HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
PRAZO
CONDENAÇÃO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I. Nos termos do artº 222º2 CPP, a petição a apresentar no Supremo Tribunal de Justiça deve fundar-se em prisão ilegal, por ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente (al. a) ou ser motivada por facto que a lei não permite (al. b), ou manter-se para além dos prazos fixados na lei ou em decisão judicial (al. c).
II. Se o requerente do pedido de Habeas Corpus foi condenado esta foi confirmada pelo Tribunal da Relação em recurso, ocorre o alargamento do prazo da prisão preventiva previsto do nº6 do artº 215º CPP nos seguintes termos “6 - No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada”
III. Tendo o requerente omitido a sua condenação em 8 anos e 3 meses de prisão e que esta pena já fora confirmada pelo Tribunal da Relação é manifesta a sua improcedência e como tal deve ser sancionado.

Texto Integral


Acordam, em audiência, os Juízes Conselheiros na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.

No Proc. C.C nº 20/21.1...-E do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Juízo Central Criminal de ... - Juiz ... em que entre outros é arguido / condenado AA, preso preventivo, apresentou petição de Habeas Corpus, que se transcreve, na parte que releva:

“1. Nos presentes autos foi o arguido AA submetida à medida de coação de prisão preventiva no passado dia 5 de Junho de 2023.

2. No passado dia 15/7/2024 foi proferido Acórdão nos presentes autos onde o arguido é condenado em prisão efetiva, mantendo a sua prisão preventiva até trânsito em julgado da condenação proferida.

3. Sucede que o arguido não se conformou com a condenação em que foi condenado, tendo dela interposto recurso para o Tribunal da Relação de Évora no dia 1/8/2024.

4. No dia 3/12/2024 foi proferido Acórdão pela Relação de Évora, sendo que o arguido interpôs Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

5. Sucede que até ao momento o referido Acórdão proferido nos autos ainda não se encontra transitado em julgado.

6. (..)

7. Ora, é referido no despacho proferido nos presentes autos, datado de 10 de Outubro de 2024 o seguinte: “ Anote na capa e no sistema de alarme informático a data da próxima reapreciação da medida de coacção, a ocorrer antes de 10.01.2025, sendo o prazo máximo de prisão preventiva – de 2 anos - atingido em 07.06.2025, caso nessa data o acórdão condenatório proferido nos autos não tenha, ainda, transitado em julgado.”

8. Até ao momento, o Acórdão ainda não se encontra transitado, encontrando-se ainda em avaliação no Supremo Tribunal de Justiça.

9. De igual forma, o arguido ainda se encontra em ambiente prisional, até ao presente dia. 10. Tendo ultrapassado claramente o prazo máximo da prisão preventiva.

11. Ora estamos em face de um manifesto e grave atentado à liberdade que colide grave e grosseiramente com os mais basilares direitos num Estado de Direito Democrático.

12. A providência de Habeas Corpus constitui incidente destinado a acautelar o direito à liberdade, direito este com garantias constitucionais, de acordo com o disposto nos artigos 27º, nº 1 e 31º, nº 1, ambos da C.R.P., e tem por fim pôr termo a situações de prisão ilegal, nomeadamente, como o dos presentes autos, por ter sido motivada por facto pelo qual a lei não permite, artigo 222º, nºs 1 e 2, alínea b) e ainda por decisão judicial , do Código de Processo Penal.

13. Ou seja, tal providência – de Habeas Corpus - , tem com o pressuposto de facto a prisão actual e como esteio de direito a sua ilegalidade.

14. Assumindo a providência do habeas corpus uma natureza excepcional, utilizamo-la no caso sub judice porque falharam, em tempo útil, todas as demais garantias de defesa do direito à liberdade e porque, com o devido respeito, consideramos que a situação de privação de liberdade subjacente ao presente pedido consubstancia um inequívoco erro grosseiro.

15. Ora, entendemos assim que o Arguido se encontra ilegalmente preso preventivamente, porquanto a sua prisão mantém-se motivada por facto pelo qual a lei não permite - artigo 215 do Código de Processo Penal.

