OBJECTO DO RECURSO
PAGAMENTO
ÓNUS DA PROVA
Sumário


1 - Não é nula a sentença que não se pronunciou sobre a ineptidão da causa de pedir se existe despacho prévio, aquando da marcação da audiência de discussão e julgamento, que apreciou essa exceção
2 - Não pode presumir-se que o recorrente pretende também colocar em causa esse despacho se este nunca é referido nas alegações de recurso e o recorrente refere expressamente apenas discordar da sentença proferida, tanto mais que arguiu a sua nulidade por alegada omissão de pronúncia quanto ao conhecimento da exceção apreciada naquele despacho.
3 - Alegando a autora que prestou serviços de abate de animais à ré, tendo emitido as faturas correspondentes, é absolutamente redutor considerar tais factos como provados se, pela análise da prova produzida – documental e testemunhal --, e tal como havia alegado o réu, o valor que está a ser reclamado corresponde não ao valor da soma das faturas emitidas pelos serviços prestados pela autora ao réu, mas ao valor dessa soma deduzido do valor das notas de crédito emitidas pela própria autora e que correspondem às quantias que eram devidas ao réu pela venda de couro dos animais que este vendia à autora.
4 – O réu cumpre o ónus de prova do pagamento quando toda a prova produzida revela que este entregou à autora sete cheques que se destinavam ao pagamento dos serviços que lhe foram prestados pela autora enquanto comerciante individual, tendo a totalidade da quantia aposta nos cheques sido recebida pela autora, incumbindo a esta a prova de que, já depois de entregues tais cheques, e depois de pago o primeiro à autora, o réu destinou a quantia aposta em seis desses cheques ao pagamento da dívida que a empresa da qual era legal representante tinha pelos serviços que a autora a esta havia prestado.

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório (elaborado tendo por base o da sentença da 1.ª instância):

