MAIOR ACOMPANHADO
REVISÃO DA MEDIDA
AUDIÇÃO DO ACOMPANHADO
Sumário

Sumário: da responsabilidade do relator:
I. Em sede da revisão da medida de acompanhamento, é obrigatória a audição pessoal e direta do beneficiário, nos termos das disposições conjugadas dos Artigos 904º, nº3, e 897º, nº2, do Código de Processo Civil.
II. O Legislador poderia ter optado por mitigar a necessidade de audição pessoal e direta do beneficiário, aquando da revisão da medida de acompanhamento. Todavia, não o fez, sendo o Artigo 897º, nº2, absolutamente taxativo quanto a esse obrigatoriedade, acrescendo que, mesmo em caso de patologias crónicas e/ou reversíveis, poderá ocorrer um agravamento da situação do beneficiário que, em sede de revisão da medida, justifique a alteração da medida ou aditamentos à medida.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
 Em 15.1.2025, foi proferido no tribunal a quo o seguinte despacho:
« Dispensa de audição da acompanhante e do beneficiário:
Vem o Ministério Público promover que se designe data para ouvir a acompanhante citando o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.11.2022, proferido no proc. n.º 1354/20.8T8VFX-A.L1-7.
Nos presentes autos está em causa a revisão das medidas aplicadas ao acompanhado CD por sentença de 16/12/2019 no âmbito da qual se decidiu sujeitar o beneficiário à medida de representação geral e limitar os seus direitos pessoais de votar, de testar e bem assim de exercer as responsabilidades parentais e de ter aos seus cuidados crianças e adultos com necessidades de supervisão.
No âmbito dos autos principais, com vista à prolação da referida sentença o acompanhado foi sujeito a perícia médico-legal, tendo sido apresentado relatório pericial datado de 14/10/2019 com as seguintes conclusões:
De acordo com a avaliação clínica realizada, somos da opinião que o Examinando apresenta quadro clínico compatível com o diagnóstico de Perturbação do Desenvolvimento Intelectual (vulgo Atraso Mental), profunda (CID-10': F 73, OMS?, 1992).
Este quadro é decorrente em termos causais de situação mal-esclarecida, admitindo-se de natureza congénita ou no peri-parto. Nesse sentido, a data de início é arbitrada aquando do nascimento.
Relativamente ao diagnóstico de Perturbação do Desenvolvimento Intelectual, este pode ser classificado em termos de gravidade numa escala entre ligeiro a profundo, utilizando o valor do Quoeficiente de Inteligência (Q.I.) ou do impacto na funcionalidade. Tendo em conta o impacto na funcionalidade que é o parâmetro que de facto nos permite aferir o grau de autonomia, este pode ser classificado, no caso em questão, como profundo. Na prática, os défices apresentados na inteligência e na comunicação impedem irreversivelmente o Examinando de governar de forma autónoma a sua pessoa e bens. O tratamento visa sobretudo controlar os sintomas comportamentais/emocionais e conferir melhor qualidade de vida, não existindo atualmente tratamento curativo ou que melhore significativamente a funcionalidade.
Os documentos apresentados, bem como a descrição da entrevista e observação permitem - nos afirmar que as consequências da patologia de que sofre são significativas e que, em termos pragmáticos, o funcionamento social e autonomia se encontram seriamente prejudicados. Nesse sentido, consideramos que o Examinando não tem capacidade para manter o exercício de direitos pessoais tais como casar, perfilhar, adoptar, votar ou testar.
Não tem também capacidade para realizar negócios de vida corrente, tais como gerir pequenas quantias de dinheiros ou efetuar pequenas compras, visto ter-se demonstrado não reconhecer o valor do dinheiro nem conseguir efetuar cálculos. Sobre a responsabilidade em aceitar ou recusar tratamentos que medicamente sejam indicados e propostos, esta tarefa não lhe deverá estar confiada, face à sua incapacidade.
Face ao exposto, somos do parecer que o Examinando beneficia da nomeação de um Acompanhante, com poderes de representação geral e substituição de vontade, abrangendo a maior parte dos atos da vida em sociedade, que dele possa cuidar e com quem mantenha afetividade, e que possa ainda garantir o exercício de direitos, cumprimento de deveres e assegurar o seu bem estar.