16. Actuando em conformidade com as garantias de defesa que um verdadeiro Estado de Direito consigna na sua lei fundamental, determinando seja imediatamente cessada a prisão preventiva ilegalmente determinada ao arguido.

17. O presente procedimento de Habeas Corpus é o único meio idóneo a obstar, de forma célere e eficaz, a manifesta ilegalidade da prisão do Arguido.

Termos em que, deve o presente procedimento de Habeas Corpus ser julgado procedente por provado e, em consequência ser determinada a ilegalidade da prisão preventiva aplicada ao arguido”

Da informação enviada, nos termos do artº 223º1 CPP consta (transcrição na parte que releva):

“Nos termos do disposto no artigo 223º, nº 1 Código do Processo Penal infra se expõem as condições em que se mantém a prisão do arguido AA à ordem dos presentes autos.

Por despacho de 07.06.2023, em 1º interrogatório judicial de arguido detido, foi o arguido AA sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva.

Naquela data considerou verificarem-se, em concreto, perigo de perturbação de ordem e tranquilidade públicas, perigo de fuga, perigo de continuação da actividade criminosa e perigo para a aquisição e conservação da prova, mostrando-se fortemente indiciada a prática de um rime de crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1 do Decreto Lei 15/93, de 22.01.

Por decisão de 15.07.2024 foi o arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º do Decreto Lei 15/93, de 22.01, por referência às tabelas IA e IB anexas, na pena de 7 (sete) anos e 9 (nove) meses de prisão, e pela prática de um crime de receptação, previsto e punido pelo artigo 231º, nº 1 Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão.

Em cúmulo das referidas penas parcelares AA foi condenado na pena única de 8 (oito) anos e 3 (três) meses de prisão.

No Acórdão condenatório foi mantida a prisão preventiva o mesmo sucedendo nos diversos reexames dos respectivos pressupostos entretanto e tempestivamente efectuados.

Do Acórdão condenatório o arguido interpôs recurso.

Por Acórdão de 03.12.2024, comunicado a este Tribunal em 04.12.2024, o Venerando Tribunal da Relação de Évora confirmou a decisão proferida nos autos nos seus precisos termos

Na sequência do conhecimento da referida decisão, em 05.12.2024 foi proferido despacho que, nos termos do disposto no artigo 215º, nº 6 do Código Processo Penal, fixou novo prazo máximo de prisão preventiva em 22.04.2027.

Verifica-se agora que tal despacho padece, inclusive, de um lapso pois que a pena a considerar é a pena única em que o arguido foi condenado, ou seja, 8 anos e 3 meses de prisão termos em que o prazo máximo da prisão preventiva é de metade dessa pena, como cristalinamente flui do artigo 215º, nº 6 Código Processo Penal, ou seja, 4 (quatro) anos, 1 (um) mês e 15 (quinze) dias, prazo que será atingido em 22.07.2027 (cfr. inter alia Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.01.2022).

Do Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, AA intepôs recurso para o STJ o qual, como resulta da decisão sumária comunicada à 1ª Instância em 30.05.2025, foi rejeitado por irrecorribilidade da decisão na parte que constituía o objecto de recurso (refª ......67).

É um facto que o Acórdão de 15.07.2024 não transitou, ainda, em julgado, mas também é um facto, que a norma legal que determina, neste momento, e perante a tramitação supra exposta, o prazo máximo de prisão preventiva já não é o artigo 215º, nºs 1, alínea d) e 2 Código Processo Penal, mas sim o artigo 215º, nº 6 Código Processo Penal que estabelece que No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário,o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada (sublinhado meu).

Destarte, uma vez que a decisão condenatória proferida por este Tribunal foi mantida na instância de recurso, tal como supra exarado, resulta claro da letra do artigo 215º, nº 6 Código Processo Penal, e bem assim do despacho proferido em 05.12.2024, apesar do lapso constante do mesmo, que o prazo máximo da prisão preventiva do arguido AA está longe de ter sido atingido, termos em que é manifesto que inexiste qualquer atentado e mesmo ainda grave ou grosseiro do direito à liberdade do arguido, não se encontrando AA em prisão ilegal.”

