RECEPTAÇÃO
BRANQUEAMENTO
ERRO DE DIREITO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
REFORMATIO IN PEJUS POR VIA INDIRECTA
ESPÉCIE E MEDIDA DA PENA
REGRAS DE COMPETÊNCIA
Sumário

I - Os factos objecto deste processo integram a prática, não do crime de receptação por que a arguida foi condenada na sentença recorrida, mas sim do crime de branqueamento.
II - Existem duas frentes de impossibilidade legal e jurídica de colmatar este erro de direito na qualificação jurídica dos factos provados como crime de receptação, através, por exemplo, do reenvio ao abrigo do disposto nos arts. 426º e 426ºA a fim de ser dado cumprimento ao procedimento da alteração substancial de factos nos termos previstos no art. 359º, ou somente ao de alteração da qualificação jurídica, previsto no art. 358º nºs 1 e 3, todos do CPP, ou da comunicação ao arguido a que se refere o art. 424º nº 3 do CPP.
III - A primeira é, desde logo, a incidência do princípio da proibição da «reformation in pejus», na medida em que este não se faz sentir apenas na pena concreta, tal como previsto no art. 409º do CPP e atinge também, ainda que por via indirecta, o objecto do processo.
IV - Com efeito, o limite da «reformatio in pejus» refere-se não apenas à medida concreta da pena mas também à sua espécie como decorre do nº 1 parte final do art. 409º do CPP.
V - Ora, o crime de receptação é punível com pena de multa ou de prisão em alternativa e o crime de branqueamento é punível apenas com pena de prisão.
VI - É inconstitucional, por violação do disposto do art. 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa a interpretação do art. 409º do CPP, no sentido de que a Proibição da Reformatio in Pejus não incluí a Reformatio in Pejus Indirecta, ou seja, que deixa de produzir os seus efeitos, consentindo a agravação da pena aplicada ao Arguido pelo Tribunal «a quo», após a anulação do primeiro julgamento pelo Tribunal «ad quem».
VII - Exactamente pela mesma razão, havendo alteração da qualificação jurídica para um crime mais grave, também deverá sempre ser respeitado o princípio que proíbe a reformatio in pejus, o que implica que o tribunal superior nunca pode julgar para além daquilo que lhe foi pedido, acabando por exceder a medida da pena encontrada na decisão recorrida e que funcionará como limite da pena.
VIII - No caso presente ainda há um outro obstáculo que são as regras de competência – arts. 14º a 16º do CPP e 80º, 81º, 118º da LOSJ – na medida em que o julgamento de factos integradores do crime de branqueamento é da competência do Tribunal Colectivo (Juízo Central Criminal) e os subsumíveis ao crime de receptação são da competência do Tribunal Singular (juízo local criminal).

Texto Integral

Acordam os juízes, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Por sentença proferida em , no processo comum singular nº 381/19.2GAMGL do Juízo Local Criminal de Loures - Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, foi decidido julgar a acusação parcialmente procedente por parcialmente provada, convolando-a e, em consequência:
A) Condenar a arguida AA como autora de um crime de receptação, p. p. pelo artigo 231º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 100 (cem dias) de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros, ou seja, a multa de 500 (quinhentos) euros.
B) Condenar o arguido BB como autor de um crime de receptação, p. p. pelo artigo 231º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 7 (sete) euros, ou seja, a multa de 700 (setecentos) euros.
C) Condenar ambos os arguidos, solidariamente no pagamento ao Estado da quantia de € 2500, correspondente à vantagem patrimonial decorrente da prática do crime.
A arguida AA interpôs recurso desta sentença, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
A.
O crime de receptação previsto no artigo 213.º, n.º 2, do Código Penal exige o dolo do seu Autor.
B.
A matéria de facto dada como provada não permite essa imputação, pelo que não se encontra preenchido o elemento subjectivo do tipo.
C.
Não se encontra igualmente preenchido o elemento objectivo do tipo, uma vez que se desconhecem em absoluto as circunstâncias em que as quantias foram transferidas para a conta da Arguida.
D.
A Arguida não teve qualquer vantagem patrimonial.
E.
Face ao exposto, deve a Douta Sentença ser revogada, por falta de demonstração do preenchimento do tipo do crime de receptação, e substituída por Decisão que absolva a Arguida de todos os factos pelos quais vem acusada.
F.
Caso assim não se entenda, hipótese que se coloca sem conceder, e perante ter sido dado como provado que a Arguida não fez suas quaisquer quantias, inexistindo vantagem patrimonial para a mesma, deve a condenação da mesma ao pagamento de € 2.500,00 ao Estado com esse fundamento ser revogada.
