SECRETARIA JUDICIAL
PETIÇÃO INICIAL
ADMISSÃO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Sumário

I. Tendo sido proferido despacho a validar a apresentação da petição inicial inicialmente rejeitada pela secretaria, na sequência de apresentação pelo autor de DUC comprovativo do pagamento da taxa de justiça, tal decisão formou caso julgado formal, obstando a que fosse posteriormente proferida uma outra, contrária, a determinar “o indeferimento da mesma petição” com fundamento naquela recusa.
II. Tendo os autos sido tramitados durante três anos, tendo-se logrado concretizar a citação dos RR, cidadãos estrangeiros residentes na Suécia na pessoa da sua Il. Mandatária com poderes para o acto e tendo estes apresentado contestação, foi criada pelo tribunal uma situação de confiança, assente na boa fé e gerada pela aparência de que a inicial recusa da petição se encontrava ultrapassada, em função da qual o autor definiu a sua subsequente atuação no processo e que merece proteção, obstando à aplicação de um efeito preclusivo com o qual a parte prejudicada razoavelmente já não poderia contar.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo 1055/21.0T8ABF.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo Local Cível de Albufeira


I. Relatório
Inconformado com o despacho proferido em 16/11/2024 [Ref.ª 133660635] que “indeferiu a petição inicial”, decretando “a extinção da instância”, veio o autor (…) apresentar o presente recurso, cuja alegação rematou com as seguintes conclusões;
1.ª No dia 18.11.2021, o A. intentou uma acção contra os RR., a requerer a condenação dos mesmos, no pagamento da fatura n.º …/2018, de 12-04-2018, no valor de € 11.250,81 (onze mil e duzentos e cinquenta euros e oitenta e um cêntimos), acrescido de juros de mora comerciais vencidos, calculados à taxa legal, desde a data do vencimento da fatura, até à data de entrada da presente Ação, o que perfaz o valor de € 2.839,51 (dois mil e oitocentos e trinta e nove euros e cinquenta e um cêntimos), resultante de serviços prestados pelo A., aos RR.
2.ª O A., juntou, aquando da entrada da petição inicial, o comprovativo do pedido do apoio judiciário junto da Segurança Social, que deu entrada junto daqueles Serviços em 15.10.2021.
3.ª Já tinham decorrido os trinta dias do deferimento tácito do aludido pedido.
4.ª Em 26.11.2021, a petição inicial do A. foi recusada pela Secretaria, por considerar que não foi junto aos autos, o pagamento da taxa de justiça, ou o comprovativo da concessão ao A. do apoio judicial pela Segurança Social.
5.ª Em 29.11.2021, o mandatário do A., juntou aos autos, o comprovativo do pagamento de 50% da taxa de justiça, respeitante à petição inicial.
6.ª Posteriormente a esse facto, os autos prosseguiram os seus termos, porquanto, o M.mo Juiz, determinou a realização de diversos actos processuais necessários a regularização da instância (artigo 6.º do CPC).
7.ª Os R.R foram citados na pessoa da sua Ilustre mandatária para contestar, o que fizeram.
8.ª A acção consolidou-se, nos termos do artigo 260.º do CPC.
9.ª Decorridos quase três anos, o tribunal a quo, decide que face à recusa do recebimento da petição inicial pela Secretaria e a ausência da reclamação para o juiz do oficio de recusa, tal situação consolidou-se, inexistindo outra norma que legitime o prosseguimento da causa, pelo que, indefere a petição inicial com a consequente extinção da instância e, oportunamente, o arquivamento dos autos.
10.ª O Tribunal a quo, com a sua decisão, coloca em causa os princípios da confiança e boa fé processual, uma vez que, após o oficio de recusa pela Secretaria da Petição Inicial, os autos prosseguiram a sua tramitação normal, gerando a convicção no A. de que se encontrava sanada a ausência da reclamação para juiz, do aludido ofício.
11.ª Com a sua decisão, o tribunal a quo violou os princípios, designadamente, da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos, artigo 2.º da C.R.P..
Conclui pela procedência do recurso, devendo “ser proferido acórdão revogatório da decisão recorrida, admitido a petição inicial e ordenando o prosseguimento dos presentes autos”.

Os RR (…) e mulher, (…), contra-alegaram, sustentando sem surpresa o bem fundado da decisão recorrida.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objeto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se se verifica o fundamento invocado na decisão recorrida para decretar a extinção da presente instância.
