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PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CONTRA-ORDENACIONAL
RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
COIMA
Sumário
Sumário (da responsabilidade do Relator) I. A prescrição do procedimento contra-ordenacional não se verifica por não se terem ultrapassado os prazos legais, considerando os actos interruptivos e os períodos de suspensão relevantes, em conformidade com os artigos 27.º e 28.º do RGCO. II. Afasta-se a possibilidade de reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso, reconhecendo-se a limitação da Relação à matéria de direito, nos termos do artigo 75.º do RGCO, não sendo admissível a impugnação da matéria de facto nos termos do artº. 412º do CPP. III. Considera-se infundada a aplicação de normas revogadas, por inexistirem alterações legislativas que afectem a validade dos preceitos aplicados (Lei n.º 34/2013, Portaria n.º 102/2014 e RGCO), não se verificando qualquer violação do princípio da legalidade.
Texto Parcial
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. RELATÓRIO
1.1. Nos autos de recurso de contra-ordenação número 278/22.9Y4LSB.L2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Lisboa - JL Criminal - Juiz 2, a arguida MM, Lda., foi condenada pela prática das contra-ordenações, previstas e punidas pelos arts. 9º, nº3, 19º, nº2, 29º, nº1, a) e nº4, 59º, nº1, f), nº2, i), d), nº3, c), nº4, a), b) e c), e 36º, nº2 da L. nº34/13, de 16.05, bem como na Portaria 102/14, de 15.05, mas reduzir a coima aplicável por força do disposto no art. 18º do D.L. nº 433/82, de 27 de Outubro, tendo fixado a mesma em 44.500€.
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1.2. Inconformado com o assim decidido, a arguida interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
“(…)
l . A recorrente considera existir prescrição dos factos
2. A recorrente considera que os factos foram mal julgados
3. A recorrente foi julgados por lei revogada
4. Estamos perante processo contraordenacional
5. Assim, a aludida norma foi alterada pela Lei n. 46/2019 de 08 de julho que, mantendo a redação do art. 17°, n. ºs 1 e 3, alíneas a) e e) e art. 18 °, n.ºs 1 e 6, retirou a natureza criminal ao exercício de funções de segurança privada de especialidade prevista na supracitada Lei por quem não se encontre para tanto habilitado excluindo tal situação do seu âmbito e passando a preveni-la, na Secção II do dito diploma legal, como contraordenação.
6. No caso vertente resulta provado que os recorrente s são pessoas de bem
7. Os factos dados como provados e as conclusões permitem efetuar um juízo de prognose favorável quanto aos recorrentes, o que não se encontra plasmado no douto acórdão recorrido
8. A pena a ser aplicada deveria ser de mera admoestação
9. E deveria ser aplicada aos arguidos a lei que lhes é mais favorável
(…)”
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1.3. O MP apôs o seu “visto”.
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1.4. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.º 419º, nº 3, al. c), do CPP, cumprindo agora decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Como resulta do disposto nos artigos 66.º e 75.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10 (com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17/10, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14/9, pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17/12 e pela Lei n.º 109/2001, de 24/12), em matéria de recurso de decisões relativas a processos por contra-ordenações, a 2.ª instância funciona como tribunal de revista e como última instância.
Com efeito, o n.º 1 do mencionado artigo 75.º estabelece que “se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá de matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões”.
Assim, está efectivamente limitado o poder de cognição deste tribunal à matéria de direito, funcionando o Tribunal da Relação como Tribunal de revista ampliada, ou seja, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, por força do disposto nos artigos 41.º, n.º 1 e 74.º, n.º 4 do R.G.C.O., já que os preceitos reguladores do processo criminal constituem direito subsidiário do processo contra-ordenacional.
Considerando o teor das conclusões do recurso, as questões que importa decidir são as seguintes:
1. Prescrição do procedimento contra-ordenacional;
2. Erro de julgamento da matéria de facto;
3. Aplicação de legislação revogada ou inaplicável;
4. Inadequação e desproporcionalidade da sanção.
*
2.2. A decisão recorrida, considerou provados e não provados os seguintes factos: (transcrição)
(…)
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III- APRECIANDO
3.1. Prescrição do procedimento contra-ordenacional
A Recorrente sustenta que se verificou a prescrição do procedimento contra-ordenacional, porquanto os factos remontam a data anterior a 2021 e a sentença judicial apenas foi proferida em Março de 2025, alegando que decorreu o prazo legalmente fixado sem a prática de actos interruptivos eficazes.