Convocada a Secção Criminal e notificados o Ministério Público e a mandatária do arguido, procedeu-se à realização da audiência contraditória (artº 31º3 CRP), com o formalismo legal e em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

+

Finda a audiência o coletivo reuniu para deliberar, o que fez, apreciando o pedido nos termos seguintes:

Os factos relevantes para a decisão mostram-se condensados na petição de Habeas Corpus e na informação do tribunal requerido e documentos com ela juntos que aqui se dão por transcritos e deles resultam que as questões a decidir se prendem com:

-se foi excedido o prazo de prisão preventiva,- e suas consequências para o pedido de Habeas Corpus

Conhecendo:

O pedido de habeas corpus é uma “providência [judicial) expedita e urgente de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito, por motivos penais ou outros (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 303, 343-344)”1

O direito à liberdade é um direito fundamental dos cidadãos expresso no artº 27º 1 CRP que dispõe “1. Todos têm direito à liberdade e à segurança.”, esclarecendo no nº2 que “Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”. Todavia há exceções também constitucionalmente consagradas, no mesmo normativo, no seu nº3, fora das quais as restrições à liberdade, através da detenção ou prisão, são ilegais, juízo que se tem afirmado em jurisprudência reiterada, quando ocorram fora dos casos previstos neste mesmo normativo (cf. por todos, o ac. de 2.2.2022, Proc. n.º 13/18.6S1LSB-G, em www.dgsi.pt)2.

- O arguido/ requerente encontra-se atualmente preso em prisão preventiva, que lhe foi aplicada em 1º interrogatório em 7/6/2023 e foi mantida por despacho em 5/12/2024.

- O requerente foi condenado no dia 15/7/2024 em 1ª Instancia pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º do Decreto Lei 15/93, de 22.01, por referência às tabelas IA e IB anexas, na pena de 7 (sete) anos e 9 (nove) meses de prisão, e pela prática de um crime de receptação, previsto e punido pelo artigo 231º, nº 1 Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, e em cúmulo na pena única de 8 (oito) anos e 3 (três) meses de prisão.

No acórdão condenatório foi mantida a prisão preventiva o mesmo sucedendo nos diversos reexames dos respectivos pressupostos entretanto e tempestivamente efectuados.

Tendo recorrido para a Relação de Évora por acórdão de 03.12.2024, a Relação de Évora confirmou a decisão proferida nos autos nos seus precisos termos.

Em 05.12.2024 foi proferido despacho que manteve e fixou novo prazo máximo de prisão preventiva.

Recorreu o arguido para este STJ no qual por decisão sumária comunicada à 1ª Instância em 30.05.2025, foi rejeitado o recurso por irrecorribilidade da decisão na parte que constituía o objecto de recurso.

Tal decisão ainda não transitou.

Estes os factos relevantes.

Apreciando:

A providencia de Habeas Corpus, como dispõe o artº 223º 4 CPP, visa a libertação imediata do arguido / detido em virtude de uma prisão ilegal em conformidade com a imposição constitucional expressa no artº 31º 1 CRP “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal,”.

Nos termos do artº 222º2 CPP, a petição a apresentar no Supremo Tribunal de Justiça deve fundar-se em prisão ilegal, por ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente (al. a) ou ser motivada por facto que a lei não permite (al. b), ou manter-se para além dos prazos fixados na lei ou em decisão judicial (al. c).

Alega o arguido/ requerente que está preso desde 5/6/2023 ininterruptamente até ao presente e ainda não foi condenado definitivamente pelo que já foi ultrapassado o prazo da prisão preventiva previsto no artº 215 nºs 1 a 3 CP. Pede por isso a sua libertação imediata.

Visto o alegado, em face dos fundamentos do habeas corpus, de caracter taxativo (ac. STJ de 19/5/2010 CJ STJ, 2010, T2, pág. 196), e fixados nas alíneas do nº2 do artº 222º CPP (numerus clausus) que podem ser invocados, estamos perante um pedido formulado por excesso de prazo de prisão preventiva, por em seu entender já haver expirado o tempo em que podia estar detido sem condenação transitada em julgado.