Nestes termos, e nos demais de Direito, deve o presente Recurso ser julgado procedente, por provado, e a Douta Sentença Recorrida revogada quanto à condenação da Arguida e substituída por decisão de Absolvição da mesma quanto à totalidade dos factos pelos quais vinha acusado, ou caso assim não se entenda,
Revogada a condenação no pagamento ao Estado da quantia de € 2500,00, correspondente à vantagem patrimonial decorrente da prática do crime, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta, na qual concluiu que a sentença recorrida deverá ser confirmada, de facto e de direito e que deverá ser negado provimento ao recurso.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, a Exma. Sra. Procuradora Geral da República Adjunta emitiu parecer, dizendo subscrever «na íntegra a posição do Ministério Público em 1ª. Instância, atenta a pertinência, completude, correção jurídica e clareza da sua fundamentação, que realça, com total acerto, os fundamentos determinantes do entendimento de que não deve ser procedente o recurso, aqui se realçando também a falta de cumprimento do ónus de especificação previsto no artº. 412º nº. 3 do CPP» e concluindo pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre então, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DOS RECURSOS E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica e as conclusões do recurso, as questões a decidir são as seguintes:
Se a matéria de facto provada não consente a demonstração do elemento subjectivo do crime de receptação;
Se a arguida deve ser absolvida do mesmo crime;
Se deve ser revogada a condenação no pagamento ao Estado da quantia de € 2500,00, correspondente à vantagem patrimonial decorrente da prática do crime.
2.2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na sentença recorrida foi fixada a seguinte matéria de facto e a seguinte motivação da mesma decisão (transcrição):
1. No dia ...-...-2019, cerca das 12h19, a ofendida CC, foi contactada através do número de telemóvel ..., tendo o indivíduo demostrado interesse em comprar 20 arranjos de flores e convenceu-a de que iria proceder ao pagamento através da aplicação MBWAY.
2. Neste contexto, não desconfiando dos reais intentos da referida pessoa, e seguindo as suas instruções, CC ativou a aplicação MBWAY, permitindo, com esta atuação e sem se aperceber, que tal pessoa tivesse ficado com acesso à sua conta bancária.
3. Em ato seguido, através da utilização da aplicação MBWAY, tal pessoa, ou terceira, acedeu à conta bancária de CC, e, sem o seu conhecimento e autorização, efetuou quatro transferências bancárias no valor total de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
4. As referidas transferências, tiveram como destino a conta com o IBAN ..., do banco ..., titulada e movimentada pela arguida AA.
5. Nesta sequência, no mesmo dia, que foi creditada na identificada conta da arguida a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), a arguida procedeu a uma transferência de igual montante para a conta número ..., do banco ..., titulada e movimentada pelo arguido BB.
6. O arguido BB, após ter sido creditada na sua conta a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), procedeu a um levantamento em numerário no valor de € 2.490,00 (dois mil quatrocentos e noventa euros).
7. Nesta sequência os arguidos lograram obter o valor total de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), valor que fizeram seu.
8. Os arguidos sabiam que as quantias que foram creditadas na sua conta bancária não lhe pertenciam e sem cuidar de se assegurar a sua proveniência, sabendo que pelo seu valor elevado poderiam não ter sido efectuadas nem autorizadas pela titular da respectiva conta de origem, e ainda assim agiram nos moldes descritos conformando-se com tal possibilidade, fazendo suas as quantias creditadas na sua conta bancária.
9. De facto, os arguidos sabiam que o dinheiro que receberam nas suas contas não correspondia à prestação de qualquer serviço ou atividade, que não prestaram, nem ao pagamento de qualquer bem, que não venderam, tanto mais que não estabeleceram qualquer relação comercial ou outra com CC.
10. Os arguidos agiram de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo ser as suas condutas proibidas e punidas por lei.
11. O arguido BB, solteiro, é ..., aufere mensalmente a quantia de € 2500. Reside e trabalha em .... O arguido tem 2 filhos, com 1 e 12 anos de idade, e suporta uma renda com a habitação no valor de € 1100. A mulher trabalha na ....
12. A arguida AA, solteira, é ..., encontrando-se desempregada. Tem 3 filhos, recebe de RIS a quantia de € 334.
13. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
Factos não provados
Não logrou provar-se que os arguidos sabiam que a quantia de € 2500 que foi creditada nas respectivas contas bancárias não tinham sido processada nem autorizada pela titular da respetiva conta de origem e agiram com o propósito de se apropriar de tal quantia.
Motivação da decisão de facto
O tribunal assentou a sua convicção, quanto ao segmento provado, na apreciação crítica do depoimento da testemunha CC conjugado com os elementos documentais dos autos mormente, extrato bancário de fls. 24 e 25, informação SIBS de fls. 23 e 130 a 140, documentação bancária de fls. 29 a 36, 143 a 153, 160, 170 a 174.
A testemunha CC num registo objectivo e consistente deu nota das circunstâncias do contacto telefónico que permitiu o acesso à plataforma MBWAY segundo as instruções dadas, e no convencimento que iria receber o valor correspondente aos arranjos florais “comprados”, acabou por permitir o acesso à sua conta bancária e as transferências, sem a sua autorização, da quantia total de € 2500, movimentos bancários que estão em total consonância com os elementos bancários juntos aos autos, mormente, a informação bancária de fls. 24 e 25 dos autos.
Ambos os arguidos optaram pelo silêncio, sendo certo que nos termos constantes da acta de julgamento, foram lidas as declarações prestadas pelo arguido em sede de inquérito ( cfr. fls. 220).
Com base nos elementos documentais dos autos, nenhuma dúvida subsiste que as quantias monetárias tituladas pela ofendida foram transferidas para a conta bancária titulada pela arguida AA, como comprovam os elementos bancários de fls. 144 e 145.
Também nenhuma dúvida subsiste quanto à transferência da quantia de € 2500 efectuada pela arguida AA, por si ou por interposta pessoa com o seu conhecimento e consentimento para a conta bancária titulada pelo arguido BB, como se alcança do teor de fls. 170 a 173 e acaba por ser admitido nas declarações prestadas pelo arguido.
