I - Nos termos do disposto no artigo 2079º do Código Civil “A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal”.
II - Embora a lei não se pronuncie expressamente sobre os poderes do cabeça de casal no inventário em consequência do divórcio, ao remeter a sua tramitação para o processo de inventário (sucessório) e ao atribuir o cargo ao cônjuge mais velho (artigo 1133.º do Código Civil), apontam para que o cabeça-de-casal do inventário para separação de meações seja (deva ser) uma figura com o mesmo estatuto e não uma figura menor, privada do poder de administrar os bens comuns.
III - Os bens cuja entrega foi requerida, tal como indicado na relação de bens e que não foi contestado pela Apelada, foram adquiridos pelo Apelante antes do casamento, pelo que, independentemente da sua função de cabeça de casal e de se tratar ou não de instrumentos de trabalho, a administração de tais bens pertence, desde sempre, ao Apelante.
IV - De resto, nenhuma razão existe que legitime a Apelada a mantê-los na sua posse, negando a sua entrega ao Apelante.
V - Com efeito, nenhum prejuízo advirá à Apelada da sua entrega, dado que os bens estão devidamente relacionados e serão, oportunamente, objecto de partilha e divisão, de acordo com o direito que cada um dos ex-cônjuges tiver.
VI -Além disso, sendo o Apelante engenheiro de electrónica e de telecomunicações e dado que todos os bens em causa estão aparelhados ao exercício dessa actividade, é ininteligível que os referidos aparelhos não estejam na sua posse e à sua guarda, não só por serem úteis ao exercício da sua actividade, como também pela necessidade de preservação desses equipamentos.
VII - A postura de oposição assumida pela requerida, no contexto em causa, exorbita, inclusive, da finalidade do direito, revelando-se abusiva.
ECLI:PT:TRP:2025:2339/20.0T8AVR-E.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
AA, residente na Rua ..., ..., instaurou contra BB, residente na Avenida ..., ..., ..., inventário para partilha dos bens do dissolvido casal.
“Requerimentos apresentados a 20.06.2024, 04.07.2024, 14.08.2024 e 19.08.2024:
Pretende o cabeça de casal que a requerente lhe entregue os bens das verbas 6 a 19, inicialmente alegando que lhe cabe a administração dos bens a partilhar onde aqueles se incluem e, posteriormente, na sequência da notificação que lhe foi dirigida, por deles necessitar para a sua formação contínua.
A requerente opõe-se a esta pretensão, por entender que o cabeça de casal pretende os bens para satisfazer um interesse seu e não para os administrar ou acondicionar. Acresce que na sequência do convite que lhe foi dirigido o cabeça de casal limita-se a alegar que necessita dos bens para o exercício da sua actividade profissional, não alegando, assim, qualquer facto que sustente a necessidade dos bens estarem na sua posse para os administrar.
Como não foi requerida a produção de qualquer prova, cumpre apreciar e decidir:
A administração da herança pertence até à sua liquidação e partilha ao cabeça-de- casal. É o que nos diz o artigo 2079º do Código Civil.
Ora, é com base nestes poderes de administração que o cabeça de casal requer a notificação da requerente para que lhe entregue os bens das verbas 6 a 19.
Todavia, como a referida entrega tem de ser devidamente fundamentada, ordenou-se a notificação do cabeça de casal para que alegasse os factos em que sustenta a sua pretensão (despacho proferido a 11 de Julho de 2024).
Acontece que, na sequência de tal convite o cabeça de casal não alega factos para sustentar o anterior pedido, antes deduz pretensão diferente, pretendendo a entrega dos referidos bens, por eles serem essenciais ao exercício da sua actividade profissional ou por deles necessitar para a sua formação contínua.
Nessa decorrência, por ausência, quer de factos, quer de prova, atenta a posição assumida nos autos pela requerente, quanto à qualidade dos bens, não podem ser deferidas as pretensões do cabeça de casal.
