IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ABUSO DE CONFIANÇA
PRINCIPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO
IN DUBIO PRO REO
Sumário

I – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto: Não pode proceder tal impugnação, quando o Tribunal a quo entendeu ser possível concluir, da análise da toda a prova produzida, estar suficientemente demonstrada, sem qualquer dúvida, a factualidade que se encontra descrita na acusação, relativamente à apropriação ilícita por parte da arguida de uma quantia em dinheiro, que lhe havia sido entregue por conta do exercício das suas funções de administradora do condomínio, sem a autorização deste condomínio e com prejuízo para o mesmo, incorrendo assim na prática em autoria materiral e na forma consumada de um crime de abuso de confiança p.p no artº 20 5º/1 do C.P. A decisão da matéria de facto, tem de resultar da análise conjunta e avaliação crítica de toda a prova produzida em audiência e não apenas de segmentos fragmentados dessa mesma prova. Por outro lado, de acordo com o referido princípio da livre apreciação da prova que domina o nosso sistema (por oposição ao regime da prova legal), não existem normas que determinam o valor ou a eficácia probatória a atribuir a cada meio probatório. Nessa medida, a atribuição de maior ou menor força a um meio de prova depende apenas da convicção do julgador, desde que se mostre de acordo com a experiência comum. E quando a valoração da prova é feita pelo Tribunal a quo de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, a convicção assim formada pelo Tribunal a quo, não pode ser censurada, sob pena de se aniquilar a livre apreciação da prova do julgado, construída na base da imediação e da oralidade.
II – Violação do princípio In dubio pro reo: Não existe violação deste princípio, quando resulta da decisão recorrida, designadamente da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a indicação e exame crítico das provas em que se baseou a convicção do Tribunal de julgamento, quanto ao crime de abuso de confiança p.p no artº 205º/1 do C.P imputado à arguida, não se vislumbrando que o Tribunal a quo, tivesse dado como provado, qualquer um dos factos que como tal enumerou, tendo dúvidas sobre a sua verificação, nem se afigurando, que tais dúvidas devessem ter existido.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
1 - No processo nº 4991/20.7T9LSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 14, foi submetida a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, a arguida AA, filha de BB e de CC, nascida em .../.../1943, natural de ..., titular do Bilhete de Identidade n° …, residente na ..., imputando-lhe o MP, a prática, em autoria material e na forma consumada, de factos que, em seu entender, integram um crime de abuso de confiança, p.p no artº 205°, n° 1 do Cód. Penal, consubstanciado nos factos descritos na acusação formulada a fls. 264 e 265 (por remissão de fls. 284), que aqui se dá por reproduzida.
Inconformada com a acusação contra si deduzida, a arguida requereu a abertura da instrução, com os fundamentos expressos a fls. 376 a 378. Foi proferida decisão instrutória, pronunciando a arguida pela prática do crime que lhe vinha imputado na peça acusatória.
A arguida AA apresentou contestação escrita, alegando, em síntese, que no âmbito das suas funções enquanto administradora do Condomínio do prédio sito na ..., procedeu ao levantamento da quantia de € 1.100,00, que utilizou no pagamento das obras de reparação do telhado, concluindo pela improcedência da acusação, com a sua consequente absolvição. Apresentou rol de testemunhas e juntou documentos.
Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal, com registo da prova, nos termos do disposto no artº 364°, n°s 1 e 2 do Cód. Processo Penal.
2- Realizado o julgamento, por sentença proferida em 31.10.2024, foi a arguida condenada, nos seguintes (transcritos) termos:
IV. DECISÃO
Assim, pelo exposto, e tendo em conta as disposições legais consideradas, o Tribunal decide julgar a acusação deduzida pelo Ministério Público procedente, por provada, e, consequentemente:
Condenar a arguida AA, pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança, p.p. pelo artigo 205°, n° 1 do Cód. Penal, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 10,00, o que perfaz o montante global de € 1500,00 (mil e quinhentos euros).
Nos termos do disposto no artº 513° do Cód. Processo Penal e no artº 8°, n° 9 do Regulamento das Custas Processuais, impõe-se a condenação da arguida AA nas custas do processo, com a taxa de justiça determinada por referência à condição económica da arguida (i) e à complexidade do processo (ii), fixando-se a taxa de justiça em 3 U.C's. (…).
3 – Inconformada com tal decisão, dela recorreu a arguida, sendo que a motivação apresentada, terminou com a formulação das seguintes (transcritas) conclusões:
A. O arguida foi condenada pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205°, n° 1 do Cód. Penal, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, perfazendo um total de € 1500 (mil e quinhentos euros). ;
B. Não existe prova suficiente para formar a convicção de que o arguida praticou os factos, sendo a prova invocada meramente circunstancial, devendo a arguida em nome do Princípio in dúbio pro reo, ser absolvida;
C. Em suma, considerou o Tribunal que:
“Após, entre o dia .../.../2019 e .../.../2020, a arguida foi, por várias vezes, instada por DD e EE, a entregar o livro de atas daquele condomínio, o que esta não fez.
No dia .../.../2019, a arguida, aproveitando-se do seu cargo de administradora daquele condomínio, levantou da conta bancária n.º ..., propriedade deste, a quantia de €1100,00, que fez sua.”
D. Nenhuma das testemunha alegou ter alguma vez visto o livro de actas ou provou a sua existência e, não deixa de ser caricato o facto de terem junto aos autos uma acta avulsa que não integra qualquer livro.
E. Depois fazem referencia a tentativas virtuais para reaver o livro de atas que não existe. Ou seja, a arguida nunca foi sequer notificada para entregar o livro de actas.
F. Mais, no artigo 6° da queixa crime, os denunciantes afirmam que a arguida não convocava assembleias e que geria o prédio como se fosse seu.
G. Então se não havia assembleias, havia livro de actas das assembleias inexistentes?
H. Já no ponto 7° da queixa crime, os denunciantes afirmam que consta da acta de 2019 que a arguida não se considerava administradora desde 2018, por considerar que deveria ter tal função o condómino da fracção ...
I. Mais fazem constar que o condómino da fracçao D não assumiu a função em 2018 porque não lhe foi entregue o livro de actas.
J. Ou seja, desde 2018 que era do conhecimento do condominio que o livro de actas não era entregue, pelo que, ao presentar queixa em 2020, já se havia extinguido o procedimento criminal, uma vez que o mesmo depende da apresentação de queixa.
K. Em sede de contestação, alegou a arguida que:
“É verdade que no âmbito das suas funções como administradora do condominio, a arguida levantou € 1100 - Cf documento junto aos autos.
Foi com essa quantia que pagou a reparação do telhado, obra urgente e que mandou fazer durante o exercício do seu mandato”
L. Diz o Tribunal a quo que tal matéria não se considera provada, no entanto, tal não corresponde à verdade.
M. É a própria decisão recorrida que refere “ A testemunha FF, por seu turno, deu conhecimento ao Tribunal de, há cerca de cinco anos, ter adquirido uma fracção autónoma, correspondente ao …, no prédio sito na ..., que se encontrava inabitável, na qual procedeu a obras de reabilitação, e à consequente revenda, teve lugar há cerca de três anos atras.
Foi realizada uma intervenção no telhado do prédio, que se traduziu na colocação de telas nas cumeiras, que supõe ter ocorrido cerca de dois anos antes de ter procedido à compra do apartamento. (sublinado nosso);
N. Curiosamente as telas nas cumeiras são aquelas que resultam dos documentos fotográficos juntos pela arguida, bem como do orçamento junto aos autos, quer com o requerimento de abertura de instrução, quer em com o requerimento de 14/09/2024; o que, aliás, foi confirmado pela testemunha quando confrontado com tais documentos fotograficos!!
O. Há erro notório na apreciação da prova quando se dão factos como provados que, face às regras da experiência comum e à lógica normal da vida, não se poderiam ter verificado ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsidade.
NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito, Deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência ser a arguida absolvida! Assim se fazendo JUSTIÇA!!