Importa, para tanto, identificar:
O prazo de prescrição aplicável à infracção em causa;
A existência de actos interruptivos e eventuais períodos de suspensão;
O decurso efectivo do tempo processual com relevância jurídica.
Nos termos do artigo 27.º do Regime Geral das Contra-ordenações (RGCO), o procedimento por contra-ordenação extingue-se, por efeito da prescrição, logo que hajam decorrido os seguintes prazos:
a) Cinco anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável coima de montante máximo igual ou superior a €49.879,79;
b) Três anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável coima de montante igual ou superior a €2.493,99 e inferior a €49.879,79;
c) Um ano, nos restantes casos.
Ora, no caso em apreço, as infracções em causa foram qualificadas como muito graves, sendo aplicáveis coimas nos termos do artigo 36.º, n.º 2 da Lei n.º 34/2013, entre os valores mínimos de €5.000,00 e máximos de €44.890,00, tratando-se de montante compreendido entre os limites da alínea b) do artigo 27.º do RGCO.
Logo, o prazo de prescrição aplicável é de três anos.
Por outro lado, dispõe o artigo 28.º, n.º 3, do RGCO que:
“A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.”
Assim, o prazo máximo de prescrição no caso sub judice é de seis anos, ressalvados os períodos de suspensão.
Resulta dos autos e da sentença recorrida que:
A decisão administrativa sancionatória foi proferida em 28 de Fevereiro de 2021;
A tramitação subsequente envolveu diversos actos processuais com efeito interruptivo da prescrição;
Foram ainda verificados períodos de suspensão dos prazos processuais, nomeadamente por força das Leis n.º 1-A/2020, n.º 4-B/2021 e n.º 13-B/2021, relativas à pandemia de COVID-19;
A decisão final do tribunal foi proferida em Março de 2025, ou seja, quatro anos após a decisão administrativa, sem que se tenha atingido o prazo máximo de seis anos previsto no artigo 28.º, n.º 3, do RGCO.
A prática de actos de notificação, inquirição, tramitação, marcação de diligências e decisões interlocutórias é idónea a interromper a prescrição (Cfr. artigo 28.º, n.º 1, do RGCO).
A sentença “a quo” declarou, com justeza, prescrita uma das infracções, relativa a 2017, o que demonstra apreciação autónoma e fundamentada da cronologia processual, e respeito pelo princípio da legalidade sancionatória.
Nestes termos, não assiste qualquer razão à recorrente, sendo improcedente a invocação da prescrição do procedimento.
*
3.2. Erro de julgamento da matéria de facto
A delimitação dos poderes cognitivos do tribunal ad quem constitui uma questão central de direito processual penal, particularmente no contexto do regime das contra-ordenações. Não sendo o processo contra-ordenacional um procedimento penal em sentido estrito, ainda que com este guarde evidentes afinidades dogmáticas e estruturais, há uma diferença essencial e decisiva no que respeita à amplitude de cognição dos tribunais superiores.
É nesse quadro que se insere a questão suscitada pelo recorrente, centrada na questão da incompetência funcional do Tribunal da Relação para conhecer da matéria de facto em sede de recurso de impugnação de decisão proferida no âmbito de processo contra-ordenacional, quando esta tenha sido precedida de julgamento em primeira instância judicial.
Com base no Regime Geral das Contra-ordenações (RGCO), sustenta-se que o conhecimento da matéria de facto não é da competência da Relação, tratando-se de matéria exclusivamente própria da primeira instância, conforme a estrutura e teleologia próprias do modelo contra-ordenacional português.
O artigo 74.º, n.º 4 do Regime Geral das Contra-ordenações (RGCO), estatui:
“O recurso seguirá a tramitação do recurso em processo penal, tendo em conta as especialidades que resultam deste diploma..”