Como medida de tratamento propõe-se seguimento regular em consulta de Psiquiatria, e ainda, se necessário, por clínicos de outras especialidades de acordo com as comorbilidades, cumprindo prescrições que aí vierem a ser determinadas. Sendo que a manutenção de acompanhamento humano e inserção familiar é vantajosa, no caso em apreciação é sugerido que se mantenha a integração em instituição, que possa estimular as capacidades restantes do Examinando, bem como providenciar oportunidades de socialização e de desenvolvimento dos interesses do mesmo.
O quadro clínico supra é irreversível e estático, pelo que do ponto de vista médico-legal não entendemos previsível a necessidade de revisão inferior a 5 anos.
Foi realizada audição do beneficiário nos autos principais, a 08/10/2019 e constatou-se que o beneficiário a) não soube dizer a sua idade b) não soube identificar as cores do seu vestuário, emitindo apenas diversos ruídos, não sendo possível estabelecer qualquer diálogo, observando-se a repetição da palavra “carrinha”.
No âmbito do presente apenso, foi a acompanhante notificada para informar do estado de saúde actual do acompanhado juntando documentação clínica que atestasse os factos alegados, e ainda para se pronunciar sobre se a(s) medida(s) de acompanhamento aplicada(s) pela sentença de 16/12/2019 se mantêm pertinente(s) e necessária(s) ou se considera que há necessidade de alteração e, em caso afirmativo, em que sentido.
Regularmente notificada veio a acompanhante juntar atestado médico actual (13/11/2024) que reafirma o diagnóstico do acompanhado e esclarece que a afecção é crónica.
Estabelece o art. 155.° do Código Civil que o tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acrdo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos.
Mais prevê o art. 904.°, n.° 3 do CPC que ao termo e à modificação das medidas de acompanhamento aplicam-se, com as necessárias adaptações e na medida do necessário, o disposto nos artigos 892.º e seguintes (...).
Por promoção de 09/01/2025 o Ministério Público vem pedir que se oiça a acompanhante.
Ora, como se explanará abaixo, entende-se que os elementos existentes nos autos são suficientes para se proferir já decisão, considerando-se que a inquirição da acompanhante não trará nada de novo face aos elementos que a própria já juntou aos autos.
Ademais, o Tribunal aproveita a oportunidade para se pronunciar quanto à sua posição sobre a audição do acompanhado em sede de revisão, muito embora não tenha sido promovida pelo Ministério Público.
Assim, não há dúvidas que, para o decretamento das medidas de acompanhamento de maior, o legislador impôs obrigatoriamente a sua audição, com vista a assegurar que a situação de facto alegada passa, efectivamente, pelo crivo do juiz.
Contudo, o legislador não exigiu, porém, que essa audição tivesse obrigatoriamente lugar nas revisões periódicas e oficiosas das medidas anteriormente aplicadas. Efectivamente, nesse caso, o legislador atribuiu ao juiz o poder de decidir se se afigura ou não necessária a sua realização. É o que decorre, de forma cristalina, do disposto no art. 904.°, n.° 3 do CPC, quando se diz que o regime se aplica na medida do necessário ao termo e à modificação das medidas de acompanhamento.
Assim, caberá ao juiz que procede à revisão fazer uma análise – ad hoc – de quais as normas a aplicar em cada caso de revisão/alteração de medidas e, dessa forma, – no que respeita à prova – ponderar sobre a (des)necessidade de realização das diligências probatórias.
Note-se que o acórdão (Tribunal da Relação de Lisboa de 22.11.2022, proferido no proc. n.º 1354/20.8T8VFX-A.L1-7) citado pelo Ministério Público para sustentar a sua posição tem, na sua base, uma situação de facto completamente diversa da dos autos. Efectivamente, naquele caso estava em causa da dispensa de audição do acompanhado (que aqui não foi promovida) e pretendia-se proceder à remoção provisória da acompanhante nomeada. Ora, considerando que, nos termos da lei substantiva, a escolha do acompanhante está dependente, para além do mais, da escolha do acompanhado – art. 143.º, n.º 1 do CC – compreende-se a necessidade da sua audição naquela situação concreta em que é exigida a remoção do acompanhante anteriormente nomeado.