4- O recurso da arguida foi admitido na 1ªinstância, por despacho de 05-12-2024.
5- O Ministério Público na 1ª instância, apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso, tendo terminado a sua contra-alegação, com a formulação das seguintes (transcritas) conclusões:
1. A arguida AA foi condenada pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º, nº 1 do Cód. Penal, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, perfazendo um total de € 1500 (mil e quinhentos euros).
2. Nesta sequência, a arguida interpôs recurso da sentença condenatória, alegando a violação do princípio “in dubia pra reu” e o erro notório na apreciação da prova.
3. Invoca a arguida no recurso apresentado que o tribunal a qua violou o princípio “in dúbia pra reu” porquanto não existe prova suficiente para formar a convicção de que a arguida praticou os factos, sendo a prova invocada meramente circunstancial, e por esse motivo impunha-se que o tribunal tivesse absolvido a arguida da prática dos factos imputados, por força do principio do in dubia pra rea.
4. O princípio do in dubia pra rea é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas plausíveis sobre a realidade de determinados factos.
5. O tribunal a qua apreciou todas as provas produzidas e examinadas em audiência de julgamento juntamente com as demais provas pré-constituídas, tendo formado a sua convicção, de acordo com as regras de experiência, da ciência e da lógica, sobre a certeza da prática dos factos pela arguida. Ora, atenta a inexistência de dúvidas no espirito do julgador, não poderia o tribunal a qua entender que a prova produzida conduzia a um nan liquet, como pretende a recorrente. E nessa medida, o tribunal a qua não violou o princípio in dúbia pra rea.
6. O tribunal a qua assentou a sua convicção numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, da prova produzida, em especial dos depoimentos prestados pelas testemunhas DD, EE, FF e GG, conjugados com a demais prova documental junta aos autos, nomeadamente a informação prestada pela ..., a fls. 166.
7. A testemunha DD declarou, além do mais, que no dia ........2019 realizou-se uma assembleia de condóminos, na qual foi eleita uma nova administração do condomínio do referido prédio, composta por si e por EE. Mais relatou que nessa mesma assembleia solicitou à arguida, na qualidade de anterior administradora, que procedesse à entrega do livro de atas e do balanço de contas, o que a mesma nunca o fez, apesar de várias insistências posteriores.
8. Por sua vez, a testemunha EE corroborou o depoimento prestado por DD, tendo relatado que a arguida não efetuou a entrega do livro de atas nem de qualquer outro documento relativo às despesas e recebimento das quotas de condomínio. Disse ainda que encetou várias tentativas, por email e telefone, de contacto com a arguida para que a mesma entregasse os referidos documentos. Mais relatou que durante todo o período de tempo em que a arguida exerceu a função de administradora do condomínio, o prédio nunca foi objeto de qualquer obra ou reparação.
9. De igual modo, a testemunha FF relatou que durante todo o período de tempo em que a arguida exerceu a função de administradora do condomínio, o prédio nunca foi objeto de qualquer obra ou reparação do telhado. Mais declarou que estava presente na reunião que elegeu a nova administração, composta por EE e DD, tendo a arguida sido instada a entregar o livro de atas, o que a mesma anuiu que faria, no entanto na data determinada para lhe entregar o livro e demais documentos, a arguida nada entregou, alegando que tinha sido vitima de um assalto à sua residência.
10. Apesar de a arguida ter alegado na sua contestação que utilizou a quantia de € 1.100,00, para proceder ao pagamento das obras urgentes de reparação do telhado, que mandou fazer durante o exercício do seu mandato, a verdade é que não foi produzida qualquer prova que permitisse demostrar tal factualidade.
11. Contrariamente ao alegado pela recorrente, as testemunhas DD, EE e FF foram perentórias em afirmar que durante o exercício de administração de condomínio pela arguida o prédio não foi objeto de qualquer obra de beneficiação ou de qualquer reparação do telhado.
12. Assim, da conjugação de toda a prova, analisada à luz das regras da experiência comum e da lógica, conclui-se, para além da dúvida razoável, que a arguida praticou os factos descritos nos autos, concretamente que se apoderou do livro de atas e da quantia de € 1.100,00, propriedade do condomínio, pelo que bem andou o tribunal a quo ao dar como provados os factos vertidos na acusação.
13. Por seu turno, invoca a arguida no recurso apresentado que a decisão recorrida, incorre em erro notório na apreciação da prova nos termos do disposto no art.º 410º c) do CPP relativamente aos factos dados como provados.
14. Ressalta do teor da sentença recorrida que todos os factos dados como provados e não provados pelo tribunal a quo respeitam integralmente as regras da experiência comum e a lógica normal da vida, não sendo contraditados por quaisquer outros documentos ou elementos constantes do processo. Pelo que não restam dúvidas de que o julgador ao analisar e apreciar a prova, se pautou por critérios objetivos, lógicos e em obediência das regras de experiência comum.
15. Contrariamente ao alegado pela recorrente, a testemunha FF relatou que durante o período de tempo em que foi proprietário da fração autónoma sita no prédio em causa, não foi realizada qualquer obra ou intervenção no telhado do prédio.
16. Ademais, não foi junto aos autos qualquer documento com relevância probatória (nomeadamente orçamento, fatura ou comprovativo de pagamento) que permitisse corroborar a alegação da arguida de que utilizou a quantia de 1.100,00€ para pagar o preço da reparação do telhado do prédio.
17. O tribunal a quo atendendo aos depoimentos prestados pelas testemunhas FF, DD, EE e GG e ainda aos demais elementos juntos aos autos, deu como provados os factos descritos na acusação, por se ter demonstrado que a arguida se apoderou efetivamente, em proveito próprio, do livro de atas e da quantia de 1.100,00€, propriedade do condomínio, sem motivo justificativo.
18. Analisando, à luz das regras da experiência comum, os depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas da acusação, conjugada com a informação prestada pela ..., os mesmos permitem concluir, claramente, que a arguida perpetrou os factos descritos na acusação.
19. Em conclusão, não merece qualquer censura a decisão recorrida que aplicou à arguida a pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, perfazendo um total de € 1500 (mil e quinhentos euros), porquanto o tribunal a quo não incorreu em qualquer vício ou erro de julgamento, nem violou qualquer preceito legal ou constitucional.
Nestes termos, e face ao exposto, consideramos que deverá improceder o recurso apresentado pela arguida, devendo assim ser mantida, nos seus precisos termos, a douta sentença recorrida.
Vossas Excelências decidirão, porém, como for de JUSTIÇA!
6- Nesta Relação, o Digno Procurador Geral Adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, nos termos e para os efeitos do artº 416º do C.P.P, emitiu parecer onde acompanha o entendimento preconizado na resposta ao recurso do M.P na 1ª instância, conforme argumentação que se transcreve: “Acompanhamos a resposta do magistrado do Ministério Público na primeira instância, considerando-se que a douta sentença recorrida não violou nenhuma norma legal, pelo que deve o recurso apresentado ser julgado improcedente e, consequentemente, a sentença recorrida confirmada e mantida nos seus precisos termos. Nestes termos e convocando tudo o que foi dito pelo Magistrado do Ministério Público, emitimos parecer no sentido da improcedência do recurso interposto.
7- Foi oportunamente cumprido o artº 417º/2 do C.P.P, não tendo sido oferecida resposta.
8- Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
II - Questões a decidir
Delimitação do objecto do recurso
É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (artº 410º nº 2 e 3 do C.P.Penal).
As questões suscitadas pela arguida e recorrente, segundo as conclusões da sua motivação, são as seguintes:
A) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto invocando que o Tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova;
B) Violação do princípio in dubio pro reo;
III- Fundamentação de Facto
A decisão recorrida
Na sentença recorrida o Tribunal a quo considerou provado o seguinte:
I. FUNDAMENTAÇÃO
A) MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Da discussão da causa, com interesse para a decisão, resultou provada a seguinte matéria de facto:
1. Entre o ano de 2015 e o dia .../.../2019, a arguida exerceu funções enquanto administradora do Condomínio do prédio sito na ..., tendo sido exonerada, em tal data, daquela função.
