Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]
I. São características essenciais à caracterização de um contrato como de comodato: a gratuitidade, a precariedade, a temporalidade e o dever de restituição.
II. A precariedade do uso facultado ao comodatário resulta da própria definição legal, das obrigações específicas do comodatário e do regime estabelecido para a restituição da coisa.
III. O contrato de comodato cessa: 1) Com o vencimento do prazo, se este tiver sido convencionado; 2) Não havendo prazo certo, logo que finde o uso determinado para que foi concedido, independentemente de interpelação; 3) Não havendo prazo certo nem uso determinado, quando o comodante o exija.
IV. Dada a natureza do contrato de comodato, como precário e limitado no tempo, constitui entendimento dominante, que o conceito de “uso determinado” só está preenchido se se encontrar delimitada, em termos temporais, ou, pelo menos, for determinável, a necessidade que o comodato visa satisfazer, ou seja, o uso determinado da coisa deve conter em si a definição do tempo de uso.
V. A interpretação da norma do n.º 2 do artigo 1137º do Código Civil, no sentido de que, no comodato sem fixação de prazo, mas para uso de habitação do comodatário, não seria exigível a restituição do imóvel enquanto se mantivesse o uso, além de não corresponder ao entendimento largamente maioritário seguido pela jurisprudência, mostra-se contrário à natureza temporária do comodato, pois, não só poderia levar à perpetuação do uso da coisa, como também colocaria o comodatário numa posição bem mais sólida e favorável do que se tivesse, por exemplo, celebrado um contrato de arrendamento (cfr., quanto à duração do contrato de locação o artigo 1025º, do Código Civil), solução que a ordem jurídica não poderia tolerar.
VI. Embora o direito à habitação possa justificar limitações à propriedade, tais limitações terão de obedecer a um princípio de equidade e de proporcionalidade, havendo sempre que se ter em conta que o direito à habitação constitucionalmente garantido, na sua vertente positiva, tem como titulares passivos, em primeira linha, o Estado e os demais entes públicos territoriais, e não os particulares.
Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. AA, intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, (que também usa CC), pedindo, com fundamento no seu direito de propriedade e alegando a ocupação abusiva pela R. do imóvel em causa, que:
a. Se declare o A. legítimo proprietário e possuidor do imóvel sito no n.º 50 da Rua 1..., em Local 1; e
b. Seja a R. condenada a restituir imediatamente ao A. o referido imóvel livre e desocupado de pessoas e bens.
2. A R., devidamente citada, requereu apoio judiciário, tendo-lhe sido nomeado patrono, mas não contestou.
3. Ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 567º do Código de Processo Civil, consideraram-se confessados os factos alegados pelo A. e foi dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do mesmo artigo, tendo o A. apresentado alegações escritas em prol da procedência da acção.
4. Após, veio a ser proferida sentença, que julgou a acção procedente e, consequência, decidiu:
«A) Declaro o Autor legítimo proprietário e possuidor do imóvel sito no 50 da Rua 1... em Local 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 1, e inscrito no Serviço de Finanças de Local 1, sob o artigo matricial no 1017.
B) Condeno a Ré a restituir imediatamente ao Autor o referido imóvel livre e desocupado de pessoas e bens.»
5. Inconformada, interpôs a R. recurso, pedindo a revogação da sentença, nos termos e com os fundamentos seguintes [segue transcrição das conclusões do recurso]:
1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida, que julgou a acção procedente e condenou a R. , ora recorrente, a restituir ao Autor a fracção utilizada pela Ré.
2. A Ré não se pode conformar com a sentença de que ora se recorre, porquanto.
3. A decisão de condenação da Ré a restituir a fracção que habita, ao Autor, resulta de um erro interpretação do art.º 1137, n.º 2 CC. , em violação com o que se encontra estatuado nesse artigo.
4. Os factos considerados provados, permitem confirmar a celebração verbal de cedência por parte dos Avós do Autor, para utilização da fracção por parte da Recorrente, para a sua habitação, há mais de 35 anos e sem qualquer prazo para a restituição da mesma.
5. E um acordo que não que tem prazo certo, mas tem um uso determinado que consiste na habitação efectiva da Recorrente, facto este que determina ser impossível terminar o contrato de comodato, enquanto a Recorrente habitar a fracção.
6. No comodato sem prazo mas que tenha por fim o uso de habitação familiar, não existe a obrigação da comodatária restituir a casa, até ao momento em que deixe de habitar a mesma.