Nada disso ocorre nos presentes autos, não estando em causa a substituição ou remoção da acompanhante, nem estando em causa o pedido de audição do acompanhado, mas da acompanhante.
No caso dos autos, a audição inicial do acompanhado ocorreu (nos autos principais) e a sentença foi proferida em conformidade.
Por outro lado, existe perícia médico legal no processo principal que atesta a irreversibilidade e estaticidade da condição do acompanhado, o Tribunal atestou – por observação – a condição do beneficiário na diligência destinada à sua audição, existe relatório médico actual que reitera o diagnóstico anteriormente realizado e as limitações que se reconduzem, precisamente, àquelas existentes à data da prolação da sentença de decretamento do regime de acompanhamento de maior.
Do exposto, existindo elementos bastantes e seguros que atestam a manutenção da condição de saúde do acompanhado, o Tribunal considera estarem reunidas as condições para prolação de uma decisão, sendo aqueles elementos suficientes para se proceder à revisão oficiosa da medida sem necessidade de outras diligências, a saber, a inquirição da acompanhante como promovido.
Em face disso, ao abrigo do disposto no art. 904.°, n.° 2 do CPC, considera-se ser desnecessária a realização da audição do acompanhado e da acompanhante e, em consequência, decide-se dispensar as referidas diligências.
Notifique.»
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Seguidamente, foi proferida sentença de revisão da medida de acompanhamento aplicada a CD com o seguinte dispositivo: « Em face do exposto, nos termos do disposto no artigo 155º do Código Civil, decido manter a aplicação das medidas de acompanhamento a CD nos exactos termos decretados na sentença proferida nos autos em 16/12/2019 com a ref.ª citius 122732880. »

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Notificado de tal despacho e subsequente sentença, veio o Ministério Público apresentar recurso de apelação,  formulando, no final das suas alegações, as seguintes
CONCLUSÕES:
1. Por despacho proferido a 15.01.2025 a Mma juiz do tribunal a quo decidiu dispensar a realização da audição do acompanhado no presente apenso de revisão da medida de acompanhamento, considerando ser desnecessária a sua realização, proferindo, subsequentemente, a respetiva sentença final.
2. O presente apenso iniciou-se tendo em vista a revisão das medidas de acompanhamento que foram aplicadas ao acompanhado CD, por sentença proferida nos autos principais a 16.12.2019, no âmbito da qual se decidiu sujeitá-lo à medida de representação geral, sendo ainda limitados os seus direitos pessoais de votar e de testar. bem como de exercer as responsabilidades parentais e de ter aos seus cuidados crianças e adultos com necessidades de supervisão.
3. Analisados os autos temos que foi aqui, em primeiro despacho proferido, determinado, entre mais, a notificação do acompanhante para vir aos autos informar do estado de saúde atual do beneficiário, juntando documentação clínica que atestasse os factos alegados, devendo ainda pronunciar-se sobre se as medidas de acompanhamento aplicadas pela sentença de 16.12.2019 se manteriam pertinentes e necessárias ou se consideraria existir necessidade de alteração e, em caso afirmativo, em que sentido.
4. A acompanhante (instituição onde se encontra integrado) juntou requerimento referindo que o estado de saúde do beneficiário se mantem, pugnando pela manutenção das medidas antes aplicadas, juntando ainda um relatório médico daquele, sendo que a ilustre defensora nomeada nada disse sobre a necessidade de realização de demais diligências.
5. O sentido da promoção proferida pelo Ministério Público foi o da necessidade de audição pessoal e direta do beneficiário e da acompanhante, conforme se retira da invocação que fez do preceituado no art. 139.°/1 do C.C. e nos arts. 904°, n°3, 897°, n° 2 e 898° todos do CPC (e do entendimento sufragado pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 22.11.2022, proferido no proc. n.º 1354/20.8T8VFX-A.L1- 7), à qual não se manifestou oposição a que fosse realizada por meio de comunicação à distância, caso se mostrasse mais vantajoso ao estado clínico daquele.
6. Acontece que a Mma Juiz do Tribunal a quo considerou desnecessária a realização da audição do acompanhado, com o qual não podemos concordar.
7. Conforme amplamente defendido na nossa jurisprudência nos processos de maior acompanhado, não pode dispensar-se a audição do beneficiário, exceto se estiver cabalmente demonstrada situação que impeça, ou torne gravemente inconveniente, a sua audição.