2. Após, entre o dia .../.../2019 e .../.../2020, a arguida foi, por várias vezes, instada por DD e EE, a entregar o livro de atas daquele condomínio, o que esta não fez.
3. No dia .../.../2019, a arguida, aproveitando-se do seu cargo de administradora daquele condomínio, levantou da conta bancária n.° ..., propriedade deste, a quantia de €1100,00, que fez sua.
4. Ao agir conforme descrito, a arguida actuou de forma livre e consciente, com o propósito concretizado de se apropriar daquele livro e daquela quantia em dinheiro, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam, que estes lhe haviam sido entregues por conta do seu exercício de funções enquanto administradora do condomínio daquele prédio e que o fazia sem a autorização do mesmo, a quem causava prejuízo.
5. Mais sabia a arguida que a sua conduta era proibida e punida por lei. Mais se provou, com interesse para a decisão do mérito:
6. À data dos factos objecto dos presentes autos, a arguida tinha residência nas fracções autónomas correspondentes ao . e ao … do prédio referido em 1., o que se mantém até hoje.
7. Por escritura de doação do dia .../.../2017, a arguida doou a fração autónoma designada pela letra ... que corresponde ao .., a sua filha, de nome HH, e doou a nua propriedade, reservando para si o direito de uso e habitação, da fracção autónoma designada pela letra ... que corresponde ao ..., a seu filho, de nome II, ambos do prédio identificado em 1..
8. A arguida AA não tem antecedentes averbados no respectivo registo criminal.
Quanto aos factos não provados, ficou consignado na sentença (transcrição):
B) MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Da discussão da causa não resultaram provados os seguintes factos constantes da contestação:
a) — que a arguida utilizou a quantia de € 1.100,00, a que é feita referência no ponto 3., para proceder ao pagamento das obras urgentes de reparação do telhado, que mandou fazer durante o exercício do seu mandato.
O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão de facto nos seguintes termos:
C) — MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nos termos do artº 205°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei. O Código de Processo Penal consagra a obrigação de fundamentar a sentença nos artigos 97°, n° 5 e 374°, n° 2, exigindo que sejam especificados os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
No caso vertente, a decisão relativa ao preenchimento, por banda da arguida, dos elementos integradores do tipo legal de crime fundou-se nas declarações das testemunhas DD, EE, FF e GG, que se revelaram logicamente coerentes com o envolvimento histórico da situação concreta, tendo sido prestadas de um modo sincero e objectivo, sendo ambas as testemunhas peremptórias em descrever a ocorrência dos factos, que fizeram de forma, no essencial, coincidente e/ou complementar entre si, tendo os referidos depoimentos testemunhais sido conjugados com o acervo documental junto aos autos.
A testemunha DD deu conta ao Tribunal de, à data dos factos objecto dos presentes autos, ser coproprietário da fracção autónoma correspondente ao …, do prédio situado na ..., e de aí ter residência, tendo adiantado que no dia ... de ... de 2019 se realizou uma assembleia de condóminos em que foi eleita uma nova administração do condomínio, composta pelo próprio e pela Dr.a EE (cuja acta se encontra junta, por cópia, a fls. 9 a 16 dos autos), tendo, nesta reunião, sido solicitado à anterior administradora, a ora arguida, que procedesse à entrega do livro de actas e do balanço de contas, o que esta não fez, tendo-se comprometido a disponibilizar tal documentação no prazo de duas semanas, o que nunca viria a fazer, pese embora as repetidas tentativas encetadas pela nova administração nesse sentido, designadamente através de papeis colocados na porta de residência da arguida e na sua caixa de correio. À data dos factos objecto dos presentes autos, a arguida tinha residência nas fracções autónomas correspondentes ao … e ao … do mesmo prédio, o que se mantém até hoje. Na qualidade de administradores do condomínio, o depoente e a Dr.a EE deslocaram-se à dependência de Alvaiade da ..., onde está domiciliada a conta bancária do condomínio, tendo, então, tomado conhecimento do levantamento de um cheque, no valor de € 1.100,00, passado pela anterior administradora, ora arguida, para o qual não encontraram qualquer justificação, tanto mais que na referida assembleia de condóminos não tinha sido feita qualquer referência a tal despesa, nem apresentada qualquer documentação a ela concernente. Em momento subsequente, e na sequência de um pedido feito, pela administração do condomínio, por correio electrónico (cfr. email junto a fls. 44), a ... remeteu cópia do referido cheque para a administração do condomínio, que se encontra junta a fls. 45 dos autos. No decurso da sua inquirição, a testemunha DD foi confrontado com os documentos juntos a fls. 304 a 308 e a fls. 364 e 365, tendo adiantado que os mesmos nunca antes lhe tinham sido exibidos, e, confrontado com as fotografias juntas a fls. 379 a 382, afirmou não ter conhecimento daquilo a que as mesmas respeitam.
O depoimento da testemunha DD foi corroborado, no essencial, pelo depoimento da testemunha EE, que confirmou, designadamente, que a ora arguida, não procedeu à entrega á nova administração do condomínio, nem do livro de actas, nem de quaisquer documentos que pudessem demonstrar quer as despesas que o condomínio tivesse suportado, quer a quotização que tivesse recebido dos condóminos, tendo acrescentado que as diligências que encetou, com esse intuito, junto da arguida, resultaram infrutíferas, por a mesma não atender as chamadas telefónicas, nem responder aos e'mails que lhe foram dirigidos. Referiu, ainda, que, depois de elaborada em computador, a acta da assembleia de condóminos, realizada no dia .../.../2019, foi enviada, por correio electrónico, para a arguida, que nunca respondeu, a dizer se concordava, ou não, com o respectivo teor, nunca tendo sido possível recolher a sua assinatura, por a nova administração nunca ter conseguido contactar a ora arguida. No decurso da sua inquirição, a testemunha EE foi confrontada com os documentos juntos a fls. 304 a 308, 309 a 316 e 333, tendo adiantado que os mesmos nunca antes lhe tinham sido exibidos, não tendo conhecimento daquilo a que respeitam. Referiu, ainda, que a fracção autónoma de que é proprietária, e onde mantém residência, é contígua com a fracção autónoma em que a arguida reside, tendo salientado que durante o período em que a arguida desempenhou as funções de administradora do condomínio, o prédio nunca foi objecto de qualquer tipo de obras de beneficiação. No decurso da sua inquirição, a testemunha EE foi confrontada com as fotografias juntas a fls. 379 a 382, tendo referido não ter conhecimento se as mesmas respeitam ao telhado do prédio em que reside.
A testemunha FF, por seu turno, deu conhecimento ao Tribunal de, há cerca de cinco anos atrás, ter adquirido uma fracção autónoma, correspondente ao R/c Dt.°, no prédio sito na ..., que se encontrava inabitável, na qual procedeu a obras de reabilitação, e à subsequente revenda, que teve lugar há cerca de três anos atrás. Durante o período, de cerca de dois anos, em que foi proprietário da referida fracção autónoma, dirigia-se, todas as semanas, ao telhado do prédio, e tem conhecimento de, nesse período, não terem sido realizadas obras de recuperação no telhado. Foi realizada uma intervenção no telhado do prédio, que se traduziu na colocação de telas nas cumeiras, que supõe ter ocorrido cerca de dois anos antes de ter procedido à compra do apartamento. Tem conhecimento de, no interior da sua residência, a arguida ter procedido a uma abertura numa parede, onde instalou duas janelas VELUX, para permitir a ligação ao sótão, para tratar dos pombos. Recorda-se de ter estado presente numa reunião de condomínio, em que foi nomeada uma nova administração, constituída pela Dr.a EE e pelo DD, em que a arguida ficou incumbida de entregar toda a documentação relativa ao condomínio, que tivesse na sua posse, aos novos administradores, e tendo o depoente ficado incumbido de, no decurso da semana seguinte, num dia que ficou determinado, se dirigir à residência da arguida, para esta lhe entregar, em mão, a documentação em causa. Na data combinada, dirigiu-se à residência da arguida, ocasião em que esta o informou de não lhe poder entregar os documentos em causa, por ter sido vítima de um assalto à sua residência, em que os assaltantes levaram tudo o que aí se encontrava, e de, por esse motivo, não ter nenhuns papeis para entregar, não tendo o depoente, depois desta ocasião, voltado a falar com a arguida sobre este assunto. No decurso da sua inquirição, a testemunha FF foi confrontada com a "Ata Número Um", junta, por cópia, a fls. 9 a 16, tendo afirmado tratar-se esta da ata da assembleia de condóminos em que esteve presente, reconhecendo nela as suas rúbrica e assinatura, confirmando o seu teor. Confrontado com as duas fotografias, juntas a fls. 379 dos autos, adiantou não poder assegurar que as mesmas respeitem ao telhado do prédio em causa.
