ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PRESSUPOSTOS
Sumário

I - O recurso ao enriquecimento sem causa, não pode constituir uma via alternativa e sucedânea a um insuficiente ou inexistente exercício tempestivo das normas contratuais aplicáveis.
II - O recurso ao instituto do enriquecimento sem causa reveste natureza excecional e subsidiária.

Texto Integral

Processo 271/23.4T8BAO.P2

Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo de Competência Genérica de Baião

Relator.Francisca da Mota Vieira

1ª Adjunto.Maria Manuela Barroco Esteves Machado

2º Adjunto.António Paulo Esteves Aguiar de Vasconcelos

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

1. AA intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra A... Unipessoal, Lda., peticionando a condenação da ré no pagamento da quantia de €7.380,00 acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a 11 de Maio de 2021, até efectivo e integral pagamento, tudo com as demais consequências legais.

Para tanto, alegou, em súmula, que no final do ano de 2018, o autor celebrou com o sócio-gerente da ré um contrato pelo qual a segunda se obrigou para com o primeiro a construir um muro em pedra, com 226m2, junto a um recém-construído pavilhão do demandante, na Estrada ..., na freguesia ....

Mais alegou que parte desse muro ruiu e intentou processo que correu termos sob o nº 60/21.0T8BAO, peticionando indemnização pelo custo da reconstrução da parte do muro que ruiu e de todas as consequências danosas disso resultantes; que nessa acção foi deduzida reconvenção pela ré, que foi julgada parcialmente procedente, condenando o autor a pagar a totalidade do preço em dívida pois, não obstante a ré estar obrigada a reconstruir a parte do muro que ruiu, esta beneficiava da excepção de não cumprimento do contrato.

Alegou ainda o autor que no dia 12 de Setembro de 2023, o autor pagou tudo quanto era devido à ré, protestando juntar comprovativo – que não juntou até ao momento –, sustentando que, tendo ruído parte desse muro, numa extensão de 80m2, que obrigou a desmantelamento da parte do muro em que a mesma se verificou (aludidos 80m2) e sua reconstrução de raiz, com um custo calculado à razão de € 75 por metro quadrado acrescido de Iva à taxa de 23%, pretende agora ser reembolsado da parte correspondente à porção do muro que ruiu no montante global de € 7.380,00.

2.Regularmente citada, a ré apresentou contestação, na qual invocou a excepção de caso julgado, alegando, desde logo, que a relação material ora alegada já foi objecto de apreciação naqueloutro processo n.º 60/21.0T8BAO e, por impugnação, alegou que os trabalhos contratados pelo autor à ré foram realizados e concluídos, tendo o autor emitido uma declaração de recepção e aceitação da obra, concluindo que nada deve ao autor que, ao ordenar a reconstrução do muro, por terceiro, impossibilitou que a ré o fizesse, como é ressalvado na douta sentença proferida.

3.No exercício do contraditório, o autor pugnou pela improcedência da referida excepção, porquanto naqueloutra acção não foi peticionada nem decidida qualquer redução do preço correspondente ao custo da reconstrução da parte do muro arruinada. Mais invocou que, tendo sido decidido que a ré beneficiava de excepção de não cumprimento, e tendo o autor pago, não podendo a ré reconstruir o muro que ruiu, assiste-lhe o direito de reaver a segunda a parte do preço que lhe pagou correspondente ao custo da dita reconstrução.

Mais peticionou a condenação da ré como litigante de má fé.

4.Em 27 de Maio de 2024, foi proferida sentença decisão que julgou procedente a excepção de caso julgado, e, em consequência, absolveu o réu da instância e do pedido de condenação como litigante de má fé, decisão que foi revogada por decisão sumária do Tribunal da Relação do Porto de 25 de Novembro de 2024, que determinou o prosseguimento dos ulteriores trâmites processuais pela 1ª instância.

5.Em virtude de se considerar que os autos estão dotados de todos os elementos que permitem conhecer imediatamente do mérito da causa, ao abrigo do disposto nos arts. 597º, al. c) e 595.º, n.º 1, al. b), ex vi o art.º 593.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, foi dispensada a realização de audiência prévia e notificadas as partes para, querendo, alegarem por escrito, no prazo de 10 dias - cfr. art.º 6.º do Código de Processo Civil – convite ao qual acederam.

6.De seguida, foi proferida sentença que enunciou a questão a decidir nos seguintes termos “.O presente processo tem por objecto aferir se a ré se encontra obrigada a restituir ao autor a quantia por si peticionada, com fundamento em enriquecimento em causa” e julgou a acção improcedente por não provada, sendo que o tribunal recorrido,

7.Inconformado, o autor interpoôs recurso de apelação e concluiu nos termos que se reproduzem:

1. De acordo com a fundamentação de facto da sentença recorrida, são os seguintes os factos que constituem a causa de pedir na presente acção:

1. No final do ano de 2018, o autor celebrou com a ré, representado pelo seu sócio gerente, um acordo pelo qual a segunda se obrigou para com o primeiro a construir um muro em pedra, com 226 m2,

junto a um recém-construído pavilhão do demandante, na Estrada ..., na referida freguesia de....

2. Em 1 de Agosto de 2021, o autor instaurou contra a ré acção de processo comum, que correu com o n.º 60/21.0T8BAO, peticionando a condenação da ré no pagamento da quantia global de € 40.087,75, correspondente ao somatório do custo de reconstrução do muro (19.587,75€), já tinha pago à Ré (6.500,00€) e o valor de indemnização (14.000,00€), acrescida de juros à taxa legal desde a efectivo e integral pagamento, tudo com as demais consequências legais, alegando, com interesse e em síntese, que o autor celebrou com o Sócio Gerente da Ré um contrato pelo qual a segunda se obrigou para com o pri-meiro a construir um muro em pedra junto a um pavilhão do demandante, nos termos e condições melhor descritas na inicial, bem como que dois ou quatro meses depois, parte do muro construído sobre um muro antigo começou a ficar muito inclinado, a apresentar fissuras, ao ponto de ser praticamente certo que ia acabar por ruir, o que foi confirmado pela Ré que se aprontou a desmontá-lo, o que fez, tendo depois sido instada pela autora a reconstruir o muro, tal como havia assumido fazer. Alegou ainda que como a Ré, após vicissitudes várias, nunca o fez, o autor acabou por contratar uma outra empresa para a reconstrução do muro, que orçamentou a obra em 19.587,75€, sendo que o autor havia entregue a quantia de 6.500,00€ do custo de reconstrução do muro.