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II. Fundamentação
De facto
Relevam para a decisão os seguintes factos ocorridos no processo:
1. O autor e ora recorrente (…) instaurou contra (…) e mulher, (…), residentes em (…) 1, 1414-2 (…), na Suécia, a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final a condenação dos demandados no pagamento da quantia de € 11.250,81, referente à fatura n.º …/2018, de 12 de Abril de 2018, acrescida dos juros de mora vencidos, que liquidou no valor de € 2.839,51, reclamando ainda os vincendos, contados desde a data da propositura da ação até integral pagamento à taxa em vigor para os créditos de natureza comercial.
2. O autor deu entrada da petição em juízo no dia 18/11/2021, nela mencionando juntar “Documento comprovativo do pedido de apoio judiciário”, tendo procedido à junção de recibo de entrega de documentos no Centro Distrital de Setúbal da Segurança Social para efeitos de requerimento de “proteção jurídica”, datado de 15 de Outubro de 2021 (cfr. fls. 30 dos autos).
3. Por ofício cuja data de elaboração vem certificada como sendo o dia 26/11/2021, foi o Il. Mandatário do autor notificado de que “Nos termos do artigo 17.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 170/2017, de 13 de março, fica notificado, na qualidade de Mandatário, e relativamente ao processo supra identificado, da recusa da petição inicial apresentada, nos termos e para os efeitos do artigo 558.º, n.º 1, alínea f), do CPC.
Do ato de recusa da petição inicial poderá apresentar reclamação, nos termos do n.º 1 do artigo 559.º do CPC. Decorrido o prazo para a reclamação da recusa, ou, havendo reclamação, após o trânsito em julgado da decisão que confirme o não recebimento, considera-se a peça recusada, dando-se a respetiva baixa na distribuição.
Prazo: 10 dias”.
4. Com data de 29/11/2021 o autor fez juntar aos autos requerimento a pedir a junção aos autos “do DUC e respetivo comprovativo do seu pagamento de 50% da taxa de justiça, respeitante à petição inicial”.
5. Em 22/12/2021, o mandatário do A. foi notificado pela Secretaria para juntar aos autos, no prazo de 10 dias, a tradução da petição inicial para a língua sueca ou inglesa com vista à citação dos RR.
6. Em 6/1/2022, o autor apresentou requerimento com o seguinte teor:
“(…), autor nos autos de processo em epígrafe, notificado do despacho com referência n.º 122637837, de 22-12-2021, vem solicitar a V. Exa., a dilação do prazo por mais 15 dias, a contar da data final do prazo inicialmente atribuído, para junção aos autos, da tradução em língua sueca ou inglesa da P.I. e demais documentos anexos.
Tal pedido, enquadra-se na necessidade de pedir mais do que um orçamento, tendo em atenção os valores pedidos pela tradução constante no 1º orçamento que se anexa.”
7. Sobre o requerimento a que se refere o ponto anterior recaiu o despacho de 23/1/2022 [Ref.ª 122994097] a deferir o requerido pelo prazo de 20 dias.
8. Em 31/1/2021 o Autor procedeu à junção aos autos da “tradução certificada para a língua inglesa, da petição inicial e dos documentos que a compõem, a fim de se proceder à citação dos Réus”.
9. Em 8/4/2022 a Il. Advogada (…) apresentou requerimento nos autos [Ref.ª 41901204] arguindo a irregularidade da citação efetuada e requerendo a repetição do acto, vindo posteriormente a juntar procuração outorgada a seu favor pelos RR (cfr. requerimento com a Ref.ª 42217353).
10. Com data de 30 de Junho de 2022 foi proferido despacho [Ref.ª 124855479] com o seguinte teor:
“ Ref.ª 122339427, de 26.11.2021
Consigna-se que foi paga taxa de justiça pelo autor nos temos do artigo 560.º do CPC.
***
Ref.ª 9977441, de 08.04.2022
Considerando um eventual deferimento do requerimento supra, e a fim de agilizar o prosseguimento dos autos, notifique a senhora mandatária dos réus para, querendo, em 10 dias, juntar aos autos procuração forense que lhe atribua poderes especiais para receber citações no âmbito deste processo em nome dos seus representados, dada a sua residência na Suécia”.
11. O despacho transcrito no ponto anterior foi notificado às partes [Ref.ªs 124947485 e 124947486] .
12. Em 6/9/2022 a Il Mandatária dos RR procedeu à junção aos autos de procurações conferindo-lhe poderes para, entre o mais, receber citações.
13. Em 4 de Outubro de 2023 foi proferido despacho [Ref.ª 129694156] a ordenar a citação dos RR na pessoa da sua Il. Mandatária.