A testemunha GG, funcionária da ..., foi, no decurso da sua inquirição, confrontada com o cheque junto, por cópia, a fls. 45, reconheceu como tendo sido lavrada pelo seu punho a rúbrica que consta no verso do cheque, tendo adiantado que pese embora não se lembre deste concreto movimento bancário, o cheque foi por si processado, na agência de Alvaiade da ..., e foi levantado, em numerário, pela pessoa que aí se apresentou, o que implicou, forçosamente, que, em momento prévio, a depoente tivesse confirmado a identificação da pessoa em questão, mediante a exibição do cartão de cidadão, uma vez que adopta sempre este procedimento.
Neste particular, refira-se, ainda, em complemento do depoimento da testemunha GG, que consta da informação remetida aos autos pela ..., junta a fls. 166, relativa ao cheque em apreço, que "O cheque ... n.° ... foi debitado na conta ... no dia ...-...-2019, pela então única autorizada em conta AA, NIF ..., com respetiva confirmação de assinatura efetuada no balcão ..., pela nossa colaboradora GG, com domicílio profissional na respectiva Agência, sita em ...".
As testemunhas DD, EE, FF e GG responderam de forma congruente a todas as questões que lhes foram colocadas, sem que no discurso de nenhuma delas se tivesse denotado qualquer pretensão vingativa ou de retaliação em relação à arguida, ou de querer enfatizar defeitos desta, pelo contrário, a sua postura em júlgamento foi de evidente naturalidade, procurando tão-só esclarecer o tribunal, de forma clara, objectiva e pormenorizada, quanto aos aspectos mencionados na acusação, tendo apresentado depoimentos coincidentes e/ou complementares entre si, motivo pelo qual nos mereceram credibilidade, tanto Mais que os respectivos depoimentos, que, atente-se, não foram infirmados por qualquer prova em contrário, encontram suporte de prova no acervo documental junto aos autos, concretamente nos documentos a que acima se fez referência.
Em suma, atento o depoimento das quatro testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, conjugados com a análise crítica do acervo documental junto aos autos, o tribunal ficou convencido que os factos ocorreram nos exactos termos que considerou provados nos pontos 1. a 3. e 6. da Matéria de Facto.
O tribunal socorreu-se, ainda, de uma presunção natural no que tange aos factos subjectivos constantes dos pontos 4. e 5., porquanto os factos objectivos provados, de acordo com as regras da experiência comum, permitem inferir estes factos subjectivos. Que a arguida AA agiu com vontade livre e consciente corresponde ao normal do agir humano, nada tendo sido alegado que ponha em causa essa liberdade de decisão.
No que respeita à factualidade a que é feita menção em 7., o Tribunal sedimentou a sua convicção na análise da escritura-pública de doação, junta, por cópia, a fls. 37 a 40 dos autos.
A ausência de antecedentes criminais da arguida mostra-se certificada no CRC da arguida, com data de emissão de 15/09/2023.
No que respeita à matéria de facto considerada como não provada, a que é feita referência na alínea a), tal decorreu de não ter sido feita prova da sua verificação.
Na realidade, pese embora na contestação que apresentou, a arguida tivesse afirmado que a quantia de € 1100,00, cuja apropriação lhe é imputada na peça acusatória, se destinou a proceder ao pagamento do preço em que orçaram as obras efectuadas no telhado do prédio, não só as testemunhas inquiridas negaram a realização de qualquer obra no telhado do prédio no decurso do período em que a arguida desempenhou as funções de administradora do condomínio, como a arguida não identificou a pessoa ou empresa responsável pela realização das obras, não tendo apresentado qualquer orçamento, factura ou comprovativo de pagamento relativo às alegadas obras.
A este respeito, refira-se que o "recibo" junto aos autos pela arguida, no decurso do julgamento, em cujo canto superior direito se encontra escrito "...", não se encontra assinado, pelo que não pode, naturalmente, ter qualquer relevância probatória, por se desconhecer em absoluto, o responsável pela sua elaboração.
Analisando
A. Da impugnação da matéria de facto
Veio a arguida AA, em sede de recurso, nas suas conclusões, impugnar a decisão sobre a matéria de facto, alegando que a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova, previsto no artº 410º nº2 al c) do CPP, no que respeita aos factos julgados provados, relativos ao tipo de crime de abuso de confiança p.p no artº 205º/1 do C.P
Argumenta que no ponto 7° da queixa crime, os denunciantes afirmam que consta da acta de 2019 que a arguida não se considerava administradora desde 2018, por considerar que deveria ter tal função o condómino da fracção D.
Mais fazem constar que o condómino da fracçao D não assumiu a função em 2018 porque não lhe foi entregue o livro de actas.
Todavia, em sede de contestação, alegou a arguida que: “É verdade que no âmbito das suas funções como administradora do condominio, a arguida levantou € 1100 - Cf documento junto aos autos. Foi com essa quantia que pagou a reparação do telhado, obra urgente e que mandou fazer durante o exercício do seu mandato”.
Diz o Tribunal a quo que tal matéria não se considera provada, no entanto, tal não corresponde à verdade.
É a própria decisão recorrida que refere “A testemunha FF, por seu turno, deu conhecimento ao Tribunal de, há cerca de cinco anos, ter adquirido uma fracção autónoma, correspondente ao R/c DT. º, no prédio sito na ..., que se encontrava inabitável, na qual procedeu a obras de reabilitação, e à consequente revenda, teve lugar há cerca de três anos atras.
Sublinha que foi realizada uma intervenção no telhado do prédio, que se traduziu na colocação de telas nas cumeiras, que supõe ter ocorrido cerca de dois anos antes de ter procedido à compra do apartamento.
Acrescenta ainda que curiosamente as telas nas cumeiras são aquelas que resultam dos documentos fotográficos juntos pela arguida, bem como do orçamento junto aos autos, quer com o requerimento de abertura de instrução, quer em com o requerimento de 14/09/2024; o que, aliás, foi confirmado pela testemunha quando confrontado com tais documentos fotograficos!!
Defende que há erro notório na apreciação da prova, quando se dão factos como provados que, face às regras da experiência comum e à lógica normal da vida, não se poderiam ter verificado, ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsidade.
Requer assim, que esses factos descritos como provados, sejam julgados não provados e seja proferida decisão jurídica em conformidade, absolvendo a arguida da prática do crime de abuso de confiança p.p no artº 205º/1 do C.P, que lhe foi imputado na acusação pública.
O MP na sua resposta, veio contrariar esta concreta pretensão da aguida, sustentando que uma mera discordância subjetiva quanto a factualidade dada como provada, com base numa diferente análise e valoração da prova, face àquela que foi efetuada pelo Tribunal “a quo”, para daí partindo, se chegar inexoravelmente a uma conclusão diferente, não basta para colocar em crise o fundadamente decidido no caso em apreço.
O tribunal a quo atendendo aos depoimentos prestados pelas testemunhas FF, DD, EE e GG e ainda aos demais elementos juntos aos autos, deu como provados os factos descritos na acusação, por se ter demonstrado que a arguida se apoderou efetivamente, em proveito próprio, do livro de atas e da quantia de 1.100,00€, propriedade do condomínio, sem motivo justificativo.
