VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
DENÚNCIA DE DEFEITOS
CADUCIDADE DA AÇÃO
Sumário

I – Não estabelecendo a lei nenhuma formalidade especial para a denúncia de defeitos da coisa vendida, tal denúncia poderá ser feita por qualquer das formas admitidas para a declaração negocial previstas no art. 217º do C. Civil, podendo nomeadamente ser feita oralmente, diretamente junto do vendedor, e, se o vendedor tiver um estabelecimento comercial aberto ao público, ser feita a quem estiver a atender no estabelecimento.
II – Tendo a denúncia ocorrido dentro do prazo da garantia, mas sido efetuada já depois de decorrido o prazo para ela previsto no nº3 do artigo 921º C. Civil, ocorre a caducidade da ação prevista na primeira parte do nº4 daquele mesmo artigo.

Texto Integral

Processo: 7228/23.3T8VNG.P1

Relator: António Mendes Coelho

1º Adjunto: Carlos Gil

2º Adjunto: Jorge Martins Ribeiro

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório[1]

A... - Unipessoal Lda.”, a 25/9/2023, intentou ação declarativa comum contra “B..., S.A.” e “C..., S.A.”, formulando a final os seguintes pedidos:

- que se reconheça a existência da garantia de 5 anos sem limite de quilómetros conferida ao veículo da autora;

- que sejam as rés solidariamente condenadas a devolver à autora a quantia de € 8.888,46, acrescida de juros de mora desde a data da citação, correspondente ao preço pago pelas reparações do veículo e aos lucros cessantes, até integral pagamento;

Ou, se assim não se entender,

- que sejam as rés solidariamente condenadas a pagar à autora a quantia de € 8.888,46, a título de danos patrimoniais sofridos em virtude do incumprimento contratual da primeira ré.

A autora alegou, em síntese, que comprou um veículo novo à 1ª ré, para uso profissional, sendo que foi acordado entre as partes um prazo de garantia de cinco anos sem limite de quilómetros. Antes do decurso desse tempo a viatura teve várias avarias cujo custo a autora teve que suportar uma vez que as rés se recusaram.

As rés contestaram a ação, pugnando pela sua improcedência, e invocaram as seguintes exceções:

- a caducidade da ação por falta de denúncia atempada de defeitos prevista nos nºs 3 e 4 do art. 921º do C. Civil, pois a autora dispunha do prazo de 30 dias para denúncia dos defeitos nos termos daquele nº3 do Código Civil e não o cumpriu;

- a caducidade da ação nos termos da segunda parte do nº4 daquele mesmo art. 921º, uma vez que a denúncia dos defeitos só foi feita em 03/01/2023 e a presente ação deu entrada no dia 25.09.2023, pelo que foi ultrapassado o prazo de seis meses ali previsto;

- a ilegitimidade passiva substantiva da primeira ré, em virtude de a garantia ser disponibilizada pelo produtor D..., sendo a 1ª ré apenas quem comercializa e presta assistência técnica à viatura;

- a falta de manutenção da viatura, como causa de exclusão da garantia.

Foi proferido despacho a 11/12/2023 a conceder à autora o prazo de 15 dais para responder à matéria de exceção invocada nas contestações.

Nessa sequência, a autora, por requerimento de19/12/2023, pronunciou-se no sentido da improcedência das exceções invocadas.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador – em sede do qual se relegou para final o conhecimento das exceções invocadas – e subsequente despacho a dispensar a identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, no invocado pressuposto da “simplicidade da matéria em discussão nos autos assim como a evidência da questão de direito a solucionar”.

Procedeu-se a julgamento, tendo na sua sequência sido proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

Pelo exposto, o Tribunal decide julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência,

A. Reconhece-se que a viatura adquirida pela autora, veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca C..., com o quadro número ... e com a matrícula ..-ZD-.., usufrui de uma garantia voluntária de cinco anos sem limite de quilómetros.

B. Condeno a segunda ré C..., S.A., com o NIPC ..., com sede em ..., ..., Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia, a pagar à autora a quantia de € 8097,92 (oito mil e noventa e sete euros e noventa e dois cêntimos) acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da data do trânsito em julgado desta sentença e até efectivo e integral pagamento.

C. Absolvo a primeira ré B..., SA., de todos os pedidos contra si formulados.

D. Condeno a autora e a 2ª ré no pagamento das custas da acção na proporção do respectivo decaimento.

De tal sentença veio a ré “C..., S.A.” interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

A autora apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), as questões a tratar no âmbito do recurso seriam apurar da impugnação à matéria de facto da decisão recorrida deduzida pela recorrente e, depois, apurar, com base na eventual alteração da matéria de facto ou independentemente dela, se a decisão recorrida deve ser revogada ou alterada, sendo aqui de analisar as exceções perentórias invocadas pela recorrente (de caducidade da ação por via da previsão dos nºs 3 e 4 do art. 921º do C. Civil e de exclusão da cobertura da garantia do fabricante) e se é de manter o decidido quanto ao mérito da causa.

No entanto, há matéria de facto já dada como provada e que não se mostra questionada no recurso que nos permite conhecer do mérito causa, do que decorre a inutilidade da análise da impugnação da matéria de facto [como se sabe, se a factualidade objeto de impugnação for irrelevante ou inútil para a apreciação do mérito da causa, e a fim de não se praticar atos inúteis no processo (o que sob o art. 130º do CPC até se proíbe), não há que conhecer da impugnação deduzida sobre a mesma: neste sentido, vide António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, Almedina, 2008, págs. 285 e 286; no mesmo sentido, vide, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 5/11/2018 (proc. nº 3737/13.0TBSTS.P1), disponível em www.dgsi.pt, o Acórdão do STJ de 23/1/2020 (proc. 4172/16.4TFNC.L1.S1), in CJ, Acórdãos do STJ, ano XXVII, tomo I/2020, págs. 13/16, e ainda o Acórdão do STJ de 22.06.2022 (proc. n.º 2239/20.3T8LRA.C1.S1), também disponível em www.dgsi.pt].

