CASO JULGADO
PROCEDIMENTO CAUTELAR
ANTECIPAÇÃO DO JUÍZO SOBRE A CAUSA PRINCIPAL
LOCAÇÃO FINANCEIRA
Sumário

Sumário1:
I. Uma vez decidida uma questão com força de caso julgado, não mais pode a mesma voltar a ser apreciada em ação posterior, quer surja a título principal, caso em que funcionará a exceção de caso julgado, quer surja a título prejudicial ou seja suscitada pelo réu, casos em que a força e autoridade do caso julgado obrigará a ter essa mesma questão como assente.

II. Está em causa o efeito negativo do caso julgado, que consiste na proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma causa, que como é sabido, pressupõe um fenómeno de identidade de relações jurídicas numa tríplice vertente – identidade de sujeitos, identidade de pedido e identidade de causa de pedir (cfr. artigo 581.º, n.º 1 do CPC).

III. Com a nova redação conferida ao n.º 7 do artigo 21º pelo referido D/L n.º 30/2008, passou a ser possível a antecipação de um juízo definitivo em sede daquele procedimento cautelar, evitando-se, desta forma, a instauração da ação declarativa principal. Com efeito, aquele normativo legal passou a dispor que «decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, exceto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do n.º 2, os elementos necessários à resolução do caso». Como se assinala no preâmbulo do D/L n.º 30/2008, «permite-se ao juiz decidir a causa principal após decretar a providência cautelar de entrega do bem locado, extinguindo-se a obrigatoriedade de intentar uma ação declarativa apenas para prevenir a caducidade de uma providência cautelar requerida por uma locadora financeira ao abrigo do disposto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho, alterado pelos Decretos-Lei n.ºs 265/97, de 2 de Outubro e 285/2001, de 3 de Novembro. Evita-se assim a existência de duas ações judiciais – uma providência cautelar e uma ação principal – que, materialmente, têm o mesmo objeto: a entrega do bem locado.

IV. Fica assim definitivamente julgada a entrega do imóvel com fundamento da resolução do contrato de locação financeira.

Texto Integral

Proc. n.º 6253/20.0T8STB-A.E1

Juízo Central Cível de Setúbal - Juiz 3


Recorrentes: AA e BB


Recorrida: Banco Comercial Português, SA.


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Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora,


I. RELATÓRIO


AA e BB moveram contra Banco Comercial Português, SA. a presente ação declarativa de condenação sob a forma comum, pedindo que:


a) Seja o Réu condenado a restituir-lhes a posse do referido imóvel decretando-se a nulidade da dação em pagamento por vicio da vontade na contratação, e restituída a propriedade a CC e DD;


b) Seja o Réu condenado a proceder à liquidação das obrigações dos Autores de modo a que possam retomar o pagamento das mesmas, deduzidos os juros vencidos entre 2003 e 2005 tempo que o Réu demorou a formalizar a reestruturação do crédito. Subsidiariamente,


c) Seja o Réu condenado a restituir todas as quantias pagas pelos Autores desde 2005 até 2018, data da entrega do imóvel, no valor de cento e dois mil euros, acrescidas de juros desde a citação até efetivo pagamento.


d) em cumulação com qualquer dos pedidos anteriormente feitos, seja o Réu condenado a pagar a cada um dos autores a quantia de vinte e cinco mil euros a título de danos morais pelo sofrimento que a sua conduta lhes causou.


Alegaram, para tanto, que o Banco Pinto e Sotto Mayor, que foi integrado na grupo BCP, lhes concedeu um empréstimo, que foi garantido por hipoteca sobre o imóvel dos seus pais, descrito na CRP de Cidade 1, sob o nº 3177, da freguesia do P... e inscrito na matriz sob o nº 2131 dessa freguesia e concelho, que tal mútuo foi depois reestruturado em 2005 e que nessa sequência, celebraram uma escritura de Dação em Cumprimento do referido imóvel e um contrato de locação financeira imobiliária (fls. 43 e ss.), o que aconteceu sob pressão do Banco e foi um negócio ruinoso para eles, já que o Autor deixou de conseguir cumprir as obrigações inerentes.


Mais referiram que Banco instaurou um procedimento cautelar, mas ao invés do ali alegado, os Autores procederam ao pagamento de diversas importâncias, pelo que consideram injusta, desproporcional e desadequada a tomada do imóvel, até porque a importância em dívida era de cerca de € 2.000,00, que em consequência da ação do Banco tiveram que se separar e a família já não logrou viver sob o mesmo teto, tendo tido que depositar diversos objetos pessoais em garagens.


