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JUIZ NATURAL
IMPARCIALIDADE
ISENÇÃO
ESCUSA
Sumário
I-A Constituição da República Portuguesa consagra no seu artigo 32º nº9 o princípio do juiz natural ao estabelecer que: «Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior» e que se consubstancia na regra de que só pode e deve intervir no processo o juiz que o deva de acordo com as regras de competência legalmente estabelecidas para o efeito. II-Tal princípio tem, contudo, de ceder em casos em que seja atingida a imparcialidade, distanciamento, isenção do juiz natural, sendo precisamente nesses casos que operam os incidentes de recusa e escusa. III-De facto, a imparcialidade e a isenção do juiz são exigências fundamentais de um Estado de Direito Democrático como o nosso em que é aplicável a Convenção Europeia dos Direitos do Homem cujo artigo 6º nº1 prevê, designadamente, (…) que qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei (…). IV- Quer a escusa quer a recusa são meios processuais de garantia da imparcialidade e apresentam-se como uma cláusula geral a carecer de integração em concreto. V-O Supremo Tribunal de Justiça, na integração da cláusula geral supra aludida, tem proferido jurisprudência que denota um entendimento particularmente exigente precisamente por estar em causa uma constrição ao princípio do juiz natural e nessa medida apenas em situações que denotem uma suspeição alicerçada em motivo sério e grave a avaliar em função das concretas e particulares circunstâncias objetivas do caso, com base no senso e experiência comuns, sempre olhando ao juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o juiz .
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1-RELATÓRIO:
AA (doravante Requerente) Juíza de Direito a exercer funções no ... do ..., a coberto do estatuído no artigo 43° números 4 e 1 do Código de Processo Penal, vem requerer que lhe seja concedida escusa de intervenção nessa qualidade, nos autos de inquérito nº377/18.1...
Para tanto, invoca os fundamentos que a seguir se transcrevem:
1.A signatária é a Juíza Titular do ... desde ... de 2023;
2. Porém só tomou posse e iniciou funções no dia ... de ... de 2025, após término de comissão judicial de serviços, em ... no âmbito da cooperação judiciária entre ... e a ...;
3. Nestes autos investiga-se, desde 2018, a prática de factos qualificados pelo M.P. como crimes de participação económica em negócio, acesso ilegítimo com violação de confidencialidade, abuso de poder, violação do segredo por funcionário, falsidade informática e corrupção.
4. Os autos encontram-se em fase de inquérito e não foi deduzida acusação pública.
5. Em momento anterior ao ponto 2) foram ordenadas diligências probatórias que perduram e mais, recentemente, buscas domiciliárias e não domiciliárias divulgadas nos meios de comunicação social.
6. Há mais de 34 visados nos autos (cfr. Despacho judicial de 19.2025), ref. Citius 9277560).
7. Entre estes, verifica-se que é arguido nestes autos BB, na sequência de busca domiciliária ordenada por despacho judicial de 19.3.2015 que não foi seguido de interrogatório judicial.
8. A signatária foi colega de Faculdade do arguido durante o curso de Direito (.../...-2003) desde então cultivando entre si uma relação de amizade e, em contextos de grupo alargado por ocasião de celebrações festivas-como no ano novo ou a celebração do Dia Internacional … na ... com o arguido e o seu agregado familiar.
9. Não está em causa uma situação de impedimento legal mas,
10. Em abstracto, os factos acima aduzidos podem ser suscetíveis de prefigurar uma situação de escusa, nos termos estabelecidos pelo artigo 43º números 4 e 1 do C.P.P.
Complementando o seu pedido, a Requerente, junta cópia do despacho referido em 6.
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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Cumpre, assim, apreciar e decidir.
2-FUNDAMENTAÇÃO:
A matéria relevante para a decisão do presente incidente é a referida no relatório que antecede.
É consabido que o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, podendo antes, junto do tribunal competente, pedir que o escuse de intervir quando se verificarem as condições expressas nos n°s 1 e 2 do artigo 43° do CPPenal, tal como o enuncia o n° 4 do mesmo preceito.
Os fundamentos em que assenta a recusa podem também servir de base para o juiz pedir escusa, sempre que considerar que existem razões para gerar nos interessados o risco ou perigo de a sua intervenção poder ser vista como suspeita.