Passamos a explicar.

A matéria de facto provada sob os nºs 21 e 36 dos factos provados e a data da propositura da ação que os próprios autos documentam habilitam-nos a conhecer da exceção de caducidade da ação.

Daí que, após a enunciação dos factos constantes da sentença recorrida, comecemos pelo conhecimento de tal questão.


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II – Fundamentação

É a seguinte a matéria de facto da sentença recorrida:

Factos provados da petição inicial:

1. A Autora é uma sociedade unipessoal que desenvolve a sua atividade principal no âmbito do Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Eletrónica — TVDE.

2. A B..., S.A. — doravante, Primeira Ré — é uma sociedade anónima que desenvolve a sua atividade principal no âmbito da compra e venda de veículos automóveis, bem como prestação de serviços de oficina e outros serviços conexos, sendo Concessionário Oficial da marca C... no Barreiro, Lisboa, Porto, Setúbal, Sintra e Vila Nova de Gaia.

3. A C..., S.A. — doravante, Segunda Ré — é uma sociedade anónima que desenvolve a sua atividade principal no âmbito do comércio de automóveis ligeiros e pesados, bem como prestação de serviços conexos, sendo responsável pela representação desta marca de veículos em Portugal.

4. Em meados de julho de 2019, a Autora dirigiu-se às instalações da B..., com vista à aquisição de um veículo automóvel para o seu uso profissional.

5. Dada a ampla gama de oferta disponível no mercado, a Autora tomou em consideração vários fatores, analisando as características de automóveis de várias marcas diferentes, tendo por base um critério de qualidade-preço-durabilidade.

6. Para a escolha do veículo que viria a integrar a frota da Autora, o preço, a qualidade, a reputação da marca e as condições de garantia seriam, sempre, fatores preponderantes.

7. Após essa análise cuidada e a fase de negociação que lhe sucedeu, a Autora concluiu que as condições propostas pela Primeira Ré eram as que mais se aproximavam dos seus pré-requisitos essenciais.

8. Nomeadamente, devido às condições de garantia oferecidas que, de acordo com o Passaporte de Serviço da viatura, bem como com as condições de venda asseguradas pela Primeira Ré, previam, em termos gerais, uma cobertura de garantia de 5 anos sem limite de quilómetros.

9. Foi precisamente esse fator distintivo que levou a Autora a adquirir, em 29/08/2019, nas instalações da Primeira Ré, sitas no Porto, um veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca C..., com o quadro número ... e com a matrícula ..-ZD-...

10. Tendo, concomitantemente, sido celebrado o respetivo contrato de locação financeira entre a Autora/Locatária e o Banco 1... S.A., com o número ....

11. Os primeiros problemas no veículo foram detetados em 2021, quando o veículo perfez 60 000 Km, em virtude dos quais todo o sistema de injeção teve de ser substituído, nas instalações da Primeira Ré, sitas em Coimbra, com a inerente cobertura de garantia da marca.

12. Em 02/08/2022, decorridos praticamente 3 anos após a aquisição do veículo, a Autora dirigiu-se às instalações da Primeira Ré, sitas no Porto, para proceder à manutenção dos 180 000 Km, equivalente, no caso, a 144 meses de utilização.

13. Foi efetuada a mudança do filtro de óleo, do habitáculo, do combustível e do ar (entre outros procedimentos pontuais de menor escala), não tendo sido diagnosticado nenhum problema de maior dimensão.

14. Dos procedimentos efetuados, resultou a fatura ..., com o montante total de € 322,83, acrescido de IVA à taxa legal de 23%.

15. Sucede que, imediatamente após a manutenção dos 180 000 Km, a luz que sinaliza problemas no motor começou a aparecer no painel de instrumentos do veículo, bem como a mensagem de libertação em excesso de gases de escape.

16. Pelo que, em 04/08/2022, a Autora voltou a deslocar-se às instalações da Primeira Ré, sitas no Porto, com vista à obtenção de um diagnóstico desses avisos.

17. Ora, de acordo com o diagnóstico efetuado pela Primeira Ré, não haveria nenhum problema urgente a necessitar de atenção, devendo-se as queixas reportadas a meras questões técnicas, de escala menor.

18. Foram efetuados pequenos procedimentos, de onde resultou a fatura ..., com o montante total de € 59,62, acrescido de IVA à taxa legal de 23%.

19. As reparações efetuadas acabaram por se revelar insuficientes, uma vez que, decorridos apenas alguns meses, a luz do motor voltou a aparecer no painel de instrumentos do veículo, desta vez acompanhada por problemas no sistema de travagem e na bomba de óleo.

20. Ou seja, ao invés do asseverado pela Primeira Ré, os problemas com o veículo mantiveram-se e agravaram-se nos meses seguintes ao da devolução da viatura.

21. Pelo que, em 03/01/2023, a Autora deu entrada nas instalações da Primeira Ré, desta vez, em Sintra, para conserto e reparação das deficiências reportadas.

22. Perante as queixas reportadas, foi efetuado diagnóstico de reparação, de onde se veio a concluir que a bateria do veículo e a bomba de óleo teriam de ser substituídas, e o sensor de temperatura e sistema de travagem teriam de ser alvo de intervenção.

23. Para além dos procedimentos supra mencionados, foram, paralelamente, efetuados procedimentos técnicos complementares, de onde, conjuntamente, resultaram as faturas ..., com o montante total de € 1.154,03 e FOR/113/2023, com o montante total de € 1.491,61, ambos os valores acrescidos de IVA à taxa legal de 23%.

24. Pese embora todas as intervenções efetuadas pela Primeira Ré, a queixa inicial da Autora continuou a persistir, isto é, a luz indicadora de problemas no motor continuou a dar sinal no painel de instrumentos do veículo.