Concluem dizendo que a atuação do Réu configura enriquecimento sem causa.


Na contestação, invocou o Réu a exceção de caso julgado, alegando que instaurou procedimento cautelar para entrega do imóvel, que foi declarado procedente, alegando que todas as questões agora suscitadas deveriam ter sido discutidas nessa ação.


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Foi proferido despacho saneador, no qual, relativamente à exceção de caso julgado, se decidiu:


“(…) Pelo exposto, face aos princípios e regras enunciados, verifica-se a exceção dilatória de caso julgado em relação aos dois primeiros pedidos, que é obstativa ao conhecimento do mérito e importa a absolvição do R da instância, o que se declara.


Custas pelos AA, na proporção de 1/8 das que se mostrarem devidas a final.


Valor: abaixo indicado.


Registe e notifique.”

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Inconformados com esse segmento da decisão, os Autores interpuseram recurso, apresentando, após alegações, a seguinte síntese conclusiva:


1. A decisão de que se recorre viola o artigo 620.º n.º1 do CPC pois não pode ter força de caso julgado material a decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar n.º 4012/18.0...,


2. na medida em que os AA, não puderam nessa causa, por falta de meios económicos, esgrimir os seus argumentos, ou seja, não exerceram o seu direito ao contraditório.


3. Portanto não houve decisão quanto ao mérito, mas decisão puramente formal.


4. A decisão recorrida viola o principio constitucional de Acesso ao Direito garantida pelo artigo 20.º n.º1 da CRP a todos os cidadãos.


5. Sendo certo que, para os dois temas de prova que elencou o despacho saneador, torna-se premente a análise das atitudes do Réu nas quais se baseiam os três primeiros pedidos formulados pelos AA.


6. Para apurar os danos que sofreram os AA é necessário discutir as informações prestadas pelo Réu no âmbito da contratação feita com os AA entre 1999 e a entrega do imóvel,


7. bem como a justeza, ou falta dela, relativamente aos montantes que lhes pagaram os AA no âmbito dessas mesas informações/contratação- liquidação dos montantes pagos pelos AA.


8. As questões alegadas pelos AA não são cindíveis, mas antes intercomunicantes, pelo que não pode ter força de caso julgado a decisão proferida no processo n.º 4012/18.0....


9. Efectivamente, caso não proceda o presente recurso, fica prejudicado o Princípio da Restauração Natural da situação que tinham os AA. antes de sofrerem às mãos do Réu, e é portanto também violado o disposto no artigo 562.º do Código Civil.


10. Com efeito, ainda que o tribunal recorrido atribua indemnização aos AA por culpa e má-fé do Réu nas negociações que teve com eles ao longo do tempo, caso o tribunal recorrido não conheça dos demais pedidos, não será feita Justiça!


11. A sentença recorrida viola os princípios constitucionais do acesso ao direito e à proteção jurídica, plasmados nos artigos 2.º do CPC e 20.º da CRP.


12. tal como viola o princípio do direito a processo equitativo, constante no artigo 6.º da Declaração Europeia dos Direitos do Homem, que faz parte integrante do nosso ordenamento jurídico.


13. devendo ser substituída por outra que ordene a prossecução dos autos para julgamento para conhecer da totalidade dos pedidos formulados pelos AA.


Nestes termos e nos melhores de Direito, requer-se a Vossa Excelências se dignem considerar procedente o presente recurso, substituindo a sentença recorrida por outra que ordene a prossecução dos autos para conhecimento da totalidade dos pedidos formulados pelos AA na sua petição inicial.”


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A Ré contra-alegou, concluindo da seguinte forma:


“ (…)Por um lado, a douta decisão recorrida como se disse supra, julgou verificada a formação de caso julgado material relativamente à decisão proferida em antecipação do juízo definitivo sobre causa, procedendo assim a exceção dilatória de caso julgado em relação aos dois primeiros pedidos primitivos, e não a três como mencionam os apelantes, por outro lado, os mesmos não “atacam”, em momento algum, a verificação do caso julgado quanto a tal decisão proferida em antecipação do juízo definitivo sobre causa, mas apenas em relação à decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar, motivo pelo qual, e salvo o devido respeito, transitou em julgado a douta decisão recorrida no respeita ao conhecimento de tal exceção dilatória de caso julgado, improcedendo assim, e desde logo, a presente apelação.