EMP01..., EM. veio requerer procedimento de injunção contra AA pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de €5.639,64, acrescida de juros de mora vencidos no montante de €5.983,26 e de €54,35 a título de outras quantias.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, estarem em dívida as faturas emitidas de 28 de fevereiro de 2009 até 19/02/2013 por serviços que prestou ao réu.
O réu apresentou oposição, excecionando a ineptidão da petição inicial e impugnando a demais matéria alegada, alegando nada dever ao autor.
Peticionou, ainda, a condenação da autora como litigante de má-fé.
Por requerimento de 05/09/2023, veio a autora indicar a que faturas se referia e explicar que a taxa de juro aplicada ao cálculo que efetuou foi a comercial, bem como que a quantia de €54,35 peticionada era resultante do envio de missiva com aviso de receção ao réu.
A autora foi convidada a completar/densificar a sua alegação, “sob pena de, nada dizendo, se considerar verificada a exceção dilatória de ineptidão do requerimento de injunção, por falta de indicação da causa de pedir, o que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa, absolvendo a Requerida da instância”, citando-se para o efeito o disposto nos arts.º 278.º, n.º 1, alínea b), 576.º, n.º 1 e 2 e 577.º, alínea b), todos do Código de Processo Civil (doravante C. P. Civil) - despacho de 13/09/2023.
A autora respondeu reiterando ter prestado serviços de abate de animais para o réu, como pessoa singular, não tendo sido pago o respetivo preço. Juntou para o efeito um documento denominado de “extrato de clientes” que, estando ilegível, veio a ser junto, de forma legível, em 31/10/2023.
O réu pronunciou-se nos termos do requerimento de 10/10/2023, tendo, com a junção daquele documento, alegado ter pago todos os fornecimentos realizados.
Foi proferido despacho datado de 24/11/2023 que julgou improcedente a exceção dilatória decorrente da ineptidão da petição inicial e consequente nulidade de todo o processo (alínea a) do n.º 2 do art.º 186.º, alínea a) do n.º 1 do art.º 278.º, n.º2 do art.º 576º e alínea b) do art.º 577.º, todos do C. P. Civil).
Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que decidiu julgar a ação parcialmente procedente e, assim, condenar o réu a pagar à autora:
1. A título de capital em dívida, o montante de €5.391,72 (cinco mil, trezentos e noventa e um euros e setenta e dois cêntimos);
2A título de indemnização prevista no artigo 7.º do DL n.º 62/2013, de 10 de maio, uma vez que se venceram juros de mora, a título de indemnização pelos custos suportados com a cobrança da dívida, o montante, em singelo, de €40,00 (quarenta euros);
3. O montante vencido e vincendo, a título de juros de mora legais, à taxa supletiva, a comercial, calculado com base de incidência no capital de cada uma das faturas vencidas, conforme consta do extrato de faturas junto aos autos a 5.9.2023, quanto às faturas vencidas desde 28.2.2009 a 19.2.2013, com a seguinte ressalva:
a. Condena-se apenas o R. no pagamento dos juros de mora legais, à taxa supletiva, a comercial, vencidos e vincendos, desde 30.5.2018 e até efetivo e integral pagamento (verificando-se a exceção de prescrição quanto aos demais juros anteriormente vencidos ao referido marco temporal).
E, no mais, decide o Tribunal:
4. Absolver o R. de tudo o demais peticionado pela A.
5. Absolver a A. do pedido de condenação em litigância de má-fé contra si formulado pelo R.”.
Inconformado veio o réu apresentar recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1ª. - De tudo o supra exposto, podemos pois concluir que no caso dos autos, consideram-se verificadas a exceções dilatórios inominadas de falta de condição da ação [inexistência de relação entre a situação de facto deduzida em juízo e o regime legal invocado, emergente do Dec.-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio] e de falta pressuposto processual [inexistência de fatura(s) inerente à «transação comercial», documento(s) essencial (ais) de que a lei faz depender a instauração e prosseguimento da ação]
2ª- Bem como a exceção dilatória de ineptidão do requerimento de injunção, por falta de causa de pedir, que além do mais, obstavam a que o Tribunal a quo conhecesse do mérito da causa e, por serem insuscetíveis de sanação, dão lugar à absolvição do Réu. [art.ºs 278.º, n.º 1, alínea e) e n.º 3, 576.º, n.ºs 1 e 2, 279.º, n.º1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º e 578.º, do CPC].
3ª- Sem discriminação das concreta(s) fatura(s), do seu número, do seu descritivo com a completa identificação dos bens ou serviços prestados, data da sua realização, quantidades, preços ou valores unitários, valores globais, que serviram de base e que são pressupostos e condição de admissão deste procedimento especial, além de violador da disciplina do Dec.-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, nos termos referidos, seria abrir porta à fraude e evasão fiscal [art.ºs 29.º, n.º 1, alínea b), 35.º-A, 36.º, n.º 1, e 103.º do Regime Geral das Infrações Tributárias ], o que não se concebe.
4ª- Face a esta omissão [falta de indicação de causa de pedir], nem sequer é possível a invocação da salvaguarda prevista no n.º 3 do artigo 186.º do CPC, porquanto, apesar da Oposição, seria absurdo concluir que o Réu interpretou corretamente uma petição inicial na qual nem sequer foram invocados os actos jurídicos concretos que integram a respetiva causa de pedir.
5ª- Neste caso, existe, salvo o devido respeito por distinta opinião, uma ausência de conteúdo, um “vazio”, que que não foi preenchido pelo Autor/Recorrido, como era seu ónus, que não é passível de sanação.
6ª-À sanação ou suprimento do vício de ineptidão da petição inicial, por falta de indicação da causa de pedir opõem-se, desde logo, os princípios estruturantes do processo civil do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes.
7ª-O vício de ineptidão que afeta a petição inicial, por falta de indicação de causa de pedir também não é suscetível de suprimento, através de convite ao aperfeiçoamento, nos termos do disposto no artigo 590.º, n.ºs 2, alíneas a) e b), 3 e 4, do CPC, na medida em que não se pode corrigir ou aperfeiçoar o que não existe.
8ª- O convite ao aperfeiçoamento de articulados previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 3 e 4, do CPC, não compreende o suprimento da falta de indicação do pedido ou de omissões de alegação de um núcleo de factos essências e estruturantes da causa de pedir.
9ª-O Tribunal “a quo” ao não conhecer das excepções supra evidenciadas, nomeadamente, da ineptidão do requerimento injuntivo, incorreu em nulidade da sentença, nos termos do disposto no Artigo 615º nº 1 alínea d) do C.P.C. e que expressamente se invoca.
Sem prescindir,
10ª- Entende também o Réu/Apelante, que no caso em apreço que o Tribunal teve apenas perceção parcial da realidade, e impunha-se ao Tribunal conhecer toda a realidade para depois sim decidir em consciência na posse de todos os elementos de prova.
11ª- O Tribunal não atendeu nem valorou devidamente todos os elementos de prova constantes dos autos, na elaboração da douta decisão proferida, pelo que não pode o Réu/Apelante conformar-se com a mesma, nomeadamente, da prova documental inserta nos autos, que impunha que fosse dada resposta
12ª- Na verdade, o Tribunal “a quo”, pura e simplesmente, ignorou a matéria de facto essencial e instrumental, devendo dar como não provada a matéria constante dos números 2, 3 e 4 dos factos provados
13ª. Esta matéria tinha, salvo o devido respeito, que ter resposta negativa, por existir nos autos, prova nesse sentido, nomeadamente, o depoimento de parte do Réu/ Recorrente, e do depoimento da testemunha BB, e dos documentos insertos nos autos, nomeadamente, o alegado extrato de clientes inserto nos autos com as referência citius 46647541 de 28/09/2023 e 51263964 de 10-11-2023, assim como os 6 cheques juntos aos autos pelo Recorrente, no inicio da audiência de discussão e julgamento, em 4 de Janeiro de 2024, também com a referência citius 4304025 datado de 22/1/2024.
14ª- Ou se assim senão entender-se, acrescentar-se ao factos provados, que o Réu/Recorrente, procedeu ao pagamento da quantia em divida, através do pagamento de pelo menos, 6.000,00 € (seis mil euros), através da entrega de seis cheques, pré-datados, com datas de 6/02/2018, 25/02/2018, 25/03/2018, 25/04/2018, 25/05/2018, 25/02/2018 e 25/07/2018, os quais foram todos creditados na conta aberta na Banco 1..., pertencente a Autora/ Recorrida;
15ª- Tal matéria de facto que se entende ser essencial a boa decisão da causa, e devia , como deve, ser atendida pelo Tribunal, e que impõe uma resposta diversa, não surge porém, na matéria de facto dada como provada, quer na matéria de facto dada como não provada pelo Tribunal “a quo”, e que portanto deve ser aditada aos factos provados.
16ª- A resposta positiva quanto ao pagamento pelo Recorrente da quantia de 6000,00 € (seis mil euros), respeitante a divida a título pessoal e enquanto pessoa singular, decorre da prova produzidas através das declarações de parte do próprio Réu/Apelante, que se encontra gravado no sistema Habilus Media Studio, sessão de 4 de janeiro de 2024, das 12:02 horas às 12:11 horas, com especial relevo das 12:05 a 12.10.
[…]
23ª- Decidindo, como decidiu a ação, a douta sentença recorrida fez errada apreciação da prova e violou, designadamente, o disposto no regime legal emergente do Decreto-lei Nº 62/2013 de 10 de maio - Artigos 2º nº 4, 3º, alíneas b), c) d) 5º nºs 1 alíneas a) e b) e 4, conjugados com o Art. 10º nº 2 do Decreto-Lei 269/98 de 1 de Setembro, Artigo 10º nº 2 alínea d) e também designadamente, o disposto nos artigos 7º, 195º Nº 1 in fine, 130º, 260º, 278.º, n.º 1, alínea e) e n.º 3, 576.º, n.ºs 1 e 2, 279.º, n.º 1, 577.º e 578.º, 581º, 607º Nº 4, 608º, 615º alínea d), 662º nº 2 e 3, todos do Código de Processo Civil, assim como do disposto nos Arts. 29º, 36º e 40º do Código do IVA, e o artigo 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa”.