8. Consideramos, que tal entendimento vale não só para o processo principal de acompanhamento como também para os apensos de revisão das medidas de acompanhamento em vigor.
9. A este propósito, e em conformidade com tal entendimento, veja-se o citado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.11.2022, proc. n.º 1354/20.8T8VFX-A.L1-7, relator Luís Filipe Pires de Sousa:
«O pedido de cessação ou modificação das medidas deve ser formulado por apenso, aplicando-se a tramitação prevista nos arts 892° a 900°, com as necessárias adaptações. Esta remissão implica a obrigatoriedade da audição, pessoal e direta, do maior acompanhado (f. arts 897º, n° 2 e 898º).
A tangibilidade do caso julgado justifica-se em nome da tutela da dignidade e da autonomia do beneficiário.»
10. Também em igual sentido, quanto à obrigatoriedade de audição do acompanhado, se pronunciou muito recentemente o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19.12.2024, no proc. n.º 5403/19.4T8SNT.1.L1, relatora Carla Matos, onde no seu sumário sufraga-se, entre mais, que:
“III- Na revisão das medidas há que indagar a situação atual do beneficiário, a fim de se aferir se as medidas anteriormente decretadas devem ser mantidas, modificadas ou levantadas.
IV- Esta indagação da situação atual do beneficiário não pode deixar de passar por um contato direto entre este e o Juiz. Contacto que permite ao Juiz constatar in loco a situação atual do beneficiário, ainda que o mesmo não consiga responder às suas perguntas, sendo que este elemento (impossibilidade ou dificuldade em responder a perguntas) pode ser relevante para a decisão a tomar relativamente à revisão da medida.
II- Essa imediação não pode ser substituída por qualquer relatório médico, elemento de cariz eminentemente técnico.
III- E não pode ser dispensada com base numa pretensa inutilidade, até porque a própria impossibilidade ou dificuldade de o beneficiário responder a perguntas pode ser relevante para a decisão a tomar."
11. De igual forma se defendeu na decisão sumária proferida pelo mesmo Tribunal superior, a 16.12.2024, no âmbito do proc. n.º 16934/18.3T8SNT.1.L1, dele se podendo ver que “Decorre dos arts 139°, n° 1 do CC e 897°, n°2 do CPC que a diligência de audição do beneficiário é obrigatória, não se contemplando qualquer exceção. Ainda que se admita a sua dispensa em situações absolutamente excecionais, como no caso de o beneficiário se encontrar em coma, a situação física e psíquica do beneficiário (incluindo eventuais dificuldades de comunicação) deve ser verificada pelo juiz na diligência (princípio da imediação na avaliação da situação física ou psíquica do beneficiário, com reflexo na opção pelas medidas de acompanhamento mais adequadas à situação), ainda que para tal o juiz se desloque onde se encontre o beneficiário. A obrigatoriedade da audição do beneficiário é uma expressão do novo paradigma instituído pela Lei 49/2018, de 14/08, no respeito pelos princípios da primazia da autonomia da pessoa, do respeito pela sua vontade, como resulta da respetiva exposição de motivos “.
12. Também Margarida Paz, “O Ministério Público e o maior acompanhado”, in O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, e-book do CEJ 2019, pp. 131132, sinaliza que:
«Neste contexto, audição pessoal e direta do beneficiário não deve apenas ocorrer relativamente à tomada de decisão da medida ou medidas de acompanhamento a decretar pelo tribunal.
Na verdade, o acompanhado deve ser ouvido relativamente a todas as decisões que sejam tomadas e que lhe digam diretamente respeito, nomeadamente:
-Escolha do acompanhante (como resulta diretamente do artigo 143.°, n.º 1, do CC);
- Decisão de acompanhamento (como resulta diretamente do artigo 898.°, n.º 1, do CPC);
- Revisão periódica do acompanhamento (artigo 155. ° do CC);
- Modificação ou cessação do acompanhamento (artigo 904. ° do CPC);
- Decretamento de medidas provisórias (artigo 891.°, n.º 2, do CPC);
- Autorização para a prática de atos, entendida em sentido amplo (Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de outubro).»”