Por outro lado, e conforme se disse supra, para além de não se encontram violados (conforme razões supra expostas) o disposto no artigo 620.º, n.º1, do CPC, o alegado princípio “da Restauração Natural”, os princípios constitucionais de Acesso ao Direito e à Proteção Jurídica, plasmados nos artigos 2.º, do CPC e 20.º, da CRP e o princípio do Direito a Processo Equitativo,constante do artigo 6.º da Declaração Europeia dos Direitos do Homem, a violação de tais normas e princípios não foi alegada em tempo oportuno, não tendo por isso sido objeto de apreciação pelo douto Tribunal a quo e também pelo mesmo motivo, não pode agora ser apreciada em sede de recurso, constituindo uma questão nova.


Com efeito, e tal como pode ler-se no AC do TRP, datado de 09/10/2023, proferido no Proc.º n.º 6263/18.8T8PRT.P1 e disponível em www.dgsi.pt:


“I - Os recursos, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, em termos gerais, apenas, podem ter como objeto questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o Tribunal “ad quem” com questões novas, salvo aquelas que são de conhecimento oficioso.


II – Ou seja, os recursos não visam criar e emitir decisões novas sobre questões novas (exceto se forem de conhecimento oficioso), mas impugnar, reapreciar e, eventualmente, modificar as decisões do Tribunal recorrido, sobre os pontos questionados e “dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o Tribunal “a quo” no momento em que a proferiu.


III - O caso julgado material cobre a decisão proferida sobre o fundo de mérito da causa e tem força obrigatória não só dentro do próprio processo em que a decisão é proferida, mas também fora dele.


IV - O caso julgado exerce duas funções, uma positiva e outra negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade. Exerce a segunda através da exceção de caso julgado.


V – Através da autoridade do caso julgado visa-se evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior, o conteúdo da decisão anterior.”


Termos em que, negando-se provimento ao recurso interposto, deve ser mantida a douta decisão recorrida, como é de inteira JUSTIÇA!”


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II. Questões a decidir.


Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente que, como é sabido, definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil importa apreciar e decidir se deve determinar-se o prosseguimento dos autos para conhecimento dos dois primeiros pedidos formulados pelos Autores, por não se verificarem os pressupostos da procedência da exceção de caso julgado relativamente aos mesmos.


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III. Fundamentação.


III.1. O Tribunal recorrido, na decisão sob censura, considerou provados com interesse para a decisão da exceção em causa, os seguintes factos:


1.a). O imóvel descrito na CRP de Cidade 1 sob o nº 3177 tem registo de aquisição a favor do Banco Comercial Português, SA, pela ap. 61, de 30.12.2004, sendo a causa aquisitiva uma dação em Cumprimento de CC e DD.


2. Em 19.10.2005 os AA e o Banco Comercial Português, SA, celebraram o contrato de locação financeira, junto a fls. 43 e ss., aqui dado por inteiramente reproduzido, sendo objeto da mesma o prédio urbano descrito na CRP de Cidade 1 sob o nº 3177.


3. Das respetivas condições gerais, consta, além do mais, a cláusula 11ª, cuja epígrafe é: (Resolução e caducidade), cujo nº 4. refere: “Resolvido o Contrato, os Locatários, que não terão direito a qualquer indemnização ou compensação, deverá restituir o imóvel locado em bom estado de conservação, no prazo máximo de quinze dias a contar da data da resolução, sob pena de se constituir na obrigação de pagar ao Locador uma quantia conforme previsto no número 8. do artigo 9º deste contrato.”.


E do nº 5 consta: “A resolução do Contrato não exonera os locatários do dever de cumprimento de todas as suas obrigações que à data se encontrarem vencidas, ou cujo facto gerador tenha ocorrido anteriormente à resolução, e confere ao Locador, para além do direito de conservar as rendas vencidas e pagas, o direito de receber dos Locatários, a título de indemnização por perdas e danos, uma importância igual a 20% da soma das rendas vincendas com o vaiar residual, sempre sem prejuízo, porém, do direito à reparação integral por maior dano”.


4. Em 04.07.2014 os AA e o Banco Comercial Português, SA, celebraram o contrato de locação financeira nº ..., junto a fls. 34 vº e ss., aqui dado por inteiramente reproduzido, sendo objeto do mesmo o prédio urbano descrito na CRP de Cidade 1 sob o nº 3177.