3. Em sede de contestação, a ré deduziu reconvenção pela qual, alegando ter sido outro (maior) o valor acordado para a contratada construção e o autor apenas lhe ter pago 3.500€, pediu a condenação deste a pagar-lhe a parte restante do preço alegadamente em dívida no valor de 20.909,35€.

4. No processo identificado em 2, foi proferida sentença, já transitada em julgado, que decidiu, além do mais: a) absolver a ré do pedido deduzido pelo autor; b) Condenar o autor/reconvindo a pagar a quantia de € 20.905,66, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos e vincendos desde a notificação do pedido reconvencional ao autor e efectivo pagamento; c) Absolver o autor/reconvindo do restante pedido reconvencional.

5. Fixou-se, no mais e com interesse, a seguinte matéria de facto: «Factos provados (aqui com relevância e não alterados em sede de recurso)

I. No final do ano de 2018, o A. celebrou com o Sócio-Gerente da R. um contrato pelo qual a segunda se obrigou para com o primeiro a construir um muro em pedra junto a um recém-construído pavilhão do demandante, na Estrada ..., na referida freguesia ... (alínea A) dos factos assentes).

II. O muro referido em 1 seria construído pela ré, com material e mão de obra próprios dela. III. O muro tinha 226 m2.

IV. Ficou acordado entre o autor e a Ré que o preço a pagar seria de €75,00 (setenta e cinco euros) o m2, a que acresceria o IVA taxa em vigor de 23%, ficando a obra ficou orçada em €16.950,00 + IVA, preço que o autor aceitou.(…)

V. O referido muro era composto por duas partes distintas, uma mais próxima da entrada do referido pavilhão do autor e outra na parte restante.

VI. A diferenciação de cada uma dessas partes radica na circunstância de, na extensão da primei-ra parte do referido muro a construir, já haver um muro mais baixo e antigo.

VII. No local, existia erguido um antigo muro de pedra, que o autor quis manter, apesar de a Ré o ter informado da imprudência da construção sobre ele, pois o seu aproveitamento podia em risco os alicerces.

VIII. O autor optou por manter o muro antigo e ampliá-lo apenas, tendo a Ré fornecido, nesta parte, apenas a pedra necessária a realizar a ampliação. aproveitando-se o muro pré-existente e a pedra que compunha o mesmo.

IX. Para a construção da restante parte a contruir de raiz, a ré forneceu a pedra.

X. E assim, nessa parte, o muro executado pela Ré foi assente no referido muro antigo préexis-tente.

XI. Os trabalhos iniciaram-se em finais de 2018.

XII.A ré construiu, de raiz, 114 m de muro, e construiu 112 m de muro alicerçado no muro de pedra pré-existente, que o autor quis manter e a ré aceitou.

XIII. Tais trabalhos foram no dia 16/11/2019, data da entrega da obra e da sua recepção e aceita-ção sem reservas pelo autor.(…)

XIV. Dois ou quatro meses depois da recepção sem reservas da obra por parte do autor, nos moldes vertidos no documento 9 junto com a contestação cujo teor ali se deu por integralmente reprodu-zido, na sequência das primeiras chuvas do inverno desse ano, 80 m2 do muro construído sobre o muroantigo começou a ficar inclinado e a apresentar fissuras, ao ponto de ser praticamente certo que ia acabarpor cair.

XV. Logo o A. alertou o gerente da R. que, tendo ido ao local a chamamento daquele, prontamente reconheceu e confirmou a situação de iminente risco de derrocada.

XVI. O autor e a ré acordaram no desmantelamento daquela parte do muro, e na sua reconstrução de raiz, na linha do que a ré havia aconselhado ao autor.

XVII. Por isso, e para evitar que, ocorrendo essa derrocada, toda a terra e pedras dessa parte do muro invadissem a estrada (N 108), a ré procedeu à desmontagem/demolição dessa parte de 80 m2 do muro, o que fez logo no mesmo dia, com o conhecimento e a autorização do autor.

XVIII. Depois de essa desmontagem, logo o A. instou o gerente da R. para ser efectuada a respectiva reconstrução.

XIX. Nessa altura, o autor foi advertido pela ré que só iniciaria a construção do muro, assim que o autor liquidasse os valores em falta resultantes da construção do muro realizada na sequência do acordo referido nos anteriores pontos 1 a 5 (dos factos provados da sentença em apreciação).

XX. A ré aguardou o pagamento por parte do autor para dar início aos trabalhos.

XXI. À data, a ré tinha executado trabalhos no valor de: € 16.950,00 relativa à construção do muro (226 m2 x € 75,00); a quantia de € 1.124,50, decorrente dos serviços de camião; a quantia de € 1,137,50, pelos serviços da mini-giratória; a quantia de € 630,00, pela utilização do compressor, sendo que a estes valores acrescia o IVA a 23%.

XXII. Pela totalidade dos trabalhos executados pela ré o autor liquidou a quantia de 3.500,00€, não tendo liquidado qualquer outra quantia.

XXIII. Por esta razão a ré não iniciou a reconstrução daquela parte muro.

XXIV. (…) o A. entendeu estarem esgotadas todas as possibilidades de qualquer solução de consenso e decidiu ele resolver o assunto.

XXV. Para o que contratou outra empresa para efectuar a reconstrução da parte do muro em questão, empresa essa que foi a "B..., Lda.", de ..., a qual lhe apresentou o respectivo orçamento.(…)

Factos não provados

i. (…) o gerente da ré tivesse expressamente reconhecido e assumido a culpa da situação e a consequente obrigação de proceder à reconstrução acordada do muro a expensas da ré.(…)

ii. Embora nunca a tal se negando, perante as várias e sucessivas interpelações do A., o gerente da R. ia-lhe prometendo efectuar essa reconstrução logo que tal lhe fosse possível.

iii. Só que o tempo ia passando e o sócio gerente da R. ia sucessivamente adiando o cumprimento dessa sua obrigação.

iv. Face ao prolongamento da situação e às maiores insistências do A., o gerente da R. acabou por lhe dizer que executaria a reconstrução em causa "se e quando lhe apetecesse".

v. Após as cartas referidas nos factos provados, o autor ainda contactou telefonicamente o gerente da R. para uma reunião o que aquele aceitou.

vi. Mas, tendo ficado de contactar novamente o autor para acerto dia e hora para o feito, acabou

por nunca mais o fazer.

vii. O A. tivesse pago R, do custo da reconstrução desse mesmo muro, a quantia de 6.500,00.(…)»

6. Em 12 de Setembro de 2023, o autor pagou tudo quanto era devido à ré, de acordo com decidido nessa acção.

7. O autor propôs à ré que aceitasse a correspondente dedução no montante que foi condenado a pagar-lhe por contacto entre o mandatário do autor e da ré no mês de Julho de 2023.