13.       Como se sabe, é à luz dos princípios fundamentais relativos à capacidade jurídica das pessoas com deficiência, que emergem da Convenção das Nações Unidas, assinada por Portugal a 30 de março de 2007, no qual assenta o regime do maior acompanhado atualmente em vigor, que se deve interpretar este regime, entre eles e ao que aqui maioritariamente interessa: a pessoa com deficiência tem o direito a ser ouvida sobre todas as questões que sejam decididas, por qualquer autoridade, sobre a sua capacidade jurídica, sem esquecer ainda que a pessoa com deficiência tem o direito a participar ativamente em todas as decisões que lhe digam respeito a nível pessoal, familiar e económico.
14.       No presente caso, está em causa a revisão da medida de acompanhamento, já antes aplicada no processo principal de acompanhamento.
15.       Ora, por revisão entenda-se o ato ou efeito de rever, um exame minucioso ou um novo exame, nova leitura de uma determinada situação.
16.       Não podemos ignorar que se o legislador impôs a obrigação de revisão periódica da situação do maior acompanhado (cf. art. 155.° do Código Civil) foi para se assegurar se as medidas de apoio antes aplicadas continuam a ser absolutamente necessárias e proporcionais à sua (no momento da revisão) situação clínica.
17.       Para tal terá que ser ouvido antes da decisão de revisão, independentemente se esta for (ou não) de manutenção das anteriormente aplicadas (conclusão, aliás, que o julgador apenas pode tirar depois de proceder à sua audição) e mesmo que já tenha sido ouvido no processo principal.
18.       Não nos parece de todo que o legislador, nas situações de revisão das medidas de acompanhamento, tenha atribuído ao juiz o poder de decidir se se afigura ou não necessária a realização da audição do acompanhado, quando refere no art. 904.°, n.º 3 do CPC, “que o regime se aplica na medida do necessário ao termo e à modificação das medidas de acompanhamento”.
19.       Este preceito estipula que “Ao termo e à modificação das medidas de acompanhamento aplicam-se, com as necessárias adaptações e na medida do necessário, o disposto nos artigos 892. ° e seguintes, correndo os incidentes respetivos por apenso ao processo principal".
20.       Ou seja, no presente caso, onde se irá rever a medida de acompanhamento aplicada (com a sua manutenção, alteração ou revogação), dever-se-á seguir o disposto nos arts. 892.° e seguintes do diploma legal referenciado. Nos preceitos para os quais se remete está o artigo 897° do CPC, que, sob a epígrafe “poderes instrutórios” dispõe:
1 - Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por eles requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos.
2 — Em qualquer caso, o  juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre ” (n/sublinhado)
21.       A expressão usada no art. 904.°/3 do CPC, “aplicam-se, com as necessárias adaptações e na medida do necessário” não nos parece que permita afastar a obrigatoriedade de audição pessoal e direta do beneficiário, que é imposta pelo art. 897.°/2 do mesmo diploma (e para o qual se remete).
22. Obrigatoriedade de audição que deve existir independentemente de tal ter sido, ou não, promovido pelo Ministério Público ou requerido pelos demais intervenientes processuais.
23. Esta necessidade de contacto direto entre o juiz e o beneficiário deve manter-se nas situações de revisão da medida de acompanhamento, a fim de se averiguar/analisar novamente a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas, no sentido da sua manutenção/alteração/revogação.
24. Nos apensos de revisão da medida de acompanhamento não podemos deixar de aplicar e observar os citados princípios fundamentais, pois que também aqui se irá novamente tomar uma decisão sobre a capacidade jurídica do beneficiário.
25. Independentemente das conclusões que se extraem do resultado do exame pericial a que o aqui beneficiário foi sujeito nos autos principais e que no presente apenso tenha sido junto atestado médico atualizado sobre a sua atual situação clínica onde consta que é portadora, entre outros, do diagnóstico de “Perturbação do Desenvolvimento Intelectual Grave", sendo “doença provavelmente congénita, não tendo o doente capacidade de angariar de subsistência ou de autodeterminar", entendemos que o acompanhado continua a manter o direito ter contacto direto com o juiz, contribuindo de modo efetivo para a decisão do caso que lhe diz respeito, em completo respeito ao preceituado no disposto nos arts. 139.°/1 do C.C. e nos arts. 904°, n°3, 897°, n° 2 e 898° estes do CPC.