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Não foi apresentada resposta às alegações de recurso.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo, tendo o Mm.º Juiz a quo entendido que não se verificava a arguida nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos que constam do despacho de 05/05/2025.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Questões a decidir:

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do C. P. Civil -, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:

1 - da nulidade da sentença.
2 - da impugnação da matéria de facto suscitada pelo réu
3 - se, alterada ou não a decisão sobre a matéria de facto, deve ser alterada a decisão de direito:
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III - Fundamentação de facto:

Os factos provados na decisão proferida foram os seguintes:
“1.A Autora presta serviços a vários clientes, entre eles o Réu, e, na sua normal atividade, prestou serviços de abate de gado para o Réu, pois existia uma relação comercial entre as partes.
2. Os serviços de abate de gado foram prestados ao R., as faturas referentes a tais serviços foram emitidas, de 28 de fevereiro de 2009 até 19/02/2013, e o respetivo preço não foi pago na respetiva data de vencimento de cada fatura.
3. O montante reclamado, respeitante a tal período - 28.2.2009 a 19.2.2013 – no valor global de €5.391,72 - é uma dívida pessoal do R., pessoa singular.
4. Com o seu comportamento, o R. causou e causa prejuízo financeiro à Autora.
Mais se provou que:
5. O R., a título individual ou particular, estabeleceu relações comerciais com a Requerente até ao ano de 2013.
6. O R., para além de cliente, era também fornecedor da Requerente, pois vendia-lhe couros e peles, pelo que se estabeleceu uma conta corrente
entre ambos, tendo sido emitidas e descontadas as competentes notas de crédito.
7. O R. cessou a sua atividade, a título individual, no ano de 2013, ano em que constituiu sociedade unipessoal por quotas para exploração de negócio de comércio a retalho de carne – vide certidão permanente do NIPC: ...32”.
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A matéria de facto que foi considerada não provada na sentença proferida não tem relevo para esta apelação.
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IV - Do objeto do recurso:

1. Da nulidade da sentença:
1.1. Nas suas alegações de recurso invoca o recorrente por duas vezes a violação do disposto no art.º 615.º do C. P. Civil.
Alega que o Tribunal violou a alínea c) do n.º1 daquela norma porque não foi apreciada a exceção que invocou de “ineptidão do requerimento injuntivo por falta de elementos integradores da causa de pedir”.
Alega ainda que o Tribunal violou a alínea d) da mesma norma porque não justificou os argumentos e circunstâncias em que se baseou para omitir na decisão proferida factos que entende serem essenciais e que, segundo alega, deveriam ter resultado provados e que se reportam ao alegado pagamento da quantia de € 6.000 que, assim, teria extinguido o crédito da autora.
O Mm.º Juiz apenas se pronunciou sobre a primeira, mas não vemos necessidade de remeter os autos ao Tribunal de 1.ª Instância para que se pronuncie sobre a segunda – vide art.º 617.º, n.º4, do C. P. Civil.
As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (vide, neste exato sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04/10/2018, proc. 1716/17.8T8VNF.G1 in www.dgsi.pt).
Apreciemos.