Conclui assim, que no caso em apreço o Tribunal “a quo” explicou fundamentadamente a razão pela qual julgou provados e não provados os factos que enquanto tal descreve na sentença recorrida, conjugando toda a prova produzida, designadamente a testemunhal e demais prova documental, tendo motivado a sua convicção através de uma ponderação crítica racional e razoável de todos os elementos probatórios, concluindo assim que a decisão daa senhora Juiza na 1ª instância, não merece, quanto a esta parte, qualquer censura e portanto deve o recurso improceder neste segmento (conclusões 14 a 19 da sua resposta).
Quid júris?
Como se sabe, o apelidado “erro de julgamento” pode suscitar dois tipos de recurso:
- um, que visa a reapreciação da prova produzida em julgamento, ao abrigo do artº 412º/3 do C.P.P (impugnação em sentido lato);
- e outro com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o artº 410º/2 do C.P.P (impugnação em sentido estrito).
Resulta expressa na motivação do recurso, a pretensão da arguida de impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, mas nessa impugnação, não procedeu de acordo com o disposto no artº 412º n.ºs 3 e 4 do C.P.Penal, sendo evidente do corpo da motivação, que não se mostram cumpridos os ónus formais de que depende a reapreciação da prova.
Ao longo da motivação, a recorrente limita-se a impugnar a matéria de facto, mas expressando apenas a sua própria valoração e apreciação da prova testemunhal e documental que foi produzida em julgamento.
Ora um pedido de impugnação da matéria de facto nos termos do artº 412º/3 do C.P.P, tem de obedecer a determinados pressupostos legais para poder proceder.
Ou seja, no caso de impugnação alargada, a reapreciação da matéria de facto por este Tribunal da Relação, depende do cumprimento de requisitos de forma e conhece condicionantes e limites nos termos do nº 3 e 4 do artº 412º do C.P.P.
No que respeita a requisitos formais, o recorrente que queira ver reapreciados determinados pontos da matéria de facto, tem que dar cumprimento a um duplo ónus a saber:
- indicar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência;
- indicar as provas, que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe.
Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o nº 4 do artº 412º do C.P.P).
O que se pretende pois, é a delimitação objectiva do recurso, com a fundamentação da pretensão e o esclarecimento dos objectivos que o recorrente se propõe.
Isto é, impõe-se-lhe o dever de tomar posição clara, nas conclusões sobre o objecto do recurso, especificando o que no âmbito factual, pretende ver reponderado, assim como na hipótese de renovação, especificando as provas que devem ser renovadas (artº 412º/3/c) do C.P.P).
E tal sucede assim, porque o recurso da matéria de facto vem concebido pela lei como remédio jurídico e não como instrumento de refinamento jurisprudencial.
Por outras palavras, não foi concebido como instrumento ao serviço da realização de novo julgamento com reapreciação de toda a prova que fundamenta a decisão recorrida, como se o julgamento na primeira instância não tivesse existido.
É antes um instrumento concebido para a correcção de erros de julgamento e de procedimentos, devidamente descriminados pelas partes.
Ou seja, a intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção “cirúrgica” no sentido de delimitada, restrita à indagação ponto por ponto da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.
Não basta que se diga que determinado facto está mal julgado, sendo necessário constatar-se esse mal julgado, face às provas que são especificadas e concluir-se que às mesmas, o julgador injustificadamente retirou credibilidade.
Atente-se que o artº 412º nº3, al. b), do C.P.P. menciona provas que imponham decisão diversa e nessa medida tal como o acima referido, a decisão recorrida só é de alterar, quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.
Ora no caso presente, a arguida não impugnou de forma especificada na sua motivação, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e tãopouco, indicou quaisquer provas, que imponham decisão diversa da recorrida – sendo certo que a versão da arguida, ora apresentada em sede de recurso, pela especificidade própria do seu estatuto processual, não pode neste caso ser encarada como meio de prova, que imponha uma decisão diversa (o julgamento foi realizado na ausência da arguida que requereu ser julgada na sua ausência e além do mais como se sabe o arguido não está sujeito a juramento e se decidir falar, não está sujeito ao dever de falar com verdade, sobre os factos objecto do processo).
Foi também indicado pela arguida, como meio de prova, que comprova a sua versão, o depoimento da testemunha FF e ainda os documentos juntos pela arguida (documentos fotográficos e orçamento junto com o requerimento de 14.9.24) e que segundo a arguida, vieram corroborar a sua versão.
Mas, apreciado o depoimento das testemunhas DD, EE e GG e todos os outros meios de prova em conjunto (prova documental), segundo as regras da experiência comum (cfr o que ficou expresso na motivação da sentença), é evidente que deles não resulta corroborada a versão da arguida, quanto aos factos que lhe foram concretamente imputados pelo MP, no que respeita à sua apropriação indevida, da quantia de 1.100,00 euros no circunstancialismo de tempo e de lugar descrito na acusação e que se mostra descrito na factualidade provada na sentença - sendo facto assente, que tal quantia lhe foi entregue pelo condomínio do prédio onde residia, para ser utilizada em proveito dos condóminos.
Com efeito, tal como foi sublinhado pelo MP na sua resposta, contrariamente ao alegado pela recorrente, a testemunha FF relatou que durante o período de tempo em que foi proprietário da fração autónoma sita no prédio em causa, não foi realizada qualquer obra ou intervenção no telhado do prédio.
Ademais, não foi junto aos autos qualquer documento com relevância probatória (nomeadamente orçamento, fatura ou comprovativo de pagamento) que permitisse corroborar a alegação da arguida de que utilizou a quantia de 1.100,00€ para pagar o preço da reparação do telhado do prédio.
Por outro lado a arguida, na sua motivação de recurso, não faz qualquer referência às provas que devem ser renovadas, nem expressa formalmente um pedido de renovação da prova ao abrigo do artº 412º do C.P.P.
Assim sendo, impõe-se a conclusão que não obstante a sua pretensão de querer impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, a recorrente não deu integral cumprimento ao artº 412º/3 e 4 do C.P.P.
Limitou-se a arguida na realidade a requerer de forma abrangente e generalizada a renovação de toda a prova produzida, no que respeita à conduta analisada pelo Tribunal a quo - apropriação indevida da quantia de 1.100,00 euros, que utilizou em proveito próprio – sendo facto assente que tal quantia havia sido recebida, enquanto foi administradora do condomínio -, e que constitui parte do objecto destes autos, o que no fundo equivale a requerer um segundo julgamento.
Ora tal indicação/pretensão, não só não cai fora da previsão do citado preceito, como o pedido de realização de um segundo julgamento, não é como se sabe, permitido no nosso sistema de recursos.
Embora a recorrente possa com base na sua própria visão/convicção probatória, discutir a convicção que o Tribunal de julgamento formou quanto à prova, há que evidenciar desde logo, que por ausência de imediação e de oralidade, o Tribunal de 2ª instância não tem, quanto ao recurso da matéria de facto, os mesmos poderes que possui a 1ª instância.
Este Tribunal da Relação, só pode alterar o ali decidido, se as provas indicadas pelo recorrente, impuserem decisão diversa da proferida (alínea b) do nº 3 do artigo 412º do C.P.P).
E no caso em apreço, ainda que a prova produzida e examinada na audiência da 1ª instância, nos pontos indicados pela recorrente, pudessem permitir - pelo menos na opinião daquela - uma decisão em sentido diferente, claramente ela não impunha decisão diversa da proferida pelo Tribunal a quo, como acima já ficou dito.
Neste termos, não tendo a arguida dado integral cumprimento aos ónus resultantes do preceituado no artº 412º nºs 3 e 4 do C. P. Penal, está este Tribunal de Relação impossibilitado de proceder à modificação da decisão proferida em sede de matéria de facto pelo Tribunal a quo (artº 431º do CPP).