25. As anomalias continuaram e começaram a aparecer outras patologias.

26. Após, a Primeira Ré comunicou, finalmente, à Autora que possivelmente o motor estaria em fim de vida e que teria de ser substituído, bem como o turbo e o filtro de partículas.

27. Porém, a Primeira Ré desonerou-se da cobertura desses custos o que aliado ao facto do preço de um novo motor na marca ser extremamente elevado e, ao facto de, após todo o sucedido, a Autora ter dificuldade em confiar no diagnóstico apresentado pela Primeira Ré, fez com que a autora recorresse a outra Oficina capaz de lhe assegurar preços de reparação comportáveis, bem como um diagnóstico fidedigno da existência ou não de deficiências no veículo.

28. Em 02/05/2023, a Autora adquiriu à empresa E..., um novo motor, pelo preço de € 3.550,00, acrescido de IVA à taxa legal de 23%, tal como se comprova através da fatura ....

29. E, de 05/05/2023 a 17/05/2023, o veículo permaneceu nas instalações da empresa F..., onde foram realizados os procedimentos técnicos necessários, que incluíram, entre outros, a instalação do novo motor, a substituição do filtro de partículas, bem como do filtro do óleo, do habitáculo e do ar, pelo preço de € 824,22, acrescido de IVA à taxa legal de 23%, tal como se comprova através da fatura n.º ....

30. No interregno que vigorou desde que a Autora tomou conhecimento das primeiras deficiências até à culminante substituição do motor, i.e., de 04/08/2022 a 05/04/2023, a Autora viu-se na necessidade de recorrer a outras Oficinas que lhe prestassem melhor diagnóstico relativamente às anomalias que vinham a ser assinaladas.

31. Em 31/08/2022, 22/11/2022 e 29/12/2022, a Autora deslocou-se a Oficinas da sua confiança, onde foram efetuados testes de diagnóstico de anomalias, tendo sido recomendado que, dadas as patologias encontradas, a Autora recorresse aos serviços da Primeira Ré.

32. Pelos serviços prestados, a Autora pagou o montante global de € 465,98, acrescido de IVA à taxa legal de 23%, tal como se comprova através das faturas n.º ..., ... e ....

33. A Primeira Ré, após ser confrontada pela Autora no sentido do ressarcimento dos custos de reparação ao abrigo da garantia do fabricante, alegou que a referida garantia não se aplicava aos veículos TVDE.

34. Por sua vez, após ter sido contactada pela Autora, a Segunda Ré alegou exatamente o mesmo.

35. Em junho do presente ano, a Autora voltou a contactar as Rés no sentido de obter mais esclarecimentos, porém, a resposta manteve-se a mesma.

36. Sem prejuízo das avarias anteriormente detetadas e reparadas, a Autora tomou conhecimento dos defeitos que dão causa à presente ação no dia 04/08/2022.

37. Pelas reparações supra mencionadas, a Autora pagou o montante total de € 7.545,46.

38. O certificado do proprietário começa por referir que “esta publicação abrange todos os modelos e variantes de veículos automóveis da marca C..., fabricado pela D... COMPANY vendidos com o Programa - 5 anos de Garantia Sem Limite de Quilómetros, e distribuídos no espaço geográfico Português pela C..., S.A.”.

39. Na referida publicação, a marca adverte os consumidores que “para completo esclarecimento sobre a Cobertura de Garantia recomenda-se vivamente a leitura completa e atenta deste Passaporte de Serviço” e que, em caso de dúvida relativamente aos pontos estabelecidos, deve ser consultado um Concessionário Autorizado C....

40. De acordo com o que vem descrito no Passaporte de Serviço, a C... publicita, desde a data da matrícula, a garantia de peças de origem e mão-de-obra, durante 5 anos, sem limite de quilómetros.

41. Por sua vez, as condições de garantia não serão aplicáveis, somente, aos seguintes casos:

• (N)as seguintes viaturas de uso intensivo: Táxis e Rent-a-Car, às quais é aplicável a garantia de peças de origem e mão-de-obra pelo período de 3 anos ou 100.000 quilómetros;

• Nos veículos comerciais e, salvo indicação em contrário, é aplicável uma garantia de 3 anos sem limite de quilómetros;

• Serviços normais de manutenção, tais como: limpeza e polimento, ajustes, lubrificação, mudanças de óleo filtros, enchimento de líquido de refrigeração, alinhamento dos pneus e rotação, a menos que esses serviços sejam efetuados como parte de uma reparação coberta pela garantia;

• Deterioração normal de qualquer peça, pelo uso;

• Substituição normal de itens de assistência: velas de ignição, correias, pastilhas ou calços de travões, borrachas de limpa para-brisas, fusíveis, disco de embraiagem, filtros, lâmpadas ou outros, a menos que essas substituições sejam efetuadas como parte de uma reparação a coberto pela garantia;

• Qualquer veículo em que o conta-quilómetros tenha sido manipulado.

42. Por fim, é referido que “a garantia consiste na substituição ou reparação gratuita das peças defeituosas ou ineficientes devido a defeito de fabrico”.

43. Foi a Primeira Ré quem explicitamente incitou a Autora a aproveitar a garantia de 5 anos sem limite de quilómetros que a C... estava a oferecer, no momento, aos veículos TVDE.

44. Quando adquiriu o automóvel, a Autora foi informada expressamente, verbalmente e por escrito, pela Primeira Ré que, a garantia concedida aos veículos TVDE era de 5 anos, sem limite de quilómetros.

45. Tratando-se de condição essencial do negócio, sem a qual o mesmo nunca teria sido efetuado nos termos em que o foi.

46. Condição, essa, que era do perfeito conhecimento da Primeira Ré.

47. A Primeira Ré sempre soube do destino que a Autora ia dar à viatura em causa, tendo-lhe assegurado que a mesma, apesar de ser um veículo TVDE, tinha uma garantia de 5 anos sem limite de quilómetros, o que lhe conferia o direito, entre outros, à reparação ou substituição gratuita advinda de qualquer anomalia que se manifestasse no referido lapso temporal.