7. A douta sentença recorrida enferma de erro de interpretação do art.º 1137, n.º 2, devendo ser revogada e ser substituída por decisão da não obrigatoriedade de restituição da fracção em causa, considerando que estamos perante um comodato sem prazo e com um uso determinado que é a habitação efectiva da Recorrente, nos termos do art.º 1137, n.º 1 do CC. e do artº. 65.º da Constituição da República Portuguesa.
6. Contra-alegou o A., pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida, que fundamentou com as seguintes conclusões [segue transcrição]:
32. Não houve qualquer erro de interpretação do nº 2 do Artigo 1137º do C.C não sendo pela Recorrente concretizados quais os pontos da matéria de facto que pretende ver reapreciados ou quais os elementos de prova que fundamentam tal pedido
33. Foram cumpridas as formalidades legais quanto à citação da recorrente.
34. Foi a recorrente regularmente citada para contestar sendo manifesto à luz do pedido de apolo judiciário apresentado não se verificar qualquer Impedimento ao exercício dos seus direitos.
35. Foi nomeada defensora oficiosa à Recorrente para exercer o patrocínio judiciário, e eventualmente contestar a acção.
36. A contestação não foi apresentada.
37. Pelo que foram considerados provados todos os factos alegados pelo recorrido na P.I.
38. Na sentença foi pelo meritíssimo juiz elaborado relatório com fundamentação sumária, aplicado o direito e proferida decisão.
39. Nunca no tribunal a quo, correu qualquer acção de reivindicação contra o recorrente intentada pelo recorrido facto que, apenas nesta sede sendo alegado, de forma alguma é, ainda que indiciariamente, provado.
40. A mera circunstância do comodato do Imóvel sub judice se destinar à habitação da Recorrente não pode, de per si, transformar um contrato por natureza temporário numa obrigação vitalícia, sem que essa alteração de natureza resulte expressamente da vontade das partes, vontade essa que, de forma alguma resultou provada ou sequer sugerida nos presentes autos. Pelo exposto não merece a decisão do Tribunal a quo, qualquer censura, devendo a mesma ser confirmada por este Tribunal da Relação de Évora.
7. O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, n.º 2, 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, a questão essencial a decidir consiste em saber se a R. detém título legítimo para manter a ocupação do imóvel pertença do A., concretamente por não haver cessado o acordo ao abrigo do qual essa ocupação vinha sendo efectuada.
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
Na 1ª instância, ao abrigo do disposto no artigo 567º, n.º 1, do Código de Processo Civil, foram considerados como provados os seguintes factos:
A. O Autor tem inscrito a seu favor, por doação, o prédio urbano sito na Rua 1..., no 50, freguesia de Local 1, concelho de Local 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 1, e inscrito no Serviço de Finanças de Local 1, sob o artigo matricial no 1017.
B. Em data indeterminada, mas posterior a 1980 e anterior a Setembro de 1982, a Ré, trabalhava e habitava no estabelecimento comercial denominado "Casa de Hóspedes ...", sito na Rua 2..., no 15 em Local 1.
C. Tendo a Ré celebrado com os seus proprietários, os avós do Autor e anteriores proprietários do prédio, um acordo escrito pelo qual estes últimos permitiriam a sua continuidade no local, a título gratuito, e enquanto não se efectivasse a venda daquele imóvel.
D. Em 1-06-1963 consumou-se a venda do estabelecimento identificado.
E. Pelo que a Ré teve que abandonar aquele imóvel onde estava instalada a casa de Hóspedes ....
F. Não tendo a Ré habitação para residir os anteriores proprietários permitiram, a título de mero favor pessoal e sem qualquer encargo, que esta última viesse a habitar provisoriamente o no 50 da Rua 1..., onde estava instalada a lavandaria da referida casa de hóspedes, até a Ré encontrar casa para habitar.
G. Volvidos que foram cerca dez anos como a Ré não tivesse resolvido a sua situação de carência habitacional, a qual motivara o acto de mera benemerência dos avós do Autor, continuando a habitar a casa que lhe havia sido cedida a título meramente provisório.
H. E querendo o Autor dispor do seu imóvel, escreveu-lhe através de advogado uma carta registada datada de 14/05/92, solicitando a sua restituição.
I. A Ré não respondeu directamente ao Autor, mas a Câmara Municipal de Local 1, por oficio datado de 03 de Junho de 1992, enviou à Sra. DD mãe do Autor.
J. Ofício esse onde é referido entre outros o seguinte: que a Ré tinha pedido apoio para realojamento da sua família e era solicitado à mãe do Autor boa compreensão e para não proceder a uma acção de despejo dado na altura serem um casal de idosos. (A Ré e o seu marido entretanto falecido).