8. Após a conclusão dos trabalhos, a obra foi entrega ao autor e este emitiu uma declaração de recepção e aceitação da obra, com os seguintes dizeres “AA (…) declara que a os dois muros, um com 112m2 (feito por cima de um outro já existente) e outro com 114m2), executados pela empresa Hugo Flávio, Unipessoal, Lda. (…) terminou no dia 16/11/2019, e estão em conformidade com o que tinha sido adjudicado entre as partes antes de iniciar a construção.”

2. O presente litígio, integrado pela factualidade exposta, foi decidido por uma primeira sentença, em primeira instância, sentença essa que, julgando verificada a exceção dilatória do caso julgado, decretou a absolvição da instância.

3. Tendo o A. recorrido dessa sentença, por d. Acórdão desta Relação do Porto de 04/01/2025 foi "concedido total provimento à apelação, julgando não verificada, nem a exceção de caso julgado, nem a da autoridade do caso julgado e que o pedido não é manifestamente improcedente pela falta de alegação de que a ré se recusou a reparar os defeitos ou que incumpria ilegitimamente um qualquer prazo que lhe permita exigir a redução do preço ou qualquer outro remédio legal" .

4. Reenviado que foi o processo para a 1ª instância, aí foi proferida nova sentença, de que ora se recorre, que voltou a julgar a acção improcedente mas, desta feita, apenas com base em dois fundamentos de direito

5. O primeiro desses fundamentos consistiu no facto de o pedido se apresentar baseado em enriquecimento sem causa, quando o mesmo só podia ser atendido com base em responsabilidade contratual.

6. O segundo dos referidos fundamentos foi de se entender que não era possível uma decisão favorável, com base em responsabilidade contratual, por isso consubstanciar uma condenação em objecto diverso do pedido.

7. Ora, a nosso ver e ressalvado o maior respeito, nenhum desses fundamentos é correcto.

O primeiro, porque o julgador não está vinculado ao enquadramento jurídico dos factos feitos pelas partes.

O segundo, porque o pedido consiste apenas e tão só no pagamento da quantia peticionada, e não também no instituto jurídico (no caso, enriquecimento sem causa, ou responsabilidade contratual) de que emana a obrigação desse pagamento e respectiva condenação.

8. Acresce ainda que o pedido se mostra baseado, em primeira linha, na responsabilidade contratual da R. por incumprimento parcial do contrato e apenas subsidiariamente foi invocado o instituto do enriquecimento sem causa.

9. Contrariamente ao considerado e entendido na sentença recorrida,os factos dados como provados em consonância com o alegado pelo A. na petição inicial, integram plenamente o instituto de enriquecimento sem causa, designadamente, o valor correspondente a tal enriquecimento pela R. à custa de igual perda ou empobrecimento do A., qual seja, o valor do custo da reconstrução da parte do muro que ruiu e que se considerou ter a R. obrigação de reconstruir.

10. Não sendo correctos os indicados entendimentos adoptados na segunda sentença da 1ª instância e, como decidido por esta Relação no recurso da primeira sentença, não se verificando, nem a exceção de caso julgado, nem da autoridade de caso julgado, a acção devia ter sido julgada procedente com base na factualidade provada constante da sentença recorrida e que acima ficou transcrita.

10. Assim não se tendo entendido e decidido, considera o A. que a sentença recorrida traduz incorrecta interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, nomeadamente dos artigos 5º, nº3 e 609º, nº1 e 615º, nº1, al.e) ambos do C.P.C. e arts. 473º, 474º, e 1221º, 1222º, estes do C. Civil, pelo que

No provimento do presente recurso, deve a sentença recorrida ser revogada e, em sua substituição, ser proferida outra que julgue a acção procedente, assim resultando, a nosso ver, melhor interpretada e aplicada a lei e também melhor realizada a JUSTIÇA.

8. Não foram apresentadas contra-alegações.

9. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.

A questão recursória colocada:

Apreciar e decidir se os factos dados como provados em consonância com o alegado pelo A. na petição inicial, são bastantes para preencherem os requisitos do instituto de enriquecimento sem causa,

III. FUNDAMENTAÇÃO.

3.1 Fundamentação de facto:

Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

A) Factos provados

1. No final do ano de 2018, o autor celebrou com a ré, representado pelo seu sócio gerente, um acordo pelo qual a segunda se obrigou para com o primeiro a construir um muro em pedra, com 226 m2, junto a um recém-construído pavilhão do demandante, na Estrada ..., na referida freguesia ....

2. Em 1 de Agosto de 2021, o autor instaurou contra a ré acção de processo comum, que correu com o n.º 60/21.0T8BAO, peticionando a condenação da ré no pagamento da quantia global de € 40.087,75, correspondente ao somatório do custo de reconstrução do muro (19.587,75€), já tinha pago à Ré (6.500,00€) e o valor de indemnização (14.000,00€), acrescida de juros à taxa legal desde a efectivo e integral pagamento, tudo com as demais consequências legais, alegando, com interesse e em síntese, que o autor celebrou com o Sócio Gerente da Ré um contrato pelo qual a segunda se obrigou para com o primeiro a construir um muro em pedra junto a um pavilhão do demandante, nos termos e condições melhor descritas na inicial, bem como que dois ou quatro meses depois, parte do muro construído sobre um muro antigo começou a ficar muito inclinado, a apresentar fissuras, ao ponto de ser praticamente certo que ia acabar por ruir, o que foi confirmado pela Ré que se aprontou a desmontá-lo, o que fez, tendo depois sido instada pela autora a reconstruir o muro, tal como havia assumido fazer. Alegou ainda que como a Ré, após vicissitudes várias, nunca o fez, o autor acabou por contratar uma outra empresa para a reconstrução do muro, que orçamentou a obra em 19.587,75€, sendo que o autor havia entregue a quantia de 6.500,00€ do custo de reconstrução do muro.

3. Em sede de contestação, a ré deduziu reconvenção pela qual, alegando ter sido outro (maior) o valor acordado para a contratada construção e o autor apenas lhe ter pago 3.500€, pediu a condenação deste a pagar-lhe a parte restante do preço alegadamente em dívida no valor de 20.909,35€.

4. No processo identificado em 2, foi proferida sentença, já transitada em julgado, que decidiu, além do mais: a) absolver a ré do pedido deduzido pelo autor; b) Condenar o autor/reconvindo a pagar a quantia de € 20.905,66, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos e vincendos desde a notificação do pedido reconvencional ao autor e efectivo pagamento; c) Absolver o autor/reconvindo do restante pedido reconvencional.