A arguida AA é a única titular da conta bancária receptora das transferências provindas da conta bancária titulada pela ofendida. Donde, é manifesto que a arguida tem o domínio sobre a referida conta bancária.
O arguido BB também é o único titular da conta bancária, e tal como o próprio admite, recebeu a transferência provinda da arguida AA, pessoa que nem conhecia.
Ponderando tal realidade, segundo juízos de normalidade, qualquer cidadão medianamente diligente, naquele concreto circunstancialismo, sabendo que não tinha celebrado qualquer negócio que justificasse o recebimento daquela quantia monetária, e ambos os arguidos sabiam desse facto, suspeitava da licitude da sua proveniência.
A argumentação apresentada pelo arguido BB, habitual neste tipo de processos, não belisca a convicção exposta quanto à suspeição que se lhe impunha da proveniência ilícita do dinheiro.
O argumento da defesa no sentido de clamar pela absolvição por via dos argumentos expendidos no despacho de arquivamento, salvo o devido respeito incorre em erro.
Em primeiro lugar, o despacho de arquivamento a que se alude respeita a crime diverso do crime objecto da acusação que apreciamos. As diligências encetadas com vista à investigação do crime de burla informática, não foram concludentes quanto ao(s) autor (es) do esquema fraudulento que possibilitou o acesso à conta bancária da ofendida e a realização das transferências bancárias em causa nos autos. E, nessa medida, não havendo prova bastante para imputar tal actuação aos arguidos, não restou outra alternativa senão o arquivamento.
Coisa diversa e sem dúvida alguma, é concluirmos que as quantias monetárias transferidas através do esquema fraudulento do MBWAY, foram transferidas para as contas bancárias tituladas pelos arguidos, nos moldes já explanados.
Donde, aqui chegados, os elementos probatórios produzidos permitem concluir que os arguidos não podiam deixar de suspeitar da proveniência ilícita das quantias monetárias transferidas para a conta bancária por cada um titulada e ainda assim, conformando-se com tal realidade e respectivas consequências penais, agiram nos moldes comprovados.
Quanto ao segmento não provado, resulta da falta de elementos positivos consistentes que sustentem uma actuação com dolo directo dos arguidos, isto é, com pleno conhecimento do esquema fraudulento que permitiu as transferências bancárias com o propósito de vantagem económica indevida.
Valoramos, por último, os certificados de registo criminal quanto aos antecedentes e declarações dos arguidos quanto à respectiva situação pessoal.
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
A questão sobre se a arguida deve ser absolvida do crime de receptação só poderá ser resolvida por duas vias possíveis: ou com fundamento em erro de julgamento, na consideração como provados dos factos integradores dos elementos constitutivos descritos no tipo legal correspondente e/ou porque se verifica um erro de direito, no que se refere ao enquadramento jurídico dos factos apurados à luz do art. 200º do Código Penal.
A matéria de facto pode ser sindicada em recurso através de duas formas: uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de «revista alargada», implica a apreciação dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art. 410º nº 2 do CPP; outra, denominada de impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
Assim, se no primeiro caso, o recurso visa uma sindicância centrada exclusivamente no texto da sentença, dirigida a aferir da capacidade do juiz em expressar de forma adequada e suficiente as razões pelas quais se convenceu e o sentido da decisão que tomou, já no segundo, o que o recurso visa é o reexame da matéria de facto, através da fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção, a partir delas.
O erro do julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação.
O mecanismo por via do qual deverá ser invocado - impugnação ampla da matéria de facto – encontra-se previsto e regulado no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP e envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante.
No entanto, essa reapreciação não é livre, nem abrangente, antes tem vários limites, porque, além de não importar um novo julgamento da causa, está condicionada ao cumprimento de deveres muito específicos de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1 e de 28.04.2021, processo 4426/17.2T9LSB.L1, in http://www.dgsi.pt).
Assim, nos termos do nº 3 do art. 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas».
O nº 4 do mesmo artigo acrescenta que, tratando-se de prova gravada, as indicações a que se referem as alíneas b) e c) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no nº 6.
O art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal, estabelece a possibilidade de o recurso se fundamentar na insuficiência da matéria de facto provada para a decisão; na contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, ou no erro notório na apreciação da prova, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito».
Trata-se de vícios estruturais cuja apreciação não envolve nem pode envolver qualquer sindicância à prova produzida, no Tribunal de primeira instância, porque só o texto da decisão recorrida os pode evidenciar. Referem-se apenas à forma como a decisão se encontra redigida, pelo que a indagação da sua existência faz-se, exclusivamente, a partir da análise do respectivo texto, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo, com excepção das regras de experiência comum.
São vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento (Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
Porém, contrariamente ao pretendido pelo Mº. Pº., quer na resposta ao recurso apresentada na primeira instância, quer no parecer emitido neste Tribunal da Relação, a recorrente nem sequer invocou o erro de julgamento, pelo que nem se coloca a questão de saber se cumpriu ou não cumpriu o triplo ónus de impugnação especificada configurado no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP.
Também não invocou qualquer vício decisório, nem a violação do princípio «in dubio pro reo».