K. Tendo a Ré continuado a habitar no imóvel do Autor, até à presente data.
L. O Autor, através de advogado em 26.06 2023, remeteu nova carta registada com aviso de recepção, com número de registo RH ... dirigida à Ré onde mais uma vez solicitava a entrega do imóvel.
M. Carta essa que veio devolvida, por não reclamada.
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B) – Apreciação do Recurso/O Direito
1. Com a presente acção pretendia o A. obter o reconhecimento de que o prédio que identifica é de sua propriedade e a condenação da R. na restituição do mesmo, por estar a ocupar o imóvel sem título que legitime a manutenção dessa ocupação.
Em face do pedido e causa de pedir invocados, estamos, pois, em presença de uma acção de reivindicação, prevista no artigo 1311º do Código Civil, nos termos do qual o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence (n.º 1).
Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei, como decorre do n.º 2 do referido artigo.
Atendendo às regras do ónus da prova, compete ao autor o ónus de provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou na detenção do demandado, mas é sobre o réu que recai, se for o caso, o ónus de provar que é titular de um direito que legitima a recusa da restituição (artigo 342º do Código Civil).
2. Na sentença reconheceu-se o direito de propriedade do A. sobre o imóvel e, atendendo à factualidade dada por assente, por falta de contestação, considerou-se estar a R. obrigada a proceder à restituição do imóvel, porquanto não mantinha título válido para a detenção do mesmo, em virtude de ter cessado o “comodato precário” que legitimava tal detenção, consignando-se que:
«…, a situação em que alguém deixa instalar outrem gratuitamente num prédio urbano, anda que para um dado fim (v.g., habitação), sem fixar prazo nem delimitar a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não cabe na previsão do nº 1 do art. 1377º, mas sim na do nº 2: estamos perante um "comodato precário", devendo a coisa ser restituída logo que tal seja exigido pelo comodante (Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II vol. 3ª ed e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16/02/83, 31/05/90, 23/01/86 e 01/07/99 e da Relação do Porto de 06/12/01, todos em www.dgsi.pt).
a situação em que alguém deixa instalar outrem gratuitamente num prédio urbano, ainda que para um dado fim (v.g., habitação), sem fixar prazo nem delimitar a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não cabe na previsão do nº 1 do art. 1377º, mas sim na do nº 2: estamos perante um "comodato precário", devendo a coisa ser restituída logo que tal seja exigido pelo comodante (Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II vol. 3ª ed e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16/02/83, 31/05/90, 23/01/86 e 01/07/99 e da Relação do Porto de 06/12/01, todos em www.dgsi.pt).
No caso vertente, provou-se que os ante possuidores do prédio autorizaram que a Ré ocupasse o imóvel, para habitação, por um curto espaço de tempo não definido.
Como se vê, não foi convencionado prazo, nem foi convencionada a delimitação da necessidade temporal que o contrato visa satisfazer, o que significa que a Ré está obrigada a restituir o bem cuja utilização lhe foi autorizada.»
A R./recorrente discorda, pois, entende que sentença enferma de erro de interpretação do artigo 1137º, n.º 2, do Código Civil, invocando que no comodato sem prazo mas que tenha por fim o uso de habitação familiar, não existe a obrigação do comodatário restituir a casa, até ao momento em que deixe da habitar a mesma.
Vejamos:
3. Não dissentem as partes quanto à subsunção da situação sub judice à figura do comodato, com se vê das conclusões das respectivas alegações, apenas divergindo quanto à interpretação da norma do n.º 2 do artigo 1137º do Código Civil, no que respeita à cessação do “comodato precário” a que a norma se reporta, não estando também em causa a apreciação da matéria de facto, nem a existência de eventual anterior acção de reivindicação, a que a recorrente alude agora nas alegações, mas que não identifica nem comprova.
O comodato está definido no artigo 1129º do Código Civil, como “… o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com obrigação de a restituir”.
São características essenciais à caracterização de um contrato como de comodato: a gratuitidade, a precariedade, a temporalidade e o dever de restituição. O prazo e o fim do comodato não são elementos do mesmo, apenas relevam para efeitos de restituição da coisa, nos termos do artigo 1137º do Código Civil.
O comodato é um contrato típico e nominado, cuja definição legal e respectiva disciplina constam dos artigos 1129º a 1141º do Código Civil, e, apesar do comodato poder incidir sobre coisa imóvel, não requer forma escrita.