Ou seja, melhor dizendo, não tendo a arguida, dado cumprimento aos ónus resultantes do preceituado no artº 412º nºs 3 e 4 do C. P. P, improcede a impugnação de facto nos termos do artº 412º do C.P.P e consequentemente, a alteração da matéria de facto (artº 431º do C.P.P) só seria possível, caso a sentença padecesse de algum dos vícios do artº 410º do C.P.P, o que também se constata não ocorrer, como de seguida se passa a demonstrar.
Com efeito, numa averiguação oficiosa acerca da existência dos vícios que se encontram previstos no artº 410º/2 do C.P.P, constata-se a partir da leitura atenta do texto da sentença recorrida, que a mesma não padece de qualquer desses vícios aí enunciados, nomeadamente do erro notório sobre a apreciação da prova, expressamente invocado pela arguida.
Vejamos então em concreto, como a sentença recorrida, não padece do alegado vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artº 410º nº 2 c) do C.P.P., ao contrário do que veio invocar a recorrente (conclusão C)).
Este vício configura-se quando se retira de um facto dado como provado, uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum.
O erro notório na apreciação da prova tem pois que resultar impreterivelmente do próprio teor da sentença, existe este erro, quando considerado o texto da decisão recorrida por si só ou conjugado com as regras de experiência comum se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com preparação normal.
Ocorre este vício, quando se dão por provados factos, que face às regras de experiência comum e à lógica normal, traduzem uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e por isso incorrecta, quando se violam as regras sobre prova vinculada ou de “leges artis” ou quando resulta do próprio texto da motivação da aquisição probatória que foram violadas as regras do “in dubio”.
Alega a recorrente, que a sentença padece deste vício, porquanto o Tribunal recorrido, nunca poderia ter julgado como provados os factos descritos sob os pontos 1. a 5, a partir da prova testemunhal e documental, que foi produzida em audiência.
Em resumo, defende que ue o depoimento da testemunha FF e os documentos por ela juntos aos autos, nomeadamente um orçamento da firma ..., no valor de 1.355,91 euros, comprovam que foi realizada uma intervenção no telhado do prédio, onde a arguida foi administradora do condomínio e que foi para fazer face ao custo dessa reparação, que a arguida levantou 1100,00 euros.
Conclui assim, não ser claro por isso, o percurso cognoscitivo e valorativo que levou à tomada da decisão por parte do Tribunal, quanto à prova daqueles factos em concreto, isto é, não se faz aí referência ao percurso lógico e valorativo que levou a que da prova produzida se pudesse retirar em julgamento, a conclusão de que a arguida se apropriou indevidamente da quantia de 1.100,00 euros, que utilizou em proveito próprio, sendo facto assente que havia recebido tal quantia, na qualidade de administradora do condomínio, nos moldes descritos na factualidade provada, sob os pontos 1) e 5), pelo que na óptica da recorrente, o Tribunal a quo não fez um verdadeiro exame crítico das provas.
Desta forma, a arguida veio imputar à sentença recorrida, um erro notório na apreciação da prova, utilizada pelo Tribunal a quo para fundamentar os factos provados descritos nos pontos 1 a 5.
E defende que tais factos têm de ser postos em causa, por não ter sido feita prova suficiente que permita com exatidão e imparcialidade que se exige, atribuir a si, a autoria do crime de abuso de confiança, pelo qual foi condenada.
Termina pois pedindo que a sentença recorrida, seja alterada no que respeita a esta factualidade supra mencionada, e os factos provados acima referidos, sejam julgados não provados.
Vejamos se assiste razão à recorrente.
Extrai-se da motivação de recurso apresentada pela recorrente, que o cerne da sua discordância, assenta na valoração da prova efetuada pelo Tribunal a quo, valoração essa, livremente formada e fundamentada, a qual é a convicção lógica em face da prova produzida, pelo que deve ser acolhida a opção do julgador, que beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
No caso em apreço, a prova foi efectivamente apreciada segundo as regras do artigo 127º do Código de Processo Penal, com respeito pelos limites ali impostos à livre convicção, não existindo qualquer erro, como alega a recorrente.
Examinados os factos provados e não provados descritos na sentença e a respectiva fundamentação, entendemos que não assiste pois qualquer razão à arguida e a sua argumentação, além de não ser relevante juridicamente, em termos de poder integrar o vício que invoca, de erro na apreciação da prova (porquanto é evidente que a recorrente se está a socorrer de elementos de prova externos ao próprio texto da decisão recorrida), tal alegação também não possui qualquer consistência.
Com efeito, a arguida recorrente, discordou da valoração que o Tribunal a quo efetuou da prova testemunhal e documental, mas sem apresentar quaisquer elementos de prova examinados em juízo, com idoneidade para comprovar esta sua versão.
De tudo o acima exposto se vê, que o seu recurso na parte respeitante à impugnação da matéria de facto, assenta pois essencialmente numa discordância entre aquilo que o Tribunal a quo julgou como provado e não provado e aquilo que a recorrente entende ter resultado das suas própria apreciação da prova tesemunhal e documental produzidas.
Tal como bem foi sublinhado pelo MP na sua resposta, também nós entendemos que a apreciação que o Tribunal a quo efetuou, quer do depoimento das testemunhas, quer da restante prova documental, produzidas em julgamento, não nos merece qualquer reparo.
Isto porque, como já dissemos supra, existindo duas versões opostas, trazidas a juízo, sobre os acontecimentos descritos na acusação, perante as dúvidas suscitadas sobre qual é a versão verdadeira, prevalece aquela que o Tribunal aceitar como válida, desde que devidamente fundamentada a mesma, como efectivamente sucedeu neste caso.
Na realidade, se nos focarmos em concreto, na factualidade que foi dada como assente, claramente se vê, que ao contrário do que defende a arguida, o Tribunal a quo não se bastou com as declarações prestadas em juízo pela testemunha FF, mas foi igualmente ponderada toda a restante prova testemunhal e documental, cfr passagem a seguir transcrita (com sublinhados nossos):
Nos termos do artº 205°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei. O Código de Processo Penal consagra a obrigação de fundamentar a sentença nos artigos 97°, n° 5 e 374°, n° 2, exigindo que sejam especificados os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
No caso vertente, a decisão relativa ao preenchimento, por banda da arguida, dos elementos integradores do tipo legal de crime fundou-se nas declarações das testemunhas DD, EE, FF e GG, que se revelaram logicamente coerentes com o envolvimento histórico da situação concreta, tendo sido prestadas de um modo sincero e objectivo, sendo ambas as testemunhas peremptórias em descrever a ocorrência dos factos, que fizeram de forma, no essencial, coincidente e/ou complementar entre si, tendo os referidos depoimentos testemunhais sido conjugados com o acervo documental junto aos autos.(…) A testemunha FF, por seu turno, deu conhecimento ao Tribunal de, há cerca de cinco anos atrás, ter adquirido uma fracção autónoma, correspondente ao R/c Dt°, no prédio sito na ..., que se encontrava inabitável, na qual procedeu a obras de reabilitação, e à subsequente revenda, que teve lugar há cerca de três anos atrás. Durante o período, de cerca de dois anos, em que foi proprietário da referida fracção autónoma, dirigia-se, todas as semanas, ao telhado do prédio, e tem conhecimento de, nesse período, não terem sido realizadas obras de recuperação no telhado. Foi realizada uma intervenção no telhado do prédio, que se traduziu na colocação de telas nas cumeiras, que supõe ter ocorrido cerca de dois anos antes de ter procedido à compra do apartamento. (…) No decurso da sua inquirição, a testemunha FF foi confrontada com a "Ata Número Um", junta, por cópia, a fls. 9 a 16, tendo afirmado tratar-se esta da ata da assembleia de condóminos em que esteve presente, reconhecendo nela as suas rúbrica e assinatura, confirmando o seu teor. Confrontado com as duas fotografias, juntas a fls. 379 dos autos, adiantou não poder assegurar que as mesmas respeitem ao telhado do prédio em causa.(…).