Com efeito, «no afastamento do juiz do processo por recurso à cláusula geral enunciada no n.°1 do art. 43.° do CPP deve atender-se a que esta revela que a preocupação central que anima o regime legal é prevenir o perigo de a intervenção do juiz ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade1».
Quer a escusa quer a recusa são meios processuais de garantia da imparcialidade e apresentam-se como uma cláusula geral a carecer de integração em concreto2.
A Constituição da República Portuguesa consagra no seu artigo 32º nº9 o princípio do juiz natural ao estabelecer que: Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior e que se consubstancia na regra de que só pode e deve intervir no processo o juiz que o deva de acordo com as regras de competência legalmente estabelecidas para o efeito3.
Tal princípio tem, contudo, de ceder em casos em que seja atingida a imparcialidade, distanciamento, isenção do juiz natural, sendo precisamente nesses casos que operam os incidentes de recusa e escusa.
De facto, a imparcialidade e a isenção do juiz são exigências fundamentais de um Estado de Direito Democrático como o nosso em que é aplicável a Convenção Europeia dos Direitos do Homem cujo artigo 6º nº1 prevê, designadamente, (…) que qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei (…).
A imparcialidade do juiz deve ser ponderada quer no plano objetivo quer no plano subjetivo e a escusa visa apurar se no caso concreto «o posicionamento circunstancial do juiz escusante, perante um ou alguns dos arguidos no processo, constitui "motivo sério e grave", adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade (...) Os actos geradores de desconfiança hão-de ter repercussão na generalidade da opinião pública de modo que esta sinta - fundadamente - que o juiz em causa, em função deles, está ou pode estar tomado de preconceito relativamente à decisão final (...)4».
No plano subjetivo a imparcialidade «atém-se a aspetos relacionados com a posição pessoal do juiz, o seu posicionamento interior sobre determinado traço da vida e se, por alguma forma, existe algum motivo / razão para se pensar que aquele pode, ou não, favorecer certo sujeito processual em detrimento de outro5».
No plano objetivo a mesma exprime-se vulgarmente no provérbio «À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta» traduzindo a importância da aparência6.
Não obstante, a apreciação tem de ser feita em concreto e para aferir se existe uma determinada posição do juiz relativamente ao caso ou a determinado sujeito ou interveniente processual e um risco real de não reconhecimento público da sua imparcialidade.
O Supremo Tribunal de Justiça, na integração da cláusula geral supra aludida, tem proferido jurisprudência que denota um entendimento particularmente exigente precisamente por estar em causa uma constrição ao princípio do juiz natural e nessa medida apenas em situações que denotem uma suspeição alicerçada em motivo sério e grave a avaliar em função das concretas e particulares circunstâncias objetivas do caso, com base no senso e experiência comuns, sempre olhando ao juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o juiz7.
Revertendo ao caso em apreço, o que a Requerente refere é a existência de uma relação de amizade que terá tido o seu início na universidade e que perdura sendo os convívios também extensíveis ao agregado familiar.
Tal relação de amizade é com pessoa que assumiu a qualidade de arguido em inquérito em que a Requerente intervém na qualidade de juiz de instrução, praticando os atos jurisdicionais que legalmente lhe incumbem quer na vertente de atos a praticar por juiz de instrução (artigo 268º do Código de Processo Penal) quer na vertente atos a ordenar ou autorizar por juiz de instrução (artigo 269º do Código de Processo Penal).
A Requerente refere que em abstrato os factos podem ser suscetíveis de prefigurar uma situação de escusa o que indicia o seu entendimento que na vertente subjetiva a sua intervenção poderia ocorrer sem colocar em crise a sua imparcialidade, isenção e distanciamento mas que aos olhos da comunidade, ou seja, na vertente objetiva a existência de tal amizade com determinado sujeito que é arguido em processo em que tem por poder/dever intervenção esta pode ser perspetivada como não isenta e imparcial.
Assim, o que releva é a ponderação se perante tais circunstâncias o comum cidadão pode suspeitar, duvidar da sua neutralidade, da sua isenção e imparcialidade, da sua contaminação pela existência de tal amizade.
Ora, em face das circunstâncias concreta afigura-se inegável a existência dessa perceção comunitária caso a Requerente tenha intervenção no inquérito em causa.