4. No caso em apreço, como se referiu, não dissentem as partes quanto à subsunção da situação factual em causa à figura do comodato, e provou-se que, após 01/06/1963, data em que se consumou a venda do estabelecimento comercial identificado nos autos – Casa de Hóspedes... –, e a R. teve que abandonar o imóvel que ocupava ao abrigo do acordo escrito celebrado com os anteriores proprietários daquele estabelecimento, avós do A. (celebrado em data indeterminada, mas posterior a 1980 e anterior a Setembro de 1982), não tendo a R. habitação para residir, os anteriores proprietários permitiram, a título de mero favor pessoal e sem qualquer encargo, que a R. fosse habitar provisoriamente o n.º 50 da Rua 1..., onde estava instalada a lavandaria da referida casa de hóspedes, até a R. encontrar casa para habitar.
Ou seja, a R. passou a habitar este local, por cedência dos então proprietários, a título gratuito, até encontrar casa para habitar, resultando dos factos apurados que ali se mantém.
Note-se que do facto de se dizer que tal cedência foi por mero favor pessoal, não resulta a descaracterização da situação como de comodato, pois estão presentes todos os elementos caracterizadores desta figura jurídica, o que nem sequer é sequer questionado nos autos, e, como se diz no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18/04/2024, “[n]ormalmente, na base do contrato de comodato estão relações de cortesia, de gentileza, marcadas pela disponibilidade gratuita, concedida pelo dono da coisa” [proc. n.º 422/22.6T8VNG.P1, disponível como os demais citados, sem outra referência, em www.dgsi.pt].
5. Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.03.2019 (proc. n.º 2/16.5T8MGL.C1.S1), também citado no acórdão de 26/11/2020 (proc. n.º 3233/18.0T8FAR.E1.S1):
«Como se colhe da sua própria definição, é da natureza do contrato de comodato a obrigação de restituir a coisa.
A precariedade do uso facultado ao comodatário transparece, ainda, claramente, quer das obrigações específicas do comodatário, quer do regime estabelecido para a restituição da coisa (cf. arts. 1135º e 1137º, do CC). [nota 1: Cf. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, Vol. IV, Almedina, págs. 242-243; Antunes Varela, RLJ, ano 119º, nºs 3747 e 3748 e Menezes leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, Contratos em Especial, 11ª edição, págs. 361 e ss.]»
Em face da natureza precária do contrato de comodato, uma das obrigações do comodatário, de entre as previstas no artigo 1135º do Código Civil, consiste, pois, em “restituir a coisa findo o contrato” (cfr. alínea h)), estabelecendo-se no artigo 1137º do Código Civil, sob a epígrafe “Restituição”, que:
«1. Se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação.
2. Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida.
(…)».
Nos termos do n.º 1 deste preceito, se os contraentes não convencionaram prazo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação, o que se compreende por ter deixado de subsistir o fim para o qual foi convencionada a cedência.
Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigido, como decorre do n.º 2 do mesmo artigo, o que demanda a interpelação para esse efeito.
Em síntese, o contrato de comodato cessa: 1) Com o vencimento do prazo, se este tiver sido convencionado (artigo 1137º, nº 1, 1ª parte); 2) Não havendo prazo certo, logo que finde o uso determinado para que foi concedido, independentemente de interpelação; 3) Não havendo prazo certo nem uso determinado, quando o comodante o exija (hipótese que constitui o chamado “comodato precário”, que pode cessar em qualquer momento por denúncia do comodante).
6. A propósito da duração do uso da coisa refere Rodrigues Bastos [cfr. nota 2: Ob. cit., págs. 251-252] que “o uso da coisa, no comodato, deve durar por todo o tempo estabelecido no contrato. Discute-se se será admissível um comodato por mais de trinta anos, dado o que preceitua o art. 1025.° (para a locação). Embora a lei não marque, para esta hipótese, um limite à duração do uso, a verdade é que tem de considerar-se a cedência sempre limitada a certo período de tempo, sob pena de desrespeitar a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado do imóvel. Bastará para isso pensar que um comodato muito prolongado de um imóvel converter-se-ia em doação (indirecta) do gozo da coisa, ou, se fosse para durar por toda a vida da outra parte, o comodato descaracterizar-se-ia em direito de uso e habitação.”.
E, como se diz no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça: «Em razão dessa nota de temporalidade, assumida como traço essencial do comodato, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido que o «uso determinado», a que se alude no art. 1137º, do CC, pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada mas antes actos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, caso em que se deve haver como concedido por tempo indeterminado. Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável» [nota 3: Cf., neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 13.5.2003, revista n.º 1323/03, Relator: Silva Salazar; de 27.5.2008, revista n.º 1071/08, Relator: Alberto Sobrinho; 31-03-2009 ; de 31.3.2009, revista n.º 359/09, Relator: Pereira da Silva; de 16.11.2010, revista n.º 7232/04.0TCLRS.L1.S1, Relator: Alves Velho, disponíveis in www.dgsi.pt.]».