1.2. No que se refere à omissão de pronúncia, o vício em causa prende-se com os limites da atividade de conhecimento do tribunal, estabelecidos no art.º 608.º, n.º 2, do C. P. Civil: “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
Na contestação que apresentou alegou o réu:
- o processo de injunção é inadequado ao caso concreto, explicando que o DL 269/98, de 01/09, sempre obrigaria à indicação da pretensão e fundamentos, não tendo a autora exposto devidamente a sua causa de pedir e não tendo formulado um verdeiro pedido;
- “de forma sumária, não significa que não tenha que expor minimamente os factos, (…) o que não fez de todo”;
- a autora tinha de alegar os factos que integravam a sua pretensão, ou seja, os factos jurídicos que consubstanciam a causa de pedir e que justificam o pedido;
- “é do senso comum que todas as faturas têm um número, um descritivo e uma data;
- na ausência destes factos essenciais não se pode exercer o direito de contraditório;
- na situação dos autos faltariam “elementos integradores da causa de pedir, e na falta desses elementos essenciais, deve ter-se como inepto” o requerimento injuntivo.
Concluía pedindo que fosse “considerado inadequado o procedimento de injunção” e, em consequência, fosse o réu absolvido da instância.
Foi esta a questão que o réu colocou e sobre ela nenhuma apreciação foi efetuada na sentença.
A totalidade desta alegação resume-se à invocação da ineptidão do requerimento injuntivo, por falta de alegação de causa de pedir, pelas razões que o réu invocava de não estarem sequer alegadas as faturas dos serviços prestados, por referência ao seu número, texto ou data.
Tal não significa, porém, que tenha sido cometida qualquer nulidade, como invoca o recorrente.
É que a questão foi apreciada – a falta de alegação de factos integradores da causa de pedir -, como deveria ser, antes de se determinar a realização da audiência de discussão e julgamento, estando em causa exceção dilatória que obstava ao conhecimento do mérito da ação, e, assim, no despacho que foi proferido em 24/11/2023 e do qual foi dado conhecimento às partes por notificação elaborada com essa mesma data.
Ou seja, ao proferir a sentença, o Tribunal não tinha de se pronunciar sobre a exceção dilatória invocada pelo réu na sua contestação, estando impedido de efetuar nova pronúncia sobre a mesma, atenta a decisão que já havia proferido em 24/11/2023 e estando, por isso, esgotado o seu poder jurisdicional sobre a questão (ainda que seja claro que a falta de causa de pedir não pode ser suprida, não fazendo, por isso, sentido cominar com a procedência da exceção invocada a ausência de resposta ao convite para que o autor “complete/densifique” a sua alegação inicial, como consta do despacho de 13/09/2023) .
 Não existe, assim, qualquer nulidade na sentença proferida por omissão de pronúncia.
Note-se que o recorrente, perante a alegação da contestação a que supra nos referimos, logra agora encontrar, para efeito de recurso da sentença, três diferentes alíneas de exceções dilatórias, que identifica como:
“A) Da falta ou omissão da causa de pedir, no requerimento injuntivo e consequente ineptidão do requerimento inicial; e
B) Da verificação de exceções dilatórias inominadas de falta da condição da ação;
C) E da falta de pressuposto processual (inexistência de faturas inerentes à transação comercial) documentos essenciais de que a lei faz depender a instauração e prosseguimento da ação”, apesar de, como conclui, todas estarem “intrinsecamente interligadas entre si” (fls. 10 das alegações).
O Tribunal de 1.ª Instância conheceu da única exceção dilatória que foi invocada em sede de contestação – a ineptidão do requerimento injuntivo por falta de factos essenciais, nomeadamente a indicação das faturas com a respetiva descrição e que o réu apelidou de “inadequação do procedimento” – e julgou-a improcedente.
Nenhuma outra tendo sido oportunamente invocada, nenhuma outra exceção tinha de ser apreciada e, assim, nenhuma omissão de pronúncia foi cometida na sentença proferida.
Note-se que o Tribunal da Relação não conhece de questões novas, às quais, agora, de forma clara, pretende a recorrente obter resposta (vide as conclusões que se reportam ao conceito de transação comercial ou às condições de admissibilidade do procedimento de injunção que, alega, por não serem observadas, abrem a porta à fraude ou evasão fiscal).
Sempre se dirá que o recorrente poderia, ao recorrer da sentença, colocar também em causa o despacho de 24/11/2023, pois que aquele era apenas recorrível neste momento, nos termos do art.º 644.º, n.º 3, do C. P. Civil.
Porém, tal exigiria que o réu recorrente alegasse, ainda que de forma ténue, que pretendia recorrer não só da sentença proferida, como expressamente declara (afirmando a sua discordância quanto àquela), mas também do despacho de 24/11/2023.
Ora, tal alegação não existe. A existência desse despacho não só é totalmente omitida pelo réu recorrente, como este ainda argui a nulidade da sentença precisamente por não decidir a questão que naquele despacho estava já decidida.
Temos assim que concluir que o despacho que decidiu a exceção dilatória de ineptidão do requerimento injuntivo, proferido em 24/11/2023, não foi validamente impugnado nesta apelação e, assim, não há que apreciar as questões que foram invocadas como erros de julgamento da sentença proferida, no que a essa exceção diz respeito e que, quando muito, se reportariam a erros daquele despacho.

1.3. Quanto à segunda nulidade invocada, está em causa a ausência de qualquer fundamentação quanto ao alegado pagamento de € 6.000,00 (que, assim, seria extintivo do crédito invocado pela autora), e que, alega o recorrente, não está referido nos factos provados ou não provados.
O que está em causa na alínea b), do n.º1 do art.º 615.º do C. P. Civil é, quanto à matéria de facto e de direito, a “absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e muito menos o putativo desacerto da decisão”, como referem  António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3ª edição, pág. 793.
O réu recorrente não tem razão.
Na sua fundamentação de facto, o Mm.º Juiz a quo explica a razão pela qual entendeu não ter ficado provado que os cheques entregues pelo réu (os tais de € 6.000) se destinavam a pagar as faturas pelos serviços que lhe prestou enquanto comerciante em nome individual.
O réu pode entender que existiu erro de julgamento no que se refere à apreciação desta questão. É esse o fundamento da sua impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Não pode é dizer que a sentença é nula por falta de fundamentação, pois que essa fundamentação existe e não é sequer insuficiente.
Concluímos, pois, pela inexistência de qualquer nulidade da sentença por falta de fundamentação.