Esta norma tem sido recorrentemente utilizada por arguidos para sustentar a tese de que a possibilidade de impugnação da decisão de facto prevista no artigo 412.º do Código de Processo Penal (CPP) deve igualmente ser reconhecida nos recursos em matéria contra-ordenacional. No entanto, tal interpretação desconsidera a natureza supletiva e condicionada da remissão prevista no artigo 74.º, a qual não implica a transposição integral, automática ou indiferenciada do regime penal.
A referida remissão não confere à Relação competência para a reapreciação da matéria de facto. Tal remissão tem como escopo a integração de lacunas no regime contra-ordenacional, designadamente quanto à tramitação dos actos processuais, prazos ou direitos de audiência, mas não permite alargar o objecto do recurso a matérias que estão fora do seu âmbito funcional próprio, como sucede com a valoração da prova ou a reapreciação do julgamento da matéria de facto.
A exclusão do conhecimento da matéria de facto no recurso interposto para os tribunais da Relação em matéria de contra-ordenação tem, além de fundamento normativo expresso, uma justificação dogmática intrínseca ao modelo sancionatório administrativo português.
O processo contra-ordenacional, embora inspirado em moldes garantísticos do processo penal, é regido por princípios próprios de celeridade, simplificação e eficácia administrativa, que se reflectem na arquitectura procedimental prevista no RGCO. Ao contrário do modelo penal — estruturado segundo o princípio do contraditório pleno, da oralidade e da imediação — o regime contra-ordenacional aceita formas mais simplificadas de instrução, apreciação e decisão.
Neste sentido, o julgamento da matéria de facto, incluindo a formação da convicção sobre os elementos probatórios relevantes, é realizado com imediação e oralidade apenas na primeira instância judicial (caso haja impugnação judicial da decisão administrativa). O tribunal de recurso não dispõe nem do contacto directo com a prova oral nem dos meios técnicos (como a obrigatoriedade de gravação e transcrição) que justificam o regime do artigo 412.º do CPP no processo penal.
O processo de contra-ordenação tem um modelo próprio que não consagra a possibilidade de um duplo grau de jurisdição plena sobre a matéria de facto, sendo a apreciação da prova realizada apenas na primeira instância, com o recurso limitado ao controlo da legalidade da decisão.
Esta limitação decorre ainda do facto de o recurso em processo contra-ordenacional não funcionar como reexame global do caso, mas apenas como mecanismo de controle jurídico da decisão judicial impugnada, o que implica a sua restrição à matéria de direito.
Um dos equívocos recorrentes na argumentação dos recursos contra-ordenacionais reside na tentativa de aplicar, por analogia ou por força da remissão do artigo 74.º do RGCO, as disposições do Código de Processo Penal relativas à impugnação da matéria de facto, com destaque para os artigos 412.º e 431.º do CPP.
O artigo 412.º do CPP, nos seus n.ºs 3 e 4, regula a possibilidade de impugnação específica da decisão sobre a matéria de facto, exigindo do recorrente a indicação dos pontos de facto mal julgados, os meios de prova que impõem decisão diversa e as passagens relevantes da gravação. Já o artigo 431.º do CPP permite ao tribunal de recurso, em determinados casos, a renovação da prova em audiência.
Ora, tais disposições:
i. Exigem um suporte processual e tecnológico que não é exigido no processo contra-ordenacional, como a obrigatoriedade da gravação áudio da audiência de julgamento;
ii. Dependem de um modelo de cognição plena em duas instâncias, característico do processo penal e que não tem correspondência no regime contra-ordenacional;
iii. Estão vocacionadas para garantir o duplo grau de jurisdição sobre matéria de facto em função do princípio da liberdade e dignidade da pessoa humana ameaçada pela pena criminal, realidade que não se verifica no domínio da mera ordenação social.
É, pois, incompatível com o desenho legal do processo de contra-ordenação qualquer tentativa de aplicar, ainda que por analogia, o regime de impugnação da matéria de facto previsto no CPP.
Importa, a esta altura, reforçar uma distinção fundamental, frequentemente desconsiderada nos recursos interpostos no âmbito das contra-ordenações: a que se estabelece entre, por um lado, o controlo da legalidade da prova e, por outro, a reapreciação da matéria de facto.