14. Em 7/11/2023 os RR contestaram, peça que concluíram nos seguintes termos:
“(…) deve considerar-se
i- procedente por provada a exceção de prescrição da dívida e em consequência ser determinada a extinção da instância e os Réus absolvidos do pedido;
ii- que a estar em causa uma dívida, o que não se concebe, estaria em causa uma dívida não comercial pelo que deveria improceder na parte dos juros vencidos que excedem € 1. 622,58.
iii -que a estar em causa uma dívida, o que não se concebe, estaria em causa uma dívida não comercial pelo que os juros vincendos seriam calculados á taxa legal de 4% e não à taxa comercial.
iv – que os RR. pagaram à sociedade (…) – Construções Unipessoal, Lda. o montante total de € 20.400,0 (vinte mil e quatrocentos euros) e
v – que a sociedade A. não concluiu as obras constantes do orçamento
vi – que a assinatura aposta no doc. n.º 8 junto com a PI não foi feita pelos RR, nomeadamente pelo R. (…)”.
15. Em 16/11/2024 foi proferido o despacho ora recorrido [Ref.ª com o seguinte exato teor:
“Compulsados os autos, verifica-se que a secretaria deste Tribunal procedeu à recusa da petição inicial nos termos e para os efeitos do artigo 558.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Civil – cfr. Ref.ª Citius 122339427, de 26/11/2021.
Havendo rejeição ou recusa de recebimento da petição inicial, tudo se passa como se esta não tivesse sido sequer apresentada, ou seja, como se a ação não tivesse sido instaurada (já que, nos termos do disposto no artigo 259.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o início da instância supõe que a petição se considere apresentada).
Situação que se verifica no caso sub judice, uma vez que o autor (...) acatou a recusa da petição inicial pela secretaria, não reclamando para o juiz, limitando-se a apresentar o documento a que se refere a primeira parte do disposto no na alínea f) do artigo 558.º do Código de Processo Civil, para efeitos, adiantamos, de aplicação do preceituado no artigo 560.º do Código de Processo Civil. Todavia, considerando que a causa em apreço importa a constituição de mandatário [face ao valor dado à ação pelo autor, concretamente € 11.250,81 (onze mil e duzentos e cinquenta euros e oitenta e um cêntimos)] e que a parte está patrocinada, e sendo tais requisitos cumulativos, bem se vê que tal preceito legal não tem aplicação nos presentes autos [cfr. neste sentido, a título meramente exemplificativo, o disposto no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02/12/2021, processo n.º 4269/21.9T8BRG.G1, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/04/2024, processo n.º 3444/23.6T8LRS-B.L1-7, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/11/2023, processo n.º 26/23.6YFLSB, todos disponíveis em www.dgsi.pt].
Sendo certo que, face à recusa de recebimento da petição inicial e à ausência de reclamação para o juiz, tal situação consolidou-se.
Assim, inexistindo qualquer outra norma que, neste particular contexto, legitime o pretendido prosseguimento da causa, deve a petição inicial ser indeferida, o que se determina, com a consequente extinção da instância.
Registe, notifique e d.n..
Arquive oportunamente.”
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De Direito
Do “indeferimento da petição” e consequente “extinção da instância”
Antecipando a decisão, afigura-se evidente a razão do apelante.
Antes de mais, tendo o autor invocado na petição ter requerido o apoio judiciário, o que fez acompanhar da prova de que o requerimento tinha sido apresentado há mais de 30 dias, ainda que não tenha invocado expressamente a formação do ato de deferimento tácito, conforme prevê o n.º 3 do artigo 25.º da LAJ, afigura-se que a secretaria não teria fundamento para proceder à recusa da petição inicial nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 558.º do CPC, antes devendo, na dúvida, submeter os autos ao Sr. Juiz.
Seja como for, tendo o autor e ora apelante procedido ao pagamento de 50% do valor da taxa de justiça – sem que tenha sido junta aos autos a eventual posterior decisão proferida pela SS que recaiu sobre o requerimento apresentado e sem que tenha sido ordenada a sua junção – por despacho exarado a 30 de Junho de 2022, o qual foi devidamente notificado a ambas as partes, a Mm.ª juíza consignou expressamente que havia sido “paga taxa de justiça pelo autor nos temos do artigo 560.º do CPC", com o sentido inequívoco de validar a apresentação da petição, assim considerada proposta na data da sua apresentação em juízo.