De facto, dada a natureza do contrato de comodato, como precário e limitado no tempo, constitui entendimento jurisprudencial dominante, com apoio doutrinário, que o conceito de “uso determinado” só está preenchido se se encontrar delimitada, em termos temporais, ou, pelo menos, for determinável, a necessidade que o comodato visa satisfazer, ou seja, o uso determinado da coisa deve conter em si a definição do tempo de uso. [Cfr., neste sentido, entre outros, também, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/02/1983 (proc. n.º 070496); de 01/07/1999 (proc. n.º 99B344); de 13/05/2003 (proc. n.º 03A1323); de 16/11/2010 (proc. n.º 7232/04.0TCLRS.L1.S1); de 15/12/2011 (proc. n.º 3037/05.0TBVLG.P1.S1), e ainda os acórdãos, do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14/10/2008 (proc. n.º 2875/2008-1), do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/09/2010 (proc. n.º 1275/05.4TBCTB.C1), e do Tribunal da Relação do Porto, de 18/04/2024 (proc. n.º 422/22.6T8VNG.P1) e do Tribunal da Relação de Évora, de 19/11/2020 (proc. n.º 1564/19.0T8BJA.E1), e de 15/06/2023 (proc. n.º 1855/19.0T8PTM.E1), estes com indicação dos sumários de vários arestos, todos disponíveis, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt].
Efectivamente, como se concluiu nestes dois últimos arestos, em função da síntese jurisprudencial efectuada:
«I - O contrato de comodato, revestindo a característica da temporalidade, não consente a sua subsistência indefinida, seja por falta de prazo, seja por estar associado a um uso genérico ou de duração incerta.
II - O uso só tem fim determinado se o for também temporalmente determinado ou, pelo menos, por tempo determinável.
III - Não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo de uma casa para habitação e, por isso, não obsta à restituição da coisa comodada a circunstância de esse específico fim ainda ocorrer.»
Por fim, em apoio deste entendimento, veja-se, ainda, o recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15/05/2025 (proc. n.º 2691/20.7T80ER.L1.S1), onde se concluiu que:
«I. A relação de comodato corresponde estruturalmente a um quadro de duração limitada. Esse limite pode resultar do acordo das partes ou pode resultar indirectamente, da circunstância de a coisa ter sido emprestada para um uso determinado.
II. O comodato “precário” - comodato que ao não ter prazo fixado ab initio, nem um uso determinado da coisa comodatada pelo beneficiário - pode cessar a todo o tempo, por vontade unilateral do comodante.
III. O efeito do “comodato precário “- ilegitimidade da recusa da restituição pelo beneficiário perante a vontade do comodante - vem sendo preconizado de forma reiterada pela Jurisprudência do STJ, que assenta na ideia chave, de que a ordem jurídica não tolera um comodato que deva subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico.
IV. O comodato “para uso determinado” contém a delimitação da necessidade temporal que visa satisfazer, denotando que o uso convencionado da coisa tem de se encontrar adstrito a um tempo determinado de utilização, ou pelo menos, determinável. (…)»
Trata-se de orientação que aqui seguimos, que igualmente foi adoptada na sentença recorrida, por se nos afigurar que, no quadro normativo vigente, não é de aceitar um comodato que subsista indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por perdurar o fim estipulado.
7. Invoca, porém, a recorrente que no comodato sem prazo certo, mas que tenha por fim o uso de habitação familiar, não existe a obrigação do comodatário restituir a casa, até ao momento em que deixe de a habitar.
Tal entendimento buscará fundamento no decidido nos arestos do Supremo Tribunal de Justiça, de 05/06/2018 (proc. n.º 1281/135TBTMR.E1.S1), de 09/04/2019 (proc. n.º 697/10.3TCFUN.L1.S1), e de 04/02/2021 (proc. 5779/18.0T8LSB.L1.S1), que no contexto factual de comodato de imóvel destinado à habitação permanente do comodatário, identificam o fim determinado e assim subsumível ao regime de cessação previsto no n.º 1 do artigo 1137º do Código Civil.
Porém, importa realçar que foi em função das especificidades da matéria de facto em apreço nestes arestos, distanciada da que ora se aprecia, que resultou a distinta solução jurídica a que chegaram as enunciadas decisões, posto que a decisão de não obrigar à restituição da coisa assenta em factualidade e enquadramento jurídico específicos – no domínio das relações entre ex-cônjuges – não verificados no caso dos autos.