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Factos provados das contestações das rés:

48. A 1.ª Ré é concessionária e reparadora autorizada da marca C....

49. A 1.ª Ré não fabrica veículos automóveis, nem os seus componentes – não possuindo atividade industrial na produção de viaturas automóveis.

50. Nem tão pouco representa o Fabricante/Produtor.

51. A viatura em apreço foi fabricada pela D... COMPANY, e distribuída/importada para o espaço geográfico português pela 2.ª Ré (C... S.A.).

52. Cabe à primeira ré receber a viatura nas suas instalações, diagnosticar avarias e submeter, após solicitação do cliente, o processo à entidade gestora de garantias para aprovação ou rejeição da reparação no âmbito da garantia.

53. A viatura era explorada comercialmente pela Autora como TVDE, atividade essa que está associada à condução em circuitos em zonas de tráfego intenso, a baixa velocidade.

54. Sendo certo que a viatura em questão percorreu de 29-08-2019 a 02-08-2022 um total de 180.175 Km.

55. Prevê o referido manual que, nos casos previstos nessas alíneas, a viatura deve ser submetida com maior frequência a trabalhos de manutenção, nomeadamente no que se refere à verificação e substituição do óleo do motor e o filtro do óleo do motor a cada 15.000 Km percorridos.

56. As recomendações do Fabricante quanto à utilização e manutenção das viaturas por si produzidas encontram-se expressas no referido manual do condutor.

57. O manual a que se faz referência foi entregue à Autora e normalmente acompanha a viatura a que respeita.

58. Verifica-se pela análise do registo de operações de manutenção, presente no Doc. 1 junto pela Autora com a Petição Inicial, que a viatura em causa nos presentes autos desde a data da sua entrega após venda (29-08-2019) só realizou uma das manutenções programadas pelo fabricante num reparador autorizado pela marca.

59. Que veio a ocorrer no dia 02/08/2022, quando a viatura tinha já 180.175 Km.

60. De acordo com os carimbos apostos no passaporte de serviço da viatura, foram sendo realizadas manutenções por oficinas independentes não autorizadas pela marca.

61. Conforme decorre a Fls. 20 do Doc. 1 junto pela Autora com a Petição Inicial apresentada, é alertado que: “OPERAÇÕES DE MANUTENÇÃO CALENDARIZADA:

As operações de manutenção calendarizada são inspeções a diversos órgãos, componentes e peças do seu veículo que pelo seu uso estão sujeitos a desgaste, necessidade de reposição ou substituição de lubrificante, reaperto e afinações. Estas manutenções implicam equipamentos, ferramentas e pessoas especializadas, que uma Entidade Reparadora Autorizada C... pode fornecer.

As operações de manutenção calendarizada são definidas pelo construtor e servem para minimizar o desgaste devido à utilização do veículo e repõe-no em condições ideais de utilização.

IMPORTANTE

(…). Consultar o Manual de Instruções do seu veículo.

EFETIVAÇÃO A não observância do plano de manutenção calendarizada, origina uma mais rápida degradação do veículo, maiores riscos de avarias, perda de garantia e/ou maiores encargos em caso de reparações.

62. Por sua vez decorre do que consta a Fls. 21 do referido documento junto pela Autora com a Petição Inicial de que: “NORMAS DE MANUTENÇÃO A SEREM SEGUIDAS PELO PROPRIETÁRIO O cumprimento do plano de operações de Manutenção calendarizadas é da responsabilidade do proprietário do veículo, assim como a substituição de acessórios. (…) Para preservar continuamente o bom estado de funcionamento do veículo, recomenda-se a leitura atenta do seu Manual de Instruções, nomeadamente o capítulo designado, “Manutenção””.

63. Constata-se que a fls. 13 do Doc. 1 junto pela Autora com a Petição Inicial consta que:

A GARANTIA CESSA POR DIREITO: (…) - Se forem modificadas, reparadas ou desmontadas, mesmo que parcialmente, em termos diferentes dos preconizados pelo fabricante.

- Se não forem executadas as operações previstas nos planos de manutenção no tempo e quilometragem preconizados.

(…)

64. Mais consta ainda a negrito e de forma bastante destacada a fls. 17 do referido documento que: “O direito à garantia caduca imediatamente se o veículo não for assistido de acordo com os procedimentos de manutenção preconizados pela D... COMPANY. Recomendamos que efetue a verificação, manutenção e reparação do seu veículo num Reparador Autorizado C....

65. Consta a Fls. 10 do Doc. 1 junto pela Autora com a Petição Inicial, sob a epígrafe “O QUE NÃO ESTÁ COBERTO”: - “Deterioração normal de qualquer peça, pelo uso;

66. Constata-se que na intervenção de 03/01/2023 a viatura deu entrada nas oficinas, já com 198.450 Km circulados, com o sensor de temperatura do motor partido, sendo este um dos motivos da luz do motor se encontrar acesa.

67. Também foi necessária a substituição da bateria de 12V.

68. Nesse dia foram ainda efetuados os trabalhos associados com a substituição da bomba de óleo.

69. A substituição da bomba de óleo por uma nova foi apreciada no seguimento da indicação por parte da Autora de que a viatura deixou de travar convenientemente.

70. Resulta do teor do Doc. 9 em referência que foram cobrados €59,62 (cinquenta e nove euros e sessenta e dois cêntimos pela 1.ª Ré, a 05-08-2022, pelo diagnóstico e realização da regeneração forçada do filtro de partículas.

71. Resulta do teor do Doc. 10 que o valor global ilíquido cobrado pela 1.ª Ré, a 27-01-2023, no total de €1.155,03 (mil, cento e cinquenta e cinco euros) diz respeito a duas operações.