5. Fixou-se, no mais e com interesse, a seguinte matéria de facto:

«Factos provados (aqui com relevância e não alterados em sede de recurso)

I. No final do ano de 2018, o A. celebrou com o Sócio-Gerente da R. um contrato pelo qual a segunda se obrigou para com o primeiro a construir um muro em pedra junto a um recém-construído pavilhão do demandante, na Estrada ..., na referida freguesia ... (alínea A) dos factos assentes).

II. O muro referido em 1 seria construído pela ré, com material e mão de obra próprios dela.

III. O muro tinha 226 m2.

IV. Ficou acordado entre o autor e a Ré que o preço a pagar seria de €75,00 (setenta e cinco euros) o m2, a que acresceria o IVA taxa em vigor de 23%, ficando a obra ficou orçada em €16.950,00 + IVA, preço que o autor aceitou.(…)

V.O referido muro era composto por duas partes distintas, uma mais próxima da entrada do referido pavilhão do autor e outra na parte restante.

VI. A diferenciação de cada uma dessas partes radica na circunstância de, na extensão da primeira parte do referido muro a construir, já haver um muro mais baixo e antigo.

VII. No local, existia erguido um antigo muro de pedra, que o autor quis manter, apesar de a Ré o ter informado da imprudência da construção sobre ele, pois o seu aproveitamento podia em risco os alicerces.

VIII. O autor optou por manter o muro antigo e ampliá-lo apenas, tendo a Ré fornecido, nesta parte, apenas a pedra necessária a realizar a ampliação. aproveitando-se o muro pré-existente e a pedra que compunha o mesmo.

IX. Para a construção da restante parte a contruir de raiz, a ré forneceu a pedra.

X. E assim, nessa parte, o muro executado pela Ré foi assente no referido muro antigo pré-existente.

XI. Os trabalhos iniciaram-se em finais de 2018.

XII. A ré construiu, de raiz, 114 m de muro, e construiu 112 m de muro alicerçado no muro de pedra pré-existente, que o autor quis manter e a ré aceitou.

XIII. Tais trabalhos foram no dia 16/11/2019, data da entrega da obra e da sua recepção e aceitação sem reservas pelo autor.(…)

XIV. Dois ou quatro meses depois da recepção sem reservas da obra por parte do autor, nos moldes vertidos no documento 9 junto com a contestação cujo teor ali se deu por integralmente reproduzido, na sequência das primeiras chuvas do inverno desse ano, 80 m2 do muro construído sobre o muro antigo começou a ficar inclinado e a apresentar fissuras, ao ponto de ser praticamente certo que ia acabar por cair.

XV. Logo o A. alertou o gerente da R. que, tendo ido ao local a chamamento daquele, prontamente reconheceu e confirmou a situação de iminente risco de derrocada.

XVI. O autor e a ré acordaram no desmantelamento daquela parte do muro, e na sua reconstrução de raiz, na linha do que a ré havia aconselhado ao autor.

XVII. Por isso, e para evitar que, ocorrendo essa derrocada, toda a terra e pedras dessa parte do muro invadissem a estrada (N 108), a ré procedeu à desmontagem/demolição dessa parte de 80 m2 do muro, o que fez logo no mesmo dia, com o conhecimento e a autorização do autor.

XVIII. Depois de essa desmontagem, logo o A. instou o gerente da R. para ser efectuada a respectiva reconstrução.

XIX. Nessa altura, o autor foi advertido pela ré que só iniciaria a construção do muro, assim que o autor liquidasse os valores em falta resultantes da construção do muro realizada na sequência do acordo referido nos anteriores pontos 1 a 5 (dos factos provados da sentença em apreciação).

XX. A ré aguardou o pagamento por parte do autor para dar início aos trabalhos.

XXI. À data, a ré tinha executado trabalhos no valor de: € 16.950,00 relativa à construção do muro (226 m2 x € 75,00); a quantia de € 1.124,50, decorrente dos serviços de camião; a quantia de € 1,137,50, pelos serviços da mini-giratória; a quantia de € 630,00, pela utilização do compressor, sendo que a estes valores acrescia o IVA a 23%.

XXII. Pela totalidade dos trabalhos executados pela ré o autor liquidou a quantia de 3.500,00€, não tendo liquidado qualquer outra quantia.

XXIII. Por esta razão a ré não iniciou a reconstrução daquela parte muro.

XXIV. (…) o A. entendeu estarem esgotadas todas as possibilidades de qualquer solução de consenso e decidiu ele resolver o assunto.

XXV. Para o que contratou outra empresa para efectuar a reconstrução da parte do muro em questão, empresa essa que foi a "B..., Lda.", de ..., a qual lhe apresentou o respectivo orçamento.(…)

Factos não provados

i.(…) o gerente da ré tivesse expressamente reconhecido e assumido a culpa da situação e a consequente obrigação de proceder à reconstrução acordada do muro a expensas da ré.(…)

ii. Embora nunca a tal se negando, perante as várias e sucessivas interpelações do A., o gerente da R. ia-lhe prometendo efectuar essa reconstrução logo que tal lhe fosse possível.

iii. Só que o tempo ia passando e o sócio gerente da R. ia sucessivamente adiando o cumprimento dessa sua obrigação.

iv. Face ao prolongamento da situação e às maiores insistências do A., o gerente da R. acabou por lhe dizer que executaria a reconstrução em causa "se e quando lhe apetecesse".

v. Após as cartas referidas nos factos provados, o autor ainda contactou telefonicamente o gerente da R. para uma reunião o que aquele aceitou.

vi. Mas, tendo ficado de contactar novamente o autor para acerto dia e hora para o feito, acabou por nunca mais o fazer.

vii. O A. tivesse pago R, do custo da reconstrução desse mesmo muro, a quantia de 6.500,00.(…)»

6. Em 12 de Setembro de 2023, o autor pagou tudo quanto era devido à ré, de acordo com decidido nessa acção.

7.O autor propôs à ré que aceitasse a correspondente dedução no montante que foi condenado a pagar-lhe por contacto entre o mandatário do autor e da ré no mês de Julho de 2023.

8. Após a conclusão dos trabalhos, a obra foi entrega ao autor e este emitiu uma declaração de recepção e aceitação da obra, com os seguintes dizeres “AA (…) declara que a os dois muros, um com 112m2 (feito por cima de um outro já existente) e outro com 114m2), executados pela empresa Hugo Flávio, Unipessoal, Lda. (…) terminou no dia 16/11/2019, e estão em conformidade com o que tinha sido adjudicado entre as partes antes de iniciar a construção.”