Efectivamente, como se diz no referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15/05/2025:
«No caso apreciado no acórdão de 05.06.2018 (proc. n.º 1281/13.5TBTMR.E1. S1), disponível em www.dgsi.pt, estava em causa um diferendo em que um dos autores, sucedendo na posição de um dos comodantes, entretanto falecido, pretendia que a ré, de quem se divorciara, restituísse a habitação na qual residia ao abrigo do acordo celebrado entre o autor e a ré quanto ao destino da casa de morada de família. Já no caso apreciado no acórdão de 09.04.2019 (proc. n.º 697/10.3TCFUN.L1. S1), in www.dgsi.pt, estava em causa um contrato de comodato celebrado entre as partes, na constância do matrimónio, para que a ré deixasse a casa de morada de família, na qual o autor continuou a viver, para ir habitar, juntamente com os filhos do casal, no imóvel objecto do comodato; tendo ademais o tribunal entendido resultar do acordo celebrado que o contrato duraria até à maioridade dos filhos comuns.
Deste modo, quer num quer noutro caso, a decisão de não obrigar à restituição da coisa assenta em factualidade e enquadramento jurídico específicos – no domínio das relações entre ex-cônjuges – não verificados no caso dos autos.
Quadro fáctico que se repete no posterior Acórdão do STJ 04.02.2021.»
8. Acresce que, o entendimento propugnado pela recorrente, no sentido de que não seria exigível a restituição do imóvel enquanto se mantivesse o uso para habitação da comodatária, além de não corresponder ao largamente maioritário seguido pela jurisprudência, e que aqui adoptamos, mostra-se contrário à natureza temporária do comodato, pois levaria, não só à perpetuação do uso da coisa, como também colocaria o comodatário numa posição bem mais sólida e favorável do que se tivesse, por exemplo, celebrado um contrato de arrendamento (cfr., quanto à duração do contrato de locação o artigo 1025º, do Código Civil), solução que, salvo o devido respeito, a ordem jurídica não poderia tolerar [cfr. o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26/11/2020].
9. Por fim, resulta da última conclusão do recurso que a recorrente entende que a interpretação da norma do n.º 2 do art, 1137º do Código Civil, no sentido de que não tendo sido convencionado prazo certo para o comodato, mas o mesmo tenha por fim o uso para habitação do comodatário, existe obrigação de restituição logo que seja exigida, ainda que o uso da coisa de mantenha, viola o artigo 65º da Constituição, norma que consagra o direito à habitação.
A questão da tutela e protecção legal da habitação e morada de família, que a recorrente pretende invocar na aludida conclusão do recurso (ainda que sem qualquer correspondência no corpo das alegações), foi apreciada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15/05/2025, nos seguintes termos:
«O direito à habitação onde se desenvolve a família está reconhecido nos artigos 65º e 67º, nº1, da Constituição da República Portuguesa: «todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar»; 1. A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.»
O direito à habitação é um direito humano fundamental, consagrado na Constituição da República Portuguesa e na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No entanto, este direito pode entrar em conflito com o direito à propriedade privada, que também é protegido pela CRP e pela DUDH.
Reconhecemos que a busca do modo de ultrapassar o conflito entre os direitos à habitação e à propriedade privada é um tema complexo, que envolve questões fundamentais de justiça social e liberdade individual.
O problema que se coloca não é novo e a solução propugnada pela jurisprudência e a doutrina maioritárias, a que aderimos, assenta em parte na ideia de que a protecção da habitação, sendo uma incumbência do Estado, não deve realizar-se através do sacrifício de certa coisa ou direito individual [Como assinala M. TEIXEIRA DE SOUSA, Manual de Processo Civil, vol. II, 2022, pp. 701/702].
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira o direito à habitação, direito individual é também um “direito das famílias” [Cfr. CRP, anotada, volume I, 4ª, 2007, pp.834, 857]:
«Consiste, por um lado, no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma; neste sentido, o direito à habitação reveste a forma de “direito negativo”, ou seja, de direito de defesa, determinando um dever de abstenção do Estado e de terceiros, apresentando-se, nessa medida, como um direito análogo aos “direitos, liberdades e garantias” (cfr. art. 17º). Por outro lado, o direito à habitação consiste no direito a obtê-la por via de propriedade ou arrendamento, traduzindo-se na exigência das medidas e prestações estaduais adequadas a realizar tal objectivo. Neste sentido, o direito à habitação apresenta-se como verdadeiro e próprio “direito social”.»