4.a). O contrato acima referido resultou da reestruturação do leasing anterior (facto alegado no artº 21º da p.i. e aceite na contestação – artº 62)


5. Das respetivas condições gerais, consta, além do mais, a cláusula 11ª, cuja epígrafe é: (Incumprimento contratual e caducidade, cujo nº 4. refere:” Resolvido o Contrato, o Locatário, que não terá direito a qualquer indemnização ou compensação, deverá restituir o imóvel locado em bom estado de conservação, no prazo máximo de quinze dias a contar da data da resolução, sob pena de se constituir na obrigação de pagar ao Locador uma quantia conforme previsto no número 8. do artigo 9º deste contrato.”.


E do nº 5 consta: “A resolução do Contrato não exonera os locatários do dever de cumprimento de todas as suas obrigações que à data se encontrarem vencidas, ou cujo facto gerador tenha ocorrido anteriormente à resolução, e confere ao Locador, para além do direito de conservar as rendas vencidas e pagas, o direito de receber dos Locatários, a título de indemnização por perdas e danos, uma importância igual a 20% da soma das rendas vincendas com o valor residual, sempre sem prejuízo, porém, do direito à reparação integral por maior dano”.


6. Correu termos, sob o nº 4012/18.0... do Juízo Local Cível de Setúbal, J3, um procedimento cautelar, instaurado pelo banco Comercial Português contra os ora AA, onde o requerente Banco Comercial Português, SA pediu ao tribunal que decretasse a entrega imediata do prédio urbano sito em Local 1, freguesia do P..., concelho de Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o nº 3177 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 2131 da freguesia do P....


7. Para fundamentar tal pedido o requerente alegou que celebrou com os requeridos, em 4 de julho de 2014, um contrato de locação financeira imobiliária que teve por objeto o imóvel acima descrito o qual foi entregue aos segundos mediante a obrigação de pagamento de 300 mensais durante 25 anos. Mais alegou o requerente que os requeridos não pagaram as rendas n.ºs 42 a 46 e que por carta registada com aviso de receção interpelou os requeridos, em 09.03.2018, para procederem ao pagamento das rendas em atraso e respetivos juros, o que aqueles não fizeram, motivando a requerente a declarar vencido o montante de 21.878,34€ e a resolver o contrato, o que fez mediante carta registada com aviso de receção datada de 11.04.2018.


8. Os requeridos foram citados e deduziram oposição, a qual foi desentranhada dos autos por decisão do tribunal de primeira instância, que transitou em julgado.


9. Após, o tribunal de 1ª instância proferiu despacho no qual julgou verificados os requisitos da providência cautelar previstos no art. 21.º do D/L nº 149/95, de 24.06 e, consequentemente, decretou a imediata entrega do prédio acima descrito e autorizou o requerente BCP a dispor do referido imóvel, ordenando, ainda, a notificação das partes para os fins previstos no n.º 7 do artº 21, do diploma legal supra mencionado.


Naquela sede foram considerados provados, além do mais, os seguintes factos:


“1. - No exercício da sua atividade, por contrato de locação financeira imobiliária a que foi atribuído o nº ... e datado de 04.07.2014, a requerente deu em locação aos requeridos O prédio urbano composto por RlC e logradouro sito na Local 1, freguesia de P..., concelho de Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o nº 3177 e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 2131”.


10. Os requeridos foram notificados pessoalmente do despacho acima referido mediante cartas enviadas em 25.02.2019 e por despacho proferido em 07.03.2019 foi ordenada também a notificação dos defensores oficiosos dos requeridos a qual foi efetuada, via citius, em 08.03.2018.


11. À referida notificação, apenas o requerente BCP respondeu dizendo «nada ter a acrescentar em relação à ação principal, já que foram trazidos ao procedimento cautelar todos os elementos necessários à resolução definitiva do caso».


12. Mediante decisão proferida em 29.04.2019, o tribunal a quo antecipou o juízo sobre a causa principal, julgando a ação procedente, por provada, e, consequentemente, manteve a decisão que ordenou a entrega ao requerente do prédio urbano composto por r/c e logradouro, sito em Local 1, freguesia do P..., concelho de Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.9 3177 e inscrito na respetiva matriz predial sob o art. 2131, alegando além do mais, o seguinte: “Vistos os elementos disponíveis nos autos, mostra-se provada a locação financeira por meio documental, o seu incumprimento por parte dos requeridos, por confissão destes, e a consequente resolução do contrato por meio documental, tudo nos moldes acima descritos”.


