPC.
No âmbito do incidente de suprimento do consentimento, a audição directa e pessoal do beneficiário por parte do juiz, prevista no art. 139º/1 CC e art. 897º/2 CPC, representa a concretização de um princípio estruturante em que assenta o novo regime de acompanhamento dos maiores, o princípio da imediação. E a norma do art. 897º/2 CPC de cariz imperativo veda ao juiz a possibilidade de prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, como um autêntico dever – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/09/20203 (Ana Paula Amorim, proc. n.º 16021/19.7T8PRT.P1, www.dgsi.pt).
Já a perícia (cfr. art. 899.º, do CPC) e outras diligências instrutórias já não se situam ao nível da imperatividade ou obrigatoriedade, mas antes no âmbito da conveniência ou oportunidade, mas sempre orientadas pelos princípios acima enunciados, sem perder de vista a natureza de jurisdição voluntária.
Neste sentido, vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 11/12/20194 (Laurinda Gemas, proc. n.º 5287/18.0T8FNC.L1-2, www.dgsi.pt): «II- No processo especial de interdição, o legislador considerava o exame pericial indispensável e o interrogatório do Requerido “dispensável”; no atual processo acompanhamento de maior, passa-se exatamente o contrário, sendo imprescindível a audição pessoal e direta do Beneficiário, devendo o exame pericial ser determinado pelo juiz quando o considere conveniente.».
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12.2. Feito este enquadramento para uma melhor compreensão dos mecanismos onde se move o presente incidente de suprimento do consentimento, importa atentar que no caso concreto em apreciação o Requerente, ora Apelante, insurge-se essencialmente contra a circunstância de a decisão que indeferiu o pedido de suprimento de autorização da beneficiária se assentar exclusivamente na “impressão subjetiva colhida pelo Tribunal durante a audição informal da beneficiária, sem que tenha sido ordenada a realização de qualquer perícia médico-psiquiátrica, não obstante a evidente controvérsia quanto ao seu estado de saúde mental”, não obstante, considerou ainda que a beneficiária demonstrou, durante a realização da diligência de audição, múltiplos sinais de desorientação, dificuldades de memória, confusão temporal e dependência funcional da filha com quem reside, circunstâncias que, de forma objetiva, impunham a realização de perícia especializada e por isso “A ausência de perícia médico-psiquiátrica traduz-se numa insuficiência de instrução da causa, violando o princípio da descoberta da verdade material e o dever de averiguação oficiosa do Tribunal, nos termos do artigo 411.º do CPC e do regime especial do acompanhamento de maior (artigos 138.º e 140.º do Código Civil; artigos 891.º, n.º 2, 897.º e 986.º, n.º 1 do CPC)”.
Entende ainda o Apelante que “O suprimento judicial da autorização está legalmente previsto para situações em que o beneficiário não a possa prestar de forma livre e consciente ou por outro fundamento atendível (art. 141.º, n.º 2 do Código Civil), cabendo ao Tribunal diligenciar no sentido do apuramento rigoroso dessa condição, o que manifestamente não sucedeu”, bem como, que “Ao decidir sem perícia e com base em elementos subjetivos, o Tribunal violou o disposto nos artigos 138.º, 139.º e 140.º do Código Civil, bem como os artigos 411.º, 891.º, 897.º e 986.º do CPC, comprometendo a justa composição do litígio e a proteção dos interesses da beneficiária”.
Em contraponto, a beneficiária discorda desse entendimento – embora se deva salientar que a manifestação nos autos da sua posição (a beneficiária constituiu mandatário forense) terá um valor algo relativo, pois implicaria admitir que está nas suas plenas capacidades de entender e compreender o alcance dos presentes autos, que é precisamente o que está em causa apurar no presente incidente.
Já vimos que no caso concreto em apreciação, foi realizada a diligência imperativa de audição da requerida/beneficiária, como resulta acima da transcrição da respectiva acta.
Resta apurar se, em face dos elementos que resultam dos autos e das declarações prestadas pela requerida/beneficiária se impunha a realização de perícia.
A sentença recorrida considerou suficientes as declarações da requerida para concluir pelo indeferimento do suprimento do consentimento.
Com efeito, na decisão recorrida consideraram-se os seguintes factos:
«1- A beneficiária nasceu no dia ... de ... de 1938.
2- Deambula pelos seus próprios pés e tem uma apresentação cuidada.
3 - Mostra-se orientada na sua pessoa, no tempo e no espaço.
4 - Compreende o que lhe é solicitado.
5- Apresenta um discurso lúcido e coerente, não aparentando qualquer alteração de memória ou das suas faculdades mentais.
6- Sabe identificar os seus familiares.
7- Após ter sido citada para os termos deste incidente, constituiu mandatário e contestou.
8- Tem noção das suas necessidades básicas.
9 -Recusa qualquer contacto ou proximidade com o Requerente, seu filho.
10- Reside com a filha, CC, que lhe presta todos cuidados que necessita e sendo sua vontade que assim continue.
11- Compreende o objecto da presente acção.