26.       Contrariamente ao entendimento da Mma Juiz do Tribunal a quo, há que ouvir pessoal e diretamente o beneficiário, a fim de melhor se averiguar a sua atual situação (ou atual capacidade) e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas a manter/alterar, sendo que tal “imediação não pode ser substituída por qualquer relatório médico, elemento de cariz eminentemente técnico”.
27.       Não nos podemos, pois, esquecer das consequência e dos efeitos possíveis da manutenção do acompanhado ao regime do acompanhamento, onde estão em causa fortes limitações à capacidade de exercício dos seus direitos, configurando também aqui a sua audição uma diligência obrigatória, não podendo ser dispensada à luz de critérios de oportunidade, utilidade ou outros.
28. Prescindir da audição do beneficiário nos apensos de revisão, que se regem pelos mesmos princípios do processo (principal) de acompanhamento, implicaria reduzir, de modo desproporcionado e sem motivo bastante, o direito do beneficiário a ser consultado sobre a decisão que irá incidir (novamente) sobre a sua capacidade jurídica, contrariando assim um dos mais relevantes princípios norteadores do regime do maior acompanhado, como seja, o direito a ser ouvido sobre todas as questões que sejam decididas, por qualquer autoridade, sobre a sua capacidade jurídica, mas também o direito a participar ativamente em todas as decisões que lhe digam respeito a nível pessoal, familiar e económico e cuja relevância é nimiamente enfatizada na já mencionada Convenção.
29.       Resumindo: atentas as finalidades a que se destina também a situação de revisão da medida de acompanhamento - aferir novamente a situação do beneficiário, determinando/mantendo/revogando as medidas de acompanhamento aplicadas (as quais terão que ser as mais adequadas) e paralelamente, assegurar a possibilidade do beneficiário manifestar a sua vontade (se necessário apenas da presença do julgador), continua a parecer-nos vital a realização da sua audição no contexto da revisão em apreço, não se podendo concordar e compreender que tal se revela diligência inútil, dispensando-a.
30.       Ademais se realce que a entender-se que tal audição só pode ser dispensada em situações extremas, como a do acompanhado não ter condições médicas para ser ouvido, mais se diga que nada consta no relatório de perícia médico legal, a que CD foi sujeito nos autos principais, nem no relatório médico aqui junto, que nos permita ainda concluir que este se encontra numa situação que impeça ou torne gravemente inconveniente a sua audição.
31.       Assim sendo, em conformidade com todo o dito, cremos, pois, que o despacho da Mma Juiz do Tribunal a quo, que dispensou a realização da audição pessoal e direta da beneficiária, proferindo de imediato sentença final, violou a norma legal prevista no art. 897°, n° 2 do CPC, aqui aplicável por força da remissão operada pelo art. 904°, n°3 deste diploma, o que por ter manifesta influência no exame e decisão da causa, configura uma nulidade processual, nos termos previstos no art. 195°, n° 1, 2a parte, do CPC e que tem como consequência a anulação do processado subsequente, máxime da sentença final, depois proferida, nos termos do n° 2 do art° 195° do CPC.
32.       Pelo exposto deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, revogar-se a decisão que dispensou a realização da audição do beneficiário, anular o processado subsequente à decisão recorrida, incluindo a sentença final, e determinar-se a audição pessoal e direta de CD, nos termos do artigo 139°, n°1 do Código Civil e nos artigos 904°, n°3, 897°, n° 2 e 898° estes do Código do Processo Civil.
Em conformidade, propugna-se pela procedência do presente Recurso, assim decidindo Vossas Excelências farão a costumada Justiça!»
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Não se mostram juntas contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, a questão a decidir consiste em aferir se o tribunal a quo dispensou, indevidamente, a audição do acompanhado, no âmbito da revisão da medida.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
A jurisprudência citada neste acórdão sem menção da origem encontra-se publicada em www.dgsi.pt.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto relevante para a decisão de mérito é a que consta do relatório, cujo teor se dá por reproduzido.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Nos termos do Artigo 904º do Código de Processo Civil:
 (…)
2- As medidas de acompanhamento podem, a todo o tempo, ser revistas ou levantadas pelo tribunal, quando a evolução do beneficiário o justificar.