O despacho proferido, reconduzindo-se a decisão de admissão de articulado, era suscetível de apelação autónoma nos termos do artigo 644.º, n.º 2, alínea d), do CPCivil, pelo que, não tendo sido impugnado – na contestação apresentada os RR nem sequer suscitaram a questão – transitou em julgado, formando caso julgado formal (cfr. artigo 620.º do mesmo diploma legal). Deste modo, e ao invés do que vem referido na decisão recorrida, o que se consolidou nos autos foi a decisão proferida a 30 de Junho, pelo que não podia a sra. Juíza vir agora, decorridos três anos e depois de uma custosa tramitação, “dar o dito por não dito”, indiferente ao caso julgado formal que se formara.
Mas por um outro e também decisivo fundamento a decisão recorrida não poderá manter-se.
Como o autor bem refere nas suas alegações, o aludido despacho e a tramitação posterior à apresentação do DUC comprovativo do pagamento da taxa de justiça foram de molde a nele criar uma situação de confiança, assente na boa fé e gerada pela aparência de que a inicial recusa da petição se encontrava ultrapassada, legítima convicção em função da qual definiu a sua subsequente atuação no processo, procedendo designadamente à tradução legalizada da petição inicial e dos numerosos documentos que a acompanhavam, a fim de se concretizar a citação dos demandados, com o elevado custo associado de que deu nota nos autos. Assim sendo, e conforme se decidiu no acórdão do STJ de 9/7/2014 (processo n.º 2577/05.5TBPMS-P.C3.S1, acessível em www.dgsi.pt) “(…) a proteção dessa confiança conduz à preservação da posição nela alicerçada, ou seja, à manutenção das vantagens que assistiriam ao confiante."
Como também se refere no acórdão deste TRE de 18/10/2018 (proc. n.º 399/13.9TBTVR-K.E1, acessível em www.dgsi.pt), “A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tem vindo a acentuar a prevalência dos princípios da boa fé [“que não pode ser exclusivo dos atos das partes, mas terá de abranger igualmente ao atos dos magistrados” AUJ de 31/3/2009][1] e da confiança [gerada nos interessados quanto a uma determinada conformação ou orientação processual determinada pelo juiz – Ac. do STJ de 17/5/2016], no confronto com critérios de legalidade estrita”. Apesar de estarem em causa efeitos preclusivos resultantes da inobservância pelas partes de determinados prazos processuais, a situação é perfeitamente transponível para o caso que se aprecia.
Considerou-se no citado AUJ n.º 9/2009 que “O julgador não deve proferir decisões que surpreendam as partes. Ou porque não foram debatidas, ou porque não se esperaria que as tomasse, atentas as posições processuais antes assumidas”. E acrescentou-se “Com efeito, a mera irrelevância do caso julgado não é consistente com os princípios de cooperação, da boa fé processual, da prevalência do fundo sobre a forma e da direcção do processo pelo juiz, que o legislador de 1995 afirmou expressamente como princípios estruturantes do processo civil português, em particular na definição das relações entre os diversos intervenientes processuais, e que obrigam, neste caso, a tutelar a confiança que aquela mesma afirmação mereceu à requerida.
Os termos explícitos do despacho – «o presente procedimento cautelar não tem já natureza urgente» –, do qual consta também a determinação de que a requerida seja notificada para deduzir oposição, querendo, «não obstante» o procedimento não correr em férias judiciais, são adequados a criar no destinatário a convicção de que o prazo de que em concreto se tratava não corria em férias judiciais.
Tal convicção merece tutela do direito; e a lei de processo civil contém os mecanismos necessários à protecção da confiança assim criada na requerida”.
Nos casos apreciados pelo STJ estão em causa situações, idêntica àquela que se verifica nos presentes autos, em que uma determinada conformação do processo criou na parte uma legítima expetativa, que merece a tutela do direito, de que tal orientação seria continuada, obstando a que o juiz venha posteriormente, ao arrepio da confiança criada, impor uma limitação ou preclusão processual com a qual a parte prejudicada já não podia razoavelmente contar.
Tudo em suma para concluir que, também por esta via, a decisão recorrida não poderá ser mantida, impondo-se a sua revogação.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso apresentado pelo autor, revogando em consequência a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos.
Custas a cargo dos RR que, tendo-se oposto, decaíram (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCiv.).

Évora, 05 de Junho de 2025
Maria Domingas Simões
Mário Branco Coelho
Ana Margarida Leite

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Sumário: (…)

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[1] Está em causa o AUJ n.º 9/2009, publicado no DR n.º 96, I-Série A, de 19 de Maio de 2009.