Assim entendido o problema, a nosso ver, não se identifica razão persuasiva para que, no caso concreto que se aprecia, justifique equacionar diferente solução, acrescendo que a reclamada protecção da habitação ficou por demonstrar pela Autora, através da alegação e prova de factos reveladores da impossibilidade de meios ou alternativa para fixar residência em outra casa, que não se basta com a situação da incapacidade física.
De qualquer modo, independe das incidências do caso concreto, situando-se a pretensão da Autora para lá da tutela constitucional do direito à habitação, não cabe a este tribunal interpretá-lo em sentido que não tenha o mínimo respaldo na letra e sentido da lei, em detrimento do direito de propriedade privada com igual protecção na Constituição da República Portuguesa.
Por claramente pertinente, reproduzimos o que se escreveu no Acórdão do STJ de 13.12.2022 [No proc.º nº 11843/19.1T8LSB.L1.S1, estando em causa a ocupação sem título de casa do IHS por pessoa e agregado familiar de débil estatuto económico e social a www.dgsi.pt]:
« … ocupando a Ré o imóvel pertencente ao A. Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana IP, sem deter qualquer título para o efeito e não pagando qualquer contrapartida por essa mesma ocupação, assiste à proprietária, nos termos gerais do artigo 1311º do Código Civil, o direito a reivindicar, obtendo para si, o seu imóvel; Merecendo a débil situação pessoal da Ré ocupante/utilizadora, mormente a sua fragilidade económica e o seu precário estado de saúde, o máximo respeito, devendo ser devidamente considerada, atendida e cuidada em sede e momento próprios pelas entidades públicas vocacionadas para a resolução destes problemas graves de emergência social, o certo é que a mesma não é susceptível, em termos estritamente jurídicos, de paralisar o direito de propriedade do A. que exige, legitimamente, a restituição de um bem que lhe pertence, cuja utilização não contratualizou com a Ré, e pela qual não recebe qualquer contrapartida, com directo prejuízo para as finalidades e programação (que lhe compete) das suas funções assistenciais, as quais devem cobrir globalmente toda a comunidade necessitada, em conformidade com os critérios e procedimentos legais previamente aprovados pelos órgãos competentes; No mesmo sentido, não é possível interpretar o regime constante da Lei nº 83/2019, de 3 de Setembro, que estabelece as bases do direito à habitação e as incumbências e tarefas fundamentais do Estado na efectiva garantia desse direito a todos os cidadãos, nos termos da Constituição da República Portuguesa, como legitimando, num dado caso concreto, as ocupações de imóveis ilegalmente consumadas e que perdurem no tempo, agindo os ocupantes sem título e usando-os gratuitamente contra a vontade do seu proprietário, ao completo arrepio das atribuições conferidas às entidades competentes neste domínio da atribuição de habitação social, sob pena de total descaracterização e subversão da concepção de Estado de Direito que preside a todo o nosso edifício legislativo]»
Sobre o alcance do direito à habitação o Tribunal Constitucional vem preconizando, entre outros, no Acórdão n.º 612/2019 [Decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 751.º, n.º 3, alínea b), do CPC, em www.tc.jurisprudencia]:
«(...)] Tal como outros direitos sociais, o conteúdo do direito à habitação desdobra-se numa dupla vertente: por um lado, uma vertente de natureza negativa, que se traduz no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham de actos que prejudiquem tal direito; por outro lado, uma vertente de natureza positiva, correspondente ao direito a medidas e prestações estaduais visando a sua promoção e protecção.
(...) É esta vertente de direito social que implica um conjunto de obrigações positivas por parte do Estado, legitimando pretensões a determinadas prestações, que vem acentuada no artigo 65.º da CRP, particularmente nos seus n.ºs 2 a 4.
Significa isto que, sendo o direito à habitação configurado como um direito à protecção do Estado, as pretensões nele fundadas não têm como destinatários directos os particulares, nas relações entre si, mas antes o Estado, as regiões autónomas e as autarquias, a quem são impostas um conjunto de incumbências no sentido criar as condições necessárias tendentes a assegurar tal direito. A garantia de tal direito envolve, deste modo, a adopção de medidas no sentido de possibilitar aos cidadãos o acesso a habitação própria (cf. o n.º 3 do artigo 65.º da CRP). Contudo, o mesmo direito não se esgota nem se identifica com o direito a ser proprietário de um imóvel onde se tenha a habitação, sendo realizável também por outras vias, designadamente através do arrendamento.