72. A primeira delas diz respeito à substituição do sensor de temperatura do motor que se encontrava partido, o que motivou o aparecimento do aviso luminoso no painel do condutor, com a valor ilíquido de €1.010,13 (mil e dez euros e treze cêntimos).

73. Por outro lado, a segunda tarefa debitada na fatura em referência diz respeito à substituição da bateria de 12 V, no valor ilíquido de €143,90 (cento e quarenta e três euros e noventa cêntimos).

74. Resulta do Doc. 11 que o valor global ilíquido cobrado pela 1.ª Ré, a 27-01-2023, no total de €1.491,61 (mil, quatrocentos e noventa e um euros e sessenta e um cêntimos) diz respeito a uma operação de reparação no sistema de travagem da viatura.

75. O valor debitado na fatura junta pela Autora sob Doc. 13 da Petição Inicial, emitida por uma entidade terceira, que não é reparador autorizado da marca, no valor total ilíquido de €824,22 (oitocentos e vinte e quatro euros e vinte e dois cêntimos), a mesma diz respeito a:

a) Substituição do óleo e filtro de óleo, no valor de €70,00 (setenta euros), tratando- se de uma operação normal na manutenção ordinária da viatura automóvel;

b) Filtro de Ar, no valor de €16,90 (dezasseis euros e noventa cêntimos), tratando- se de uma operação normal na manutenção ordinária da viatura automóvel;

c) Filtro do Habitáculo, no valor de €13,92 (treze euros e noventa e dois cêntimos), tratando-se de uma operação normal na manutenção ordinária da viatura automóvel;

d) Anticongelante, no valor de €12,50 (doze euros e cinquenta cêntimos);

e) Correia, no valor de €186,00 (cento e oitenta e seis euros);

f) Bomba de Água, no valor de €44,90 (quarenta e quatro euros e noventa cêntimos);

g) Limpeza de filtro de partículas, no valor de €180,00 (cento e oitenta euros);

h) Prestação de Serviços, no valor de €300,00 (trezentos euros);

76. Na fatura junta pela Autora com a Petição Inicial sob Doc. 14, no valor total ilíquido de €104,40 (cento e quatro euros e quarenta cêntimos) constata-se que a mesma debitou os seguintes trabalhos:

a) Teste de diagnóstico de anomalias, avarias e falhas, no valor de €30,00 (trinta euros;

b) Substituição do óleo de motor, no valor de €24,01 (vinte e quatro euros e um cêntimo);

77. Na fatura junta pela Autora com a Petição Inicial sob Doc. 15, no valor total ilíquido de €328,33 (trezentos e vinte e oito euros e trinta e três cêntimos) constata-se que a mesma debitou os seguintes trabalhos:

a) Teste à bateria de 12V, no valor de €10,00 (dez euros);

b) Substituição dos 4 pneus, no valor total de €331,60 (trezentos e trinta e um euros e sessenta cêntimos);

c) Calibragem das 4 jantes, no valor total de €27,80 (vinte e sete euros e oitenta cêntimos);

d) Substituição de 4 válvulas de borracha dos pneus, no valor total de €0,56 (cinquenta e seis cêntimos;

e) Alinhamento dos 2 eixos, no valor €33,90 (trinta e três euros e noventa cêntimos;

78. Na fatura junta pela Autora com a Petição Inicial sob Doc. 16, no valor total ilíquido de €40,89 (quarenta euros e oitenta e nove cêntimos) constata-se que a mesma debitou os seguintes trabalhos:

a) Diagnóstico eletrónico, no valor de €34,94 (trinta e quatro euros e noventa e quatro cêntimos;

b) Substituição da lâmpada da luz de travagem do lado esquerdo, no valor de €2,95 (dois euros e noventa e cinco cêntimos);

c) Preço da lâmpada substituída, no valor de €3,00 (três euros);

79. Consta de fls. 13 do Doc. 1 junto pela Autora com a Petição Inicial que: - “A garantia consiste na substituição ou reparação gratuita das peças defeituosas ou ineficientes devido a defeitos de fabrico, averiguado e reconhecido pela rede Reparadora Autorizada C... segundo os termos e modalidades constantes do Passaporte de Serviço. Eventuais atrasos na execução dos trabalhos não dão direito ao comprador a indemnização por danos nem prorrogação do período de garantia.

80. O reparador autorizado pela marca que realizou as reparações em referência foi a concessionária G... Lda., com o NIPC ... e com sede na Rua ..., ..., ... ....


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Factos não provados da petição inicial:

1. O veículo supra identificado sempre foi utilizado de forma cuidada, em conformidade com as condições e indicações do fabricante.

2. Aliás, constituindo uma ferramenta essencial de trabalho da Autora, pretende-se, evidentemente, que seja duradoura.

3. Pelo que, uma correta utilização da mesma forma, então, umas das bases de uma atividade profissional sólida, bem-sucedida e sustentável.

4. Deste modo, a Autora sempre zelou pelo bom estado da sua viatura, cumprindo com todos os procedimentos técnicos necessários, nomeadamente revisões e inspeções periódicas.

5. Sendo de referir que, já nesse período, a Primeira Ré mostrou uma certa resistência em cumprir o estabelecido nas condições de garantia.

6. Não é normal que, num tão curto período de utilização, um veículo se degrade a este extremo, a não ser por utilização desastrosa por parte do seu condutor, o que não é de todo o caso, pois a Autora sempre atuou de forma cuidada e responsável, garantindo o bom funcionamento dos seus automóveis, o que facilmente se demonstra pelo bom estado de conservação e ausência de avarias nos outros veículos que compõem a sua frota.