Em suma, atento o depoimento das quatro testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, conjugados com a análise crítica do acervo documental junto aos autos, o tribunal ficou convencido que os factos ocorreram nos exactos termos que considerou provados nos pontos 1. a 3. e 6. da Matéria de Facto.
O tribunal socorreu-se, ainda, de uma presunção natural no que tange aos factos subjectivos constantes dos pontos 4. e 5., porquanto os factos objectivos provados, de acordo com as regras da experiência comum, permitem inferir estes factos subjectivos. Que a arguida AA agiu com vontade livre e consciente corresponde ao normal do agir humano, nada tendo sido alegado que ponha em causa essa liberdade de decisão.
No que respeita à factualidade a que é feita menção em 7., o Tribunal sedimentou a sua convicção na análise da escritura-pública de doação, junta, por cópia, a fls. 37 a 40 dos autos.
A ausência de antecedentes criminais da arguida mostra-se certificada no CRC da arguida, com data de emissão de 15/09/2023.
No que respeita à matéria de facto considerada como não provada, a que é feita referência na alínea a), tal decorreu de não ter sido feita prova da sua verificação.
Na realidade, pese embora na contestação que apresentou, a arguida tivesse afirmado que a quantia de € 1100,00, cuja apropriação lhe é imputada na peça acusatória, se destinou a proceder ao pagamento do preço em que orçaram as obras efectuadas no telhado do prédio, não só as testemunhas inquiridas negaram a realização de qualquer obra no telhado do prédio no decurso do período em que a arguida desempenhou as funções de administradora do condomínio, como a arguida não identificou a pessoa ou empresa responsável pela realização das obras, não tendo apresentado qualquer orçamento, factura ou comprovativo de pagamento relativo às alegadas obras.
A este respeito, refira-se que o "recibo" junto aos autos pela arguida, no decurso do julgamento, em cujo canto superior direito se encontra escrito "...", não se encontra assinado, pelo que não pode, naturalmente, ter qualquer relevância probatória, por se desconhecer em absoluto, o responsável pela sua elaboração.”
Perante esta fundamentação da matéria de facto, podemos constatar que no fundo, o que ocorre aqui, é que a arguida discordou da leitura ou apreciação da prova que foi feita pelo Tribunal a quo e como é sabido, essa simples discordância, não pode servir de fundamento para motivar a procedência de um recurso.
Na verdade, como é do conhecimento geral, a prova é apreciada de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, consignado no artº 127º do C.P.P onde claramente se pode ler “…a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Estamos pois em sede de um certo poder discricionário do Juiz que “só pode ser atacado em função de vícios típicos endógenos da sentença ou erros de direito, ou claros erros de julgamento”, os quais no caso presente não se verificam notoriamente.
Com efeito, citando a jurisprudência constante do Ac. da Relação de Coimbra de 6.3.2002 in C.J II, 44: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Desta forma, o Tribunal a quo, entendeu ser possível concluir, da análise da toda a prova produzida, estar suficientemente demonstrada sem qualquer dúvida, a factualidade que se encontra descrita na acusação, relativamente à apropriação indevida por parte da arguida, da quantia de 1.100,00 euros, que utilizou em proveito próprio, sendo facto assente que havia recebido tal quantia, na qualidade de administradora do condomínio, e que a mesma actuou de forma livre e consciente, bem sabendo que agia sem o consentimento do condomínio e que causava prejuízo a este, preenchendo assim esta sua conduta, todos os elementos o tipo objectivo e subjectivo do crime de abuso de confiança p.p no artº 205º/1 do C.P.
De resto, como se sabe, a decisão da matéria de facto, tem de resultar da análise conjunta e avaliação crítica de toda a prova produzida em audiência e não apenas de segmentos fragmentados dessa mesma prova.
Por outro lado, de acordo com o referido princípio da livre apreciação da prova que domina o nosso sistema (por oposição ao regime da prova legal) não existem normas que determinam o valor ou a eficácia probatória a atribuir a cada meio probatório.
Nessa medida a atribuição de maior ou menor força a um meio de prova depende apenas da convicção do julgador, desde que se mostre de acordo com a experiência comum.
A convicção assim formada pelo Tribunal a quo não pode ser censurada, sob pena de se aniquilar a livre apreciação da prova do julgado, construída na base da imediação e da oralidade.
Neste seguimento e tal como foi sublinhado pelo M.P na 1ª instância e nesta Relação, também nós entendemos, que a convicção da Srª Juíza que presidiu ao julgamento realizado na 1ª instância, se mostra devidamente explicitada, num processo lógico dedutivo, conforme às regras da experiência comum e dos normais acontecimentos da vida e assente numa análise conjugada de provas legítimas, sendo como tal inatacável, porque devidamente enquadrada no artº 127º do C.P.P.
Resulta claramente que a recorrente pretende é pôr em causa o processo de valoração da prova efectuado pelo Tribunal a quo, querendo na verdade, que a mesma prova seja valorada de acordo com a sua própria apreciação, esquecendo-se, contudo, que a prova é apreciada, salvo quando a lei dispuser diferentemente, segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade que julga – artº 127º do C. P. Penal e não de acordo com a apreciação que dela fazem os destinatários da decisão.
Livre apreciação essa todavia, que não significa livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, realizando-se de acordo com critérios lógicos e objectivos, expressos através da motivação.
Sendo assim, não assiste razão à arguida neste segmento do recurso e ao impugnar a matéria de facto da forma supra referida, pareceu esquecer a detalhada fundamentação elaborada pelo Tribunal de 1ª Instância, na motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Aí foram expressamente indicados os meios de prova tomados em consideração, deu-se conta da relevância que foi atribuída a cada um deles, ficando assim devidamente fundamentada a decisão de considerar provados, os factos supra mencionados, que integram o tipo objectivo e subjectivo do crime de abuso de confiança.
O Tribunal recorrido não violou assim, as regras da experiência comum nem da lógica, ao valorar os depoimentos supramencionados, nos termos em que o fez.
Em nosso entender, tal sucedeu no caso sub Júdice, face à motivação da decisão de facto, expressa na sentença final condenatória, onde o Tribunal a quo se reportou expressa e detalhadamente à ponderação de toda a prova produzida (prova testemunhal e prova documental) num raciocínio lógico e inteligível, donde resulta terem sido examinadas criticamente, todas as provas que serviram para formar a sua convicção
A convicção assim formada pelo Tribunal a quo não pode ser censurada, sob pena de se aniquilar a livre apreciação da prova do julgado, construída na base da imediação e da oralidade.
Por todas as considerações acima referidas, o Tribunal a quo logrou concluir da análise crítica de toda a prova examinada em audiência, haver sido produzida suficiente e consistente prova, no sentido de permitir de forma fundada e sem quaisquer dúvidas, imputar à arguido, a prática em autoria material de um crime de abuso de confiança p.p no artº 205º/1 do C.P tal como o descrito na acusação pública.
Entendemos na realidade, como acima já dissemos, que essa apreciação se mostra devidamente fundamentada na sentença, de forma coerente e lógica, de acordo com as normas legais e as regras da experiência comum, estando pois estruturada de forma respeitadora dos diversos critérios legais e designadamente do artº 374º/2 e artº 127º do C.P.P.
Não se vislumbra assim repete-se, da matéria de facto julgada provada e não provada e da respectiva fundamentação acima reproduzidas, qualquer apreciação da prova que resulte ser manifestamente ilógica, arbitrária ou de todo insustentável, denunciando a existência de um erro notório evidente para um cidadão comum ou um jurista com preparação normal.
Em resumo, nada há a apontar ao processo de valoração da prova feita pelo Tribunal a quo, mais concretamente, no que se refere ao depoimento da testemunha FF.
Concluino, nada a apontar portanto, quanto aos factos provados e não provados descritos na sentença recorrida, os quais se mostram bem julgados, de acordo com a prova produzida em audiência e como tal, a matéria de facto não pode ser alterada, considerando-se definitivamente fixada.