3- Ao termo e à modificação das medidas de acompanhamento aplicam-se, com as necessárias adaptações e na medida do necessário, o disposto nos artigos 892º e seguintes, correndo os incidentes respetivos por apenso ao processo principal.
Por sua vez, o Artigo 155º do Código Civil, dispõe que O tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos.
Neste quadro legal, o que motivou esta apelação do Ministério Público foi a dispensa da audição do maior acompanhado, aquando da revisão da medida de acompanhamento.
Em sede de revisão da medida de acompanhamento e sobre a imprescindibilidade da audição pessoal e direta do beneficiário, a doutrina e a jurisprudência têm-se pronunciado nos seguintes termos.
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2ª ed., 2022, Almedina, p. 360:
«O pedido de cessação ou modificação das medidas deve ser formulado por apenso, aplicando-se a tramitação prevista nos arts. 892º a 900º, com as necessárias adaptações. Esta remissão implica a obrigatoriedade da audição, pessoal e direta, do maior acompanhado (cf. arts. 897º, nº 2 e 898º). A tangibilidade do caso julgado justifica-se em nome da tutela da dignidade e da autonomia do beneficiário.»
Margaria Paz, “O Ministério Público e o maior acompanhado”, in O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, e-book do CEJ 2019, pp. 131-132, sinaliza que:
«Neste contexto, audição pessoal e direta do beneficiário não deve apenas ocorrer relativamente à tomada de decisão da medida ou medidas de acompanhamento a decretar pelo tribunal.
Na verdade, o acompanhado deve ser ouvido relativamente a todas as decisões que sejam tomadas e que lhe digam diretamente respeito, nomeadamente:
§ Escolha do acompanhante (como resulta diretamente do artigo 143.º, n.º 1, do CC);
§ Decisão de acompanhamento (como resulta diretamente do artigo 898.º, n.º 1, do CPC);
§ Revisão periódica do acompanhamento (artigo 155.º do CC);
§ Modificação ou cessação do acompanhamento (artigo 904.º do CPC);
§ Decretamento de medidas provisórias (artigo 891.º, n.º 2, do CPC);
§ Autorização para a prática de atos, entendida em sentido amplo (Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de outubro).»
Nuno Andrade Pissarra, Processo Especial de Acompanhamento de Maiores, AAFDL, 2023, p. 170, conclui que:
«(…) a falta de audição gera sempre nulidade, porque o juiz nunca pode dar por certa a irrelevância probatória da omissão para o exame ou a decisão da causa. A preterição da audição do beneficiário seria inócua se estivesse em causa o exercício do contraditório e nos autos houvesse prova segura de que o beneficiário nunca se conseguiria defender por si. Só que a audição do beneficiário não serve para este se defender – serve para o tribunal se convencer.»
Subscreve ainda este autor outros argumentos que têm sido aduzidos em prol dessa obrigatoriedade, designadamente «o dever de respeitar os instrumentos internacionais relevantes na matéria, designadamente a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (arts. 3º, al. a), e 12º, nos 4 e 5) e a Recomendação nº R (99)4, de 23 de fevereiro de 1999, do Comité de Ministros do Conselho da Europa, relativa aos princípios sobre a proteção jurídica dos maiores incapazes (princípio 13)» (p. 150), bem como «a insusceptibilidade de aplicação in casu dos princípios da gestão processual e da adequação formal» (p. 151).
Na jurisprudência, prevalece a tese da obrigatoriedade da audição pessoal do beneficiário em sede de revisão da medida de acompanhamento. Assim:
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.4.2025, Isoleta Costa, 3657/21:
I- Na revisão das medidas de acompanhamento de maior há que apurar, se necessário com meios de prova determinados oficiosamente, qual a situação atualizada do beneficiário devendo ficar a constar da fundamentação de facto as circunstâncias factuais atualizadas, as quais constituem o pressuposto fático da decisão.
II - Em face do disposto no artigo 897.º, n.º 2, “ex vi” art.º 904.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o juiz deve proceder à audição pessoal e direta do beneficiário, com vista à revisão da medida de acompanhamento do maior.