E o que é certo é que da simples leitura do texto da sentença, deste não resulta que se tenha retirado de qualquer dos factos uma conclusão inaceitável, à luz da lógica ou de critérios de razoabilidade, nem que tenha sido considerado provado algum facto de verificação notoriamente impossível, ou sido dado como não provado algo que resulta evidente que aconteceu, nem qualquer ambiguidade, ou contradição entre os factos ou entre os factos e a motivação ou entre algum destes items e a fundamentação de direito e a decisão, do mesmo modo que não se detecta que o Tribunal tenha procedido erradamente para o enquadramento jurídico-penal dos factos imputados ao arguido num determinado tipo legal de crime, sem antes realizar todas as diligências probatórias tidas por necessárias para o apuramento da verdade dos factos constantes da acusação, ainda possíveis mas pura e simplesmente omitidas.
Portanto, a questão é estritamente jurídica e radica essencialmente em saber se a matéria de facto, tal como se encontra fixada na sentença, preenche ou não a totalidade dos elementos constitutivos descritos no art. 231º do CP.
Nos termos do art. 231º nº 1 do Código Penal, o crime de receptação consuma-se com uma das condutas típicas aí previstas - dissimular, receber em penhor, adquirir por qualquer título, deter, conservar, transmitir ou contribuir para a transmissão, assegurar por qualquer forma a posse para si ou para terceiros – em relação a uma coisa obtida por outrem, através de um facto ilícito típico contra o património.
Todas estas acções típicas têm de comum, por um lado, conduzir à manutenção ou consolidação de uma situação patrimonial anormal e ilegítima, consubstanciada na prática de um crime anterior contra o património (que será qualquer um dos tipificados no Título II do CP), por via da qual alguém passa a exercer sobre determinada coisa móvel ou imóvel poderes de facto, a usar a dispor dela, sem que, para esse efeito, tenha qualquer título e, por outro lado, a circunstância de, em todas essas condutas, existir uma deslocação da coisa da esfera patrimonial de quem a detém ilegitimamente para a do agente receptador, pelo que este viola também o direito de propriedade, a posse ou a detenção do dono, possuidor ou detentor da coisa deslocada.
O que implica que só as coisas corpóreas ou animais possam ser objecto deste tipo de ilícito, do mesmo modo que, só coisas corpóreas ou animais obtidos através de crimes contra o património poderão ser objecto da transmissão ilícita que constituí o resultado típico do crime de receptação (neste sentido Leal Henriques e Simas Santos, CP Anot., vol. II, p. 628 e, por todos, os Ac. da Relação de Guimarães de 09.12.2019, proc. 171/16.4PBGMR.G1, Ac. da Relação de Lisboa de 11.04.2024, proc. 619/20.3GDALM.L1-9, Ac. da Relação de Évora de 28.01.2025, proc. 620/18.7GAALQ.E1, in http://www.dgsi.pt).
Com efeito, a aquisição da coisa implica a transferência da disponibilidade da coisa para outrem, não sendo suficiente a constituição de direitos reais ou de créditos sobre a coisa que não impliquem a detenção da mesma. A aquisição jurídica da coisa supõe que o receptador adquire, para si ou para outrem, um direito possessório sobre a coisa, ainda que não tenha a disponibilidade fáctica sobre ela. A detenção da coisa supõe que a aquisição da coisa pelo receptador não é ilegítima, mas se torna posteriormente ilegítima, por força de acto de um terceiro, contrariando a detenção a vontade de quem tem legitimidade para exigir a entrega da mesma (Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2008, página 637).
Este tipo de ilícito penal é sempre um crime parasitário, no sentido de que a sua consumação só pode ter lugar, nos casos em que, antes da sua prática, foi cometido outro crime contra o património.
Pretende-se, com a incriminação, tutelar o direito de propriedade, no sentido de obviar às dificuldades com que o «dominus» se depara, uma vez consumada a receptação, em recuperar a coisa sua propriedade ou reconstituir o «statu quo» anterior à deslocação patrimonial de que foi vítima, partindo da constatação de que este tipo de crime tem um efeito potenciador do cometimento de futuros crimes patrimoniais.
Quanto ao elemento subjectivo do tipo contido no nº 1 do art. 231º citado, a imputação faz-se com base no dolo directo traduzido no conhecimento da proveniência ilícita da coisa, no sentido de que foi obtida através de um dos crimes patrimoniais tipificados no CP, embora não se exija que o agente saiba, em concreto, qual desses crimes esteve na origem da obtenção da coisa que adquire e na intenção de obter para si ou para terceiro uma vantagem patrimonial (dolo específico).
Já na modalidade prevista no nº 2 do art. 231º do CP, basta que o agente admita a possibilidade de a coisa ser proveniente de facto ilícito típico contra o património e com isso se conforme, não se assegurando da sua legítima proveniência, independentemente da intenção de obtenção de vantagem patrimonial (dolo eventual).
Esta última norma também integra um tipo doloso “a principal diferença entre os dois tipos dolosos, encontra-se na espécie de dolo requerida por cada um deles: no nº 1 o recetador tem “ciência certa” de que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património, atuando com a intenção de obter vantagem da perpetuação de uma situação patrimonial anti-jurídica; no nº 2 o recetador admite a possibilidade de a coisa ter tal origem e conforma-se com ela, não se assegurando da sua proveniência legítima”.