7. E, apesar de uma utilização que se poderá considerar intensa, segundo os padrões normais, não poderá nunca ser considerada anormal, atento o cuidado, bom uso e cuidados de manutenção de que foi alvo, entendendo-se estar em causa um uso razoável em atenção às características do veículo e da própria marca, bem como o fim a que o mesmo é destinado.

8. E, pela não utilização do veículo nos períodos em que o mesmo esteve nas Oficinas, a Autora deixou de auferir a quantia estimada de 1.343,00 € (tomando por base o valor médio líquido de faturação semanal, que, no mês de agosto do presente ano, se fixou nos € 554,00).

9. Atualmente, de acordo com o que vem publicitado na página oficial da Segunda Ré, a C... oferece uma garantia de 7 anos sem limite de quilómetros aos veículos ligeiros de passageiros matriculados a partir de 1 de setembro de 2019, desde que vendidos, à data da matrícula, por um concessionário autorizado da rede Oficial C... a um consumidor final, de acordo com os Termos e Condições constantes no Passaporte de Serviço da viatura.

10. E, a marca explicitamente esclarece que viaturas Taxi, Rent-a-car e TVDE têm apenas uma garantia de 3 anos ou 100.000 quilómetros, sujeita aos Termos e Condições constantes no Passaporte de Serviço da viatura.


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Factos não provados das contestações:

1. Face ao exposto, a Autora só denunciou à 1.ª Ré os alegados defeitos de que esta confessa ter conhecimento desde 04/08/2022, no dia 03/01/2023.

2. A viatura em causa nos presentes autos não cumpriu com o plano de manutenção preconizado pela marca.

3. Tratando-se de uma viatura sujeita a condições extremas, associada a grande desgaste, decorrente do uso intensivo dado à mesma.

4. Não provado que os 180.175 Km tenham sido percorridos em condições de uso intensivo e adverso.

5. Algo que teria efetivamente reduzido o normal desgaste da viatura associado às condições de condução intensas a que era diariamente submetida, protegendo os seus componentes, nomeadamente, os do motor que naturalmente se encontram expostos a maiores temperaturas e pressões que os restantes componentes da viatura automóvel.

6. Ou seja, a viatura circulou mais de 180.000 Km, em condições de utilização adversas e uso intensivo, durante quase 3 anos, sem nunca ter realizado uma única manutenção em reparador autorizado da marca – provado apenas que a viatura percorreu os 180.000 Km e só realizou uma das manutenções programadas pelo fabricante num reparador autorizado pela marca.

7. As manutenções realizadas por reparadores autorizados são realizadas com a garantia de que o procedimento adotado é o preconizado pela marca, que o plano de manutenção programado é pontualmente cumprido, que os técnicos intervenientes são têm formação especializada na marca e os componentes ou materiais consumíveis substituídos ou aplicados na viatura têm a origem e a qualidade indicada pelo fabricante.

8. Desconhecendo a 1.ª Ré se as oficinas independentes que supostamente efetuaram as manutenções à viatura em causa nos presentes autos, possuem técnicos com competência e formação nas viaturas da marca C..., se os procedimentos adotados são os preconizados pela marca, se o plano de manutenção programado pelo fabricante foi efetivamente cumprido a cada manutenção efetuada, ou se os componentes/materiais consumíveis substituídos/aplicados na viatura detêm a mesma origem e qualidade indicada pelo fabricante.

9. Não podendo a 1.ª Ré atestar, inclusive, se nos momentos de substituição do óleo do motor, o óleo utilizado por tais oficinas independentes é do mesmo tipo, marca e qualidade do óleo indicado pelo fabricante.

10. Bem como, ao não ser acompanhado por um reparador autorizado pela marca, a viatura deixa de realizar atualizações de serviço e ações de melhoria de desempenho apenas a estes disponibilizadas.

11. O que influência e condiciona gravemente a “vida útil” da viatura.

12. Pelo que se conclui que, pelos motivos expostos a Autora tinha o dever de conhecer e certificar-se que a viatura em causa nos presentes autos cumpria o plano de manutenção preconizado pelo fabricante de forma a acautelar o desgaste inerente à concreta utilização dada à mesma.

13. Nem tendo esta sido sujeita às manutenções calendarizadas pela marca, nos limites de quilómetros necessários a prevenir um desgaste precoce dos seus componentes, nem num reparador que garantisse o fiel e completo cumprimento dos trabalhos e procedimentos de manutenção constantes do plano de manutenção da marca.

14. O que equivale à sua falta!

15. Primeiramente, a viatura em causa não padece de qualquer defeito de origem ou de fabrico!

16. A essa data, a viatura em questão já tinha 180.000 Km pelo que se tratasse de um defeito de origem ou de fabrico no motor da viatura, tal não tardaria 3 anos e mais de 180.000 km a manifestá-lo.

17. Todas as alegadas patologias invocadas pela Autora no sistema propulsor da viatura se deveram a desgaste dos componentes decorrentes do uso efetivamente dado à viatura e não a defeitos de origem nesses componentes.

18. Nem tão-pouco se poderá concluir que o desgaste que a viatura apresenta é precoce atendendo à concreta utilização dada à mesma pela Autora que, conforme já foi oportunamente arguido, trata-se de uma utilização intensiva e em condições adversas.

19. Desgaste esse potenciado face ao facto de ter tido até esse momento uma manutenção inadequada face à utilização que lhe era efetivamente dada.

20. Face ao facto de a viatura não ter tido o acompanhamento em sede de manutenção por um reparador autorizado pela marca.

21. Bem como, pelo desrespeito dos intervalos de quilometragem para a realização das manutenções calendarizadas previstas pelo fabricante para a utilização de viaturas nas condições em que esta era efetivamente sujeita – conforme já foi oportunamente exposto!

22. No caso em apreço, todas as patologias que a viatura veio a enfermar trata-se de deterioração normal dos seus componentes face ao uso efetivamente dado pela Autora e não de defeitos de origem.