Efetivamente, prima facie, pareceria ser o caso, atento o que dispõe o artº 215º 2 CPP 2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos” e atentos os crimes porque foi condenado, pelo que o prazo seria de 2 anos findos os quais a medida de coação caducaria.

Todavia como resulta do exposto e da condenação sofrida esta foi confirmada pelo Tribunal da Relação em recurso, o que faz a situação dos autos preencher a estatuição do do nº6 do artº 215º CPP que estabelece o alargamento do prazo de prisão preventiva nos seguintes termos “6 - No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada” pelo que tendo o arguido sido condenado na pena única de 8 anos e 3 meses de prisão confirmada pelo Tribunal da Relação, e tendo decorrido o prazo de 2 anos, ainda não decorreu o novo prazo de 4 anos e 1 mês e quinze dias que emerge do facto de a condenação haver sido confirmada em recurso, pese embora a interposição de recurso para o STJ de que há decisão de rejeição, não transitada que se saiba.

Assim estando o arguido preso preventivamente desde o primeiro interrogatório judicial (7/6/2023 que decretou a prisão preventiva), por decisão de um juiz competente, para aguardar julgamento pelo crime de tráfico de droga do artº 21º DJ 15/93, e tendo sido condenado em pena de 8 anos e 3 meses de prisão confirmada pelo Tribunal da Relação em recurso, importa verificar que ainda não decorreu o prazo máximo previsto na lei para tal situação, donde não se encontra em situação de prisão ilegal, pelo que se torna manifesto que o pedido de habeas corpus, para libertação do requerente não pode ser emitido, pois a providencia não pode proceder, por falta de fundamento legal, sendo manifesta a sua improcedência, tendo o requerente omitido a sua condenação em 8 anos e 3 meses de prisão e que esta já fora confirmada pelo Tribunal da Relação, e tem de ser indeferida (artº 223º 4 a) CPP) e o requerente sancionado.

+

Pelo exposto o Supremo Tribunal de Justiça decide:

- Indeferir a providência de habeas corpus relativa ao arguido AA por manifesta falta de fundamento.

- Condenar o requerente na taxa de justiça de 4 UC e nas demais custas

Condenar o requerente, por manifesta improcedência no pagamento de 8 UCs (artº 223º, nº 6 CPP)

Notifique

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Lisboa e STJ, 18/6/2025

José A. Vaz Carreto (relator)

António Augusto Manso

Maria Margarida Almeida (declaração de voto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção Criminal)

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(com declaração de voto: Voto a decisão, com a qual estou integralmente de acordo, discordando apenas do facto de a mesma ser proferida após audiência, por entender que deveria ter sido rejeitada, por manifestamente infundada, por despacho do relator, atentas as razões que de seguida exponho:

1. O artº 31.º da Constituição da República Portuguesa instituiu, no nosso ordenamento jurídico, a providência de habeas corpus, determinando que:

1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.

2. Trata-se de um instituto jurídico próprio e único, que abrange, no seu seio, dois tipos específicos de protecção, contra prisão ou detenção ilegal.

Como afirma o Acórdão do STJ de 16-03-2015, processo nº 122/13.TELSB-L.S1, 3ª secção, consultável in www.dgsi.pt, A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita no art. 31.º da CRP, tem tratamento processual nos arts. 220.º e 222.º do CPP, que concretizam a injunção e a garantia constitucional.

Estamos, pois, perante um instrumento reactivo dirigido ao abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 08P435, Nº Convencional: JSTJ000, de 13-02-2008, consultável em www.dgsi.pt).

3. Coube ao legislador ordinário proceder à determinação do tratamento processual de tal instituto, o que fez nos artºs 220 a 224 do C.P.Penal, atribuindo a competência para o processamento dessa providência, no que toca a casos de detenção ilegal, aos tribunais de 1ª instância e, nos casos de prisão ilegal, ao STJ, especificando os requisitos próprios do que constitui detenção e prisão ilegal, nos artºs 220 e 222 do C.P.Penal, respectivamente.

Assim, a competência para a decisão cabe à secção criminal do STJ, quando se reporte a prisão ilegal e, no caso de detenção ilegal, recai sobre o juiz de instrução da área em que se encontrar o detido.