B) Factos não provados

Inexistem.

3.2.Do Mérito do Recurso.

O recorrente, no essencial, alega que a improcedência da ação teve por base dois fundamentos,, os quais, alega, não aceita, reproduzindo-se aqui as conclusões que relevam:

“5.O primeiro desses fundamentos consistiu no facto de o pedido se apresentar baseado em enriquecimento sem causa, quando o mesmo só podia ser atendido com base em responsabilidade contratual., porque o julgador não está vinculado ao enquadramento jurídico dos factos feitos pelas partes.

6.O segundo dos referidos fundamentos foi de se entender que não era possível uma decisão favorável, com base em responsabilidade contratual, por isso consubstanciar uma condenação em objecto diverso do pedido.”

O segundo, porque o pedido consiste apenas e tão só no pagamento da quantia peticionada, e não também no instituto jurídico (no caso, enriquecimento sem causa, ou responsabilidade contratual) de que emana a obrigação desse pagamento e respectiva condenação.”

Que dizer?

Como resulta do relatório elaborado, nesta ação foi proferida uma primeira sentença a 27.05.2024 que julgou procedente a excepção de caso julgado, e, em consequência, absolveu o réu da instância e do pedido de condenação como litigante de má fé, decisão que foi revogada por decisão sumária do Tribunal da Relação do Porto de 25 de Novembro de 2024, que determinou o prosseguimento dos ulteriores trâmites processuais pela 1ª instância.

E nesta decisão sumária do tribunal da Relação do Porto, escreveu-se, entre o mais:

“Na primeira acção o aqui autor demandou a aqui ré, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de € 40.087,75, correspondente ao somatório do custo de reconstrução do muro (€ 19.587,75€), da quantia que alegadamente o autor já tinha pago à ré (€ 6.500,00) e o valor de indemnização (€ 14.000,00), acrescida de juros à taxa legal desde a efectivo e integral pagamento, alegando, para o efeito, em resumo, que celebrou com a ré um contrato pelo qual esta se obrigou a construir um muro em pedra, sendo que pouco depois, parte do muro começou a ficar muito inclinado, a apresentar fissuras, ao ponto de ser praticamente certo que ia acabar por ruir, o que foi confirmado pela ré que se aprontou a desmontá-lo, o que fez, tendo depois sido instada pela autora a reconstruir o muro, tal como havia assumido fazer, o que, contudo, nunca o fez, tendo o autor acabado por contratar uma outra empresa para a dita reconstrução, orçamentada em € 19.587,75.

Na sequência da contestação e dedução de pedido reconvencional, veio-se a decidir julgar improcedente a acção e procedente a reconvenção, com a condenação do autor a pagar à ré a quantia de € 20.956,66, correspondente à parte do preço ainda em dívida.

Nesta segunda acção, o autor, com base no instituto do enriquecimento sem causa, pede a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 7.380,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a 11 de Maio de 2021, até efectivo e integral pagamento, seja o valor correspondente à reconstrução dos 80 m2, desmantelados, com um custo calculado à razão de € 75,00/m2 acrescido de IVA à taxa de 23%.

Assim, na presente ação na sequência do trânsito em julgado da dita sentença, o autor alega que pagou tudo quanto era devido à ré, extinguindo-se, nas palavras do autor, a referida excepção de não cumprimento do contrato – donde pretende que pode nesta acção pedir à ré a reconstrução da parte do muro que ruiu ou, no caso de tal já não ser possível, como sucedeu, o respectivo custo – a que se reconduz o pedido aqui formulado.

Com efeito, nesta segunda acção, o autor, com base no instituto do enriquecimento sem causa, pede a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 7.380,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a 11 de Maio de 2021, até efectivo e integral pagamento, seja o valor correspondente à reconstrução dos 80 m2, desmantelados, com um custo calculado à razão de € 75,00/m2 acrescido de IVA à taxa de 23%.

Ora, no caso dos autos, na segunda acção o autor é claro a alegar ter praticado o facto constitutivo complementar, isto é, já ter praticado o facto em que se traduzia a excepção de não cumprimento alegada e procedente na primeira acção – o pagamento do valor do preço ainda em falta.

No caso concreto, tanto no primeiro processo como no segundo, as partes processuais são as mesmas, o autor e a ré, na mesma posição processual.

No que concerne ao pedido, na primeira acção o autor pediu a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global de € 40.087,75, correspondente ao somatório do custo de reconstrução da totalidade do muro (€ 19.587,75€), da quantia que alegadamente o autor já tinha pago à ré (€ 6.500,00) e o valor de indemnização (€ 14.000,00) e aqui pede a condenação da ré no pagamento do valor de € 7.380,00, relativo à reconstrução de parte do muro, de 80 m2.

Ainda que em rigor e na sua essência o não seja, por mera facilidade de raciocínio, pode-se entender que este pedido, de pagamento da reconstrução de parte do muro, foi já formulado no primeiro processo, quando se pediu o pagamento do valor da reconstrução da sua totalidade.

No que respeita à causa de pedir, na primeira acção o autor invoca o incumprimento, o cumprimento defeituoso do contrato de empreitada e aqui, invoca o instituto do enriquecimento sem causa, para ser restituído do valor que pagou a quem contratou para proceder à reconstrução da parte do muro que a ré tinha executado com defeito.

Isto, recorde-se, depois de na primeira acção se ter entendido que o autor havia procedido à resolução do contrato.

E, se assim é, então não se verifica a aludida tríplice identidade que subjaz à excepção do caso julgado, invocada pela ré e afirmada na decisão recorrida.

Decisão que terá, assim, que ser revogada, ordenando-se, em consequência, o prosseguimento dos autos, para conhecimento do mérito da pretensão do autor.”

A revelar que está decidido, por decisão sumária desta Relação do Porto, transitada em julgado, e, por isso, não suscetível de reapreciação, que no que respeita à causa de pedir, na primeira acção o autor invoca o incumprimento, o cumprimento defeituoso do contrato de empreitada e aqui, invoca o instituto do enriquecimento sem causa, para ser restituído do valor que pagou a quem contratou para proceder à reconstrução da parte do muro que a ré tinha executado com defeito.

E tendo por base o entendimento acolhido nessa decisão, resulta que efectivamente o prosseguimento desta ação que foi ordenado nessa decisão sumária proferida pelo anterior relator tem por premissa o entendimento que a presente ação prossegue com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa para apreciar e decidir se ao autor assiste o direito de ser restituído do valor que pagou a quem contratou para proceder à reconstrução da parte do muro que a ré tinha executado com defeito.