2. Da impugnação da matéria de facto:

2.1. Em sede de recurso, o apelante impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.
Dispõe o art.º 640.º do C. P. Civil, que:
1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo, de poder proceder à transcrição do excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636º.”.
A jurisprudência tem entendido que desta norma resulta um conjunto de ónus para o recorrente que visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/10/2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1 in www.dgsi.pt, das normas aplicáveis resulta que “recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa-fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão”.
Estes ónus exigem que a impugnação da matéria de facto seja precisa, visando o regime vigente dois objetivos: “sanar dúvidas que o anterior preceito ainda suscitava e reforçar o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expressa a decisão alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova” (cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, pág. 198).
Recai assim sobre o recorrente o ónus de, sob pena de rejeição do recurso, determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretendem questionar (delimitar o objeto do recurso), motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação (fundamentação) que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre cada um dos factos que impugnam e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
No âmbito da impugnação da matéria de facto não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento da alegação, ao contrário do que se verifica quanto às alegações de direito (vide, por todos, Abrantes Geraldes, no livro já citado, pág. 199).
Veja-se, por todos, a jurisprudência citada no Acórdão recente do Supremo Tribunal de Justiça de 12/10/2023, proc. 1/20.2T8AVR.P1.S1, e em particular o Acórdão do mesmo Tribunal de 10/12/2020 (proc. n.º 274/17.8T8AVR.P1.S1), nele citado, que estabelece que “na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no art. 640.º do CPC, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal”.
Nas suas alegações, e sob a alínea e), invoca o réu a “falta da devida fundamentação da matéria de facto” – fls. 9 das alegações, quando refere qual é o entendimento que desenvolve na sua apelação e que consta também da epígrafe do ponto III das suas alegações.
Alega que o Tribunal não valorou devidamente todos os elementos de prova carreados para os autos, não se conformando o apelante com a decisão, existindo prova documental que impunha que fosse dada resposta positiva à matéria que foi por si articulada.
Discorre depois sobre a forma como foi valorado o depoimento de BB e o depoimento de parte do réu, que descreve de forma mínima, indicando os momentos da gravação, no que se reporta à entrega de 6/7 cheques de € 1.000, que entende terem sido destinados ao pagamento da sua dívida pessoal e não da sociedade por aquele posteriormente constituída.
Explica porque razão seria, em seu entender, mais lógico considerar que tais cheques foram entregues para pagar a dívida que aqui se discute e não a da sociedade unipessoal constituída pelo réu.
Alega que não podiam, assim, ter sido dados como provados os factos 2 e 3 da matéria de facto provada e que deveria dar-se como provado que, com a entrega dos cheques, ficou saldada a dívida pessoal do réu e não a da sociedade que este constituiu.
Posteriormente, refere estar também a impugnar o facto 4, sem que nada diga, em concreto, sobre este facto.
O que o réu considera é que deve considerar-se provado que, com a entrega dos cheques que refere nesta apelação, foi paga a quantia que estava ainda em dívida pelos serviços que a autora lhe havia prestado e, nessa medida, coloca em causa o que foi dado como provado nos factos 2 e 3.
Quanto à matéria que se fez constar do ponto 4 da decisão de 1.ª Instância, o mesmo não traduz qualquer realidade fática, sendo a expressão “prejuízo financeiro” um conceito desprovido de qualquer interesse nestes autos, pois que estavam apenas peticionadas a indemnização moratória e por despesas realizadas que nada têm a ver com qualquer prejuízo financeiro sofrido pela autora.
Não há, assim, que apreciar a impugnação de matéria que não só não se refere a qualquer facto, como não tem qualquer relevo para a decisão, expurgando-se a mesma da matéria de facto provada.
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1.3. Nos termos do art.º 662.º, n.º 1, do C. P. Civil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/10/2023, proc. 2199/18.3T8BRG.G1, in www.dgsi.pt, “a reapreciação da prova pela 2ª Instância, não visa obter uma nova e diferente convicção, mas antes apreciar se a convicção do Tribunal a quo tem suporte razoável, à luz das regras da experiência comum e da lógica, atendendo aos elementos de prova que constam dos autos, aferindo-se, assim, se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto.
De todo o modo, necessário se torna que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente, impondo, pois, decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, conforme a parte final da al. a) do nº 1 do artº 640º, do Código de Processo Civil.
Competirá assim, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, atendendo ao conteúdo das alegações do recorrente, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”.
Vejamos então a impugnação dos factos 2 e 3 da decisão proferida
Começa por dizer-se que existe uma enorme imprecisão na descrição dos factos provados que tem origem na forma como a autora fez a sua alegação inicial.
Quer o réu, quer a prova testemunhal arrolada (em particular as testemunhas CC e DD) descreveram a relação comercial existente entre as partes da mesma forma: a autora prestava serviços ao réu de abate de animais, com transporte da carcaça para o talho que aquele explorava e este, por sua vez, vendia à autora o couro dos animais, variando o preço que lhe era devido pela autora em função da sua cotação no mercado.
Pelos serviços prestados a autora emitia faturas e pela compra de couro que fazia ao réu emitia uma nota de crédito, quando o couro era negociado e era fixado o respetivo preço.
É esta a natureza da relação comercial existente, a que o réu se reportava na sua oposição, e que foi ignorada na matéria de facto provada.
Resultou também da referida prova documental e testemunhal produzida que o réu começou por ser comerciante em nome individual, tendo depois constituído uma sociedade unipessoal da qual era o legal representante: EMP02... Unipessoal Ld.ª.
Os “extratos de cliente” juntos pela autora revelam isso mesmo, ainda que o réu não lograsse perceber sequer o que lhe estava a ser perguntado quando o questionaram sobre a existência de negócios em simultâneo, ora como comerciante em nome individual, ora através de uma sociedade unipessoal.
Desses extratos resulta que, como comerciante em nome individual, os negócios da autora com o réu se iniciaram em 28/11/2001 existindo após fevereiro de 2013 apenas duas faturas, sendo uma de novembro de 2013 e outra de janeiro de 2018, nos valores residuais de € 155,55 e de € 32,84 (extrato total junto em 02/11/2023) e que os que foram mantidos entre a autora e a sociedade unipessoal que aquele constituiu se iniciaram em 05/03/2013 e terminaram em 08/01/2018, existindo apenas uma fatura neste ano (extrato junto 04/01/2024).
No requerimento injuntivo, a autora reclamava o pagamento da quantia de €5.639,64 alegando que estavam em causa faturas desde fevereiro de 2009 até 19/02/2013.
Posteriormente, após a apresentação da oposição, no requerimento de 05/09/2023 veio dizer que, por lapso, não juntou as faturas em questão, juntando um documento em que descreve, alegadamente, as faturas que estariam em causa e que denomina de “extrato de faturas” (e as faturas nunca foram efetivamente juntas).