Improcede, assim, a impugnação feita pela arguida recorrente quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto, encontrando-se a sentença bem fundamentada, não padecendo igualmente de nenhuma ilegalidade ou nulidade, tendo sido proferido de acordo com a lei constitucional e processual, sem qualquer violação nomeadamente do artº 32º/2 da C.R.P e artº 374º/2 do C.P.P.
B) Da alegada violação do princípio in dubio pro reo
Relacionado com a valoração da prova, alegou ainda a recorrente, ter havido violação do princípio do “in dubio pro reo”, que invoca a seu favor para obter uma absolvição.
Para o efeito, argumentou: (conclusões B): “Não existe prova suficiente para formar a convicção de que o arguida praticou os factos, sendo a prova invocada meramente circunstancial, devendo a arguida em nome do Princípio in dúbio pro reo, ser absolvida”.
Pelo contrário, o M.P na sua resposta ao recurso, veio defender posição contrária, argumentando do seguinte modo: “O princípio do in dubia pro reo é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas plausíveis sobre a realidade de determinados factos. O tribunal a quo apreciou todas as provas produzidas e examinadas em audiência de julgamento juntamente com as demais provas pré-constituídas, tendo formado a sua convicção, de acordo com as regras de experiência, da ciência e da lógica, sobre a certeza da prática dos factos pela arguida. Ora, atenta a inexistência de dúvidas no espirito do julgador, não poderia o tribunal a qua entender que a prova produzida conduzia a um nan liquet, como pretende a recorrente. E nessa medida, o tribunal a qua não violou o princípio in dubio pra reo.”
Desta forma, entendeu resultar claramente da análise crítica da prova, que o Tribunal a quo não teve qualquer dúvida, quanto à prática pela arguida, do crime de abuso de confiança p.p no artº 205º/1 do C.P, pelo qual a mesma foi condenada, não havendo assim lugar para a aplicação do princípio in dubio pro reo, não se mostrando violada qualquer norma ou princípio legal, pelo que a sentença não lhe merece qualquer censura.
Vejamos.
Em face do que já acima referimos aquando da análise da impugnação da matéria de facto, não é minimamente aceitável a tese vertida no recurso, que se revela totalmente inconsistente, dado que a convicção do Tribunal a quo se mostra alicerçada em factos objectivos e concretos, que o julgador não teve dúvidas em dar como provados.
Na verdade, este princípio in dubio pro reo tem aplicação na apreciação da prova, impondo que, em caso de dúvida insuperável e razoável sobre a valoração da prova, se decida sempre a matéria de facto, no sentido que mais favorecer o arguido.
É um princípio probatório que procura solucionar um problema de dúvida em relação à matéria de facto e não ao sentido de uma norma jurídica.
Trata-se de um princípio, que traduz o correspectivo do princípio da culpa em Direito Penal, ao garantir a não aplicação de qualquer pena, sem prova suficiente dos elementos típicos, sendo um corolário lógico do princípio da presunção de inocência do arguido e que não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais.
Por isso, não podemos deixar de realçar que a violação de tal princípio, só existiria se o Tribunal de julgamento reconhecendo a dúvida, ainda assim, condenasse a arguida, pelo crime de abuso de confiança p.p no artº 205º/1 do C.P.
O que não foi o caso.
Ora, tal como já acima ficou dito, em nosso entender foi apreciada conjunta e criticamente toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, pelo que nenhum reparo nos merece a sentença recorrida, no que concerne à matéria de facto considerada provada e não provada, em relação à qual o Tribunal de 1ª instância, não ficou com qualquer dúvida.
Por outras palavras, o Tribunal a quo, tendo apreciando criticamente todas as provas produzidas conjugadas entre si e com as regras de experiência comum, conforme consta da respectiva fundamentação de facto, convenceu-se, sem margem para dúvidas, de determinados factos que constam da decisão ora em crise.
Relativamente à discordância factual da recorrente, quanto à convicção do Tribunal a quo, o que já acima vimos é que a mesma não tem qualquer base de sustentação, pois a simples leitura da matéria de facto provada e respectiva fundamentação constantes da sentença recorrida, não revelam que a referida convicção do Tribunal a quo seja notoriamente errada, ilógica, contrária às regras da experiência comum.
No fundo, e a nosso ver, repetimos, o que a recorrente pretende sindicar é a forma como o Tribunal valorou a prova produzida em audiência de julgamento, valoração que como já acima dissemos, o Tribunal de 1ª instância é livre de fazer, ao abrigo do disposto no artº 127º do C. P. Penal.
Porém, se resulta da fundamentação da sentença recorrida, não ter a convicção do Tribunal de julgamento assentado em raciocínios ou juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios ou ter sido elaborada a decisão ora impugnada, com desrespeito das regras sobre o valor da prova vinculada e dos princípios gerais sobre a produção da prova (nomeadamente sobre a proibição da valoração da prova indirecta), nem a existência de qualquer dúvida insanável, então não é possível concluir também pela violação do princípio in dubio pro reo.
A decisão proferida, tendo em conta o seu teor, mostra-se coerente, harmónica, sem antagonismos factuais, não contém factos contrários às regras da experiência comum, nem a existência de erro, que seja patente para qualquer cidadão, não denotando a existência de qualquer sombra de dúvida, na apreciação da prova por parte do julgador.
Por outro lado, a dúvida da recorrente é aqui irrelevante e jamais poderia conduzir à constatação da violação de tal princípio, pois que o mesmo é afinal, uma regra de que apenas o próprio julgador se deve socorrer quando tem dúvidas.
Não basta com efeito, que exista um depoimento ou um documento que à recorrente não mereça credibilidade, para simplesmente se poder concluir que a sua valoração pelo Tribunal a quo redundou na violação do princípio “in dubio pro reo”.
Uma coisa é a dúvida da recorrente, outra, a do julgador, e só a dúvida deste pode conduzir à aplicação de tal princípio.
Analisar criticamente a prova, significa justamente concluir um facto da conjugação dos vários elementos trazidos à discussão da causa e reputá-lo como verdadeiro ou falso, em face daquilo que for a convicção do julgador, dentro do seu critério de livre apreciação.
Tudo visto, defender no contexto referido, a violação do princípio “in dubio pro reo”, como fez a recorrente, carece pois de fundamentos sustentáveis.
Efectivamente, no caso em apreço, lendo a decisão recorrida, designadamente a fundamentação de facto e a indicação e exame crítico das provas em que se baseou a convicção do Tribunal, quanto ao crime de abuso de confiança imputado à arguida AA, não se vislumbra que o Tribunal a quo tivesse dado como provado, qualquer um dos factos que como tal enumerou, tendo dúvidas sobre a sua verificação, nem se nos afigura que tais dúvidas tivessem existido.
«A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de quaisquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. De outra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.» - Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional 198/2004 de 24/03/2004, D.R. II Série, de 02/06/2004 in www.tribunalconstitucional.pt/acordaos
Resulta assim claro, que o preceituado no artº 127º CPP deve ter-se por cumprido, sempre que a convicção a que o Tribunal de julgamento chegou, se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbre qualquer assomo de arbítrio na apreciação da prova, considerando que o objecto da prova tanto inclui os factos probandos (prova directa) como factos diversos do tema de prova, mas que permitam, com o auxilio das regras de experiência, uma ilação quanto a estes (prova indirecta ou indiciária).
Face ao que acima ficou dito, torna-se de difícil compreensão a argumentação da recorrente no que respeita à incorrecta aplicação deste princípio in dubio pro reo, pelo Tribunal a quo, por tal alegação não se encontrar minimamente fundamentada, nem ter qualquer correspondência com a realidade factual apurada.
Sem necessidade de mais considerandos, concluímos que também neste ponto o recurso ora em análise, não será provido.
Assim sendo, o recurso da arguida improcede na íntegra.

IV – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em:
a) Julgar não provido o recurso interposto pela arguida AA e em consequência, manter a decisão condenatória, nos seus precisos termos.
b) Condenar a arguida em taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) Ucs.

Lisboa, 18 de Junho de 2025
Ana Paula Grandvaux Barbosa
João Bártolo
Carlos Alexandre