Face ao exposto, atentos os argumentos acima referidos, indefiro a solicitada entrega dos bens das verbas n.ºs 6 a 19 ao cabeça de casal.
Custas do incidente pelo cabeça de casal, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.
Notifique.”.
I.O ora recorrente, para pedir, seja a terceiros, seja à própria interessada, a entrega de bens que constem da respectiva Relação, apenas tem que provar a sua qualidade de Cabeça-de-Casal;
II. Mesmo que não fosse cabeça de casal, tratando-se de bens por ele levados para o casamento, cuja administração sempre lhe coube, nos termos do disposto no art.º 1678.º, nº 2, al. c), tem o recorrente o direito a exigir da recorrida a respectiva entrega.
III. A recorrida é que, se quiser obstar a tal entrega, tem o ónus de alegar e provar que o demandante não é Cabeça-de-Casal, ou que tais bens não pertencem ao respectivo património conjugal, ou que o recorrido os não levou para o casamento.
IV. Nos presentes autos, o ora recorrente alegou e ficou provado, por não contestado, que era licenciado em Engenharia de Electrónica e de Telecomunicações, e que os bens em causa, cuja entrega peticiona, foram por si levados para o casamento, pelo que, e pela descrição dos bens cuja entrega pedia, qualquer cidadão médio concluiria que para a conservação e preservação desses equipamentos eles estariam bem melhor à guarda do ora Requerente do que na posse da Requerida.
V. A douta decisão, ao negar a entrega de tais bens ao ora recorrente, violou frontalmente o disposto nos arts. 1678.º, nº 2, al. c), 2087.º, nº 1, e 2088.º, nº 1, todos do C. Civil, estes últimos a ser aplicados por analogia (cfr. art.º 10.º do C. Civil)
Das conclusões formuladas pelo recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que a questão a resolver no âmbito do presente recurso prende-se em saber se os bens das verbas n.ºs 6 a 19 devem ser entregues ao cabeça de casal.
3.1 Factos assentes
Os factos a atender são os que constam do relatório.
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3.2 Fundamentos de direito
Presente que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formulado, importando em conformidade decidir as questões nelas colocadas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, tendo presente o dispositivo da decisão proferida e em análise, resulta como questão a apreciar, saber se os bens das verbas n.ºs 6 a 19 devem ser entregues ao cabeça de casal.
Na decisão recorrida entendeu-se não estarem verificados os pressupostos legais para o efeito.
Deste entendimento dissente o recorrente.
Vejamos, então.
Nos termos do disposto no artigo 2079º do Código Civil, “A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal”, sendo importante recordar que “O cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído (cfr. art. 2088º, nº 1 do Código Civil) e ainda que “o cabeça-de-casal pode cobrar as dívidas activas da herança, quando a cobrança possa perigar com a demora ou o pagamento seja feito espontaneamente” (cfr. art. 2089º do Código Civil).
Nos poderes de administração do cabeça-de-casal cabem não só os poderes e deveres especificamente previstos na lei, mas também os poderes para a prática de actos e negócios jurídicos de conservação e frutificação normal dos bens que constituem o acervo hereditário[1].
Deste enquadramento normativo resulta a possibilidade de o cabeça-de-casal pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, cfr. citado art. 2088º, nº 1, desde que essa entrega seja realmente necessária ao exercício da gestão.
A propósito do caso em apreço, a jurisprudência e a doutrina, quando chamados à discussão acerca da natureza do património comum do casal após a dissolução do casamento, apresentam pouca sintonia, com uma panóplia de diferenciados institutos de conceptualização que vão desde a “compropriedade” atípica, à “propriedade coletiva”, ou mesmo à “comunhão em dissolução[2]”.
Todavia, seja qual for a posição que se adopte, temos por seguro que, pelo menos após a nomeação de cabeça de casal no processo de inventário destinado à partilha, a administração dos bens que integram património comum do casal passa a competir ao nomeado para o exercício desse cargo.
