ACÇÃO DE ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
IMPEDIMENTO DE TESTEMUNHA
CASO JULGADO
ASSEMBLEIA GERAL
NULIDADE
CONVOCATÓRIA
DECLARAÇÃO RECEPTÍCIA
ÓNUS DA PROVA
ANULABILIDADE
PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO
CADUCIDADE DA ACÇÃO
Sumário

I- Tendo no decurso da audiência final sido suscitado o impedimento de depor como testemunha por quem foi nomeado acompanhante à autora em processo de Acompanhamento de Maior, tendo então tal incidente sido julgado improcedente e admitido o depoimento e este despacho transitado em julgado, não pode a mesma questão, por força do caso julgado formal, voltar a ser apreciada no recurso que veio a ser interposto da sentença.
II- Nos termos do artigo 56º, nº 1, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, são nulas as deliberações tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios estiverem presentes ou representados, sendo igualmente nulas, ao abrigo do mesmo preceito, as deliberações tomadas em Assembleia realizada sem a presença de sócio que deveria ter sido convocado e o não foi.
III- À convocatória para uma assembleia geral de uma sociedade comercial aplica-se o disposto no art.º 224º do CC, como decorre do disposto no art.º 295º do mesmo diploma.
IV- Tendo sido enviada carta registada para a morada da sócia convocando a mesma para a assembleia, para afastar a eficácia da declaração, de acordo com as regras sobre repartição do ónus da prova, incumbe à destinatária demonstrar que esta não foi recebida sem culpa sua,
V- Não sendo esta factualidade demonstrada, tem-se por eficaz a convocatória para a assembleia geral enviada à sócia.
VI- A regra contida no nº 3 do artigo 248 do Código das Sociedades Comerciais, de a convocação das assembleias gerais deverem ser feitas por carta registada expedida com a antecedência não inferior a 15 dias, relativamente à data da assembleia, visa assegurar aos sócios um tempo mínimo de consulta e análise que lhes permita um cuidado esclarecimento e os habilite a participar e votar na assembleia da sociedade.
VII- É anulável a deliberação tomada pela assembleia geral de uma sociedade comercial, se entre a data da convocatória e a data da realização da assembleia não decorrer o prazo mínimo de 15 dias que a lei estipula.
VIII- Atento o disposto no artº 59º, nº1, do Código das Sociedades Comerciais, o prazo para a propositura da acção de anulação é de 30 dias a contar: a) Da data em que foi encerrada a assembleia geral; b) Do 3.º dia subsequente à data do envio da acta da deliberação por voto escrito; c) Da data em que o sócio teve conhecimento da deliberação, se esta incidir sobre assunto que não constava da convocatória.
IX- Considerando-se a sócia regularmente convocada para a Assembleia Geral da sociedade ré, incidindo a deliberação sobre assunto que constava da convocatória e tendo a acção de anulação sido interposta depois do decurso do prazo de 30 dias a contar da data em que foi encerrada a assembleia, caducou o respectivo direito de acção.

Texto Integral

Acordam as Juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
M… J… F… A… T… M…, residente na Rua …, intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra G… – Investimentos Imobiliários, Agro e Comércio, Lda, pessoa colectiva n.º …, com sede na Rua …, pedindo a declaração de nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral da ré ocorrida no dia 31 de Março de 2022 e subsidiariamente, sejam as mesmas anuladas.
Invocou, em síntese, que é sócia da ré, cujo capital social é de €8.975,36, dividido em duas quotas, uma no valor de €4.987,36, correspondente a 55,56% do capital social, pertencente a J… F… F… M…, gerente e outra no valor de €3.990,38, correspondente a 44,44% do capital social, pertencente à autora.
Foi realizada assembleia geral da ré no dia 31 de Março de 2022, para a qual a A. não foi convocada, nem esteve presente. Não tem conhecimento do que foi deliberado, não recebeu qualquer comunicação da sociedade quanto ao teor das deliberações, nem qualquer cópia da acta.
Regularmente citada, a ré apresentou contestação, pugnando pela improcedência da acção, já que, sustenta, a autora foi regularmente convocada para a assembleia geral da ré ocorrida no dia 31 de Março de 2022, por carta registada. No entanto, não tomou conhecimento do seu teor por não ter procedido ao seu levantamento, como o poderia e deveria ter feito. Mais acrescentou, mesmo que assim não fosse, face ao tempo decorrido entre a assembleia geral e a propositura da acção, o direito de impugnação das deliberações sociais anuláveis caducou.
Teve lugar a realização de audiência prévia, na qual a A. respondeu à excepção de caducidade da acção invocada pela R.
Foi registada a acção e foi proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Foi realizada audiência final e foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, declarou nulas as deliberações tomadas na assembleia geral da ré ocorrida no dia 31 de Março de 2022.*
Inconformada a R. interpôs recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
I. A testemunha S… T… M… não pode ser considerada uma testemunha isenta, dada a conflitualidade que tem com o seu pai, ora gerente da Ré.
II. Assim como pelo facto de, por sentença de 30/11/2022 do Juízo Local Cível de … - Juiz …, Processo n.º …, ter sido nomeado Acompanhante da ora A. (doc. 1).
III. E, nessa sentença ter sido decidido fixar em 2020, como o ano a partir da qual as medidas decretadas em a) se tornaram convenientes (cfr. artigo 900, n.º 1 do Código de Processo Civil).
IV. Por conseguinte, na data do envio/recepção da convocatória em causa (março/2022) já estava a produzir efeitos a sentença de Acompanhamento.
V. E, em 12/04/2024, na audiência de julgamento, a dita testemunha S… T…  M… já tinha sido nomeado Acompanhante da Autora, pelo que não poderia, sequer, depor como testemunha.
VI. Por outro lado, o relatório (tracking) da carta enviada pela Ré em 16/03/2022 é muito claro ao relatar, de forma formatada, que a carta de convocatória em causa foi entregue nos Correios, em …, no dia 16/03/2022, pelas 12:08 horas, não foi conseguida a entrega e foi devolvida ao remetente em 05/04/2022 (doc. 4 da contestação).
VII. Com fundamento exclusivo no depoimento da dita testemunha S… T… M…, não se pode julgar provado que: “não foi encontrado no recetáculo postal da autora qualquer aviso para levantamento da carta referida no ponto 3.”, não só pela qualidade Acompanhante da Autora da dita testemunha S… T… M…, como pela litigiosidade que este tem demonstrado para com o gerente da Ré, como, ainda, pelo facto de ele próprio ter declarado que não tem as chaves do correio de casa da mãe, ora A, e é esta quem abre a caixa do correio.
VIII. O art.º 342, n.º 2/CC é muito claro ao dispor que: “A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.” E, o n.º 3 do mesmo artigo acrescenta que: “3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.”
IX. Pelo que não se pode julgar provado que: “não foi encontrado no recetáculo postal da autora qualquer aviso para levantamento da carta referida no ponto 3.”
X. Ficou provado que a Ré enviou à Autora, em 16/03/2022, a carta registada com a convocatória para a assembleia geral em causa - Ponto 3. dos factos provados.
XI. O facto jurídico só se converte em acto jurídico quando a ordem jurídica o ligue a efeitos de direito em atenção à sua voluntariedade.
XII. Mas, no negócio jurídico, para além da consciência de declaração, existe a vontade de constituir ou ordenar uma situação ou vinculação jurídica.
XIII. Embora se possa qualificar a convocatória de uma assembleia geral como um acto jurídico, atribuindo importância à vontade e ao seu efeito legal, não se pode subsumir a convocatória a uma declaração negocial.
XIV. Não só porque não há liberdade de estipulação, como, também, por não ter por efeito a constituição ou ordenação de uma relação jurídica.