Enquanto o controlo da legalidade da prova é uma função própria da segunda instância – sendo admissível, por exemplo, arguir a nulidade de uma prova obtida com violação de direitos fundamentais, ou a ausência de fundamentação legal bastante –, a reapreciação da prova enquanto instrumento de revisão da convicção formada pelo julgador de primeira instância está, no domínio contra-ordenacional, fora do âmbito funcional do tribunal de recurso.
Ou seja, pode a Relação verificar se a sentença:
i. Violou regras sobre a produção ou obtenção de prova (v.g., gravações não autorizadas, depoimentos nulos, documentação inválida);
ii. Enunciou factos de forma contraditória, ambígua ou manifestamente ilógica (erro notório);
iii. Falhou nos seus deveres de fundamentação.
Mas não pode substituir-se ao julgador de primeira instância na apreciação da credibilidade dos testemunhos, da coerência das declarações ou do valor probatório dos documentos apresentados em audiência.
Assim, a distinção entre controlo de legalidade e revisão de mérito é essencial para entender os limites da actuação da Relação no processo de contra-ordenação. A sentença pode ser sindicada por erro de direito, mas não por erro de apreciação subjectiva da prova.
Um dos pilares do processo de formação da convicção do julgador, especialmente no que respeita à apreciação da matéria de facto, é o princípio da imediação, consagrado expressamente no artigo 355.º do Código de Processo Penal. Tal princípio determina que a convicção do tribunal sobre os factos deve formar-se a partir da prova produzida perante ele, em audiência pública e oral, com contacto directo com os intervenientes processuais.
No processo contra-ordenacional, este princípio aplica-se de forma mitigada e apenas em primeira instância judicial, sendo inviável a sua replicação perante o tribunal de recurso. Com efeito, a imediação é intransmissível: a percepção directa da postura, entoação, hesitações ou coerência do depoente não pode ser captada através da simples gravação áudio ou da leitura das actas, razão pela qual a reapreciação da prova oral não pode ser legitimamente realizada por um juiz que dela não participou.
Por consequência, a imediação reforça a exclusiva competência da primeira instância para a valoração da prova, devendo o tribunal de recurso limitar-se à sindicância da sua legalidade e coerência lógica, e não à sua reformulação substancial.
A crítica formulada em sede de recurso contra-ordenacional, com base na alegada insuficiência ou deficiente motivação da decisão sobre a matéria de facto, carece de respaldo legal quando pretende imputar ao tribunal de primeira instância uma pretensa omissão de valoração de elementos probatórios não determinantes ou discordância quanto à interpretação de factos provados.
Nos termos do artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e do artigo 125.º do Código de Processo Penal, aplicável subsidiariamente, todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas de forma clara e suficiente. Contudo, tal dever de fundamentação não exige a análise exaustiva de todos os meios de prova, nem a explicitação do valor atribuído a cada um deles de forma minuciosa, bastando que se identifique o processo lógico-racional que levou à convicção do tribunal.
A fundamentação é suficiente quando permite às partes e ao tribunal de recurso apreenderem os fundamentos da convicção do julgador, mesmo que esta não desenvolva extensivamente cada elemento da prova.
No contexto do processo contra-ordenacional, em que não há reapreciação da matéria de facto em segunda instância, a crítica à motivação fáctica apenas pode conduzir à nulidade da sentença nos casos em que haja falta absoluta de fundamentação ou contradição insanável, e não nos casos em que se discorda do juízo valorativo do julgador de primeira instância.
Assim, todas as alegações recursivas que pretendam invalidar a decisão com base em mera divergência de apreciação ou valoração da prova estão fora do âmbito funcional da Relação, sendo inadmissíveis por violação dos limites cognitivos do recurso em matéria de contra-ordenação.
A tentativa de utilizar o recurso para o tribunal da Relação como meio de suprir alegados erros de julgamento sobre matéria de facto no âmbito do processo contra-ordenacional encontra um óbice legal intransponível: a inadmissibilidade da reponderação fáctica fora da primeira instância judicial.