Tal como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26.04.2006[3], embora a lei não se pronuncie expressamente sobre os poderes do cabeça de casal no inventário em consequência do divórcio, ao remeter a sua tramitação para o processo de inventário (sucessório) e ao atribuir o cargo ao cônjuge mais velho (art. 1133.º do Código Civil), “apontam para que o cabeça-de-casal do inventário para separação de meações seja (deva ser) uma figura com o mesmo estatuto e não uma figura menor, privada do poder de administrar os bens comuns”.
Ora, não vemos razão para limitar as competências do cabeça-de-casal, tratando-o nesta sede como uma mera figura adjectiva, sobre quem recaem apenas responsabilidades processuais e não já as ligadas à administração dos bens (art.º. 2079.º do Código Civil).
Bem sabemos que, por si só, a designação processual não tem a virtualidade de conferir direitos substantivos próprios da partilha por óbito, mas também não vemos qual o préstimo de uma remissão para essa figura, sem nela incluir ou salvaguardar todo o campo de actuação próprio daquele outro regime.
De resto, o legislador, ao configurar no artigo 1788.º do Código Civil o princípio da equiparação entre o divórcio e a morte - em termos de efeitos jurídicos, claro está - dá mais um contributo no sentido de viabilizar essa aproximação quanto ao regime da administração “da herança”.
Existem, de resto, razões práticas que o exigem, ligadas à litigiosidade própria da partilha e que justificam que, nesta fase meramente transitória, entre a nomeação e a partilha, os bens possam ser administrados à margem da conflitualidade (a incluir, desde logo, a proveniência do bem e a titularidade da administração na vigência do casamento), consabido que dificilmente se lograria, em todas as situações, obter um regime de consenso entre os ex-cônjuges que viabilizasse prover à conservação dos bens ou a promover a sua frutificação.
Assim, encontrando-se os bens no limbo transitivo de uma comunhão conjugal para uma afectação pessoal, razões de segurança jurídica exigem, na economia do regime, que, ao menos com apoio em fundamentos de analogia, se confira ao cabeça-de-casal no processo de inventário para partilha dos bens do dissolvido casal as mesmas funções de administração que confere ao cabeça-de-casal no processo de inventário para partilha sucessória.
Como salienta Capelo de Sousa o disposto no nº 1, do artigo 2088º surge «para tornar efectiva tal administração» por parte do cabeça-de-casal.
De resto, nesta questão do pedido do Cabeça-de-Casal de entrega de bens, na falta de disposições específicas próprias, temos os artigos 2087º e o 2088º do Código Civil, passíveis de aplicação por analogia, nos termos do disposto no artigo 10.º do Código Civil, de que poderemos lançar mão para nos ajudar a decidir - o primeiro a instituir o Cabeça-de-Casal como único administrador dos bens e o outro a legitimar os seus pedidos de entrega desses bens da herança quer a terceiros o que é normal, quer aos próprios herdeiros.
Ora, por força do disposto no artigo 1678º, nº 2, al. c), do Código Civil cada cônjuge tem a administração dos bens comuns por ele levados para o casamento.
No caso vertente, os bens cuja entrega é requerida, tal como indicado na relação de bens e que não é contestado pela Apelada, foram adquiridos pelo Apelante antes do casamento.
Assim, e independentemente da sua função de cabeça de casal e de se tratar ou não de instrumentos de trabalho, a administração de tais bens pertence, desde sempre, ao Apelante.
De resto, nenhuma razão poderá haver que legitime a Recorrida a mantê-los na sua posse, negando a respectiva entrega ao Recorrente.
Com efeito, nenhum prejuízo advirá à Apelada da sua entrega, dado que os bens estão devidamente relacionados e serão, oportunamente, objecto de partilha e divisão, de acordo com o direito que cada um dos ex-cônjuges tiver.