XV. Mas, sem conceder, mesmo que, por absurdo, se considerasse a convocatória como uma declaração negocial, nunca se poderia qualificar como uma “declaração receptícia” como pretende a douta sentença recorrida, desde logo, porque sempre seria uma declaração unilateral, não procurando integrar qualquer negócio contratual.
XVI. A convocatória de assembleia geral, como manifestação de vontade do gerente da sociedade, desde que obedeça à forma legal - carta registada enviada para a morada dos sócios (art.º 248, n.º 3/CSC) - produz os seus efeitos, independentemente de ser ou não recebida pelo destinatário.
XVII. Pelo que a convocatória dos autos, enviada por carta registada para a morada da sócia, ora Autora, produziu todos os seus efeitos.
XVIII. Não assiste qualquer razão a douta sentença recorrida ao entender que a eficácia da convocatória “depende do seu recebimento pelo destinatário, nos termos do art.º 224/Código Civil”, desde logo, porque não tem aplicação direta o art.º 224/Código Civil, uma vez que não se trata de uma “declaração negocial”.
XIX. Mas, mesmo que se quisesse aplicar por analogia, ao abrigo do art.º 295/Código Civil - o que não foi invocado - o que teria aplicação seria sempre a parte final do art.º 224/Código Civil, ou seja, a declaração (convocatória) produzir efeitos “logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada”.
XX. O art.º 342/Código Civil é muito claro quanto ao ónus da prova: “1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. 2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita. 3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.”
XXI. A acção de declaração de nulidade das deliberações da assembleia geral não é uma ação de simples apreciação ou de declaração negativa, pelo que nunca teria aplicação o caso especial consignado no art.º 343, n.º 1/Código Civil, que, aliás, a sentença não invoca.
XXII. Em suma, o autor da declaração, gerente da Ré, fez a prova que enviou a convocatória - n.º 3 dos factos provados.
XXIII. Pelo que a acção de nulidade da assembleia geral deveria ser julgada totalmente improcedente.
Terminou peticionando que o recurso seja julgado procedente e, consequentemente, revogada a sentença recorrida no sentido da improcedência da acção.
*
A A. contra-alegou, CONCLUINDO:
A. Da reapreciação da matéria de facto provada
A) O Tribunal a quo deu como provado, nomeadamente, que “6. Não foi encontrado no recetáculo postal da autora qualquer aviso para levantamento da carta referida no ponto 3.”.
B) A Recorrente entende que este facto não deve ser considerado provado por três razões:
(i) Porque o tracking da carta enviada pela Ré em 16.03.2022, junto pela Ré, ora Recorrente, como Doc. n.º 4 em anexo à Contestação, “é muito claro ao relatar, de forma formatada, que a carta de convocatória em causa foi entregue nos Correios, em Mafra, no dia 16/03/2022, pelas 12:08 horas, não foi conseguida a entrega e foi devolvida ao remetente em 05/04/2022”;
(ii) Porque a testemunha S… M…, nomeada em 30.11.2022 acompanhante legal da Autora, ora Recorrida, não pode ser considerada uma testemunha isenta, em virtude dessa nomeação e da “litigiosidade que tem demonstrado para com o gerente da Ré”, pelo que não podia depor na audiência de julgamento de 12.04.2024;
(iii) Porque do depoimento da referida testemunha, com interesse para este facto, apenas resulta que “não tem as chaves do correio de casa da mãe, ora A, e é esta quem abre a caixa do correio”.
C) Quanto ao primeiro dos argumentos aduzidos pela Recorrente: por um lado, o tracking da carta enviada pela Ré em 16.03.2022 é o tracking da devolução da carta à remetente, e não o da sua entrega; por outro lado, a informação sobre o itinerário completo da carta em questão também não foi disponibilizada pelos CTT, que já não possuíam nos seus arquivos o registo mencionado.
D) Neste sentido, não há quaisquer documentos nos autos suscetíveis de provar que o aviso para levantamento da convocatória para a assembleia geral de 31.03.2022 foi deixado na caixa de correio da Autora, o que significa que a Autora, ora Recorrida, fez prova de que “não foi encontrado no recetáculo postal da autora qualquer aviso para levantamento da carta referida no ponto 3”, não tendo a Ré, ora Recorrente, feito qualquer prova em sentido contrário, conforme lhe competia.
E) Quanto ao segundo dos argumentos da Recorrente: em primeiro lugar, e no que toca à suposta “litigiosidade que [a testemunha S… M…] tem demonstrado para com o gerente da Ré”, como entendeu – e bem – o Tribunal a quo, os “processos judiciais a que aludem as partes” – que se traduziriam na dita litigiosidade de que se socorre a Recorrente para sustentar a alegada falta de isenção da testemunha –, na realidade, “emprestam credibilidade ao narrado por esta testemunha”, porque demonstram que a conflitualidade alegada pela Recorrente é, na verdade, fruto da postura assumida pelo seu gerente, ex-cônjuge da Recorrida e pai da testemunha, relativamente aos assuntos societários da Recorrente.
F) Em segundo lugar, a questão do acompanhamento de maior da Autora foi trazida aos autos pela própria no dia 08.04.2024 (cf. requerimento com a ref.ª Citius 39014992), ainda antes da audiência de julgamento de dia 12.04.2024, tendo a correspondente sentença, transitada em julgado no dia 27.12.2022, sido junta aos autos pela Autora no dia 17.04.2024 (cf. requerimento com a ref.ª Citius 39109703).
G) Assim, por um lado, a sentença que a Recorrente junta como Doc. n.º 1 das suas alegações de recurso já se mostra junta aos autos, não devendo, por isso, ser admitida a pretendida junção desse documento, como requerida pela Recorrente nos termos do artigo 651.º, n.º 1, do CPC, que não tem aqui aplicação.
H) Por outro lado, a alegação da Ré no sentido de que a testemunha S… M… não podia depor na audiência de julgamento, não pode, porque extemporânea, ser considerada pelo Tribunal agora em sede de alegações.
I) Na verdade, suscitada, pela Recorrente, em sede de audiência de julgamento, a questão da alegada falta de isenção da testemunha – que, no seu entender, não deveria ser autorizada a depor nessa qualidade por “representar a parte interessada da Autora” (cf., em particular, minutos 00:00:47 a 00:00:58 do ficheiro áudio Diligência_18904-22.8T8LSB_2024-04-12_10-43-11) –, o Tribunal a quo, ouvida a Recorrida sobre a questão, admitiu – e bem – a inquirição de S… M… na qualidade de testemunha (cf., em particular, minutos 00:01:34 a 00:06:41 ficheiro áudio Diligência_18904-22.8T8LSB_2024-04-12_10-55-47).
J) Face a este despacho do Tribunal, a Recorrente deveria, das duas uma, (i) ou ter arguido, até terminar a audiência de discussão e julgamento, a pretensa (e inexistente) nulidade secundária em causa – suposta inquirição de testemunha inábil –, nos termos e para os efeitos dos artigos 195.º, n.º 1, e 199.º, n.º 1, do CPC, (ii) ou ter recorrido, no imediato, no prazo de 15 dias e em separado, do despacho interlocutório do Tribunal a quo que admitiu a inquirição da referida testemunha, nos termos e para os efeitos conjugados dos artigos 644.º, n.º 2, alínea d), 638.º, n.º 1, e 645.º, n.º 2, do CPC.
K) Não tendo feito nem uma coisa nem outra, a questão suscitada pela Recorrente não pode ser apreciada nesta sede, desde logo porque, por um lado, a pretensa nulidade – a ter existido, no que não se concede e por mero dever de patrocínio se equaciona – ficou sanada, porque não foi arguida tempestivamente, e
porque, por outro, o despacho que admitiu a inquirição de S… M… na qualidade de testemunha já transitou em julgado, porque dele não foi interposto recurso.