12- Recusa dar autorização para o prosseguimento da acção.».
De seguida, após proceder à análise dos pressupostos gerais para aplicar medidas de acompanhamento, a decisão recorrida limitou-se aos seguintes fundamentos:
«Ora, os factos apurados permitem concluir que a Requerida se mostra capacitada para, querendo, de forma livre e consciente, dar a sua autorização para a presente acção, não se justificando nem sendo legalmente possível o seu prosseguimento contra a sua vontade, uma vez que declarou expressamente não o dar, sob pena de violação do seu direito à liberdade e autodeterminação (art. 26.º do CRP).».
Nesta sequência, é possível afirmar desde já que o entendimento plasmado na sentença resultou efectivamente de uma mera impressão subjetiva colhida pelo Tribunal durante a audição da beneficiária e que não foi realizada qualquer perícia.
Ora, em abstracto, a diligência de audição da requerida poderia perfeitamente ser suficiente para constatar que a mesma se encontra no domínio das suas capacidades de compreensão dos objectivos do presente processo para se saber se a recusa em dar o seu consentimento foi feita de um modo esclarecido e que isso seja de tal modo evidente que torne desnecessário ou inútil a realização de uma perícia para comprovar tais capacidades.
Em geral, podem existir situações concretas em que a mera audição dos requeridos/beneficiários seja suficiente para compreender se os mesmos têm ou não essa capacidade.
Mas de igual modo existem casos em que a fronteira é bastante ténue ou causa dúvidas e nesse caso julgamos que se deve impor a realização de perícia para apurar precisamente a presença ou ausência dessa capacidade.
É necessário atentar que não se trata de uma mera capacidade para actos do quotidiano mas capacidade para entender e compreender o conteúdo do processo especial de acompanhamento de maior, não se trata de afirmar se a requerida/beneficiária necessita de alguma medida concreta de acompanhamento, pois até se poderia considerar que esta não está capaz de dar o seu consentimento para instaurar o presente processo, mas afinal entender-se que não se justifica a aplicação de qualquer medida nos termos do disposto no art. 140.º, n.º 2, do CC.
Ou dito de outro modo, movemo-nos em planos distintos e independentes um do outro:
- Consentimento para prosseguir o processo em curso;
- Verificação dos pressupostos para decretar uma medida de acompanhamento.
E no caso concreto situamo-nos no âmbito do primeiro.
É certo que no seu Requerimento inicial o Requerente não juntou qualquer documento médico ou clínico comprovativo do seu estado de saúde, contudo, é plausível que não o possa obter em virtude das regras de protecção de dados.
Por outro lado, apesar do Requerimento Inicial poder apresentar meras conjecturas sobre o estado de saúde da visada, considerando os princípios subjacentes ao presente processo, atentos os indícios revelados com as declarações prestadas pela requerida, será algo prematuro afirmar que esta possui a plena capacidade de entender e querer e manifestar autonomamente a sua vontade, compreendendo o verdadeiro significado do processo de acompanhamento de maior.
E os patentes desentendimentos entre o ora Requerente e a sua irmã (filha da Requerida com quem esta vive) não podem ofuscar a análise objectiva da sua capacidade.
Com efeito, em sede de procedimento de jurisdição voluntária, o julgador pode fazer uso das «regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, de molde a descobrir e adoptar a solução mais conveniente para os interesses em causa – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22/03/20245 (Tomé de Carvalho, proc. n.º 766/23.0T8BJA.E1, www.dgsi.pt).
Procedemos então à audição das declarações da requerida, delas resultando efectivamente que disse o seu nome completo, a idade, o dia do aniversário, onde reside, que mora com a filha identificando o seu nome, que antes morava em Vila Nova de Famalicão, sabe que a Páscoa ocorreu há dois dias atrás, que reside com a filha, e que já não pode fazer esforços porque foi operada ao coração, e por isso tem que tomar medicação e que tem um pacemaker, que tem uma senhora que fica com ela quando a filha tem que se ausentar, que gosta de viver com a filha, porque cuida bem dela, dá-lhe a medicação que o médico receita e vai sempre com ela às consultas.
No entanto, em contraponto, esta não foi capaz de dizer propriamente a data correcta, nem o ano em que estava, referindo o ano de 2000, questionada para dizer porque foi chamada a vir ao Tribunal, disse que o filho quer que ela vá viver com ele ou que vá para um lar, é certo que declarou não dar autorização para o processo prosseguir, mas isto não nos indica que compreendeu realmente o objectivo do processo, já que o seu desfecho não implica necessariamente que tenha de ir para um lar de terceira idade ou ser acompanhada pelo Requerente, nada impedindo de a sua acompanhante poder ser precisamente a filha com quem está actualmente.
Acresce ainda que é possível surpreender nas suas declarações que a Requerida, questionada sobre quantos filhos tinha, declarou “Tenho a minha filha e este que apareceu agora, que já nem me lembrava dele, nem o filho dizia”. E ainda declarou que já não fala com o filho há mutos anos sem saber explicar o motivo disso, que anda muito cansada, ou que “a minha cabeça já não está muito boa”, que não tem problemas de saúde e que “O meu filho é que está sempre a pôr problemas, a ligar, e a ligar, e a insultar as pessoas. É bater nas portas, ele não está com tudo, é um problema, Senhor Doutor. Eu eu nem sei.”.