E por relevar reproduz-se aqui segmento da petição inicial.

“6. Além disso, tendo como fundamento a factualidade adrede alegada pela R., foi a reconvenção julgada procedente quase na sua totalidade, com a condenação do A. a pagar àquela a quantia de 20.956,66€ .

7. Tal quantia corresponde a parte do preço que se deu como provado ter sido contratado que foi 75€ por metro quadrado com o acréscimo do Iva à taxa de 23% e dedução da indicada importância de 3.500€ que o Tribunal deu como provado ter sido paga pelo A..

8. Tudo conforme sentença cuja cópia se junta e aqui se dá por reproduzida (Doc. junto)

9. Também conforme consta da mesma sentença, entendeu-se que a R. estava obrigada a reconstruir a parte do muro que ruiu (v. 3º parágrafo de fls. 19, penúltimo parágrafo de fls.21 e 2º parágrafo de fls.23 da sentença)

10. Apenas não se tendo decidido deduzir o respectivo custo à quantia peti-cionada pela R. por se ter entendido que esta beneficiava da excepção de não cumprimento do contrato baseada no facto de, conforme a decisão da matéria de facto, o A. já então estar em mora quanto ao pagamento da totalidade da parte do preço em dívida..

11. Assim sendo e porque o A. já foi definitivamente condenado a pagar a totalidade do preço, assiste-lhe o direito a receber a quantia do custo da recons-trução da referida parte do muro que ruiu.

12. Por essa razão, o A. propôs à R. que aceitasse a correspondente dedução no montante que foi condenado a pagar-lhe.

13. Mas a R. a tal se recusou terminantemente, por isso não restando ao A. outra alternativa, a não ser instaurar a presente acção para obter o reconheci-mento judicial do seu crédito e posterior cobrança coerciva.

14. Não podendo questionar-se esse direito pois, tendo a R. recebido a quan-tia correspondente ao custo total da obra, dúvidas não pode haver de que o A.tem direito a ser reembolsado da parte correspondente à porção do muro que ruiu e a cuja reconstrução estava obrigada.

15. De outra forma, ocorreria um locupletamento da R. à custa de igual pre-juízo do A., sem causa que o justificasse .

.Posto isto, afigura-se-nos que a sentença recorrida não merece qualquer censura.

Assim:

“Com a presente acção, pretende o autor que o réu lhe pague a quantia de € 7.380,00 acrescida de juros de mora à taxa legal, equivalente ao custo calculado à razão de € 75 por metro quadrado, correspondente à extensão de 80 m2 de muro (€ 75,00 x 80) acrescido de IVA à taxa de 23%, sustentando que, tendo o réu recebido a quantia correspondente ao custo total da obra, tem o autor direito a ser reembolsado da parte correspondente à porção do muro que ruiu e a cuja reconstrução estava obrigada, sob pena de ocorrer um locupletamento da ré à custa de igual prejuízo do autor, sem causa que o justificasse.

Dos factos dados como provados, considerando o acordo celebrado entre o autor e a ré (facto provado 1) resulta inequívoco que entre as partes foi celebrado um contrato de empreitada, no sentido de que a ré – na qualidade de empreiteira – se comprometeu perante o autor – na qualidade de dono da obra – a construir um muro em pedra, mediante o pagamento de um preço.

Segundo o disposto no art.º 1155º do Código Civil, a empreitada é uma modalidade do contrato de prestação de serviço. Atendendo às respectivas definições legais, o contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição; por sua vez, o contrato de empreitada é aquele pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço (cfr. arts. 1154º e 1207º do Código Civil, respectivamente).

Na presente acção, o autor invoca o instituto do enriquecimento sem causa, para ser restituído do valor que pagou à ré, entidade que contratou para proceder à reconstrução de parte do muro que apresentou defeito na sua execução.

O art.º 473º do Código Civil, que encabeça a regulamentação do instituto do enriquecimento sem causa, dispõe:

“1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.

2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.

Decorre no transcrito nº 1 que o instituto do enriquecimento sem causa visa evitar que alguém avantaje o seu património à custa de outrem sem motivo que o justifique.

O nº 2 daquele normativo abrange três situações:

- o que foi indevidamente recebido (“condictio indebiti”);

- o que foi recebido em virtude de causa que deixou de existir (“condictio ob causam finitam”); e

- o que foi recebido com base em efeito que não se verificou (“condictio causa data causa non secuta, também chamada condictio ob rem”).

(… ) a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos.

É necessário, em primeiro lugar, que haja um enriquecimento, ou seja, que haja a obtenção de uma vantagem de caracter patrimonial. Essa vantagem de carácter patrimonial poderá revestir qualquer forma, designadamente, um aumento do activo patrimonial, uma diminuição do passivo, o uso ou consumo de coisa alheia ou o exercício de direito alheio ou, ainda, a poupança de despesas.

Em segundo lugar, é necessário que o enriquecimento contra o qual se reage careça de causa justificativa – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido.

Finalmente, importa que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.

Assim, e tal como também tem vindo a ser unanimemente referido pela jurisprudência (cfr., neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.4.1998, in BMJ, 476-370, e de 14.5.1996, in CJST, 1996, II, 71), o enriquecimento sem causa depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

a) a existência de um enriquecimento;

b) que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique;

c) que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição;

Além destes três pressupostos acima mencionados, a situação em apreço demanda a análise de um outro requisito essencial para aplicação deste instituto.

Efectivamente, dispõe o art. 474º do Código Civil que “não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído (...)”.

Decorre deste preceito, tal como decidido no Acórdão do TRPorto de 22-1-2013, disponível em www.dgsi.pt, que a pretensão de enriquecimento constitui acção subsidiária ou apresenta carácter residual: “Significa isto que o empobrecido só poderá recorrer à acção de enriquecimento quando a lei não lhe faculte outro meio para cobrir os seus prejuízos. Sempre que exista uma acção normal (de declaração de nulidade ou anulação, de resolução, de cumprimento, de reivindicação...) e que possa ser exercida, o empobrecido deve dar-lhe preferência (cfr. Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 11ª edição, págs. 501/502)”.

Assim, só depois de se apurar que as normas directamente reportadas ao litígio não garantem a tutela da situação em concreto é que poderá recorrer-se complementarmente ao instituto do enriquecimento sem causa (Cfr., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-1-2007, disponível em www.dgsi.pt)

Nos moldes referidos naquele aresto do TRPorto de 22-1-2013, e seguindo o estudo de Diogo Leite de Campos intitulado “A Subsidariedade da Obrigação de Restituir o Enriquecimento” (Colecção Teses, Almedina, fls. 130), o enriquecimento sem causa é destinado ao preenchimento de lacunas. Ali se lê que “A subsidiariedade exprime a ideia de que a pretensão por enriquecimento não pode ser exercida em vez de uma outra acção cujos pressupostos também sejam preenchidos pela situação de facto verificada. Só é possível o recurso à acção de enriquecimento sem causa se não existe mais nenhuma acção.”