L) Sem prejuízo, e sem conceder, à data em que o envio da convocatória teve lugar – 31.03.2022 –, a testemunha ainda não havia sido nomeada acompanhante legal da Autora – o que ocorreu em 30.11.2022 –, o que significa que, porque ainda não era parte interessada na causa, podia depor nessa qualidade quanto aos factos controvertidos em questão nos presentes autos.
M) Na verdade, ao contrário do que a Autora argumenta nas suas alegações, a sentença que determinou o acompanhamento de maior da Autora apenas fixou “em 2020, como o ano a partir do qual as medidas decretadas em a) se tornaram convenientes”.
N) Ora, a “prática de todos os atos societários, quanto às sociedades R… - EMPREENDIMENTOS TURISTICOS LDA, NIPC (…) e G… - INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, AGRO E COMÉRCIO, LDA, NIPC (…)” inclui-se na alínea b), e não na alínea a), o que significa que, quanto a estas, não houve antecipação a 2020 dos efeitos da sentença.
O) Por fim, quanto ao terceiro argumento da Recorrente: a testemunha, em momento imediatamente seguinte ao transcrito pela Ré nas suas alegações (cf. pp. 4-5), confirma precisamente que, apesar de não ter as chaves do correio de casa da mãe, assegura o controlo e a verificação da correspondência relevante, nomeadamente de convocatórias para assembleias gerais que sejam eventualmente recebidas (cf. minutos 00:02:20 a 00:03:02 do ficheiro áudio Diligência_18904-22.8T8LSB_2024-04-12_11-02-41).
P) A ora Recorrente não pode, por isso mesmo, sustentar-se no excerto que cita do depoimento da testemunha (cf. pp. 4-5 das alegações de recurso) para prova de que a Recorrida recebeu o aviso para levantamento da carta de convocatória para a assembleia geral de 31.03.2022.
Q) Até porque a própria testemunha, quanto a este ponto, esclarece precisamente o contrário (cf. minutos 00:06:05 a 00:08:30 do ficheiro áudio: Diligência_18904-22.8T8LSB_2024-04-12_11-02-41), i.e., que não foi recebido qualquer aviso para levantamento na caixa de correio da Autora.
R) Termos em que deve ser rejeitada a proposta da Recorrente para que este ponto seja levado à matéria de facto não provada.
B. Do Direito
S) A convocatória para uma assembleia geral é um acto jurídico, o que significa que, nos termos do artigo 295.º do CC, se aplicam, por analogia, as regras reguladoras dos negócios jurídicos, nomeadamente o artigo 224.º do CC.
T) Nos termos do artigo 224.º, n.º 1, do CC, as declarações receptícias têm um
destinatário, as não receptícias não.
U) A convocatória para uma assembleia geral tem um destinatário – os sócios da sociedade em questão –, o que significa que é uma declaração receptícia.
V) Como tal, sendo de aplicar a primeira parte do artigo 224.º, n.º 1, do CC, a eficácia de uma convocatória para uma assembleia geral depende do seu recebimento ou conhecimento pelo destinatário, a menos que a declaração só não tenha sido oportunamente recebida por culpa sua, o que é unanimemente defendido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, que entendem que “[a] carta convocatória consubstancia, assim, uma declaração recipienda ou receptícia, cuja eficácia depende do seu recebimento pelo destinatário, nos termos previstos no artigo 224º do Código Civil” (9 - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.07.2023, processo n.º 5187/21.6T8VIS.C1, Relator: Maria João Areias).
W) A propósito da interpretação a dar ao artigo 224.º do CC, é entendimento unânime na jurisprudência do nosso Supremo Tribunal de Justiça que “[r]ecai sobre a sociedade, aqui Ré, o ónus de provar ter dado cabal cumprimento ao envio da convocatória para a Autora, de molde a que esta tivesse conhecimento da mesma, recaindo sobre a Autora o ónus de provar que, se não recebeu a aludida convocatória, não foi por culpa sua, por forma a quebrar o efeito obstaculativo adveniente do normativo inserto no nº 3 do artigo 244º do CCivil” (10 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13.04.2021, processo n.º 97/19.0T8SRP.E1.S1, Relator: Ana Paula Boularot).
X) No caso dos presentes autos, como resulta evidente do exposto, a ora Recorrida logrou provar que não recebeu a convocatória por motivo que não lhe é imputável e, bem assim, que não foi encontrado na sua caixa de correio qualquer aviso para levantamento da referida carta.
Y) O que, naturalmente, impossibilitou o seu conhecimento efetivo da convocatória para a assembleia geral da Ré de 31.03.2022.
Z) A prova assim produzida pela Recorrida acarreta, nos termos e para os efeitos do artigo 224.º, n.º 3, do CC, a consequência de a convocatória para a assembleia geral não poder produzir os seus efeitos,
AA) O que, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do CSC, determina, como decidiu, e bem, o Tribunal a quo, a nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral da Ré de 31.03.2022.
BB) Subsidiariamente, deve ser apreciada a nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral de 31.03.2022 com fundamento no facto de a convocatória para a assembleia geral não ter sido expedida com a antecedência mínima de quinze dias, ao abrigo do n.º 3 do artigo 248.º do CSC, fundamento que foi alegado pela Autora, aqui Recorrida, em requerimento junto aos autos na audiência prévia que teve lugar em 30.05.2023, e que aqui se reitera, nos termos e para os efeitos do artigo 636.º, n.º 1 do CPC.
Terminou peticionando que o recurso seja julgado integralmente improcedente e, em consequência, mantida a sentença recorrida.
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O recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos das Exmªs Adjuntas.
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II– Objecto do Recurso
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas pelo apelante, importa decidir:
- questão prévia: da admissibilidade do documento apresentado pela apelante com as alegações do recurso;
- da impugnação da matéria de facto e
- da nulidade das deliberações aprovadas na Assembleia Geral da R./recorrente com fundamento na falta da convocatória da A./recorrida, sua sócia;
Importa igualmente, decidir, considerando a ampliação do recurso requerida pela apelada:
- da anulabilidade das deliberações com fundamento na inobservância do prazo mínimo estabelecido na lei para a respectiva convocatória e da caducidade do direito de acção no que à mesma concerne.
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III- Fundamentação
A) De Facto
i. O tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade
1. A G… – Investimentos Imobiliários, Agro e Comércio, Lda., pessoa colectiva n.º … , com sede na Rua …, tem por objecto social a construção, administração e comércio de propriedades rústicas e urbanas, podendo dedicar-se à compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, arrendamento de bens imobiliários, nomeadamente edifícios residenciais e não residenciais e de terrenos; alojamento local mobilado não permanente para turistas; agricultura e culturas temporárias, silvicultura e outras atividades florestais e comércio por grosso de outras máquinas e equipamentos.
2. Tem o capital social de €8.975,36, dividido em duas quotas, uma no valor de €4.987,36, correspondente a 55,56% do capital social, pertencente a J… F… F… M… e outra no valor de €3.990,38, correspondente a 44,44% do capital social, pertencente a M… J… F… A… T… M…, autora.
3. No dia 16 de Março de 2022, a ré enviou à autora uma carta registada (RH… dirigida para a Rua …, com vista à sua convocação para a realização de assembleia geral da ré, no dia 31 de Março de 2022, pelas 10:30 horas, no Cartório Notarial …, situado na Avenida …,  com a seguinte ordem de trabalhos: “Ponto um - Deliberar sobre o relatório de gestão e as contas da sociedade do exercício de 2021; Ponto dois - Deliberar sobre a proposta de aplicação dos resultados; Ponto três - Deliberar sobre a apreciação geral da administração da sociedade.”.