23. Sendo certo que tal componente partido não estava no momento em que a viatura foi entregue à Autora após a venda – sendo mais que evidente que tal não se trata de um problema de origem!

24. Até esse momento a Autora nunca apresentou qualquer reclamação associada a problemas de freio da viatura, pelo que é extremamente improvável – para não dizer impossível! – que a bomba de óleo substituída tivesse qualquer defeito de fabrico que só se tivesse manifestado ao fim de 198.000 Km.

25. Mais foi indicado pela 1.ª Ré à Autora que o aviso luminoso intermitente respeitante e perda de potência se deviam à necessidade de substituição do filtro de partículas e do turbo, que se apresentavam num estado de degradação que assim requeria.

26. Contudo, a Autora não pretendeu avançar com essa concreta reparação.

27. Efetivamente a generalidade dos componentes do motor apresentavam desgaste acentuado, tendo sido comunicado à Autora que natural seria que viesse a necessitar de intervenções com maior frequência.

28. Mas o estado do motor não se devia a qualquer defeito de fabrico, mas sim ao efetivo uso e manutenção que lhe foi dado.

29. Nenhuma das quantias reivindicadas nos presentes autos dizem respeito a montantes liquidados por reparações num reparador autorizado da marca, nem o foram com peças de origem.

30. Verifica-se que nem tão-pouco todas as operações alegadamente debitadas e aqui reclamadas dizem respeito à reparação do pressuposto defeito de fabrico.

31. O ato de regeneração forçada do filtro de partículas em si nunca poderá ser entendido como um processo de reparação de um “defeito de origem” do produto, nem significa que este (o filtro de partículas) possuía algum defeito, isto porque, em primeiro lugar trata-se de uma peça de consumo por natureza, dada a sua função de acumulador de resíduos provenientes da combustão, que carece de ser trocado com frequência dependendo da utilização/condução que é dada à viatura.

32. Em segundo lugar, no caso em apreço tal peça nem tão-pouco necessitou de ser substituída naquele dado momento, apenas tendo sido necessária à sua regeneração – que nada mais se trata que um ato de manutenção ordinário não podendo ser considerado como um valor suportado pela Autora para reparar um pressuposto defeito de origem.

33. Conforme já explorado, encontrando-se o referido sensor partido tal não consiste na verificação de um defeito de origem de origem, sendo, pois, de uma consequência do uso dado à viatura, na medida em que não seria possível ou sequer concebível que a viatura tenha circulado durante 198.450 Km com o referido sensor partido sem que a viatura tivesse acusado o referido aviso luminoso.

34. Sendo que o aviso luminoso só apareceu quando o referido sensor partiu e a causa que o levou a partir não se prende com a existência de qualquer defeito de origem, mas sim ao uso dado à viatura durante os seus 198.450 Km.

35. Para além do mais, tal substituição já não estaria coberta pela garantia voluntária prestada pela 2.ª Ré, uma vez que para o componente em apreço a garantia encontra-se especialmente limitada a 2 anos – conforme já referido.

36. Apenas foi comunicado à Autora que o motor em apreço apresentava níveis de desgaste acentuados, mas que se encontrava perfeitamente funcional.

37. Sendo natural atendendo aos níveis de desgaste verificados que avarias acabassem por surgir, o que não é o mesmo que afirmar que o motor se encontrava com problemas presentes que impediam o seu normal funcionamento.

38. A Autora com base nessas indicações, decidiu, por motu próprio proceder à substituição do referido motor.

39. Ou seja, é falso que o motor padecesse de qualquer defeito de fabrico em algum dos seus componentes.

40. Encontrava-se sim, tão somente com um nível de desgaste que poderia implicar a necessidade de mais intervenções no futuro, decorrentes do uso que foi dado à viatura.


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Passemos então, como acima anunciámos, a conhecer da exceção de caducidade da ação invocada pela ré/recorrente na sua contestação e que foi considerada improcedente na sentença recorrida.

Comecemos com um ponto de ordem: esta questão, que por via dos termos em que é prevista aquela caducidade no nº4 do art. 921º do C. Civil está ligada à denúncia de defeitos (no caso, do veículo automóvel vendido pela primeira ré à autora), poderia contender com a matéria dada como não provada sob o nº1 dos “Factos não provados das contestações” – com o teor “Face ao exposto, a Autora só denunciou à 1.ª Ré os alegados defeitos de que esta confessa ter conhecimento desde 04/08/2022, no dia 03/01/2023” –, o qual aliás é objeto de impugnação pela recorrente.

No entanto, como dele se vê, tal item integra matéria claramente conclusiva e de direito (corresponde de forma exata ao raciocínio conclusivo expendido pela ora ré recorrente no artigo 12º da sua contestação, na sequência de alegação de factualidade concreta para tal concluir sob os artigos 6º a 11º, sendo que, no caso, está em causa a ocorrência da figura jurídica da denúncia de defeitos prevista na economia do art. 921º do C. Civil). Seria uma conclusão interpretativa ou raciocínio a retirar ou a considerar perante concretos factos provados, mas já em sede de fundamentação de direito e não nesta sede puramente factual – por isso, nem sequer deveria constar da matéria de facto da sentença.

Como tal, porque irrelevante, não há que contar com tal item de factualidade para a resolução da questão em apreço [note-se que a inclusão nos fundamentos de facto de matéria conclusiva (desde que não se reconduza a juízos periciais de facto) e/ou de direito deve enquadrar-se na alínea c), do nº 2, do artigo 662º, do Código de Processo Civil, considerando-se uma deficiência na decisão da matéria de facto, oficiosamente cognoscível e suprível em segunda instância].

Prossigamos agora na concreta análise da exceção em referência.