Todavia, esta limitação não significa a total ausência de instrumentos para reagir a decisões manifestamente injustas ou infundadas. O ordenamento jurídico prevê mecanismos processuais próprios para fazer face a situações de erro grave na apreciação dos factos, sem violar a estrutura normativa do RGCO. Entre eles destacam-se:
i. A impugnação para o tribunal de primeira instância (artigo 59.º do RGCO), sempre que a decisão da autoridade administrativa careça de base fática suficiente ou contenha vícios materiais;
ii. A revisão da sentença (artigo 449.º e seguintes do CPP, aplicáveis subsidiariamente), nos casos excepcionais em que surjam novos elementos de prova ou se demonstre que a condenação resultou de erro manifesto;
iii. A arguição de nulidades processuais (artigos 119.º a 122.º do CPP), nos casos em que a prova tenha sido ilegalmente obtida, omitida ou violada no seu processo de produção.
Todos estes mecanismos respeitam os limites funcionais das instâncias e asseguram que os erros materiais, quando devidamente comprovados, possam ser corrigidos sem colocar em causa a regra fundamental da competência exclusiva da primeira instância para apreciar os factos.
Assim, o recurso não pode ser instrumentalizado como meio subsidiário de reapreciação fáctica, sob pena de subversão do regime sancionatório previsto no RGCO. O que o legislador quis evitar — e bem — foi a transformação do processo contra-ordenacional num novo processo penal de plenitude instrutória em duas instâncias, o que violaria os princípios da economia processual e da especialização funcional.
A leitura atenta do recurso apresentado evidencia uma tentativa deliberada de obter uma reformulação da decisão sobre a matéria de facto, com fundamento em divergência interpretativa quanto à valoração da prova produzida em primeira instância. O recorrente sustenta que a sentença:
i. Não valorou correctamente as declarações do arguido;
ii. Desconsiderou prova documental apresentada em sede de audiência;
iii. Assentou numa avaliação subjectiva infundada das testemunhas.
Ora, estes argumentos revelam um erro de concepção quanto à natureza e limites do recurso admissível em processo contra-ordenacional.
Desde logo, o recorrente não invoca qualquer vício jurídico que torne ilegal a decisão proferida: não denuncia prova proibida, não aponta omissões insanáveis, não demonstra nulidade processual, nem sequer invoca qualquer contradição entre os factos provados e a fundamentação jurídica. Em vez disso, insurge-se contra a valoração subjectiva da prova oral e contra o juízo de credibilidade atribuído pelo julgador de primeira instância, pretendendo que a Relação substitua essa convicção por outra.
Esta pretensão não é juridicamente admissível. A Relação não é instância de revisão da apreciação subjectiva da prova. O seu papel limita-se à fiscalização da legalidade e da coerência lógico-jurídica da sentença, não podendo exercer uma função de reexame do mérito fáctico.
A argumentação recursiva incorre, assim, em três erros essenciais:
Desconhece os limites legais do recurso em sede contra-ordenacional, ao invocar preceitos do CPP (como o artigo 412.º) que não são aqui aplicáveis;
Invoca matéria de facto sem assinalar qualquer vício jurídico relevante, revelando um desacordo meramente subjectivo com a decisão, juridicamente inócuo;
Contraria o regime legal previsto no RGCO, como anteriormente demonstrado.
Deste modo, esta argumentação expendida quanto à impugnação da matéria de facto deve ser rejeitada liminarmente, por inadmissibilidade legal e por ausência de fundamento jurídico bastante.
*
3.3. Aplicação de legislação revogada ou inaplicável
A Recorrente alega, de forma genérica e pouco estruturada, que a sentença recorrida aplicou disposições legais revogadas ou inaplicáveis ao caso concreto, sem contudo indicar expressamente quais seriam essas normas, nem apresentar qualquer desenvolvimento lógico-juridico que sustente a sua conclusão.
Evoca, de forma equívoca, a existência de uma alegada desactualização normativa, com suposta violação do princípio da legalidade sancionatória.
Cumpre, por isso, averiguar se:
i. As normas aplicadas na sentença se encontravam em vigor à data da prática dos factos;
ii. Houve erro de direito quanto à qualificação das infracções ou à escolha da base normativa;
iii. Se pode afirmar a violação do princípio da legalidade previsto no artigo 1.º do RGCO.