O nº 2 só tem em vista o “dever de razoavelmente suspeitar que a coisa provem de facto ilícito típico contra o património” ... “pela sua qualidade ou pela condição de quem oferece ou pelo montante do preço oferecido” (Pedro Caeiro, Comentário Conimbricense ao Código Penal, vol. II, p. 494 e 495. No mesmo sentido, Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado (1995), p. 787 e 788, Borges de Pinho, Dos Crimes Contra o Património e Contra o Estado no Novo Código Penal, p. 20 e 21).
A recorrente centrou a sua insurgência contra este enquadramento jurídico-penal, na inaptidão, omissão ou incompletude da matéria de facto para preencher o nexo de imputação subjectiva pela modalidade de receptação prevista no nº 2 do art. 231º do CP.
Todavia, ao contrário do que pretende, os factos 5 a 9 descrevem com precisão e detalhe que a arguida recebeu numa conta bancária de que é titular uma quantia de € 2.500,00 sem qualquer razão justificativa para tal, sabendo que tal quantia monetária não lhe pertencia e sem cuidar de se assegurar a sua proveniência, sabendo que pelo seu valor elevado poderia não ter sido efectuada nem autorizada pela titular da respectiva conta de origem, e ainda assim agiu nos moldes descritos conformando-se com tal possibilidade, fazendo sua a quantia creditada na sua conta bancária, com o que fica plenamente concretizado o dolo eventual.
O problema é outro e radica no desacerto da qualificação deste comportamento como crime de receptação.
Não é normal, nem corresponde a qualquer uso de comércio ou hábito de cortesia ou de convívio social ceder a conta bancária de que se é titular, para nela serem depositadas quantias monetárias de outrem e de proveniência desconhecida.
Muito pelo contrário, trata-se de uma prática comummente associada à prática do crime de branqueamento de capitais pelo que, sendo o recurso a presunções judiciais, um meio de prova perfeitamente aceitável em processo penal, compatível com o princípio da livre convicção do julgador e também com o princípio da presunção de inocência como vem sendo amplamente afirmado pelo Tribunal Constitucional (cfr. Acs. do Tribunal Constitucional nºs 391/2015, em DR nº 224, II Série, de 16/11/2015, 578/2016, 197/2017, 149/2018, 541/2018, 717/2019, 175/2022 e 593/2024, in http://tribunalconstitucional.pt), é acertado extrair de um comportamento exterior de cedência, disponibilização da própria conta bancária a terceiros, perdendo todo e qualquer controlo sobre o uso que for dado a tal conta assim como sobre o tipo de fluxos monetários que para ela e a partir dela são depositados e transferidos e, ademais, recebendo por isso, uma contrapartida monetária, o facto desconhecido que neste caso, é o dolo, manifestado no conhecimento e vontade de disponibilizar a conta bancária para encobrir a identidade do autor da apropriação indevida do dinheiro depositado e de contribuir de forma decisiva para a sua dissipação e ocultação.
E o tipo de incriminação que lhe deve corresponder é a contida no branqueamento p. e p. pelo art. 368º A do CP e não a receptação.
O que o crime de receptação tem de característico é que a coisa receptada tenha sido obtida através da prática de um crime contra o património, o que não é o caso dos autos, porque o dinheiro que foi depositado na conta bancária da arguida não pode ser considerado coisa móvel alheia. É um valor que gera direitos de crédito e de débito, que pode também gerar direitos de propriedade e outros direitos reais menores, através do poder aquisitivo que o dinheiro potencia, mas não tem aquele significado corpóreo de uma coisa dotada de valor em si mesma, aferido por um índice de preços ou pelo valor da moeda com curso legal num determinado país ou região. É ele o próprio valor.
Para as condutas que visam a dissipação de moeda, a sua tipicidade penal é garantida pelo crime de branqueamento de capitais.
Com efeito, no crime de branqueamento de capitais, o objecto da acção típica são as vantagens patrimoniais resultantes de crime anteriormente cometido pelo próprio branqueador ou por outrém, desde que integrado no «catálogo» contido no nº 1 do art. 368ºA do CP (entre os quais se conta o de burla informática, que é que parece ter sido o crime precedente neste processo).
Quanto às modalidades de acção, os verbos insertos no texto dos nºs 2 e 3 do art. 368º A do CP incluem no seu âmbito de aplicação uma grande variedade de condutas, com diferentes graus de intensidade, espelhados, de resto, na moldura penal abstracta de dois a doze anos de prisão.
Face à amplitude da configuração do crime de branqueamento de capitais no art. 368º A do Código Penal, deve entender-se que o processo trifásico - conversão; dissimulação e integração - de reciclagem dos bens ou vantagens patrimoniais resultantes de factos típicos e ilícitos das espécies previstas no seu nº 1 pode ser mais ou menos elaborado, consoante a economia de esforço necessária à produção do resultado antijurídico, pelo que a mera introdução de dinheiro proveniente da prática de crimes base, ou da venda de bens obtidos através do cometimento desses tipos de ilícito, por exemplo, através de um mero depósito bancário, ainda que menos grave e perigosa do que outras mais sofisticadas e engenhosas, é já branqueamento de capitais, sob pena de restrição ilegal do âmbito objectivo do tipo e de desarticulação funcional com o bem jurídico tutelado com a incriminação.