Assim, a oposição da Apelada em manter tais bens na sua posse, acaba, inclusive, por se revelar abusiva, uma vez que não lhe traz qualquer vantagem ou benefício, nem lhe assegura qualquer direito, que o simples facto de tais bens estarem relacionados, como estão, lhe não garanta, ao invés do que sucede com o Apelante.
Afigura-se-nos, ainda, que, no caso vertente, não será o Cabeça-de-Casal quem tem que justificar o pedido para a Apelada lhe entregar os bens do património conjugal, cuja administração lhe cabe, mas será sim a Requerida que terá que justificar a necessidade de ter a posse de tais bens.
De resto, o Apelante, quer por ter levado tais bens para o matrimónio, quer por ser Cabeça-de-Casal, cabendo-lhe o poder-dever de os administrar, pode pedir, a quem quer que seja, a entrega de tais bens, pertencentes ao património conjugal. Na realidade, dificilmente poderá administrá-los se os não tem na sua posse.
Ou seja, exigir que o Cabeça-de-Casal, a quem cabe a administração dos bens, para os reclamar, mormente os bens em causa que já havia levado para o matrimónio, tenha que provar que necessita dessa entrega para os administrar constitui uma redundância.
Além disso, sendo o Apelante engenheiro de electrónica e de telecomunicações e dado que todos os bens em causa estão aparelhados ao exercício dessa actividade, menos se compreende que os referidos aparelhos não estejam na sua posse e à sua guarda, não só por serem úteis ao exercício da sua actividade, como também pela necessidade de preservação desses equipamentos, assim satisfazendo duas exigências que eram as suas, pessoais, de continuar na posse desses instrumentos técnicos para o exercício da sua profissão, bem como o interesse do património conjugal de assim, nas suas mãos, como técnico qualificado, poder preservar tais equipamentos da forma adequada.
Aliás, diga-se que a Requerida/Apelada não contestou o facto do Requerente e ora Recorrente ser licenciado em Engenharia de Electrónica e de Telecomunicações, sendo notório para qualquer cidadão normal que pela descrição constante da Relação de Bens se pode concluir que tais bens estarão melhor na esfera do Apelante do que na esfera da Apelada.
Além disso, não será despiciendo frisar, como do título destas verbas 6ª e 19ª da Relação de Bens, constava, sem que tal tivesse sido contestado pela Requerida, o seguinte: “Móveis adquiridos por este interessado antes do casamento, que constituem instrumentos profissionais, mantendo-se todos eles na posse da interessada mulher na Alemanha.”
Afigura-se-nos, por isso, assistir ao Apelante o direito de lhe serem entregues os bens em causa.
De resto, a postura de oposição assumida pela requerida, no contexto em causa, exorbita da finalidade do direito, revelando-se abusiva.
Assim, temos que merece censura a decisão recorrida impondo-se, por isso, o provimento da apelação.
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Nos termos supra expostos, acorda-se, neste Tribunal da Relação, em julgar provido o recurso de apelação, revogando a decisão recorrida, determinando-se a entrega ao Apelante dos bens móveis descritos na Relação de Bens nas verbas nº 6 a 19.
Porto, 26 de Junho de 2025
Os Juízes Desembargadores
Relator: Paulo Dias da Silva
1.º Adjunto: Aristides Rodrigues de Almeida
2.º Adjunto: Manuela Machado
(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinatura electrónica e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
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[1]Cf. Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, vol. 2º, pág. 55, Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. 2º, pág. 62 e Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, vol. 1º, págs. 304 e ss.
[2]Cf. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. I, pág. 225. Cf., ainda, a propósito desta discussão, Antunes Varela, RLJ, 105º, pág. 160; Ac. do TRC de 27.9.94, in Coletânea de Jurisprudência, Ano 1994, V, pág. 31 e Ac. do STJ de 23.3.82, BMJ, 315-275.
[3]Cf. processo 676/06, disponível em www.dgsi.pt.