E ainda a propósito do seu filho: “Não, nunca foi visitada, nem eu… também não conhecia se me visitasse, eu agora nem o conheci. Não vejo ninguém. Ligam-me ao telefone e não me falam, ou insulto, então nem eu nem quero atender o telefone. Para quê? Para a gente fica mais doente? Não…”.
E sobre a sua filha: “A minha filha falamos ao pequeno-almoço, ela põe em cima da mesa o meu remédio que é para eu tomar.” E ainda que é a sua filha que “trata de tudo”.
Deste modo, sem perder de vista que neste tipo de diligências é necessário contar com o plausível nervosismo da declarante, julgamos que para a idade de 87 anos, em resultado do natural envelhecimento, podemos afirmar que a Requerida aparenta compreender as coisas básicas do dia a dia, contudo, já não é possível afirmar, sem hesitações, com o necessário grau de certeza, que a Requerida “3- Mostra-se orientada na sua pessoa, no tempo e no espaço. 4- Compreende o que lhe é solicitado. 5- Apresenta um discurso lúcido e coerente, não aparentando qualquer alteração de memória ou das suas faculdades mentais. 6- Sabe identificar os seus familiares.”.
Verifica-se que o tribunal apenas realizou o interrogatório, contudo, em face das dúvidas acima mencionadas, julgamos que deveria ainda ter determinado a realização de um exame pericial, dado não ter conhecimentos científicos para avaliar o estado psicológico da Requerida.
Assim, a ausência de perícia médica traduz-se efectivamente numa insuficiência de instrução da causa, violando o princípio da descoberta da verdade material e o dever de averiguação oficiosa do Tribunal, nos termos do artigo 411.º do CPC e do regime especial do acompanhamento de maior (cfr. artigos 138.º e 140.º do Código Civil; artigos 891.º, n.º 2, 897.º e 986.º, n.º 1 do CPC).
Com toda a pertinência, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17/06/20216 (Elisabete Valente, proc. n.º 2126/19.8T8OER.E1, www.dgsi.pt), sumariou-se, para além do mais, o seguinte:
«I - Decorre alguma dificuldade pelo facto da lei prever um incidente na própria ação de acompanhamento de maior acompanhado, exigindo-se ao tribunal que verifique, caso seja junta a autorização do beneficiário, se este está em condições de a conceder ao requerente ou se se justifica suprir essa falta de autorização.
II - Para isso o tribunal terá que apurar factos que constituem a própria causa de pedir da ação de acompanhamento, ou seja, apurar se o beneficiário se encontra impossibilitado por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente os seus direitos ou, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres e deve ser feita uma análise das concretas circunstâncias em que se encontra o beneficiário, e se ele é capaz ou não de conduzir validamente o processo judicial, sendo essencial a colaboração do perito.» (sublinhado nosso).
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12.3. Em suma, sem a realização de perícia médica e apenas com base nas suas declarações, não é possível afirmar, sem hesitações e com o necessário grau de certeza, que a requerida está no gozo pleno das suas capacidades de tal modo que é capaz de exercer, plena, pessoal e conscientemente os seus direitos ou cumprir os seus deveres no âmbito do processo de maior acompanhado, para poder dar o seu consentimento para o prosseguimento do mesmo, ou seja, de conduzir validamente o processo judicial.
Em consequência, impõe-se assim revogar a decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine o prosseguimento do presente incidente de suprimento do consentimento com a realização de perícia médica com o objecto tido por adequado (cfr. art. 899.º, do CPC), sem prejuízo de outras diligências tidas por convenientes.
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13. Responsabilidade tributária:
Sem custas.
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III. DISPOSITIVO
Nos termos e fundamentos expostos,
1. Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente procedente o recurso de apelação interposto pelo Requerente e, em consequência, revogar a decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine o prosseguimento do presente incidente de suprimento do consentimento, com a realização de perícia médica com o objecto tido por adequado, sem prejuízo de outras diligências tidas por convenientes.
2. Sem custas.
3. Registe e notifique.
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Évora, data e assinaturas certificadas
Relator: Filipe César Osório
1.º Adjunto: Elisabete Valente
2.º Adjunto: António Fernando Marques da Silva
____________________________________________
1. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/c0a1be4520f5a62c8025888c00541d0d?OpenDocument↩︎
2. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/c0a1be4520f5a62c8025888c00541d0d?OpenDocument↩︎
3. https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/77a5bd5529a554f0802586090049f175?OpenDocument↩︎
4. https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/3aab1bafe5442e11802584fd0053d598?OpenDocument↩︎
5. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/64893ef51cc8a62e80258afa0031d206?OpenDocument↩︎
6. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/8b9e7126ae309ce68025870600704d12?OpenDocument↩︎