«Os depósitos em numerário continuam a ser uma das formas mais detectadas no branqueamento, e a fase deste habitualmente designada por colocação (placement) pode ser constituída por simples depósitos bancários» (Ac. da Relação de Guimarães de 27.05.2019, proc. 85/08.1TAMCD.C2, in http://www.dgsi.pt).
«I– O crime de branqueamento de capitais p. e p. pelo art.º 386º-A do Código Penal tem vindo a sofrer diversas algumas alterações, não exigindo actualmente que uma determinada conduta abranja as denominadas três fases ou etapas que constituem as modalidades de acção de branqueamento, a saber, a colocação, a circulação e a integração, bastando-se com a prática de qualquer delas.
«II – Quanto ao elemento subjectivo do tipo legal em questão “Exige-se que o agente, ao efectuar qualquer operação no procedimento mais ou menos complexo de conversão, transferência ou dissimulação, tenha conhecimento da natureza das actividades que originaram os bens ou produtos a converter, transferir ou dissimular. Elemento subjectivo comum a todas as condutas previstas é a exigência do conhecimento da proveniência do objecto da acção num dos ilícitos-típicos precedentes, da origem dos bens (que faz parte do elemento intelectual do dolo)”» (Ac. da Relação do Porto de 18.03.2020, proc. 1551/19. 9T9PRT. P1, citando o Ac. do STJ de 04.11.2020, proc. nº 1169/12.7TAVIS.C2. S1-3ª Secção, in http://www.dgsi.pt).
«(…) No crime p. e p. art.º 368º, n º s 1, 2 e 3, do Código Penal os depósitos bancários são uma das formas que mais ocorrem, entre nós, de branqueamento, sendo idóneos, suposta a verificação dos demais requisitos típicos, ao preenchimento do tipo» (Ac. do STJ de 27.04.2022, proc. 248/11.2TAGLG.S1, in https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/248-2022-188296975).
Dito isto, esta questão poderia ser vista e analisada à luz de uma simples alteração da qualificação jurídica, nos termos do art. 358º nºs 1 e 3 do CPP, porém tal não será possível, porque:
As garantias de defesa consagradas no art. 32º da CRP e, especialmente, o exercício do direito ao contraditório e a estrutura acusatória do processo penal implicam, necessariamente, que o arguido conheça em plenitude, quer os factos, quer o seu enquadramento jurídico, por isso é que entre os requisitos de validade formal e substancial, da acusação e da pronúncia estão incluídos, quer a narração dos factos, quer as normas jurídicas aplicáveis – arts. 283º nº 3 als. b) e d) e art. 308º nº 2 do CPP - e a verdade é que toda a defesa desde o início do processo foi concebida e posta em prática para o crime de receptação e não para o crime de branqueamento de capitais;
Depois, o crime de receptação é punível com pena com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias, se tiver sido cometida a modalidade prevista no nº 1, ou com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias, se o crime for o previsto no nº 2 do art. 231º do CP, enquanto que o crime de branqueamento é punível com pena de prisão até doze anos.
Dadas as diferentes naturezas dos bens jurídicos tutelados em cada uma das normas incriminadoras – o património, na receptação, a «pretensão estadual ao confisco das vantagens do crime», ou mais especificamente, o interesse do sistema de justiça penal, na detecção e perda das vantagens de certos crimes, no branqueamento – e as diferentes molduras penais previstas em cada um dos tipos legais, há crime diverso e agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis, logo, alteração substancial de factos, tal como a mesma vem definida no art. 1º al. f) do CPP - « f) «Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».
Do AUJ nº 1/2015, resulta a inadmissibilidade legal de acrescentar aos factos que já constam da acusação ou da pronúncia, outros factos que sejam os integradores do elemento subjectivo do tipo de ilícito imputado, transformando, por essa via, uma conduta atípica (por falta de devida descrição do elemento subjetivo) numa conduta típica, punível, ainda que não importe a imputação de crime diverso (em plano distinto do âmbito de aplicação dos arts. 1.º, al. f), 358.º e 359.º do Código de Processo Penal).
Por outro lado, impõe-se ponderar que o crime só é materialmente diverso se o bem jurídico violado for distinto do da acusação ou da pronúncia, ou se por efeito de uma modificação no acervo factual constante da acusação e/ou da pronúncia, a penalidade aplicável seja mais grave e ter em atenção que, na aquisição dos factos, tendo em vista o princípio do apuramento da verdade material, o Tribunal de julgamento está obrigado à produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (art. 340.º do Cód. Processo Penal), incumbindo-lhe também o dever de, de igual modo, levar em conta todos os factos que resultem da discussão da causa e importem à sua boa decisão, ainda que com recurso aos mecanismos previstos nos arts. 358º e 359º do CPP e esta é matéria também de conhecimento oficioso das Relações, que conhecem de facto e de direito, nos termos do art. 428º do CPP.
O artigo 424º nº 3 do CPP estabelece que o tribunal de recurso pode alterar a qualificação jurídica do crime, devendo ser comunicada ao arguido para que ele se possa pronunciar sobre ela, porém não é feita qualquer referência à reformatio in pejus, bem como o artigo que dispõe sobre a sua proibição, o artigo 409.º, não faz qualquer referência à situação em que o tribunal de recurso altera a qualificação jurídica do crime.