Neste mesmo sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 649/99, salientando, por um lado, que « [..]o direito à habitação não se esgota ou, ao menos, não aponta, ainda que de modo primordial ou a título principal, para o “direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão”» e, por outro, «que o “mínimo de garantia” desse direito (ou seja, o de obter habitação própria ou de obter habitação por arrendamento “em condições compatíveis com os rendimentos das famílias”) é algo que se impõe como obrigação, não aos particulares, mas sim ao Estado».
[…].».
Assim, embora o direito à habitação possa justificar limitações à propriedade, tais limitações terão de obedecer sempre a um princípio de equidade e de proporcionalidade, sem que se perca de vista, no entanto, que o direito à habitação constitucionalmente garantido, na sua vertente positiva, tem como titulares passivos, em primeira linha, o Estado e os demais entes públicos territoriais, e não os particulares.
Nessa medida, a consagração do direito fundamental à habitação «pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respectivo conteúdo, a efectivar-se segundo a “reserva do possível”, não conferindo, por si mesmo, habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e de conforto, com preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar, na medida em que isso sempre dependerá da concretização da tarefa constitucionalmente atribuída ao Estado» (cf. Acórdão n.º 829/96 e, neste mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 508/99 e 29/2000).
Por outro lado, e tendo em conta a aludida vertente defensiva, está vedado ao legislador ordinário adoptar soluções que impliquem a privação arbitrária, sem fundamento razoável, do direito a ter uma habitação condigna (cf., a este respeito, os Acórdãos n.ºs 4/96 e 402/2001). Mas o Tribunal Constitucional tem igualmente reconhecido que, nesta matéria, o legislador goza de um amplo espaço de conformação (cf., a este respeito, entre outros, o Acórdão n.º 806/93), conformação essa que a propósito da tutela da habitação própria permanente do executado, tem a vindo a ser exercida em diversas ocasiões.
[...]
É certo que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem afirmado, nalguns casos, que nesta ponderação o legislador deverá sacrificar o direito do credor, na medida do necessário, de forma que a realização desse direito não ponha em causa a sobrevivência ou subsistência do devedor, tendo em vista a tutela da dignidade da pessoa humana (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 177/2002 [...]
Com efeito, sendo certo que é merecedora de ponderação a circunstância de o imóvel ser a habitação da Autora, e não obstante a função social da propriedade, que poderá justificar a imposição de certas restrições aos direitos do proprietário privado (cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 311/93, 263/2000, 309/2001 e 543/2001), daí não decorre que seja exigível impor aos particulares que se substituam ao Estado nas obrigações que sobre este impendem em matéria de protecção do direito à habitação (cf. os Acórdãos n.ºs 101/92, 130/92, 633/95 e 570/2001). […]».
Assim, comungando-se tais argumentos, na situação sub judice, face à factualidade que ficou provada, a invocada tutela legal do direito à habitação da comodatária, não é idónea para impedir a obrigação de restituição por vontade expressa e interpelação efectuada pelo proprietário do imóvel.
10. De resto, sempre se dirá, que nos movemos no âmbito de uma acção de reivindicação, pelo que, como se referiu, provada a propriedade, só não ocorrerá a restituição do bem, no caso de o detentor possuir título que legitime essa detenção, sendo que, atendendo às regras do ónus da prova, é sobre o réu que recai, se for o caso, o ónus de provar que é titular de um direito que justifica a recusa da restituição (artigo 342º do Código Civil).
Ora, sendo invocado o comodato, era sobre o comodatário que recaía o ónus de provar a manutenção deste contrato para obstar à restituição da coisa.
No caso, não tendo havido contestação, os factos apurados são os que resultam da prova documental junta e os alegados pelo A., assentes por confissão.
Assim, não obstante resultar apurado que o imóvel objecto do comodato se destinava à habitação da comodatária, certo é que tal cedência de uso do imóvel estava condicionada à manutenção da carência de habitação por parte da R., ou seja, como se convencionou, “até a Ré encontrar casa para habitar” (cf. ponto F) dos factos provados.
Deste modo, perante a interpelação do A., efectuada por carta de 26/06/2023, para que a R. restituísse o imóvel, para demonstração da ilicitude da resolução efectuada por tal interpelação, com a consequente manutenção do vinculo contratual conferido pelo comodato, legitimante da detenção, tinha a R. que demonstrar que se mantinham as carências de habitação que levaram à celebração do comodato, o que a R. não fez, pois nem sequer contestou a acção.
Deste modo, também por esta via, sempre a acção improcederia.
11. Assim, improcede a apelação, com a consequente manutenção da sentença recorrida.
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C) – Sumário […]
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.
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Évora, 25 de Junho de 2025
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
Filipe César Osório
(documento com assinatura electrónica)