4. No dia 31 de Março de 2022, pelas 10:30 horas, no Cartório Notarial … , situado na Avenida …, realizou-se assembleia geral da ré, com a presença do sócio e gerente J… F… F… M…, tendo deliberado sobre o relatório de gestão e as contas da sociedade do exercício de 2021, sobre a proposta de aplicação dos resultados e sobre a apreciação geral da administração da sociedade.
5. A autora não recebeu a carta referida no ponto 3.
6. Não foi encontrado no receptáculo postal da autora qualquer aviso para levantamento da carta referida no ponto 3.
7. A autora não esteve presente na assembleia geral da ré referida no ponto 4.
8. A carta referida no ponto 3 foi devolvida e entregue à remetente no dia 5 de Abril de 2022.
9. Não foi enviada à autora a acta da assembleia geral da ré referida no ponto 4. 
*
ii. Em termos de factos não provados consta da sentença o seguinte:
“Não resulta demonstrada qualquer outra factualidade relevante para apreciação do mérito da causa, nomeadamente que a autora tomou conhecimento da realização da Assembleia geral da ré referida no ponto 4 dos factos provados em dia anterior a 8 de Julho de 2022”.
*
B) Questão Prévia: Da admissibilidade do documento apresentado com as alegações
Com as alegações veio a R./apelante requerer a junção de um documento, invocando que o faz “ao abrigo do artº 651, nº1/CPC, do qual a Ré só tomou conhecimento após a contestação e se tornou necessário em virtude do julgamento na 1ª instância”.   
O documento em causa trata-se de certidão da sentença proferida em 30/11/2022 nos autos de Acompanhamento de Maior, que correram termos relativamente à A., ora apelada, sob o nº … no Tribunal Judicial da Comarca de … – Juiz … e na qual foi nomeado acompanhante à A., para a prática dos actos ali referidos, o seu filho S…  T…  M…
Compulsados os autos, verifica-se que a certidão da sentença em causa, com nota de trânsito em julgado, já se encontrava junta aos autos desde 17/04/2024, após notificação determinada pelo tribunal da 1ª instância para a A. proceder à respectiva junção.
Assim, evidente se torna que não existe fundamento para que haja ora lugar à junção de documento que já consta dos autos e, por essa razão, não se admite a junção aos autos do documento ora apresentado pela apelante.
 *
C) Da impugnação da matéria de facto
Nos termos do artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil:
«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No que toca à especificação dos meios probatórios: «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Citando o Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes, «Estabelecendo o paralelismo com a petição inicial, tal como esta está ferida de ineptidão quando falta a indicação do pedido, também as alegações destituídas em absoluto de conclusões são “ineptas”, determinando a rejeição de recurso (art. 641º, nº 2, al. b), sem que se justifique a prolação de qualquer despacho de convite à sua apresentação.(…) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões. (…)» – cfr Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., p. 122 e 132.
Como consequência, segundo o mesmo autor, impõe-se a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto nas seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam alguns dos elementos referidos - Ob. cit, pág. 135.
Existe divergência jurisprudencial no que concerne a saber se os requisitos do ónus impugnatório previstos no artigo 640º, nº1, devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena da rejeição do recurso (cf. Artigos 635º, nº2 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil). O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se nos seguintes termos: No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.2.2015, Cons. Tomé Gomes, 299/05, afirma-se que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.»
No Acórdão de 11.4.2016, relatora Cons. Ana Luísa Geraldes, 449/410, defendeu-se que servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, deverão nelas ser identificados com precisão os pontos de factos que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos do ónus impugnatório, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso. As conclusões do recurso não têm de reproduzir todos os elementos do corpo da alegação – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Cons. Clara Sottomayor, 1060/07.
O AUJ n.º 12/2023, relatora Cons. Ana Resende, Processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14, páginas 44 – 65, disponível também em www.dgsi.pt, pronunciou-se expressamente no sentido que: «Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações».
No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art.º 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, segundo o qual: “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”
Assim, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - cfr. art.º 371º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação (cfr a este respeito Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV vol., Coimbra Editora, 1987, pág. 566 e seg. e Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 660 e seg.).
In casu, a apelante cumpriu os ónus estabelecidos na lei para efeitos de impugnação da decisão de facto, pelo que cumpre conhecer da mesma.
Sustentou a apelante que a factualidade plasmada no ponto 6. dos Factos Provados deve ser considerada não provada, uma vez que o depoimento da testemunha S… T… M…, único meio de prova considerado pelo tribunal a quo para fundamentar a decisão relativamente a tal ponto dos factos provados, não permite tal decisão.
Invocou ainda que, na data em que teve lugar a prestação do depoimento, S… M… já tinha sido nomeado Acompanhante da Autora no processo de Maior Acompanhado que identifica, pelo que não poderia sequer depor como testemunha.
Começando por nos pronunciarmos sobre esta última questão, resulta da certidão junta pela A. em 17/04/2024 que, em 30/11/2022, foi proferida sentença nos autos de Acompanhamento de Maior, que correram termos relativamente à A., ora apelada, sob o nº … no Tribunal Judicial da Comarca de … – Juiz … -, sentença essa na qual foi nomeado acompanhante à A., para a prática dos actos ali referidos, o seu filho S… T… M… e que transitou em julgado em 27/12/2022.
Nessa sentença foi decidido:
“a) Determinar a aplicação do regime de maior acompanhado à beneficiária M… J… F… A… T…;
b) Aplicar as medidas de acompanhamento de representação especial, previstas no artigo 145°, n.° 2, alíneas b) e e) do Código Civil para a:
- Supervisão do acompanhamento médico da beneficiária, por forma a garantir que a mesma cumpre todas as indicações médicas e demais cuidados clínicos;
- Para representação em juízo e prática de todos os atos processos judiciais, de qualquer natureza, ou inquérito crime, e todos os atos ou peças processuais, nomeadamente, os necessários a instaurar as respetivas ações, apresentar articulados ou requerimentos, apresentação de denúncia ou queixa, requerer a constituição corno assistente e apresentação de pedido de indemnização civil, bem como a outorga de procurações forenses com ou sem poderes especiais para confessar, desistir ou transigir;
- Para a prática de todos os atos societários, quanto às sociedades R… - EMPREENDIMENTOS TURISTICOS LDA, NIPC … e G… — INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, AGRO E COMÉRCIO LDA., NIPC …, ambas com sede na Rua …, nomeadamente, no exercício dos direitos que lhe cabem enquanto sócia, contitular de quotas, ou titular de quotas, podendo o acompanhante outorgar procurações ou carta mandadeira a si próprio para efeitos de representação em assembleias.
e) Nomear para o cargo de Acompanhante o seu filho S… T… M…;
d) Fixar em 2020, como o ano a partir da qual as medidas decretadas em a) se tomaram convenientes (cfr. artigo 900°, n° 1 do Código de Processo Civil)”.
A audiência final nestes autos teve lugar no dia 12/04/2024 e no decurso da mesma, pelo Ilustre Mandatário do R. foi apresentado o seguinte requerimento:
“Em relação à testemunha apresentada pela autora, S… T… M…, refere-se que o mesmo foi por sentença determinado acompanhante da autora e por essa razão, salvo melhor opinião, entendo que não pode figurar como testemunha neste processo porque representa a parte interessada, a autora”.
Na sequência desse mesmo requerimento, foi proferido o seguinte Despacho:
"Nos termos do disposto no art.º 496.º do Código Processo Civil, estão impedidos de depor como testemunhas os que na causa possam depor como partes. Por sentença transitada em julgado foi determinada a aplicação do regime de maior acompanhado à autora, sendo-lhe aplicadas as medidas de acompanhamento de representação especial, previstas no artigo 145.º, n.º 2, alíneas b) e e) do Código Civil, incluindo a de representação em juízo e a prática de todos os atos em processos judiciais de qualquer natureza, ou inquérito crime, e todos os atos ou peças processuais, nomeadamente, os necessários a instaurar as respetivas ações, apresentar articulados ou requerimentos, apresentação de denúncia ou queixa, requerer a constituição como assistente e apresentação de pedido de indemnização civil, bem como a outorga de procurações forenses com ou sem poderes especiais para confessar, desistir ou transigir.