Ainda assim, existem duas frentes de impossibilidade legal e jurídica de colmatar este erro de direito na qualificação jurídica dos factos provados como crime de receptação, através, por exemplo, do reenvio ao abrigo do disposto nos arts. 426º e 426ºA a fim de ser dado cumprimento ao procedimento da alteração substancial de factos nos termos previstos no art. 359º, ou somente ao de alteração da qualificação jurídica, previsto no art. 358º nºs 1 e 3, todos do CPP, ou da comunicação ao arguido a que se refere o art. 424º nº 3 do CPP.
A primeira é, desde logo, a incidência do princípio da proibição da «reformatio in pejus», na medida em que este não se faz sentir apenas na pena concreta, tal como previsto no art. 409º do CPP e atinge também, ainda que por via indirecta, o objecto do processo.
Com efeito, o limite da «reformatio in pejus» refere-se não apenas à medida concreta da pena mas também à sua espécie como decorre do nº 1 parte final do art. 409º do CPP.
Ora, o crime de receptação é punível com pena de multa ou de prisão em alternativa e o crime de branqueamento é punível apenas com pena de prisão.
Se bem que no artigo 424º nº 3 do CPP que prevê a possibilidade de o tribunal de recurso alterar a qualificação jurídica do crime, devendo ser comunicada ao arguido para que ele se possa pronunciar sobre ela, não é feita qualquer referência à reformatio in pejus.
Do mesmo modo, o art. 409º do CPP não faz qualquer referência à alteração da qualificação jurídica do crime realizada pelo tribunal de recurso.
Mas não se segue que os efeitos da proibição de «reformatio in pejus» deixem de se impor em caso de alteração da qualificação jurídica dos factos objecto do processo, ao abrigo do preceituado no art. 424º do CPP, até porque a proibição da «reformatio in pejus» é um princípio geral de direito cuja razão de ser está indissocialvelmente ligada à estrutura acusatória do processo e às garantias de defesa do arguido, especialmente, no que se refere ao direito ao recurso, constituindo uma importante válvula de segurança do sistema, ao garantir ao arguido que a interposição do recurso jamais terá como efeito o agravamento da sua condenação, sendo que, «sem essa proibição, o exercício do direito (constitucional) ao recurso envolveria sempre e inevitavelmente um risco, pela incerteza da decisão a proferir pelo tribunal superior, que poderia funcionar como elemento gravemente dissuasor do uso desse direito, que é um direito fundamental do arguido» (Ac. do STJ de 13.07.2017, proc. 240/12.0PCSTB.S1, in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Damião da Cunha, in O Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória, 2002, pág. 240).
«I - O princípio da proibição da reformatio in pejus prescreve que, interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo MP, no interesse exclusivo do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes.
«II - Enquanto circunscrito ao direito ao recurso interposto pelo arguido no seu exclusivo interesse ou pelo MP no mesmo sentido, o princípio referido, na sua modalidade directa, é fortemente limitativo do poder decisório do tribunal; porém, concebido, embora com controvérsia, como um princípio geral de direito de processo penal, enquanto direito de defesa, consagrado no art. 32.º, n.º 1, da CRP, o princípio, em nome do direito a um processo justo, actua com maior latitude, e, assim, no caso de anulação ou reenvio do processo para novo julgamento, em 1.ª instância, o princípio não se esvai – é aplicada a reformatio in pejus indirecta –, limitando, igualmente, o poder decisório do tribunal inferior, que não pode em tal caso agravar a situação do arguido.
«III - O tribunal inferior, diz-se, não há-de ter poderes mais amplos do que o tribunal superior; a proibição de reformatio se limita o tribunal superior, por maioria de razão há-de limitar o inferior, atenta a cadeia hierárquica que se estabelece entre ambos e a íntima conexão entre o decidido nas instâncias, dada a decorrência lógica entre a solução a alcançar.
«IV -Aliás, sempre que o titular da acção penal não manifesta discordância, não se concebe que o Estado, através dos seus órgãos de administração da justiça, sobrepondo-se ao arguido, lhe possa impor uma reacção penal mais severa do que a cominada do antecedente.» (Ac. do STJ de 14.09.2011, proc. 138/08.6TALRA.C1.S1. No mesmo sentido, Ac. do STJ de 13.07.2017, proc. 240/12.0PCSTB.S1; Ac. da Relação de Lisboa, de 14.05.2019, proc. n.º 2507/09.5TASXL.L2-5, e bem assim o AUJ nº Acórdão nº 4/95 de 07.06.95, no qual o STJ fixou a jurisprudência, no sentido de que «o Tribunal Superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus»).
Assim, é inconstitucional, por violação do disposto do art. 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa a interpretação do art. 409º do CPP, no sentido de que a Proibição da Reformatio in Pejus não incluí a Reformatio in Pejus Indirecta, ou seja, que deixa de produzir os seus efeitos, consentindo a agravação da pena aplicada ao Arguido pelo Tribunal «a quo», após a anulação do primeiro julgamento pelo Tribunal «ad quem».
Exactamente pela mesma razão, havendo alteração da qualificação jurídica para um crime mais grave, também deverá sempre ser respeitado o princípio que proíbe a reformatio in pejus, o que implica que o tribunal superior nunca pode julgar para além daquilo que lhe foi pedido, acabando por exceder a medida da pena encontrada na decisão recorrida e que funcionará como limite da pena.