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6.2.2025, Nuno Gonçalves, 4730/18:
Em face do disposto no artigo 897.º, n.º 2, “ex vi” art.º 904.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o juiz deve proceder à audição pessoal e direta do beneficiário, com vista à revisão da medida de acompanhamento do maior.
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-12.2024, Carla Matos, 5403/19:
III- Na revisão das medidas há que indagar a situação atual do beneficiário, a fim de se aferir se as medidas anteriormente decretadas devem ser mantidas, modificadas ou levantadas.
IV-Esta indagação da situação atual do beneficiário não pode deixar de passar por um contato direto entre este e o Juiz. Contacto que permite ao Juiz constatar in loco a situação atual do beneficiário, ainda que o mesmo não consiga responder às suas perguntas, sendo que este elemento (impossibilidade ou dificuldade em responder a perguntas) pode ser relevante para a decisão a tomar relativamente à revisão da medida.
V- Essa imediação não pode ser substituída por qualquer relatório médico, elemento de cariz eminentemente técnico.
VI- E não pode ser dispensada com base numa pretensa inutilidade, até porque a própria impossibilidade ou dificuldade de o beneficiário responder a perguntas pode ser relevante para a decisão a tomar.
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.12.2024, Alexandra Rocha, 7192/19:
A diligência de audição pessoal e direta do beneficiário, sendo obrigatória para ajuizar da situação do mesmo e das medidas de acompanhamento mais adequadas, é também obrigatória para ajuizar, em sede de revisão das medidas aplicadas, nos termos dos arts. 155.º do Código Civil e 904.º n.º2 e 3 do Código de Processo Civil, se se justifica, ou não, manter tais medidas, fazê-las cessar ou alterá-las.
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.2.2025, Paulo Silva, 8648/18:
Conforme artigos 904.º, n.º 4, e 897.º, n.º 2, do CP Civil, na revisão da medida de acompanhamento, a audição do beneficiário constitui uma diligência processual indispensável, salvo se a mesma se mostrar impossível ou for gravemente lesiva dos interesses do beneficiário.
Não vislumbramos razões para nos apartarmos da interpretação propugnada pela doutrina e jurisprudência referidas.
É certo que, em sede de revisão da medida, poderá argumentar-se que a relevância da “audição pessoal e direta” do beneficiário não será tão determinante e indispensável  como ocorre antes da fixação inicial da medida de acompanhamento. Nesta fase, já ocorreu essa audição e já existe um arrimo probatório pericial relevante que, no caso, até foi reiterado com a apresentação de novo relatório médico. Acresce que, no caso de patologias crónicas e/ou irreversíveis como é o caso (atraso mental profundo), não é expectável que a nova audição – aquando da revisão da medida – demonstre um acréscimo e/ou recuperação de capacidades físicas e mentais.
Assim, o Legislador poderia ter optado por mitigar a necessidade de audição pessoal e direta do beneficiário, aquando da revisão da medida de acompanhamento. Todavia, não o fez, sendo que o Artigo 897º, nº2, é absolutamente taxativo quando afirma «Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontra», norma esta aplicável ex vi Artigo 904º, nº3.
Por outro lado, mesmo em caso de patologias crónicas e/ou reversíveis, como é o caso, poderá ocorrer um agravamento da situação do beneficiário que, em sede de revisão da medida, justifique a alteração da medida ou aditamentos à medida. Nessa senda, a audição pessoal e direta do beneficiário pode ser relevante para essa aferição, sendo certo que, conforme refere Nuno Pissarra, esta audição tem um carácter eminentemente probatório e não tanto para observância do contraditório.
Custas
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se o despacho proferido em 15.1.2025 e anulam-se os termos subsequentes da revisão da medida, devendo o processo retomar a sua marcha com a audição pessoal e direta do beneficiário.
Sem custas.

Lisboa, 17.6.2025
Luís Filipe Sousa
Alexandra de Castro Rocha
Edgar Taborda Lopes
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20, de 11.5.2023, Oliveira Abreu, 26881/15, de 25.5.2023, Sousa Pinto, 1864/21, de 11.7.2023, Jorge  Leal, 331/21, de 11.6.2024, Leonel Serôdio, 7778/21, de 29.10.2024, Pinto Oliveira, 5295/22, de 13.2.2025, Luís Mendonça, 2620/23. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).