4. Da conjugação dos requisitos legais acima mencionados (artº 31 da CRP, artºs 220 a 224 do C.P.Penal), que se mostram necessários para a averiguação do procedimento geral a observar neste tipo de providência (para além dos dispositivos complementares necessários e de aplicação geral, constantes no C.P.Penal), resulta que a lei estipula a possibilidade de serem realizadas averiguações complementares, bem como que a apreciação será realizada em audiência contraditória e a decisão deverá ser alcançada no prazo de 8 dias.

5. Resulta ainda que compete ao juiz, ao receber o requerimento, apreciar se o mesmo se mostra ou não manifestamente infundado. Se tal for o caso, deve tal requerimento ser rejeitado (artº 221 nº1 e nº4 e artº 223 nº6, ambos do C.P.Penal).

6. Essa decisão singular é passível de ser revisitada, no caso das decisões proferidas em sede de 1ª instância, pela via de recurso e no caso de decisão singular do relator, no STJ, por reclamação que deverá ser apreciada em audiência.

7. Efectivamente, o disposto no artº 417 do C.P.Penal é uma norma de carácter geral, aplicável a todos os processos, dirigida ao momento em que os relatores, nos tribunais superiores, procedem ao exame preliminar dos autos, não se cingindo a mesma apenas aos casos de recurso, como aliás resulta claro do teor do seu nº 6, 1ª parte da al. c) e al. d) e nº8, em que não é feita qualquer restrição a tal apreciação, apenas no caso de se estar perante um processo de recurso.

8. No caso, por aplicação directa de tal normativo, a decisão singular, em sede de exame preliminar, poderá ser alvo de apreciação colectiva, por via da reclamação prevista no nº8 desse artigo, sendo certo que, neste específico caso, a mesma deverá ocorrer em sede de audiência, uma vez que o artº 31 da CRP impõe a mesma, nas providências de habeas corpus – o que bem se entende, atenta a celeridade, também constitucionalmente imposta, que determina a decisão da providência em 8 dias, o que se mostraria incompatível com a realização de conferência, que pressupõe o prévio funcionamento do princípio do contraditório – sendo assim norma de carácter especial que, neste preciso ponto, derroga a geral, que refere conferência.

9. Os aspectos de processamento acima mencionados são comuns a qualquer um dos tribunais competentes para o conhecimento da providência de habeas corpus, isto é, aplicam-se quer aos casos em que o fundamento é a detenção ilegal (que compete à 1ª instância apreciar), quer àqueles que se baseiam na alegação de prisão ilegal (que cabe ao STJ decidir), divergindo apenas na parte que se reporta ao estrito diverso modo de funcionamento de um tribunal de 1ª instância e de um tribunal superior.

10. Daqui decorre que se mostra aplicável a este STJ a apreciação consignada no citado artº 221 nº1 e nº4, em conjugação com o disposto no artº 223 nº6, ambos do C.P.Penal, considerando-se, aliás, que tal entendimento se mostra consubstanciado ainda pelas seguintes razões:

Determina o artº 223.º nºs 1 e 2 do C.P.Penal, que a petição de habeas corpus é enviada imediatamente ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, com informação sobre as condições em que foi efectuada ou se mantém a prisão e que, se da informação constar que a prisão se mantém, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça convoca a secção criminal, que delibera nos oito dias subsequentes, notificando o Ministério Público e o defensor e nomeando este, se não estiver já constituído. São correspondentemente aplicáveis os artigos 424.º e 435.º

Por seu turno, determina o artigo 56.º nº1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto que, fora dos casos previstos na lei de processo e nas alíneas g) e h) do artigo anterior, o julgamento nas secções é efectuado por três juízes, cabendo a um juiz as funções de relator e aos outros juízes as funções de adjuntos.

Ora, a apreciação prévia em sede de providência de habeas corpus, mostra-se prevista na lei do processo, como acima se expôs.

11. Do que se deixa dito decorre que, por regra, os pedidos de habeas corpus serão decididos em audiência, seja ela singular (1ª instância), seja colectiva (STJ).