13. tal decisão transitou em julgado em 15-07.2020.


14. A entrega do imóvel foi concretizada em 18.09.2019.


15. Os requeridos apresentaram requerimento pedindo ao tribunal que decretasse a caducidade da providência cautelar e a extinção do procedimento, sobre o qual foi proferido despacho de indeferimento.


16. Instaurado recurso do aludido despacho, o mesmo foi mantido pelo TRE, que além do mais referiu: “o presente procedimento cautelar foi instaurado ao abrigo do art. 21º, nº 7 do D/L nº 149/95, de 24.06, na redação que lhe foi dada pelo D/L nº 30/2008, de 25.02, Diploma que regula o regime jurídico do contrato de locação financeira.


No art. 21º do D/L nº 149/95 está prevista a providência de entrega judicial em situação de incumprimento, por banda do locatário, de obrigações para ele emergentes do contrato de locação financeira, dispondo o seu nº1 que «Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, a efetuar por via eletrónica sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente».


Com a nova redação conferida ao nº 7 do artº 21 pelo referido D/L n.º 30/2008, passou a ser possível a antecipação de um juízo definitivo em sede daquele procedimento cautelar, evitando-se, desta forma, a instauração da ação declarativa principal. Com efeito, aquele normativo legal passou a dispor que «decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, exceto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do nº 2, os elementos necessários à resolução do caso». Como se assinala no preâmbulo do D/L n.º 30/2008, «permite-se ao juiz decidir a causa principal após decretar a providência cautelar de entrega do bem locado, extinguindo-se a obrigatoriedade de intentar uma ação declarativa apenas para prevenir a caducidade de uma providência cautelar requerida por uma locadora financeira ao abrigo do disposto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho, alterado pelos Decretos-Lei n.ºs 265/97, de 2 de Outubro e 285/2001, de 3 de Novembro. Evita-se assim a existência de duas ações judiciais - uma providência cautelar e uma ação principal - que, materialmente, têm o mesmo objeto: a entrega do bem locado.» (…)


No caso em análise, o tribunal a quo proferiu decisão em 29.04.2019 na qual antecipou o juízo final da causa (dr. supra 1.1) e que transitou em julgado (art. 619.º, n.º 1 do CPC).


Se bem entendemos as conclusões de recurso e respetiva motivação, os apelantes defendem que a providência cautelar decretada nos autos deverá ser declarada caducada porque eles (requeridos e ora apelantes) não foram ouvidos previamente à decisão do tribunal a quo que, antecipando o juízo sobre a ação principal, manteve a decisão que ordenou a entrega ao requerente/apelado do prédio melhor identificado nos autos.


Todavia, os requeridos foram notificados para se pronunciarem sobre a possibilidade de antecipação do juízo sobre a ação principal, como resulta do exposto supra em 1.1., circunstância que por si só implica a improcedência da pretensão dos recorrentes.


Ademais, uma eventual nulidade decorrente da violação do princípio do contraditório (art. 3.º, n.º 3 do CPC e art. 195.º, n.ºs 1 e 2 do CPC) estaria sanada pois os ora recorrentes, após terem sido notificados da decisão que antecipou o juízo sobre a ação principal, intervieram nos autos sem que, concomitantemente tivessem invocado a irregularidade processual (falta de notificação) que agora vieram arguir em sede de recurso (cr. art. 199.º, n.º 1 do CPC) (cr. supra 11.3)…”.


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III.2. Apreciação jurídica.


“A figura da excepção de caso julgado – que a reforma de 1995/96 qualificou expressamente como dilatória – tem que ver com um fenómeno de identidade entre relações jurídicas, sendo a mesma relação submetida sucessivamente a apreciação jurisdicional, ignorando-se ou desvalorizando-se o facto de esse mesma relação já ter sido, enquanto objecto processual perfeitamente individualizado nos seus aspectos subjectivos e objectivos, anteriormente apreciada jurisdicionalmente, mediante decisão que transitou em julgado.”


Uma vez decidida uma questão com força de caso julgado, não mais pode a mesma voltar a ser apreciada em ação posterior, quer surja a título principal, caso em que funcionará a exceção de caso julgado, quer surja a título prejudicial ou seja suscitada pelo réu, casos em que a força e autoridade do caso julgado obrigará a ter essa mesma questão como assente.