Desde logo, cumpre precisar, como aliás quanto a tal ponto se faz na sentença recorrida – e não é sequer questionado no recurso –, que tendo a compra do veículo sido feita por uma sociedade comercial e que tal veículo tinha um uso profissional está afastado o regime jurídico de proteção do consumidor na venda de bens de consumo (previsto inicialmente no Dec.Lei 67/2003 de 8/4 e entretanto revogado pelo Dec.Lei 84/2021, de 18/10, que institui o regime vigente), sendo por isso aplicável ao caso o regime previsto no art. 921º do C. Civil.

Como consta provado sob o nº36 dos factos provados, a autora tomou conhecimento dos defeitos que dão causa à ação a que respeitam os autos no dia 4 de agosto de 2022.

Foi a própria autora que expressamente tal confessou no artigo 52º da sua petição inicial – o que a ré ora recorrente, no artigo 6º da sua contestação, aceitou especificadamente ao abrigo do disposto no art. 465º nº2 do CPC, do que resultou a prova de tal facto por confissão.

Após aquela data não se apura que tenha ocorrido qualquer comunicação ou queixa de defeitos de funcionamento do veículo por parte da autora junto de qualquer das rés, apenas se provando depois dela que em 3 de janeiro de 2023 a autora deu entrada do veículo nas instalações da primeira ré em Sintra, para conserto e reparação das deficiências reportadas (nº21 dos factos provados).

Como tal, em correlação com aqueles alegados defeitos que confessou ter tido conhecimento em 4/8/2022, só em 3 de janeiro de 2023 é que a autora vem a confrontar com os mesmos a primeira ré (“B...”) e, por inerência, a 2ª ré (“C...”) – pois àquela, como concessionária e reparadora autorizada da marca C..., cabe receber a viatura, mas é a esta última que é reportada por aquela o funcionamento da garantia (vide nºs 38, 43 e 52 dos factos provados).

Aquela conduta da autora de dar entrada do veículo nas instalações da primeira ré para conserto e reparação das deficiências reportadas, integra, enquanto tal, a denúncia daqueles defeitos.

Efetivamente, não estabelecendo a lei nenhuma formalidade especial para tal denúncia, ela poderá, portanto, ser feita por qualquer das formas admitidas para a declaração negocial previstas no art. 217º do C. Civil[2] (expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio direto de manifestação, ou tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelem), podendo nomeadamente “ser feita oralmente, diretamente junto do vendedor” e “[s]e o vendedor tiver um estabelecimento comercial aberto ao público (…), a denúncia pode ser feita a quem estiver a atender no estabelecimento” [citamos Jorge Morais Carvalho, em anotação ao art. 916º do C. Civil, in “Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.)”, Vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 1169].

Como se prevê no nº3 do artigo 921º do C. Civil (que rege sobre a “Garantia de bom funcionamento”, sua epígrafe), “O defeito de funcionamento deve ser denunciado ao vendedor dentro do prazo de garantia e, salvo estipulação em contrário, até trinta dias depois de conhecido

Por sua vez, preceitua o nº4 daquele mesmo artigo que “A ação caduca logo que finde o tempo para a denúncia sem o comprador a ter feito, ou passados seis meses sobre a data em que a denúncia foi efetuada”.

No caso dos autos, está em causa uma garantia de bom funcionamento de 5 anos (nºs 43, 44 e 45 dos factos provados, os quais não se mostram questionados no recurso) e não se apurou qualquer estipulação contratual que fixe prazo de denúncia superior ao prazo supletivo de 30 dias previsto no nº3 do art. 921º.

Como tal, ainda que a denúncia tenha ocorrido dentro daqueles 5 anos (pois o veículo foi comprado pela autora em 29/8/2019 - nº9 dos factos provados), quando a mesma foi feita já tinha decorrido aquele prazo de 30 dias em que a mesma deveria ser acionada, pois a autora tomou conhecimento dos defeitos a 4 de agosto de 2022 e só efetuou a denúncia em 3 de janeiro de 2023 – portanto, decorridos praticamente 5 meses sobre aquela data.

Ora, prevendo-se na primeira parte do nº4 do art. 921º que a ação caduca logo que finde o tempo para a denúncia sem o comprador a ter feito, é manifesta, por esta via, a caducidade da ação.

Porém, ainda que, por mera hipótese de raciocínio (e mera hipótese mesmo, pois dos factos provados nada se extrai que tal possibilite e não se vê como se possa não contar com o facto confessado pela autora e que consta vertido sob o nº36 dos factos provados), se considerasse que a denúncia feita a 3/1/2023 foi feita dentro do referido prazo legal de 30 dias, também se verifica a caducidade da ação por força da previsão da segunda parte do nº4 do art. 921º.

Na verdade, tendo a ação, como os autos documentam, sido proposta em 25/9/2023, em tal data já haviam decorrido mais de 6 meses sobre aquela data de 3/1/2023.

Assim, quer por via da denúncia ter sido efetuada fora do prazo de 30 dias, quer, ainda que por raciocínio “residual”, se considerasse tal denúncia tempestiva, ocorre a caducidade da ação prevista naquele nº4 do art. 921º do C. Civil.

A caducidade, como se sabe, é uma exceção perentória de direito material e, sendo procedente, extingue o direito que se pretendia exercer[3].

Como tal, há que, julgando procedente o recurso, revogar a decisão recorrida e absolver a recorrente do pedido.

As custas da ação e do recurso ficam a cargo da autora/recorrida, porque decaiu (art. 527º nº1 do CPC).


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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):

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III – Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, revogando-se a sentença recorrida, absolve-se a ré recorrente do pedido.

Custas da ação e do recurso a cargo da autora/recorrida.


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Porto, 26/6/2025
António Mendes Coelho
Carlos Gil
Martins Ribeiro
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[1] Segue-se, com pequenas alterações, o relatório da decisão recorrida.
[2] Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, 3ª edição, Coimbra Editora, 1986, pág. 217
[3] Neste sentido, Carlos Alberto da Mota Pinto in “Teoria Geral do Direito Civil”, 2ª edição, Coimbra Editora, 1983, pág. 371.