Na mesma sentença se deixa dito que no que concerne à prestação de declarações em quaisquer processos judiciais ou inquéritos crime cabe ao titular dos respetivos processos avaliar, caso a caso, se o acompanhante se pode substituir à beneficiária uma vez que a substituição da prestação de declarações pela beneficiária pode não se afigurar viável.
Resulta ainda da mesma sentença que relativamente ao exercício de direitos pessoais e celebração de negócios da vida corrente, o beneficiário deve manter estes direitos, o que reforça o princípio de que a autonomia do beneficiário deve ficar o mais intacta possível, atendendo às circunstâncias do caso concreto.
A autora não reside com o acompanhante que lhe foi nomeado, concretamente o seu filho, S… T… M…
Discute-se nos autos saber se a autora foi convocada para a realização da Assembleia-Geral da ré e quando tomou conhecimento das deliberações na mesma ocorridas, ou seja, simples atos jurídicos em que a substituição do acompanhante à ré não se afigura viável já que factos profundamente pessoais. Logo, S… T… M…, não obstante nomeado para o cargo de acompanhante da autora, não a poderia substituir na prestação de declarações no âmbito destes autos.
Por conseguinte, só a autora, por o ser, poderia depor como parte nestes autos.
Em conformidade, nada impede S… T… M… de depor como testemunha, o que se julga, determinando a respetiva inquirição de imediato.
Notifique."
A questão ora suscitada foi objecto de apreciação pelo tribunal da 1ª instância nos termos deste despacho proferido em 12/04/2024 e caso a R. pretendesse recorrer do mesmo, tê-lo-ia que ter feito no prazo de 15 dias a contar da sua aludida data, atento o disposto nos artºs 644º, nº2, alínea d) e 638º, nº1, do C.P.Civil. Não tendo sido interposto o respectivo recurso, o despacho transitou em julgado.
O trânsito em julgado fixa o momento a partir do qual a decisão passa a revestir de certeza e de segurança jurídica, como decorre dos artigos 619.º, n.º 1, do C.P.Civil  (alusivo ao caso julgado material, com eficácia intraprocessual e extraprocessual) – “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º” – e 620.º, n.º 1 (alusivo ao caso julgado formal) – “As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo” –,  ambos do CPC.
O caso julgado exerce uma função positiva e uma função negativa. Exerce a primeira, fazendo valer a sua força e autoridade. Exerce a segunda, através da excepção de caso julgado e, encontrando-se determinada questão decidida por despacho transitado em julgado, não pode a mesma voltar a ser apreciada quer pelo mesmo, quer por outro tribunal.
Assim, não pode este tribunal conhecer da questão suscitada relativamente ao suscitado impedimento de S… T… M… de depor como testemunha pelos fundamentos invocados.
Considerou o tribunal provado sob o ponto 6- dos Factos Provados: “Não foi encontrado no recetáculo postal da autora qualquer aviso para levantamento da carta referida no ponto 3.”, ou seja, da carta registada (RH…), dirigida para a Rua …, com vista à convocação da A., ora apelada, para a realização de assembleia geral da ré, a ter lugar no dia 31 de Março de 2022, pelas 10:30 horas, no Cartório Notarial …, situado na Avenida …, com a seguinte ordem de trabalhos: “Ponto um - Deliberar sobre o relatório de gestão e as contas da sociedade do exercício de 2021; Ponto dois - Deliberar sobre a proposta de aplicação dos resultados; Ponto três - Deliberar sobre a apreciação geral da administração da sociedade.”
O tribunal a quo motivou a decisão da matéria de facto nos seguintes termos:
“(…) considerou-se toda a documentação junta aos autos, nomeadamente a que se alude nos factos demonstrados, em conjugação com os depoimentos das testemunhas ouvidas em juízo, A… A… M…, TOC, que trabalha para a ré há pelo menos 30 anos, e S… M…, filho da autora, os quais, de forma linear, espontânea e coerente, em si e entre si, na medida do seu conhecimento direito dos factos, narraram a factualidade em juízo como demonstrada. Na verdade, o primeiro esclareceu ser o autor da convocatória dirigida à autora e saber que a mesma lhe foi enviada para o seu domicílio. O segundo, não pondo em causa o envio, esclareceu que nunca foi recebida qualquer convocatória pela autora, nem recebido/ encontrado na caixa do correio da mesma qualquer aviso para levantar qualquer carta no correio. Mais, explicou que a mãe diariamente vai ao correio recolher a correspondência, principalmente, como no caso, quando aguarda uma carta por parte da ré, ao mesmo tempo que acredita que o pai, sócio gerente da ré, mantém acesso à caixa de correio da mãe. De notar, para além do supra referido, emprestam credibilidade ao narrado por esta testemunha as ocorrências que já deram causa aos processos judiciais a que aludem as partes, dos quais resulta a vontade da autora em participar na vida societária e aceder ao seu próprio património e a vontade do sócio gerente da ré, ex-cônjuge da autora, em afastar a autora quer da vida societária quer do acesso ao respetivo património.
Prestando declarações, a ré, através do seu legal representante, reiterou o envio da carta de convocatória e a sua devolução, nada adiantando sobre a efetiva possibilidade da autora dela ter tomado conhecimento”.
Encontra-se provado que a carta registada supra aludida foi enviada para a morada da A. e que esta não a recebeu, apenas impugnando a R. o decidido no que respeita ao facto dado como provado de não ter sido encontrado no receptáculo postal da A. qualquer aviso para o respectivo levantamento.
Nos termos do despacho também proferido na audiência final, foi solicitada aos CTT informação sobre todo o itinerário da carta enviada com o registo RH… Estes informaram que, no sistema informático de pesquisa de objectos, não existia qualquer informação sobre o registo mencionado.
Do documento junto com a contestação sob o nº 4 – documento de seguimento da carta nos CTT -, resulta que esta não foi entregue à destinatária e que foi devolvida à remetente, mas nada consta relativamente a ter, ou não, sido deixado no receptáculo postal da autora o aviso para levantamento da carta.
A testemunha S… T… M…, filho da A. e do outro sócio e gerente da requerida, declarou que no dia a dia quem verifica a correspondência recebida em casa da mãe é a própria, o que já acontecia em Março de 2022. Disse que a mãe vai todos os dias ao correio e que nos períodos em que a testemunha sabe que pode “haver correspondência relevante” ele próprio assegura “que não há nada por levantar”. Declarou que vai a casa da mãe várias vezes por semana e vai “confirmando”. Referiu que na data em causa o pai também tinha a chave da caixa do correio e depois de ter sido nomeado acompanhante legal à mãe a correspondência passou a ser enviada para os escritórios da testemunha.
Referiu que não foi recebido qualquer aviso para levantamento da carta e que no “traking” dos CTT não consta se foi deixado aviso para levantamento. Disse que o “traking” junto é o de estorno da carta, relativo à devolução desta e não de entrega.
Declarou que a mãe não recebeu a convocatória para a Assembleia, nem a acta e que só teve conhecimento que a Assembleia tinha tido lugar quando no dia 7 de Julho de 2022 fez o pedido da certidão on line relativa à R. e viu que havia sido efectuado o registo da prestação de contas respeitantes ao ano de 2021 e que ali constava como é que as contas tinham sido aprovadas. Referiu ainda que nesse mesmo dia “demos conhecimento” ao Mandatário da mãe do que havia constatado.  O próprio não tinha a chave da caixa do correio, era a mãe que procedia à verificação desta e que, por vezes, quando saía com a mãe para almoçar ou para jantar, a mesma abria a caixa na sua presença.