Está em causa o efeito negativo do caso julgado, que consiste na proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma causa, que como é sabido, pressupõe um fenómeno de identidade de relações jurídicas numa tríplice vertente – identidade de sujeitos, identidade de pedido e identidade de causa de pedir (cfr. artigo 581.º, n.º 1 do CPC).


Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º (art.º 619º, n.º 1 do CPC).


“O caso julgado é, evidentemente, uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, uma vez que dá expressão aos valores da segurança e certeza fundamentais em qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver.”2


Ora, como decorre dos factos provados, correu termos, sob o nº 4012/18.0... do Juízo Local Cível de Setúbal, J3, um procedimento cautelar, instaurado pelo Banco Comercial Português, SA, que ora assume a posição de R., contra os ora AA, onde o requerente pediu ao tribunal que decretasse a entrega imediata do prédio urbano sito em Local 1, freguesia do P..., concelho de Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o nº 3177 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 2131, em face da resolução do contrato de locação financeira nº ... e datado de 04.07.2014.


E ali foi decidido, por decisão transitada em julgado, entregar ao Requerente Banco o imóvel descrito na CRP de Cidade 1, sob o nº 3177, da freguesia do P... e inscrito na matriz sob o nº 2131 dessa freguesia e concelho, que havia sido objeto de locação financeira, cuja resolução foi operada pelo Banco, por falta de pagamento de rendas.


Nos mesmos autos foi proferido o Acórdão desta Relação de 25.06.2020, no qual se referiu, em termos que merecem total acolhimento:

No art. 21.º do D/L n.º 149/95 está prevista a providência de entrega judicial em situação de incumprimento, por banda do locatário, de obrigações para ele emergentes do contrato de locação financeira, dispondo o seu n.º 1 que «Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, a efetuar por via eletrónica sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente».

Com a nova redação conferida ao n.º 7 do artigo 21º pelo referido D/L n.º 30/2008, passou a ser possível a antecipação de um juízo definitivo em sede daquele procedimento cautelar, evitando-se, desta forma, a instauração da ação declarativa principal. Com efeito, aquele normativo legal passou a dispor que «decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, exceto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do n.º 2, os elementos necessários à resolução do caso». Como se assinala no preâmbulo do D/L n.º 30/2008, «permite-se ao juiz decidir a causa principal após decretar a providência cautelar de entrega do bem locado, extinguindo-se a obrigatoriedade de intentar uma ação declarativa apenas para prevenir a caducidade de uma providência cautelar requerida por uma locadora financeira ao abrigo do disposto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho, alterado pelos Decretos-Lei n.ºs 265/97, de 2 de Outubro e 285/2001, de 3 de Novembro. Evita-se assim a existência de duas ações judiciais – uma providência cautelar e uma ação principal – que, materialmente, têm o mesmo objeto: a entrega do bem locado.»

Destarte, só faz sentido chamar à colação a caducidade prevista no artigo 389.º, n.º 1, alínea a), do CPC[2] quando o tribunal não haja proferido decisão a antecipar a resolução definitiva do processo ao abrigo do artigo 21.º, n.º 7, do D/L n.º 149/95, de 24.06 (designadamente, por ter considerado que dos autos não constavam os elementos necessários à resolução definitiva do caso).

No caso em análise, o tribunal a quo proferiu decisão em 29.04.2019 na qual antecipou o juízo final da causa (cfr. supra I.1) e que transitou em julgado (artigo 619.º, n.º 1, do CPC).

Se bem entendemos as conclusões de recurso e respetiva motivação, os apelantes defendem que a providência cautelar decretada nos autos deverá ser declarada caducada porque eles (requeridos e ora apelantes) não foram ouvidos previamente à decisão do tribunal a quo que, antecipando o juízo sobre a ação principal, manteve a decisão que ordenou a entrega ao requerente/apelado do prédio melhor identificado nos autos.

Todavia, os requeridos foram notificados para se pronunciarem sobre a possibilidade de antecipação do juízo sobre a ação principal, como resulta do exposto supra em I.1.. Circunstância que por si só implica a improcedência da pretensão dos recorrentes.