A subsidiariedade impede também que se exerça a acção de enriquecimento sem causa quando a acção específica esteja paralisada por um obstáculo de direito (falta de prova legal, prescrição, etc.) ou por um obstáculo de facto imputável ao empobrecido.

Assim, deverá entender-se que a acção de enriquecimento sem causa só é exercitável quando não seja proponível, sequer em abstracto, outra acção, não relevando que o direito que esta visava tutelar tenha sido perdido por prescrição ou caducidade.

Com efeito, com a consagração legal da subsidiariedade da acção de enriquecimento sem causa teve-se em atenção o perigo que poderia constituir este instituto se começasse a ser utilizado indiscriminadamente como forma de correcção de eventuais injustiças advindas do funcionamento do próprio ordenamento jurídico (cfr. Diogo Leite de Campos, ob. cit., pág. 192).

Na mesma linha, defende Júlio Gomes, in “O Conceito de Enriquecimento, O Enriquecimento Forçado e os Vários Paradigmas do Enriquecimento Sem Causa”, pág. 416, mencionado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-5-2018, disponível em www.dgsi.pt cuja argumentação se concorda na íntegra, que “a subsidiariedade exprime (…) muita da desconfiança existente face ao enriquecimento sem causa que se continua a configurar como um factor potencialmente subversivo do direito positivo vigente”. E observa que “a subsidiariedade é também frequentemente apresentada como um meio de assegurar que o enriquecimento sem causa não se converta num mecanismo de fraude à lei”.

Consequentemente, impõe-se concluir que a pretensão por enriquecimento sem causa só poderá ser exercitada quando se estiver perante uma situação de facto não regulada por qualquer norma específica e que integre os pressupostos daquele instituto. (Cfr. Diogo Leite de Campos, ob. cit., pág. 327).

Perante estas considerações teóricas e revertendo para a situação concreta, importa frisar que, face aos termos em que o autor apresentou a relação jurídica, forçoso é concluir que existiriam outros meios de obter a restituição da quantia que vem peticionar.

Mais precisamente, face aos factos alegados pelo autor a título de causa de pedir – recorde-se: a celebração do contrato de empreitada e o seu incumprimento pelo réu, dúvidas inexistem que estará em causa a responsabilidade contratual da ré.

Com efeito, como resulta da sentença proferida no âmbito da acção de processo comum, que correu com o n.º 60/21.0T8BAO que o autor intentou contra a ré peticionando a condenação da ré no pagamento da quantia global de € 40.087,75, a ré foi absolvida do pedido.

Da matéria de facto provada, consta que depois da desmontagem/demolição de parte de 80 m2 do muro, o autor instou o gerente da ré para ser efectuada a respectiva reconstrução, tendo esta advertido o autor que só iniciaria a construção do muro assim que o autor liquidasse os valores em falta (invocando a expcepção de não cumprimento do contrato).

Como é consabido, o exercício da excepção de não cumprimento do contrato não extingue o direito de crédito, apenas o paralisa temporariamente.

Ora, provou-se que o autor pagou tudo quanto era devido à ré, de acordo com decidido nessa acção, em 12 de Setembro de 2023, pelo que, com a prática de tal facto, o autor poderia exercer o seu direito de crédito sobre a ré, isto é, reclamar a eliminação dos defeitos da obra ou pedir o seu ressarcimento, se os mandou, por sua iniciativa eliminar (tal como decidido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, nos presentes autos).

Ora, a ordem jurídica regula as consequências decorrentes da responsabilidade contratual de forma diversa das decorrentes do enriquecimento sem causa.

Efectivamente, tal como mencionado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça supra citado, nos casos de cumprimento contratual defeituoso ou de incumprimento parcial, “a solução residirá normalmente na redução do preço acordado, em que a falta de causa justificativa do desequilíbrio das prestações não poderá deixar de ser aferida no quadro complexo desse incumprimento, incluindo os comportamentos culposos das partes na execução do contrato. Daí que se coloque, em princípio, o primado da tutela por via da ação de cumprimento em detrimento do instituto do enriquecimento sem causa, em cujo âmbito nem sequer releva a culpa do enriquecido ou do empobrecido.”.

No caso específico do contrato de empreitada, existindo uma situação de cumprimento defeituoso e incumprimento parcial, assistirá ao autor, primacialmente, segundo a ordem estabelecida nos arts. 1121º e 1222º do Código Civil, o direito a exigir, especificamente, “a prestação de facto parcialmente incumprida ou, em última análise, a faculdade de converter a mora em incumprimento definitivo, nos termos do artigo 808.º do Código Civil e, só nessa decorrência exigir então a indemnização substitutiva da prestação em espécie não realizada”.

Vale isto por dizer que a solução jurídica fornecida pelo ordenamento jurídico para a situação de incumprimento contratual invocada pelo autor processa-se de modo distinto do propiciado pelo instituto do enriquecimento sem causa.

Assim sendo, deverá o meio específico de tutela dos direitos do credor, decorrentes da responsabilidade contratual prevalecer sobre o instituto do enriquecimento sem causa.

Se o autor impossibilitou o cumprimento da obrigação da ré de reconstruir o muro, através do recurso a um terceiro (o que, note-se, não é alegado na presente acção, mas consta do elenco dos factos provados no processo que correu termos entre as partes, com o n.º 60/21.0T8BAO), terá que arcar com as consequências dessa sua decisão.

Como decidido pelo Acórdão do TCANorte, de 19-02-2021, proc. n.º 00013/17.3BCPRT, disponível em www.dgsi.pt: “O recurso ao enriquecimento sem causa, não pode constituir uma via alternativa e sucedânea a um insuficiente ou inexistente exercício tempestivo das normas contratuais aplicáveis, pois que havendo lugar à impugnação de um negócio jurídico e a correspondente restituição das prestações entregues (artigo 289° n° 7 do Código Civil), não é admissível o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa, que se reveste de natureza excecional e subsidiária.”

Nestes termos, nunca se verificaria, no caso em apreço, face à causa de pedir invocada pelo autor, o referido requisito da subsidiariedade apto a fazer operar o invocado instituto do enriquecimento sem causa.