A testemunha A… A… M…, Técnico Oficial de Contas da R., nada revelou saber quanto à matéria em apreço e J… F… F… M…, sócio gerente desta, ouvido em declarações de parte, declarou foi o próprio que enviou a carta registada dirigida à A. com a convocatória para a Assembleia, nada tendo referido quanto à circunstância de ter, ou não, sido deixado aviso na caixa do correio para levantamento da carta.
Refere Manuel Tomé Soares Gomes in “Da Sentença Cível”, “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 352 e ss, disponívelem http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf:
“(…) a valoração da prova, por parte do tribunal, consubstancia[-se] na formação de juízos de razoabilidade sobre os factos controvertidos relevantes para a resolução do litígio, em função do material probatório obtido através da atividade instrutória, à luz das regras da experiência e da coerência lógica dum raciocínio pragmático sobre as ocorrências da vida.
(…)
Na valoração e formulação do juízo probatório deve (…) procurar-se o equilíbrio entre o sentido do real e a sua razão prática. É nessa linha que se deve inscrever a ponderação dos depoimentos colhidos, tendo em conta o respetivo teor, o seu nicho contextual, bem como as razões de ciência e a credibilidade dos testemunhos. Só assim se poderá satisfazer o critério da prudente convicção na apreciação da prova livre, ditado pelo n.º 5, do artigo 607.º, do CPC, e obter uma decisão que se possa ter por justa e legítima.
Já no campo da motivação da decisão de facto, importa ter presente que a reapreciação dessa decisão, em sede de recurso, não se traduz propriamente num novo julgamento da causa, mas sim numa sindicância sobre o invocado erro de julgamento da 1.ª instância, no sentido de que compete ao tribunal de recurso formar a sua própria convicção sobre a prova produzida com vista a concluir pela existência ou não desse erro.
(…)
Em síntese, a motivação do julgamento de facto tem como matriz um discurso argumentativo problemático, parcelado na órbita de cada juízo probatório, sem prejuízo da sua compatibilização no universo da trama factual, e rege-se por razões práticas firmadas na análise dos resultados probatórios, à luz das regras da experiência comum ou qualificada e dos padrões de valoração (prova bastante e prova de verosimilhança) estabelecidos na lei.”
Como se diz no Ac. da Rel. de Guimarães de 19-01-2023, Proc. nº 487/22.0T8VCT-A.G1, relator: José Carlos Pereira Duarte, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt: “A questão suscitada pela requerente – os Correios ... não deixaram aviso para levantamento da carta registada - é um assunto muito sério e grave, pois, não só não é comum, como coloca em causa um serviço ainda essencial da vida em sociedade, como é o do envio de comunicações postais relativas a assuntos com relevo muito elevado (basta pensar em muitas da comunicações efectuadas pelos tribunais ou em cartas de resolução de contratos), não simples, mas mediante registo, tendo em vista obter a certificação de que a comunicação foi recepcionada ou, pelo menos, foi permitida a sua recepção e, assim, concluir, com segurança e certeza, pela eficácia de tais comunicações.
E, por isso, estamos perante uma matéria relativamente à qual é de exigir um elevado grau de confirmação, ou seja, para que se possa afirmar positivamente que os Correios ... não deixaram aviso para levantamento de uma carta registada, a prova deve basear-se em diversos elementos probatórios e ser consistente”.
Em nosso entender, o declarado pela testemunha S… M… – único que se pronunciou relativamente aos factos em apreço -, não permite a prova do plasmado no aludido ponto 6. dos factos provados. 
É certo que o tribunal poderá formar a sua convicção para a prova de determinado facto com base no depoimento de uma única testemunha desde que a apreciação deste permita alcançar o standard de prova exigível para a situação concreta em apreciação.
A propósito do standard de prova no processo civil, escreve Luís Filipe Sousa, in Prova Testemunhal, Almedina, 2016, pág. 373 e ss: «Um standard de prova consiste numa regra de decisão que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira. Um standard deve ser capaz de responder a duas perguntas: quando é que um grau de justificação é suficiente para aceitar um enunciado fáctico como verdadeiro e quais são os critérios objectivos que indicam que se alcançou esse grau de justificação.
(…)
Pese embora a existência de algumas flutuações terminológicas, o standard que opera no processo civil é, assim, o da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não”. Este standard consubstancia-se em duas regras fundamentais:
(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;
(ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que falsa.
(…)»    
A testemunha referida não residia na morada em referência, nem ali se deslocava todos os dias e não era o próprio que abria regulamente a caixa do correio, mas sim a sua mãe, a quem foi aplicado o regime de maior acompanhado, tendo este seu filho sido nomeado acompanhante por sentença proferida em Novembro do mesmo ano de 2022. Resulta do depoimento que é este filho, inclusive, quem tem contactado com os mandatários constituídos nas acções interpostas pela A. contra a sociedade aqui R.         
O facto de S… M… não ter tido contacto com o aviso e de a sua mãe lhe ter referido que não o encontrou na caixa do correio, por si só, não permite concluir que este não tenha ali sido deixado pelos CTT. Não consta dos autos que nessa altura existissem perturbações na entrega do correio na área da residência da A., nem tão pouco que esta tenha efectuado qualquer reclamação junto desses serviços pela invocada falta do respectivo aviso, o que, como se disse, é um facto grave e que não podia deixar de assumir relevância junto dos CTT. 
O depoimento do filho da A. não está corroborado por quaisquer elementos externos e, considerando o referido, é insuficiente para permitir a prova da factualidade em questão.
Assim, decide-se julgar procedente a impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pela apelante e, em consequência, o plasmado no ponto 6. deve deixar de constar dos factos provados e passar a integrar a factualidade não provada.
Para uma melhor compreensão dos Factos Provados e Não Provados, passam-se a reproduzir os mesmos em conformidade com a decisão supra proferida:
Factos Provados
1. A G… – Investimentos Imobiliários, Agro e Comércio, Lda., pessoa colectiva n.º …, com sede na Rua …, tem por objecto social a construção, administração e comércio de propriedades rústicas e urbanas, podendo dedicar-se à compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, arrendamento de bens imobiliários, nomeadamente edifícios residenciais e não residenciais e de terrenos; alojamento local mobilado não permanente para turistas; agricultura e culturas temporárias, silvicultura e outras atividades florestais e comércio por grosso de outras máquinas e equipamentos.
2. Tem o capital social de € 8.975,36, dividido em duas quotas, uma no valor de € 4.987,36, correspondente a 55,56% do capital social, pertencente a J… F… F… M…, e outra no valor de € 3.990,38, correspondente a 44,44% do capital social, pertencente a M… J… F… A… T… M…, autora.
3. No dia 16 de Março de 2022, a ré enviou à autora uma carta registada (RH…), dirigida para a Rua …,  com vista à sua convocação para a realização de assembleia geral da ré, no dia 31 de Março de 2022, pelas 10:30 horas, no Cartório Notarial …,  situado na Avenida …, com a seguinte ordem de trabalhos: “Ponto um - Deliberar sobre o relatório de gestão e as contas da sociedade do exercício de 2021; Ponto dois - Deliberar sobre a proposta de aplicação dos resultados; Ponto três - Deliberar sobre a apreciação geral da administração da sociedade.”.
4. No dia 31 de Março de 2022, pelas 10:30 horas, no Cartório Notarial …, situado na Avenida …, realizou-se assembleia geral da ré, com a presença do sócio e gerente J… F… F… M…, tendo deliberado sobre o relatório de gestão e as contas da sociedade do exercício de 2021, sobre a proposta de aplicação dos resultados e sobre a apreciação geral da administração da sociedade.
5. A autora não recebeu a carta referida no ponto 3.
6. (passou a integrar os Factos Não Provados).