Ademais, uma eventual nulidade decorrente da violação do princípio do contraditório (artigo 3.º, n.º 3, do CPC e artigo 195.º, n.ºs 1 e 2, do CPC) estaria sanada pois os ora recorrentes, após terem sido notificados da decisão que antecipou o juízo sobre a ação principal, intervieram nos autos sem que concomitantemente tivessem invocado a irregularidade processual (falta de notificação) que agora vieram arguir em sede de recurso (cfr. artigo 199.º, n.º 1, do CPC) (cfr. supra II.3).”

É inequívoco que existe, entre aquela e a atual ação, identidade de sujeitos.


Naquela, o aqui Réu peticionou a entrega do imóvel, como consequência da válida resolução do contrato de locação financeira entre ambos celebrado, por falta de pagamento de rendas, pedido que agora os Autores pretendem ver contrariado.


A causa de pedir é o conjunto de factos concretos invocados pelo autor que, subsumidos a normas de direito substantivo, devem ser aptos a produzir o efeito jurídico-prático pretendido pelo Autor.


Existirá identidade de causa de pedir entre uma ação definitivamente transitada em julgado e uma outra supervenientemente proposta quando, na nova ação, ocorra uma inovação fáctica, todavia, insuficiente para se que possa afirmar estar perante uma nova causa de pedir (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-12-2016 no processo 219/14.7TVPRT-C.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).


A decisão da questão em apreço pressupõe, pois, interpretar a sentença que antecipou o juízo definitivo sobre a causa naqueles outros autos, passo necessário para que se possa alcançar o âmbito do caso julgado material formado por tal decisão, que deixou de ter natureza de procedimento cautelar para passar a constituir decisão definitiva sobre as questões sobre que versou.


Como o Supremo Tribunal de Justiça recordou no recente Acórdão de 12 de dezembro de 2023:


“(…) para interpretar uma sentença não basta considerar a sua parte decisória, “cabendo tomar na devida conta a respectiva fundamentação (“é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado”, escrevem Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, pág. 715, como se recorda no acórdão de 29 de Abril de 2010, www.dgsi.pt, proc. n 102/2001.L1.S1), o contexto, os antecedentes e outros elementos que se revelem pertinentes (acórdão de 8 de Junho de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 25.163/05.5YLSB.L1.S1). Para além disso, e porque se trata de um acto formal, aliás particularmente solene, cumpre garantir que o sentido tem a devida tradução no texto (cfr., com o devido desenvolvimento, o acórdão de 3 de Fevereiro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 190-A/1999.E1.S1 e o acórdão de 25 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 351/09.9YFLSB)”, escreveu-se recentemente no acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de Novembro de 2023, www.dgsi.pt, proc. n.º 1044/18.1T8VNF-A.G1.S1.(…)”


A pretensão do ora Réu na aludida ação nº 4012/18.0... foi julgada procedente por se ter entendido que se demonstraram os pressupostos de resolução do contrato de locação financeira e de entrega do imóvel objeto de tal contrato.


Nos mesmos autos, como se analisou no citado Acórdão desta Relação, os ora Autores foram chamados a pronunciar-se, não existindo, pois, qualquer preterição do princípio do contraditório ou de qualquer outro constitucionalmente tutelado.


Assim, a pretensão dos ora Autores consubstancia caso anterior já julgado na aludida ação, cuja decisão de procedência por verificação dos pressupostos de resolução do contrato transitou em julgado.


Tendo tal questão sido julgada anteriormente, um novo julgamento dessa matéria, a ser admitido, nos mesmos moldes do anterior seria inaceitável, mormente pela incerteza/insegurança que traria à ordem jurídica.


A tal opõe-se a aludida autoridade de caso julgado, preconizando a utilidade (impedindo a inutilidade) do anterior julgamento, ademais, de caráter definitivo.


Pelo exposto, bem andou o Tribunal Recorrido ao concluir pela necessidade de absolver o Réu da presente instância, pela procedência da exceção de caso julgado, não merecendo a decisão recorrida qualquer censura.


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IV. DECISÃO


Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e, em consequência em manter a decisão recorrida.


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Custas pelos Apelantes – artigos 527º, ns. 1 e 2 do Código de Processo Civil.


Registe e notifique.


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Évora, 25.06.2025


Ana Pessoa


Elisabete Valente


António Fernando Marques da Silva

1. Da exclusiva responsabilidade da relatora.↩︎

2. Cf. o recente Acórdão do STJ de 15.05.2025 proferido no âmbito do processo n.º 420/20.4T8SSB.E1.S1, em recurso de revista interposto de Acórdão desta Secção.↩︎