A sentença fundamenta-se na Lei n.º 34/2013, de 16 de Maio – que estabelece o regime jurídico da actividade de segurança privada – e na Portaria n.º 102/2014, de 15 de Maio, que regula os requisitos complementares de uniforme, formação e conduta dos profissionais de segurança.
Além disso, a sentença aplica subsidiariamente o Regime Geral das Contra-ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, com as alterações subsequentes.
Os factos ocorreram entre 15 de Maio de 2017 e 14 de Abril de 2021, período em que:
i. A Lei n.º 34/2013 encontrava-se integralmente em vigor, sem que se registasse qualquer revogação total ou parcial das normas aplicadas;
ii. A Portaria n.º 102/2014 também se encontrava vigente, sem alteração relevante que afectasse a tipificação dos comportamentos ilícitos;
iii. O RGCO mantinha plena vigência, constituindo o regime supletivo aplicável à tramitação processual e determinação da sanção.
iv. A sentença, em particular, aplicou os seguintes preceitos:
v. Artigos 9.º, 19.º, 29.º, 36.º e 59.º da Lei n.º 34/2013;
vi. Artigos 27.º, 28.º, 18.º e 74.º do RGCO;
vii. Normas regulamentares da Portaria n.º 102/2014, relativas à uniformização do vestuário e distintivos dos seguranças.
Não foi aplicada qualquer disposição revogada à data da decisão nem à data da infracção, nem se verifica a invocação de dispositivos caducados, ultrapassados ou juridicamente ineficazes.
A afirmação da Recorrente de que se aplicaram “normas revogadas” não é acompanhada de qualquer especificação legal, limitando-se a uma crítica abstracta que não permite aferição nem controlo judicial da invocação.
O artigo 1.º do RGCO estabelece o princípio da legalidade nos seguintes termos:
“Constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.”
No caso concreto:
As infracções encontram-se claramente tipificadas como muito graves (cfr. art. 59.º da Lei n.º 34/2013);
A sentença identifica as condutas infractoras, o momento da sua prática e o respectivo enquadramento normativo;
Foi respeitado o princípio da lex certa, lex praevia e lex scripta, não se verificando qualquer retroactividade desfavorável nem recurso a normas vagas ou imprecisas.
Assim, inexiste qualquer erro na identificação da lei aplicável, bem como na aplicação temporal do direito, sendo certo que a sentença aplicou correctamente a lei vigente à data dos factos, tal como impõe o artigo 2.º do RGCO.
A mera invocação de alegada aplicação de norma revogada, desacompanhada de qualquer demonstração ou confronto normativo, é inidónea a pôr em causa a legalidade da sentença.
*
3.4. Inadequação e desproporcionalidade da sanção
A Recorrente defende que, por razões de adequação e justiça, a sanção aplicada deveria ter sido suspensa na sua execução, à semelhança do que dispõe o artigo 50.º do Código Penal para as penas de prisão.
Tal pretensão, porém, carece de suporte normativo.
Com efeito:
i. A coima é a sanção principal prevista no artigo 18.º do RGCO e não é susceptível de suspensão da execução, salvo se tal faculdade estiver prevista expressamente no regime legal da contra-ordenação específica;
ii. No caso da Lei n.º 34/2013, não existe qualquer previsão legal de suspensão da coima, quer total, quer parcial;
iii. O regime contra-ordenacional não admite analogia com o artigo 50.º do Código Penal.
A invocação de tal mecanismo constitui, por conseguinte, um erro de qualificação jurídica e uma indevida extensão das categorias penais ao domínio contra-ordenacional, incompatível com o princípio da legalidade sancionatória.
Ainda que o regime contra-ordenacional reconheça a culpa como limite à sanção (art. 32.º do RGCO), tal conceito não se confunde com a culpa penal.
No contexto contra-ordenacional, a culpa corresponde a um juízo de censura pela violação de deveres normativos objectivos, não se tratando de uma avaliação da personalidade ou da perigosidade do agente, como sucede no direito penal.