No caso presente ainda há um outro obstáculo que são as regras de competência – arts. 14º a 16º do CPP e 80º, 81º, 118º da LOSJ – na medida em que o julgamento de factos integradores do crime de branqueamento é da competência do Tribunal Colectivo (Juízo Central Criminal) e os subsumíveis ao crime de receptação são da competência do Tribunal Singular (juízo local criminal).
Feito este ponto de ordem, não obstante a existência do erro de direito na subsunção dos factos ao crime de receptação, a comunicação da alteração à arguida nos termos do art. 424º nº 3 do CPP ou o reenvio à primeira instância, nos termos previstos no art. 426º do CPP seriam actos inúteis, perante a impossibilidade de aplicação de pena de espécie diferente ou de duração mais longa, atento o disposto no art. 409º do CPP.
Quanto à absolvição da arguida do pagamento da quantia de € 2.500,00 ao Estado.
O art. 110º nº 1 al. b) do CP prevê a declaração de perda a favor do Estado de todas as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultantes desse facto, para o agente ou para outrem.
E o nº 4 do mesmo preceito legal prevê que na impossibilidade de declaração da perda em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
A perda de vantagens é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção geral positiva e negativa, quanto à reposição da confiança na validade e eficácia das normas jurídicas que tipificam certos comportamentos humanos como crimes e ao efeito dissuasor da reincidência, pretendendo transmitir a mensagem de que o crime não compensa.
Não se trata de uma pena acessória, porque não tem relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação, porque também não depende uma condenação.
Trata-se de uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes, «mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito decorrente do ofendido» ( Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 315, em anotação ao art. 111.°. No mesmo sentido, Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, p. 638).
Visa impedir o agente de enriquecer à custa do crime. Deve, portanto, evitar-se o sentimento geral de que o crime compensa, com repercussões efectivas na esfera patrimonial do condenado. Contudo, mesmo sendo acentuadamente preventiva-geral, essa finalidade não deve visar a «instrumentalização do condenado ao interesse geral ou à mera estabilização de ansiedades colectivas quanto à segurança» (Fernanda Palma, Direito Constitucional Penal, Almedina, 2006, pág. 126).
É independente e cumulável com a indemnização civil, dado o seu diferente âmbito de aplicação, pois que, se é certo que, da conjugação do art. 111º nº 2 com a disposição legal contida no art. 130º nº 2 ambos do CP, resulta um quadro legal que visa a efectiva reposição da situação que existia antes da prática do crime, quer na esfera patrimonial do lesado, quer na do arguido, também é certo que, independentemente, da existência, ou não, de lesado e do seu impulso processual na dedução de pedido cível, a sua inércia não prejudica o perdimento.
«O confisco das vantagens do crime, independentemente da controvérsia relativa à definição da sua natureza jurídica, constitui uma providência que ainda integra o conceito de «acção penal», enquanto "multiversum" composto pelas matérias relativas à questão penal, traduzidas adjectivamente na investigação criminal, bem assim como pelas matérias relativas à questão patrimonial, com o seu equivalente funcional na investigação financeira e patrimonial (…) «sem prejuízo dos direitos da vítima, o confisco é transversal a todos os crimes, não dependendo da inexistência de lesados ou da impossibilidade destes fazerem valer os seus direitos. O pedido de indemnização civil não é uma espécie de questão prejudicial, que impeça o confisco prévio dos instrumentos, produtos e vantagens decorrentes da prática do crime» (João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues, in comentário ao Acórdão da RG de 1.12.2014, in Julgar online de Abril 2015. No mesmo sentido, Acs. da Relação do Porto de 30.05.2018, processo 3487/16 https://jusnet.wolterskluwer.pt/, Ac. da Relação do Porto de 11.04.2019, processo n.º 360/17.4IDPRT.P1; Ac. da Relação de Lisboa de 10.06.2019, processo 2706/16.3T9FNC.L1-5, Ac. do STJ de 29.04.2020, proc. 928/08.0TAVNF.G1.S1, in http://www.dgsi.pt).
Finalmente, o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência, no sentido de que:
«A perda de vantagens tem natureza punitiva análoga à de uma medida de segurança, norteando-se a sua aplicação por finalidades de prevenção geral e especial, na vertente “negativa”, de obstaculizar o cometimento de futuros crimes pelo agente e restantes membros societários, não podendo assim o Estado prescindir do seu exercício, independentemente do direito dos lesados ao ressarcimento dos danos sofridos como consequência do crime», no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 5/2024, de 9 de maio, publicado no DR, Série I, de 09-05-2024.
Considerando que se provou que a arguida obteve uma vantagem patrimonial ilícita e indevida de € 2.500,00, através da prática de um facto típico e ilícito, não tem qualquer fundamento legal a sua pretensão de ser absolvida.
Razões por que o presente recurso não merece provimento e se impõe a manutenção da sentença recorrida.
III – DECISÃO
Termos em que decidem negar provimento ao recurso e confirmar integralmente a sentença recorrida.
Custas pela arguida recorrente, fixando a Taxa Justiça em 4 UCs – art. 513º do CPP.
Notifique.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 18 de Junho de 2025
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Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Juízes Adjuntos.
Cristina Almeida e Sousa
Rui Miguel Teixeira
Maria da Graça Santos Silva