7. A autora não esteve presente na assembleia geral da ré referida no ponto 4.
8. A carta referida no ponto 3. foi devolvida e entregue à remetente no dia 5 de Abril de 2022.
9. Não foi enviada à autora a acta da assembleia geral da ré referida no ponto 4. 
*
Factos Não Provados
Não resultou demonstrada qualquer outra factualidade relevante para apreciação do mérito da causa, nomeadamente que:
a)  a autora tenha tomado conhecimento da realização da Assembleia geral da ré referida no ponto 4 dos factos provados em dia anterior a 8 de Julho de 2022 e que
b) não tenha sido encontrado no receptáculo postal da autora qualquer aviso para levantamento da carta referida no ponto 3. dos Factos Provados.  
*
D) O Direito
Na petição inicial, peticionou a A., ora apelada, que sejam declaradas nulas “ou,
se assim não se entender, anuláveis”, as deliberações tomadas na assembleia geral da sociedade R. realizada no dia 31 de Março de 2022, com fundamento na falta de sua convocatória, enquanto sócia, para essa mesma assembleia. 
Como se sabe, existe uma razão principal para a distinção entre a nulidade e a anulabilidade dos actos jurídicos que determina o diferente tratamento que lhes dá o nosso sistema jurídico: a gravidade do vício que afecta tais actos.
Podemos dizer que, em regra, o nosso sistema jurídico sanciona com a nulidade a violação de interesses públicos e com a anulabilidade a violação de interesses meramente privados, sendo que, também em regra, a nulidade é invocável a todo o tempo, é de conhecimento oficioso e pode ser invocada por qualquer interessado, enquanto a anulabilidade apenas pode ser invocada em determinado período subsequente à cessação do vício e por aqueles em cujo interesse foi estabelecida – cfr artigos 285º a 294º do Código Civil.
Esta diferenciação entre a nulidade e a anulabilidade das deliberações sociais resulta também do disposto nos arts 56º a 60º do Código das Sociedades Comerciais.
Na nossa lei é excepcional o sistema da nulidade das deliberações sociais: é maioritariamente aceite que as deliberações sociais nulas estão sujeitas ao princípio da tipicidade – cfr neste sentido o  Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/13/2004 – Processo nº 04A1519, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt. Com excepção das nulidades ali previstas, todas as demais invalidades implicarão a anulabilidade da deliberação social viciada.
As pessoas colectivas manifestam a sua vontade resolvendo ou deliberando através das suas assembleias ou reuniões de sócios. Como refere Pinto Furtado, Deliberações dos Sócios, 1993, pág. 12, a deliberação é uma declaração colectiva.
Cada sócio tem o direito de se opor a qualquer deliberação ilegal, isto é, que viole ou contrarie a lei geral ou a lei especial do corpo colectivo; tal direito de oposição consiste em pedir que se julgue nula, ou se anule, a deliberação ilegal – cfr Moitinho de Almeida, Anulação e Suspensão de Deliberações Sociais, 4ª Ed., pág. 10.
Estabelece o artº 56º, nº1, do CSC, que:
“São nulas as deliberações dos sócios:
a) Tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados;
b) Tomadas mediante voto escrito sem que todos os sócios com direito de voto tenham sido convidados a exercer esse direito, a não ser que todos eles tenham dado por escrito o seu voto;
c) Cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios;
d) Cujo conteúdo, directamente ou por actos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.
”.
Como se diz no Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Coord. Jorge Coutinho de Abreu, Vol. I, Almedina, pág. 691:
«Assembleia Geral não convocada é, antes de mais, a assembleia não precedida de qualquer convocatória: ninguém foi convocado mas, ainda assim, alguns sócios reuniram-se e adotaram deliberações. Compreende-se que estas deliberações sejam nulas: apesar de a falta de convocação ser vício de procedimento, é vício muito grave, na medida em que afasta sócios do exercício de direitos fundamentais da sociedade – designadamente o direito de participar (plena ou limitadamente) nas deliberações e o direito de obter informações sobre a vida da sociedade (especialmente em assembleia): artº 21º, 1, b) e c).
Por isso mesmo, deve igualmente ser considerada assembleia não convocada a realizada sem presença de um ou mais sócios que não foram convocados (convocados foram somente alguns, ou algum); sócios legitimados para participar em assembleia não podem ser excluídos da possibilidade de exercerem os seus mais elementares direitos – são nulas as deliberações adotadas em assembleia na qual algum deles não participou por não ter sido convocados.
(…)
Porém, a nulidade das deliberações tomadas em assembleia não convocada não é uma nulidade típica. É atíplica (invalidade mista lhe chamam geralmente), pois pode o vício da falta de convocação ser sanado posteriormente por vontade de todos os sócios que não participaram nas deliberações (os primacialmente protegidos pela cominação do artº 56º, 1, a)), convalidando-se elas então. Utilizando os dizeres do nº 3 do artº 56º, a nulidade de uma deliberação tomada em assembleia geral não convocada “não pode ser invocada quando os sócios ausentes e não representados (…) tiverem posteriormente dado por escrito o seu assentimento à deliberação”».
Dispõe o art.º 248º, nº 3, do CSC que a convocação das assembleias gerais compete a qualquer dos gerentes e deve ser feita por meio de carta registada, expedida com a antecedência mínima de 15 dias, a não ser que a lei ou o contrato exijam outras formalidades ou estabeleçam prazo mais longo.
À convocatória para uma assembleia geral de uma sociedade comercial aplica-se o disposto no art.º 224º do CC, como decorre do disposto no art.º 295º do CC.
O art.º 224º, nº 1, distingue as declarações recipiendas ou recptícias – “A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; … – e as não recipiendas – “as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada.”
A carta registada dirigida a um sócio de uma sociedade a convocá-lo para uma assembleia geral, constitui uma declaração recipienda ou receptícia, ou seja, para produzir os seus efeitos, terá de chegar ao poder do sócio ao qual foi remetida ou ser dele conhecida.
Como refere Heinrich Ewald Horster, in Sobre a formação do contrato segundo os arts. 217.º e 218.º, 224.º a 226.º e 228.º a 235.º do Código Civil, Revista de Direito e Economia, Ano IX, Nºs 1-2, 1983, págs 135 e 136, atento o disposto no nº 1 do referido artigo 224º, “é necessário e suficiente que se verifique um dos dois pressupostos enunciados – ou a chegada ao poder ou o conhecimento – para que a declaração se torne eficaz. Consequentemente, esta solução legal dá relevância jurídica, no sentido de originar a perfeição da declaração negocial, àquele pressuposto que se verifica primeiro, combinando nesta medida a teoria da recepção («,,, logo que chega ao poder …») com a teoria do conhecimento («… logo que… é dele conhecida).
No que diz respeito à conjugação dos dois critérios da chegada ao poder e do conhecimento, convém dizer que no caso da verificação da chegada ao poder não se exige conhecimento efectivo por parte do destinatário. A lei parte da situação regular e normal de que, com a chegada ao poder, o destinatário (o declaratário) está em condições de tomar conhecimento e que ele toma este conhecimento. O saber se a chegada ao poder conduz realmente a esta situação, suposta pela lei, que permite o conhecimento efectivo, determina-se em conformidade com as concepções reinantes no tráfico jurídico para os negócios em causa.
(…)
Acrescente-se, ainda, que para se dar a chegada ao poder não é conceitualmente necessário que a declaração negocial chegue ao poder imediato do próprio declaratário, bastando o depósito no local indicado para o efeito em condições normais ou então a entrega (respectivaemnte a comunicação) a uma pessoa autorizada para receber a declaração (…)
E adianta, ainda, o mesmo autor que a previsão do n.º 2 do artigo 224.º do CC – É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida” -, tem em vista a protecção do declarante, em caso de não recebimento de uma declaração que só por culpa do destinatário, não foi por este recebida, no sentido de «chegada ao poder», esclarecendo que “a declaração é tida como eficaz apesar de não ter chegado ao poder, quando isso foi culposamente impedido pelo destinatário - p. ex, o destinatário recusa-se a receber a carta do carteiro ou não vai levantá-la à posta restante, como costumava fazer”- ob. cit., págs. 137 e 138.