Ademais, a sanção tem uma função essencialmente preventiva e reguladora, visando assegurar:
i. A conformidade com os deveres legais estabelecidos para o sector da actividade (segurança privada, no caso);
ii. A dissuasão de comportamentos desviantes futuros;
iii. A protecção do interesse público e da confiança social nas instituições reguladas.
Deste modo, a argumentação da Recorrente, baseada em categorias penais como a reintegração social, o juízo de censura moral ou a prevenção especial positiva, carece de aplicabilidade no domínio das coimas administrativas.
A sentença não aplicou o regime penal, nem confundiu os institutos próprios do direito criminal com os mecanismos do regime contra-ordenacional.
A invocação da Recorrente de que deveria ter sido suspensa a execução da coima ou aplicada uma sanção penal substitutiva é juridicamente inadmissível.
A confusão conceptual entre pena criminal e coima não compromete a validade da sentença, que se mostra legal e formalmente irrepreensível.
Por conseguinte, também nesta parte, o recurso deve ser julgado integralmente improcedente.
A Recorrente sustenta que a coima de €44.500,00, aplicada em cúmulo material pelas 33 infracções remanescentes, é:
i. Excessiva face à gravidade dos factos;
ii. Desproporcional em relação às condições económico-financeiras da arguida;
iii. Inadequada à luz dos princípios da culpa, prevenção e justiça sancionatória.
Afirma, ainda, que o Tribunal não ponderou adequadamente a evolução do comportamento da empresa, nem atendeu à eventual inexistência de prejuízo concreto causado pelas infracções.
Importa, por isso, aferir se a medida concreta da coima:
i. Observa os critérios do artigo 18.º do RGCO;
ii. Respeita o princípio da proporcionalidade sancionatória;
iii. Revela adequada ponderação dos elementos objectivos e subjectivos do caso.
Nos termos do artigo 18.º do RGCO, na determinação da medida da coima deve o tribunal atender, entre outros, a:
i. Gravidade do ilícito e das suas consequências;
ii. Culpa do agente;
iii. Situação económica e capacidade contributiva da arguida;
iv. Benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação.
Importa lembrar que, no presente caso:
i. Foram praticadas 33 infracções muito graves, previstas nos artigos 29.º, 36.º e 59.º da Lei n.º 34/2013, por omissão de formação, uso de uniforme irregular, falta de autorização legal, e funcionamento de serviço de segurança privada fora dos parâmetros legais;
ii. A empresa não apresentou documentação relevante que demonstrasse diligência, correcção dos vícios ou cooperação processual;
iii. As infracções visam proteger bens jurídicos essenciais, como a ordem pública, a segurança dos cidadãos e a legalidade da intervenção privada armada.
A sentença, ao aplicar a coima única de €44.500,00, revela cuidadosa ponderação dos seguintes factores:
i. As infracções ocorreram de forma reiterada e sistemática, num contexto funcional homogéneo;
ii. A arguida beneficiou economicamente da actuação infractora, ao manter em funções seguranças sem requisitos legais, poupando custos estruturais e formativos;
iii. A moldura legal aplicável permitiria, em cúmulo simples, um total superior a €150.000,00;
iv. O tribunal aplicou o cúmulo material atenuado previsto no artigo 18.º do RGCO, como forma de compressão sancionatória;
v. A fixação da coima ficou abaixo do limite máximo abstracto (€44.890,00) e não excede o necessário para assegurar a função preventiva.
Logo, a coima aplicada não configura qualquer excesso sancionatório, antes se apresenta como expressão legítima da função reguladora e dissuasora do direito contra-ordenacional.
A Recorrente não alegou nem comprovou situação económico-financeira deficitária que impedisse o pagamento da coima. Também não apresentou plano de regularização das falhas, nem demonstrou arrependimento ou emenda eficaz da conduta.
*
O recurso não merece, pois, provimento.
*
III - DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção Criminal deste Tribunal, em não conceder provimento ao recurso, e, consequentemente mantém-se nos seus precisos termos a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 4 UCs a taxa de justiça.
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Lisboa, 18 de junho de 2025
(elaborado pelo relator e revisto por ambos os subscritores – artigo 94 nº 2 do Código Processo Penal)
(escrita de acordo com a anterior grafia)
Alfredo Costa
Ana Rita Loja
Rosa Vasconcelos