Nesse documento estão elencadas faturas e notas de crédito, existindo três faturas que se referem a data posterior a 19/02/2013, com os valores de € 59,53, € 155,55 e € 32,84.
Estas três faturas foram desconsideradas na sentença proferida, e bem, com a expressa menção que se referem a período posterior ao que foi indicado no requerimento injuntivo.
Por isso, estando reclamada a quantia de € 5.639,64, foi apenas considerada a quantia de € 5.391,72.
Para além de audição de todos os depoimentos, procedeu-se neste Tribunal da Relação à soma de todas as faturas que estão identificadas pela autora e que se reportam ao período indicado no requerimento injuntivo (“extrato de faturas” que foi junto).
O seu valor ascende a €14.832,64 (e não ao valor reclamado).
Somou-se também o valor de todas as notas de crédito que estão referidas no mesmo documento: € 9.440,92.
Assim, relativamente a esse período, pelo abate de animais (serviço prestado pela autora), deduzido do valor dos couros vendidos pelo réu (a que se reportam as notas de crédito, como referiram as testemunhas da autora e o réu), o valor que a autora alega estar de facto em dívida é de € 5.391,72.
Ou seja, contrariamente ao alegado e foi considerado provado, o valor reclamado não se refere apenas aos serviços prestados pela autora, mas à diferença entre o preço que lhe era devido pelos serviços prestados e aquele que era devido ao réu pelo couro que este vendia à autora.
De resto, no facto provado 2 faz-se referência à data de vencimento das faturas, sendo que o facto necessário para que se conclua existir uma data de vencimento –  o acordo das partes quanto a prazo de pagamento – não foi sequer alegado pela autora, não estando sequer indicada no requerimento injuntivo a data em que a autora considera estar vencida cada uma das faturas que invoca (e os documentos destinam-se à prova dos factos alegados, não substituindo a necessidade da sua alegação)
Não podia, por isso, dar-se como provado que as faturas não foram pagas na data de vencimento se se desconhece o acordo das partes quanto ao prazo de pagamento e não está sequer alegada em que data se vencia cada uma das faturas emitidas no período em causa.
Mas o que se retira também da análise destes documentos é que a relação comercial mantida entre as partes, no período em questão, não se resumiu aos serviços que estão referidos nas faturas identificadas no “extrato de fatura”.
Muitas outras constam do documento denominado “extrato de cliente”, vislumbrando-se também a existência de recibos emitidos pela autora (e o respetivo valor indicado como crédito), sendo percetível pelos valores em causa que cada pagamento (e respetivo recibo) se reportava a uma fatura em concreto (ou a duas), sendo fácil de perceber que fatura estava efetivamente a ser paga (os valores em causa são muito específicos, não havendo em cada período faturas com o mesmo valor e sendo, assim, fácil indexar o pagamento efetuado a cada fatura).
Não obstante todas as questões que o réu recorrente procurou levantar por escrito e em audiência de julgamento relativas à relação comercial mantida entre as partes, o depoimento de parte do réu foi muito claro e dele se retira que este não discute que os serviços foram prestados, nos exatos termos referidos, e que em finais de 2017, princípios de 2018, lhe foi dito que estava uma quantia de cerca de seis mil e muitos euros em dívida, da qual era ele o responsável, tendo então dito para falarem com o seu “guarda livros” e que a pagaria nas condições que este definisse.
Referiu que foi neste contexto que emitiu sete cheques da sua conta pessoal, cada um no valor de € 1.000,00, destinado ao pagamento daquela quantia de seis mil e muitos euros e que entregou a EE para que fossem entregues à autora.
Não surpreende que, então, se “arredondasse” o valor do pagamento, considerando que a dívida seria então de  € 6.639,54 e grande parte dela se reportava a data anterior a 2013 e, assim, há muito existente.
Assim, a única verdadeira questão de facto que se discutiu nos autos foi a de saber se, para além do pagamento de € 1.000,00 que consta já do “extrato de cliente” junto pela autora (com recibo emitido em 28/02/2018), o réu procedeu ao pagamento da quantia de mais € 6.000,00, o que extinguiria a dívida (e que corresponde ao que alegou na sua oposição de nada dever à autora).
O Mm.º Juiz que presidiu à realização da audiência de julgamento entendeu que tal facto não poderia considerar-se provado, pois que, pelas razões que então indicou, tais seis cheques de € 1.000 euros destinaram-se a pagar a dívida que a sociedade unipessoal gerida pelo réu mantinha para com a autora, de valor significativamente superior (de € 15.790,65, tal como consta do extrato de clientes junto em 04/01/2024, antes da imputação daqueles € 6.000,00).
Como resulta da motivação da decisão e encontra conforto na prova testemunhal e documental produzida, dúvidas não há que o réu, em determinado momento de 2017 ou 2018, mas em data anterior a 28/02/2018, entregou ao seu “guarda livros” EE sete cheques, todos de € 1.000,00, tendo o primeiro sido considerado para pagamento da quantia que então era devida pelo réu à autora, considerando os serviços que esta prestara de abate de animais, depois de deduzidas as quantias que eram devidas pela autora ao réu pela compra do respetivo couro.
Também é inequívoco que a autora, depois de considerar a quantia aposta no primeiro desses sete cheques para pagamento da dívida do réu, considerou as restantes seis quantias de € 1.000,00 para pagamento da quantia que a sociedade EMP02... Unipessoal Ld.ª lhe devia pelos serviços prestados de abate de animais.
É isto que se retira do documento junto pela própria autora e denominado “extrato de clientes” da referida sociedade junto na audiência de 04/01/2024.
Esta imputação, de cada uma das quantias apostas em cada um dos sete cheques, foi também confirmada pelas testemunhas DD e FF, arroladas pelo autor, sendo que a primeira não sabia indicar a razão da diferente imputação realizada entre a primeira quantia de € 1.000,00 e as restantes seis.
O réu afirmou ter emitido os cheques para pagamento daquela que era a quantia que devia a título pessoal e não para pagamento da dívida da sociedade.
EE referiu o mesmo, embora o seu depoimento tivesse sido muito vago, invocando problemas de memória, estando a ser inquirido a partir do ....
A testemunha FF, ex funcionário da autora e arrolado por esta, foi, porém, muito clara.
Os cheques foram entregues para pagamento da dívida que o réu tinha para com a autora e daí que o valor do primeiro cheque emitido, entregue e pago conste a crédito do “extrato de cliente” do réu e não daquele que se referia à sociedade.
Referiu que, porém, já depois de apresentado a pagamento este primeiro cheque, e paga a primeira quantia de € 1.000,00, recebeu uma mensagem de telemóvel da testemunha EE, que se encontrava então no ..., tendo ficado com dúvidas sobre se seria para imputar tal pagamento naquela dívida ou na dívida que a sociedade detinha para com a autora.
Acrescentou que, em face dessas dúvidas, determinou que os cheques fossem na mesma apresentados a pagamento (como foram), porque a autora necessitava de liquidez, não se emitindo logo os recibos até que a questão fosse clarificada.
Quanto a essa clarificação, refere que a mesma existiu, através de EE, que lhe teria dito para imputar o valor dos cheques na dívida que a sociedade tinha com a autora pelos serviços prestados, apesar de os cheques emitidos serem cheques pessoais do réu e não da sociedade.
Referiu que só depois dessa clarificação teriam sido emitidos os primeiros recibos desse pagamento e explicando dessa forma a existência de recibos com a mesma data (três), reportados no “extrato de cliente” da sociedade unipessoal.
Não soube precisar de que forma se verificou tal clarificação, se foi por um telefonema ou uma conversa pessoal.
Ora, a mensagem de telemóvel a que a testemunha se reporta (em março de 2018) está lida e transcrita nos autos (email de 05/02/2024):