Com efeito, a mesma assume e tem uma relação longa de amizade com um dos arguidos constituídos em tais autos de inquérito privando, ainda, com o agregado familiar daquele e tal é idóneo a gerar uma perceção comunitária de falta de imparcialidade, de ausência de isenção, de suspeita e desconfiança relativamente aos autos que aí praticar no exercício das suas funções.
Tal perceção mesmo que não passe de uma perceção não pode naturalmente existir por colocar em causa a imagem da Requerente e através dela a imagem da Justiça atenta a função que exerce.
Assim, o requerimento de escusa tem de proceder.
3- DECISÓRIO:
Nestes termos e em face do exposto acordam os Juízes Desembargadores desta 3ª Secção Nestes termos acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder à Mmª Juiz de Direito Drª AA, atualmente colocada no …, escusa de intervir na qualidade de Juiz de Instrução nos autos de inquérito n.º 337/18.1TELSB
Não são devidas custas.
Notifique.
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Nos termos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal exara-se que o presente Acórdão foi pela 1ª signatária elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários e sendo as suas assinaturas bem como a data certificada supra.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 27 de junho de 2025
Ana Rita Loja
Mário Pedro M. A. Seixas Meireles
João Bártolo
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1. Neste sentido Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2a Edição Revista, Almedina, p.130.Vide também com relevo nesta matéria entre outros, os Acórdãos do STJ, 02/05/2024, proferido no Processo nº 2052/14.7TDPRTF.P1-A.S1 (...) preocupação com a salvaguarda da imagem do Juiz aos olhos da comunidade, assente numa ideia de equidistância em relação aos intervenientes processuais (...) Não está em causa a capacidade e certeza, de (...) actuar dentro da legalidade, objetividade e independência, mas, antes, a defesa de todo o sistema de justiça da suspeita de a não ter conservado e não dar azo a qualquer dúvida, reforçando, por esta via, a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados — e de 08/11/2023, proferido no Processo n° 77/19.5JBLSB.L1-A.S1 (...) Impõe-se, pois, salvaguardar o sistema de justiça e a forma isenta e imparcial como é administrada a justiça num Estado de direito e democrático, para que o cidadão médio continue a ter, disponíveis em www.dgsi.pt.
2. Neste sentido Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2a Edição Revista, Almedina, p.131.
3. Neste sentido, MIRANDA, Jorge, MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada Volume I Preâmbulo, Princípios Fundamentais, Direitos e Deveres Fundamentais Artigos 1º a 79º, 2017, 2ª Edição Revista, Universidade Católica Editora, p. 536 - O princípio do juiz natural, garantido pelo nº 9 do artigo 32º,tem por finalidade evitar a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo. (…) As normas têm de conter regras que permitam determinar o tribunal que há de intervir em cada caso em atenção a critérios objectivos, não sendo admissível que a lei autorize a escolha discricionária do tribunal ou tribunais que hão de intervir no processo.
4. Acórdão do STJ, de 06/10/2005, proferido no Processo nº 3195/05-5, disponível em www.dgsi.pt.
5. Acórdão do STJ de 23-10-2024 proferido no Processo 4500/20.8T9LSB.L1-A.S1
6. Neste sentido, entre outros, o Acórdão do STJ, de 21/02/2024, proferido no Processo nº 6/16.8ZRCBR.C1- A.S1 - O critério objectivo, que se exprime na célebre formulação do sistema inglês justice must not only be enfatiza a importância das aparências», como tem sublinhado a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a propósito da densificação do conceito de «tribunal imparcial» constante do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. As ligações de natureza pessoal aos sujeitos processuais num processo submetidas à decisão do juiz são, em princípio, suscetíveis de preencher este critério, desde que, do ponto de vista do cidadão comum, possam ser vistas como podendo gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade, disponível em www.dgsi.pt
7. Neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ, de 26/10/2022, proferido no Processo nº 193/20.0GBABF.E1- A.S1, de 19/04/2023, proferido no Processo nº 37/23.1JAFAR-A.E1-A.S1, de 27/04/2023, proferido no Processo nº 41/20.1JAFAR.E1-A.S, todos disponíveis em www.dgsi.pt.