Mais se refira que não poderá o Tribunal considerar a solução jurídica do caso por recurso ao instituto da responsabilidade contratual, em vez do invocado enriquecimento sem causa porquanto a sentença assim proferida padeceria de nulidade, pois versaria objecto diverso do peticionado, nos termos dos arts. 609º, nº 1, e 615º, nº 1, al. e), do Código de Processo Civil.

Assim sendo, impõe-se sublinhar que a não verificação daquele requisito da subsidiariedade implica a improcedência do pedido formulado (veja-se, neste sentido, o referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-5-2018, in www.dgsi.pt).

Acresce que, cabe ao autor do pedido de restituição, com fundamento em enriquecimento sem causa, o ónus da prova dos factos integradores ou constitutivos do direito que se arroga, incluindo a falta de causa justificativa desse enriquecimento. Na situação concreta, o autor não alega sequer ter despendido o valor que reclama à ré, por forma a sustentar um eventual empobrecimento no seu património, com o correspondente enriquecimento no património da ré, sendo certo que aquele enriquecimento terá que ser obtido à custa de quem requer a restituição.

Portanto, em resumo, face ao acima exposto, a presente acção sempre seria julgada improcedente, não se justificando, por isso, o prosseguimento dos autos.”

Feita esta reprodução da fundamentação jurídica da sentença recorrida, resta-nos fazer a seguinte síntese:

.Por decisão sumária anterior proferida neste tribunal da Relação, já transitada em julgado, foi expressamente determinado que o presente processo prossegue unicamente quanto ao pedido de condenação com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.

.Nessa decisão, foi afastada a apreciação de qualquer outro fundamento jurídico, nomeadamente o invocado incumprimento contratual.

.Tal decisão fez caso julgado formal e material, vinculando as partes e o tribunal, não podendo ser reaberta ou desconsiderada em sede de recurso.

. O recorrente, ao basear o seu recurso convocando também alegado incumprimento contratual, ignora tal delimitação, tentando, de forma inadmissível, discutir matéria que já se encontra definitivamente excluída do objeto do processo.

.De resto, sempre diremos, conforme entendimento consolidado na jurisprudência maioritária, o caso julgado abrange não apenas a decisão expressa, mas também todas as possíveis qualificações jurídicas que o mesmo complexo de factos possa comportar.

. O Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado que “o caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objeto apreciado, porque o que releva é a identidade da causa de pedir (isto é, dos factos com relevância jurídica) e não das qualificações que podem ser atribuídas a esse fundamento” .[1]

.Assim, quando o objeto apreciado for suscetível de comportar várias qualificações jurídicas – como sucede quando um mesmo facto preenche simultaneamente a previsão da responsabilidade contratual e extracontratual –, o caso julgado, ainda que referido a uma única dessas qualificações, abrange-as a todas elas.[2]

. Nesta hipótese, a exceção de caso julgado impede que um efeito jurídico obtido com fundamento numa qualificação jurídica possa ser requerido com base numa outra qualificação dos mesmos factos.

.A tentativa de reapreciação de fundamentos afastados por decisão transitada representa violação do caso julgado e deve ser liminarmente rejeitada.

. Não tendo o recorrente logrado demonstrar os pressupostos do enriquecimento sem causa – único fundamento que poderia ser apreciado – a sentença recorrida mostra-se correta ao julgar a ação improcedente.

Nestes termos, o presente recurso improcede, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.

Sumário.

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IV. DELIBERAÇÃO:

Nestes termos, acordam os juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso de apelação interposto, e, assim, confirmam a sentença recorrida.

Custas do recurso a cargo do apelante.

Porto, 26.06.2025

Francisca da Mota Vieira

Maria Manuela Barroco Esteves Machado

António Paulo Esteves Aguiar de Vasconcelos


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[1] Entre outros, Ac. Relação de Coimbra de 18-02-2014, proc nº  889/13.3TBPBL.C1, cujo sumário se reproduz:
I – A lei distingue nos art.º 671º, nº 1, e 672º, do C. P. Civil, entre o caso jul­gado material e o caso julgado formal, conforme a sua eficácia se estenda ou não a processos diversos daqueles em que foram proferidos os despachos, as sentenças ou os acórdãos em causa.
II - A propósito do caso julgado material, expressa a lei que, transitados em julgado os despachos, as sentenças ou os acórdãos, a decisão sobre a relação mate­rial controvertida tem força obrigatória nos limites fixados pelos art.º 497º e 498º do C. P. Civil – (art.º 671º, n.º 1, do C. P. Civil).
III - Os limites a que se reporta o mencionado artigo têm a ver com a proposi­tura de uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, em termos da decisão da segunda implicar o risco de o tribunal contradizer ou reproduzir a decisão da primeira – art.º 497º, n.º 1 e 2, e 498º, n.º 1, do C. P. Civil.
IV - No que respeita ao alcance do caso julgado, a sentença constitui caso jul­gado nos limites e termos em que julga, conforme dispõe o art.º 673º do C. P. Civil.
V - O caso julgado material tem força obrigatória no processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material objecto do litígio.
VI - A autoridade do caso julgado implica uma aceitação duma decisão proferida numa acção anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda acção, enquanto questão prejudicial.
VII - O caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objecto apreciado, dado que o que releva é a identidade de causa de pedir, ou seja os facto concretos com relevância jurídica, e não a identidade das qualificações jurídicas que esse fundamento comporte – art.ºs 497º, nº 1 e 498º nº 4, do C. P. Civil.
[2] Também a doutrina sufraga idêntico entendimento:
.Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 1985, p. 697:
“O caso julgado cobre, não apenas os efeitos jurídicos que foram expressamente decididos, mas também todos os que, embora não expressamente decididos, resultem necessariamente da decisão.”
.Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2021, p. 705:
“É pacífico que o caso julgado abrange a decisão sobre a causa de pedir, tal como configurada pelo autor, mas também sobre o complexo de factos essenciais que lhe servem de base, ainda que este possa dar lugar a diferentes qualificações jurídicas.”
.Miguel Teixeira de Sousa, “Preclusão e caso julgado”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando Marques Guedes, vol. I, Almedina, 2004, p. 575:
“A identidade da causa de pedir resulta da identidade do núcleo essencial dos factos. Uma vez apreciados esses factos, o caso julgado cobre todas as soluções jurídicas que eles comportam, ainda que só uma tenha sido decidida.”
.Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. III, Lisboa, AAFDL, 1980, p. 275:
“Uma vez que os factos tenham sido apreciados e julgados, o caso julgado forma-se, não apenas sobre a qualificação que lhes foi atribuída, mas também sobre as demais que pudessem ser juridicamente válidas.”