Queria-te informar o seguinte: os recibos que emitires do GG tem que ser o que combinamos; Tem que refletir pagamentos conforme conta corrente com referência a dezembro de 2017 para trás, que foi o que se combinou. Caso não seja feito assim ele manda suspender pagamento dos cheques mensais”.
A testemunha referiu que a referência a dezembro de 2017 lhe fez pensar que estava em causa a dívida da sociedade, pois que apenas esta tinha serviços prestados realizados nesse período, reportando-se a dívida do réu, como comerciante individual, a 2013.
Ora, com franqueza, não vemos como possa tal mensagem levar a que seja realizada uma imputação diversa daquela que tinha sido acordada, considerando que a comunicação escrita se reporta duas vezes ao que havia sido combinado anteriormente (e sobre o que estava inicialmente combinado a testemunha não tinha dúvidas, tanto que o pagamento do primeiro cheque foi imputado na dívida do réu enquanto comerciante individual).
Note-se que em ambos os “extratos de cliente” juntos (em 02/11/2023 e 04/01/2024) existe uma fatura relativa ao ano de 2018 e, assim, a referência a que fosse considerado dezembro de 2017 pode reportar-se a qualquer um deles.
A testemunha foi clara em afirmar que, perante aquela mensagem, ficou com dúvidas e que, como tal, não foi de imediato feita qualquer imputação do pagamento.
Quanto ao que tenha sido a clarificação dessa dúvida, temos apenas o depoimento da testemunha de que esta terá surgido, mais tarde, por forma que não se recorda.         Se a testemunha não se recorda como aconteceu a conversa com EE, será muito difícil perceber como se recorda do que então lhe foi dito e que justificaria fazer uma imputação de forma diferente daquela que tinha sido combinada inicialmente.
Note-se que, contrariamente ao referido pelo Mm.º Juiz a quo, não foi apenas o réu e EE que referiram que os cheques se destinavam ao pagamento da dívida que o réu, pessoa singular, mantinha então para com a autora.
Quem o disse foi, como vimos, também a testemunha FF, explicando que por esse motivo a quantia do primeiro cheque, quando foi recebida, foi imputada para pagamento da dívida do réu que então existia.
Daí que as declarações titubeantes do réu e de EE acabem por não ter sequer relevância.
A testemunha FF explicou que os cheques pessoais do réu foram entregues à autora para pagar a dívida que o réu tinha para com o matadouro, em montante que permitia que ficasse saldada, e destinando-se a ser apresentados mensalmente, até que fosse paga.
Estando a autora na posse dos cheques, o primeiro foi apresentado a pagamento e a quantia de € 1.000,00 recebida foi deduzida à dívida que o réu mantinha com a autora, emitindo esta o recibo e fazendo constar tal pagamento do “extrato de cliente” junto.
O que esta testemunha referiu foi, contudo, que depois desta operação, houve uma alteração ao que havia sido inicialmente acordado quanto à imputação do valor dos cheques apresentados a pagamento e é em relação a essa alteração que a prova produzida é, como vimos, muito pouco consistente, já que parte de uma mensagem escrita que é, no mínimo ambígua, e de uma conversa que não sabemos como ocorreu porque a testemunha dela não se recorda, afirmando apenas o que dela teria resultado e que dá conforto ao ato de imputação que foi feita pela autora.
Assim, se é certo que, como se refere na decisão, o depoimento da testemunha CC permite perceber os movimentos contabilísticos realizados pela autora – não resultando assim de qualquer “montagem” ou “adulteração” da contabilidade como tantas vezes pretendeu insinuar o Mandatário do réu –, o seu depoimento não permite que se afirme que o réu, através da testemunha EE, alterou a ordem dada quanto à imputação do pagamento efetuado através dos cheques pessoais que emitiu e que foram efetivamente pagos à autora.
Ou seja, a prova sólida a que o Mm.º Juiz a quo se reporta existe em relação aos serviços prestados e emissão de notas de crédito a favor do réu, mas não já quanto às circunstancias pelas quais contabilizou a quantia de € 6.000,00 que lhe foi entregue pelo réu, através de cheques emitidos sobre a sua conta pessoal, na dívida que a sociedade representada pelo réu ainda mantinha com a autora.
Não basta afirmar, como fez a testemunha FF, que para a autora era indiferente fazer a imputação do pagamento efetuado através dos cheques na dívida da pessoa singular ou da pessoa coletiva.
Por um lado, porque todos sabemos que não é indiferente, pois que o património de um e de outro é diferente em caso de cobrança coerciva.
Por outro, porque essa alegada indiferença não torna mais verosímil a existência de uma alteração quanto ao acordo inicial quando a testemunha não se recorda sequer de que forma conversou com a testemunha EE e as dúvidas que lhe suscitaram a mensagem escrita transcrita poderiam ter sido dissipadas com uma qualquer pergunta clara efetuada pela mesma via escrita.
O Tribunal a quo invocou as regras do ónus da prova para afastar a prova do pagamento, considerando que incumbia ao réu provar ter procedido ao pagamento da referida quantia de € 6.000,00 à autora e que este não teria feito essa prova.
Era de facto ónus de prova do réu demonstrar tal pagamento, nos termos do art.º 342.º, n.º 2, do C. Civil.
Mas essa prova foi efetuada pelo réu, demonstrando que entregou os cheques para pagar a quantia de € 6.639,64 (como confirmou FF e resulta da imputação que foi efetuada da quantia constante do primeiro cheque emitido) e que a quantia neles aposta, apresentados todos os cheques a pagamento, foi paga à autora (como confirmaram as testemunhas FF e DD e sempre resultaria dos documentos juntos).
O que não está provado é que EE, agindo em representação do réu, tenha através de mensagem escrita que teria posteriormente confirmado, indicado à autora para considerar que o pagamento efetuado através da emissão dos últimos seis cheques era, afinal, efetuado pela sociedade representada pelo réu e não por este. Esse ónus de prova já não era do réu, mas da autora.
O réu cumpriu o ónus de prova que lhe competia demonstrando a entrega à autora da quantia de mais € 6.000,00 para pagamento da dívida que subsistia ainda em 2018 (para além da quantia de € 1.000,00 que foi considerada pela autora, com a emissão do competente recibo com data de 28/02/2018 e que consta do “extrato de cliente” que foi junto).
Daqui se retira que os factos 2 e 3 não podem considerar-se provados nos termos que constam da sentença proferida.
Por um lado, porque o facto 2 não espelha as notas de crédito emitidas pela própria autora e que, como é evidente, foram deduzidas ao valor das faturas emitidas pela autora (pois que, como se disse, no período em questão, as faturas referidas pela autora ascendem a € 14.832,64 e, aqui, a autora reclama, apenas € 5.391,72), não podendo, como se referiu supra, falar-se de data de vencimento das faturas se não está sequer alegado o acordo quanto ao prazo de pagamento dos serviços prestados.
Por outro lado, porque o montante reclamado, relativo ao período de 28/02/2009 a 19/02/2013 – que então se considerou ser de € 5.391,72 – não é uma dívida pessoal do réu, pois que esta quantia foi por si paga através da apresentação a pagamento pelo réu dos seis últimos cheques que aquele emitiu.
Assim, pode apenas considerar-se provado:
2 – A autora emitiu faturas relativamente aos serviços que prestou ao réu no período de 28/02/2009 a 19/02/2013, tendo emitido notas de crédito no mesmo período em benefício do réu pela aquisição de couro que este lhe vendeu.
3 – A diferença entre o valor das faturas emitidas pela autora e o valor das notas de crédito que também emitiu, no período em questão, ascendia a € 5.391,72, tendo o réu entregue em 2018 a quantia de € 6.000,00 para o seu pagamento, quantia essa que foi recebida pela autora.
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V -  Reapreciação de direito:

1 - Os factos a considerar, com as alterações introduzidas a negrito, são os seguintes:
1 – A Autora presta serviços a vários clientes, entre eles o réu, e, na sua normal atividade, prestou serviços de abate de gado para o réu, pois existia uma relação comercial entre as partes.
2 – A autora emitiu faturas relativamente aos serviços que prestou ao réu no período de 28/02/2009 a 19/02/2013, tendo emitido notas de crédito no mesmo período em benefício do réu pela aquisição de couro que este lhe vendeu.
3 – A diferença entre o valor das faturas emitidas pela autora e o valor das notas de crédito que também emitiu, no período em questão, ascendia a € 5.391,72, tendo o réu entregue em 2018 a quantia de € 6.000,00 para o seu pagamento, quantia essa que foi recebida pela autora.
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2 – Resulta do exposto que não pode manter-se a decisão proferida.
Se é certo que a autora prestou serviços de abate de animais ao réu, inexiste qualquer fundamento para se considerar que o réu era, à data da apresentação do requerimento injuntivo, devedor da quantia peticionada a título de capital ou aquela que foi considerada na sentença proferida, pois que a mesma já havia sido paga.
Finda a relação comercial da autora e do réu, no que ao período de 28/02/2009 a 19/02/2013 diz respeito, estava em dívida a quantia de € 5.391,72, mas esta foi paga em 2018 com a entrega à autora da quantia de € 6.000,00.
Não existia assim qualquer pagamento em falta.
No que se refere à mora no pagamento das faturas emitidas, não estava alegado nos autos qualquer acordo das partes quanto ao pagamento das faturas emitidas, não existindo alegação de facto que permita considerar outros momentos de constituição do réu em mora, nos termos quer do DL 62/2013, de 10/05, quer no anterior DL 32/2003, de 17/02 (que seria aplicável a grande parte das transações realizadas, atento o disposto no art.º 14.º do primeiro diploma citado).
Assim, não há como considerar que em 2018, quando o réu fez o pagamento da quantia de € 6.000,00, existia mora do réu que aqui cumpre apreciar.
Não podendo afirmar-se a mora, não é aplicável o art.º 7.º do DL 62/2013, de 10/05.
A ação é, assim, totalmente improcedente, impondo-se a revogação da sentença e a absolvição do réu do pedido que contra si foi formulado.
Atento o decaimento da autora na ação e no recurso esta será responsável pelo pagamento das custas em ambas as instâncias.
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VI – Decisão:

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação apresentada pelo réu e, em conformidade, revoga-se a sentença proferida, absolvendo o réu AA do pedido que contra si foi formulado pela autora EMP01... EM.
Custas da apelação e do recurso pela autora, nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil.
Guimarães, 05 de junho de 2025
(elaborado, revisto e assinado eletronicamente)

Relator: Paula Ribas
1ª Adjunta: Anizabel Sousa Pereira
2º Adjunto: José Manuel Flores