Assim, para que a declaração seja eficaz a lei basta-se com a circunstância de a declaração chegar ao poder do destinatário, ou seja, à sua esfera pessoal de modo que, em condições normais e segundo as regras da experiência comum, aquele possa, por actos que dependam dele próprio, tomar conhecimento da declaração. Sendo, por conseguinte, indiferente neste caso que tome, ou não, efectivo conhecimento do respectivo conteúdo.
De acordo com as regras sobre repartição do ónus da prova, incumbe ao destinatário demonstrar que a declaração não foi recebida sem culpa sua. Sendo enviada, no dia 31 de Março de 2022, uma carta registada para o domicílio da destinatária e sendo a mesma devolvida e entregue à remetente no dia 5 de Abril de 2022, a declaração que dela consta será, em princípio, eficaz, à luz do disposto no art.º 224º n.º 2 do CC, ou seja, produzirá o efeito a que tendia porque o declarante fez tudo o que estava ao seu alcance fazer para que a carta chegasse ao seu destinatário, não tendo: 1) qualquer intervenção ou interferência nos serviços postais; 2) e não tendo o mesmo que saber o que se passa no círculo de actividade do destinatário, pelo que há-de presumir-se, face àqueles elementos e de acordo com as regras da experiência e normalidade, que a carta não foi recebida por culpa do destinatário.
Não obstante, tal poderá não ser assim porquanto o destinatário é admitido a alegar e demostrar que não recebeu a carta porque, nomeadamente, os CTT não deixaram aviso para a levantar na estação dos correios. Neste caso caber-lhe-á a prova do alegado porque que se trata de um facto impeditivo da eficácia da declaração, nos termos do n.º 2 do art.º 224º e, essencialmente, porque se trata de um facto que ocorre na sua esfera de influência, no seu circulo de actividade, não sendo, por isso, razoável impor-se ao declarante tal prova – cfr neste sentido o Ac. da Rel. de Guimarães de 19-01-2023 supra citado.
Alegou a A., na resposta que apresentou à contestação, que ainda que lhe pudesse ter sido dirigida carta destinada a convocá-la para a Assembleia Geral da R. a realizar no dia 31 de Março de 2022, não foi deixado na sua caixa do correio qualquer aviso para levantamento da mesma.
Tal factualidade não resultou provada, sendo que, como se referiu, era à mesma que incumbia a respectiva prova.
Assim, não há fundamento para a declaração de nulidade nos termos do disposto no artº 56º, nº1, alínea a), do CSC das deliberações sociais aprovadas na Assembleia Geral da R. de 31 de Março de 2022, não se podendo manter a sentença que declarou tal nulidade.
Requereu a A./recorrida, subsidiariamente e para o caso de o recurso da R. vir a ser julgado procedente, que seja “apreciada a nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral de 31.03.2022 com fundamento no facto de a convocatória para a assembleia geral não ter sido expedida com a antecedência mínima de quinze dias, ao abrigo do n.º 3 do artigo 248.º do CSC, fundamento que foi alegado pela Autora, aqui Recorrida, em requerimento junto aos autos na audiência prévia que teve lugar em 30.05.2023, e que aqui se reitera, nos termos e para os efeitos do artigo 636.º, n.º 1 do CPC”.
De acordo com este último normativo:
“1 - No caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação”.
Estabelece o artigo 58.º do CSC sob a epígrafe: “(Deliberações anuláveis)”:
“1 - São anuláveis as deliberações que:
a) Violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56.º, quer do contrato de sociedade;
b) Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos;
c) Não tenham sido precedidas do fornecimento ao sócio de elementos mínimos de informação.
2 - Quando as estipulações contratuais se limitarem a reproduzir preceitos legais, são estes considerados diretamente violados, para os efeitos deste artigo e do artigo 56.º
3 - Os sócios que tenham formado maioria em deliberação abrangida pela alínea b) do n.º 1 respondem solidariamente para com a sociedade ou para com os outros sócios pelos prejuízos causados.
4 - Consideram-se, para efeitos deste artigo, elementos mínimos de informação:
a) As menções exigidas pelo artigo 377.º, n.º 8;
b) A colocação de documentos para exame dos sócios no local e durante o tempo prescritos pela lei ou pelo contrato”.
Por sua vez, dispõe o artº 59º do mesmo código:
“(Ação de anulação)
1 - A anulabilidade pode ser arguida pelo órgão de fiscalização ou por qualquer sócio que não tenha votado no sentido que fez vencimento nem posteriormente tenha aprovado a deliberação, expressa ou tacitamente.
2 - O prazo para a proposição da ação de anulação é de 30 dias contados a partir:
a) Da data em que foi encerrada a assembleia geral;
b) Do 3.º dia subsequente à data do envio da ata da deliberação por voto escrito;
c) Da data em que o sócio teve conhecimento da deliberação, se esta incidir sobre assunto que não constava da convocatória.”   
A violação do preceito que impõe a antecedência mínima de 15 dias para a expedição da carta registada destinada à convocação de um sócio para as assembleias gerais projecta-se no processo de formação da deliberação e não no seu conteúdo: sabido que todas as irregularidades de convocação da assembleia geral não subsumidas ao artº 56º caem na alçada da regra do nº1 a) do art 58º.
Assim, a não observância do referido prazo mínimo enquadra-se na anulabilidade.
Este fundamento de invalidade foi invocado pela A. na resposta que apresentou à contestação. A R. exerceu o contraditório no articulado que apresentou na sequência do despacho proferido em 22/01/2024. Já na contestação a R. havia invocado que, tendo a Assembleia Geral, validamente convocada, tido lugar no dia 31/03/2022 e a acção sido instaurada em 29/07/2022, verifica-se a caducidade desta, por força do art.º 59.º, nº 2 al. a) supra citado, invocação que reiterou naquele mesmo articulado. Como se disse, a A. apresentou resposta à contestação, sustentando que a excepção de caducidade deve ser julgada improcedente, em virtude de não ter sido regulamente convocada para a acção e de apenas ter tido conhecimento das deliberações em 29/06/2022, após consulta da certidão permanente da sociedade.
Independentemente das questões que se poderiam suscitar sobre se a invocação da invalidade das deliberações com fundamento no facto de a convocatória não ter sido realizada com a antecedência mínima de 15 dias se traduz numa ampliação da causa de pedir e dos termos em que a mesma seria, ou não admissível, não há dúvidas que, atento o que supra ficou explanado, a A. se tem como regulamente convocada para a Assembleia e tendo esta tido lugar no dia 31/03/2022 e a presente acção apenas sido instaurada em 29/07/2022 (em 11/07/2022, a A. instaurou procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, o qual foi julgado improcedente), muito para além do prazo de 30 dias estabelecido na lei para o efeito, caducou o direito de acção Tal excepção peremptória, determina a absolvição da R. deste pedido.
Atento tudo o que fica exposto, não restam dúvidas que o recurso tem que ser julgado procedente e, em consequência, a R. absolvida do pedido.  
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IV-Decisão
Em face do exposto, acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a sentença recorrida, julgando a acção improcedente e absolvendo a R./recorrente do pedido.
Custas pela A./recorrida – artº 527º, nº1, do C.P.Civil
Registe e Notifique, devendo o presente acórdão ser também notificado ao acompanhante nomeado à A., ora apelada, S… T… M…

Lisboa, 17/06/202
Manuela Espadaneira Lopes
Elisabete Assunção
Renata Linhares de Castro