Todavia, tal regra (como quase todas), apresenta excepções, designadamente quando ocorram circunstâncias que se mostrem previstas na lei de processo e que imponham, por parte do juiz, seja ele o juiz singular da 1ª instância, seja o juiz relator, no STJ – a quem compete apresentar o projecto de acórdão que será discutido, após audiência – uma tomada de posição e de decisão prévia à realização da audiência; isto é, quando se verifiquem circunstâncias que, no âmbito do exame preliminar do processo que é imposto ao relator, obstaculizem o prosseguimento dos autos para tal fim ou o seu destino se mostre irremediavelmente votado ao insucesso, determinando irrevogavelmente a manifesta improcedência do peticionado.

12. Temos, pois, da conjugação dos artigos acima mencionados que, em sede de providência de habeas corpus, o relator (à semelhança do juiz de 1ª instância) deve realizar um exame preliminar, para averiguação da existência de algumas das circunstâncias que o legislador impôs como devendo ser conhecidas por decisão sumária, o que se mostra igualmente enquadrável na própria determinação da Lei Orgânica, de que o processo só deve avançar para audiência, se se não verificarem questões cujo conhecimento a lei do processo impõe e que a não obstaculizem.

13. E bem se entende que assim seja, pois o legislador tem a preocupação de assegurar a eficiência do processamento processual, através da prevenção de actos inúteis, que não só acarretam um maior dispêndio temporal do que o necessário, como envolvem igualmente que os contribuintes portugueses acabem por suportar um custo acrescido, com a realização de um acto que envolve quatro magistrados judiciais, um magistrado do MºP., um advogado e um funcionário, pelo menos, para a realização de uma audiência, num processo que deveria ter sido já decidido, por uma única pessoa.

Seria um contra-senso legal entender-se que a expressa referência, constante no nº1 do artº 221 do C.P.Penal, que estipula que a primeira indagação que cabe ao juiz que recebe o requerimento, é a de decidir se este deve ou não ser considerado como manifestamente infundado, apenas se refere ao juiz de 1ª instância, ainda para mais quando o próprio nº6 do artº 223 do C.P.Penal refere expressamente tal possibilidade de rejeição. Especialmente se tivermos em atenção que o instituto de habeas corpus é único, constitucionalmente estabelecido de forma una, enquanto modo de reacção contra abusos de poder, que determinam a perda indevida da liberdade de um qualquer cidadão, inexistindo, nesta sede, qualquer hierarquia ou graduação entre detenção ou prisão.

Na verdade, se um juiz que exerce a sua função num tribunal hierarquicamente inferior aos tribunais de recurso, tem o poder/dever de averiguar, assim que recebe o requerimento, da eventual manifesta falta de fundamento de uma providência de habeas corpus – sendo certo que essa decisão é singularmente tomada, sendo posteriormente passível de ser apreciada por um tribunal colectivo, em sede de recurso – não se vislumbra como tal faculdade se mostraria vedada a um juiz de um tribunal hierarquicamente superior – no caso, exercendo funções no mais alto tribunal deste país – sendo certo que, de igual modo, essa sua decisão poderá vir a ser reanalisada por um colectivo de juízes, caso haja reclamação.

14. O que daqui decorre é que, sendo o instituto de habeas corpus um único, que tem como propósito a apreciação célere de um grave atentado à liberdade individual que alguém tenha sofrido, por virtude de abuso de poder, o procedimento processual mostra-se estabelecido através da leitura conjugada do disposto nos artºs 221 e 223 do C.P.Penal, no que concerne a tudo o que se não prenda directamente com a diversidade de razões que podem fundar a detenção ou a prisão ilegal ou o modo de funcionamento específico do tribunal de 1ª instância, no que toca à forma como a distribuição processual é realizada, inexistindo qualquer razão lógica que determine que se tenha de entender, por exemplo, que apenas o juiz de 1ª instância deverá averiguar, assim que recebe o requerimento, se este é ou não manifestamente infundado e, por outro, que o prazo de 8 dias apenas se aplica aos processos que correm seus termos no STJ.

15. No caso, mostrando-se o requerimento apresentado manifestamente infundado, entendo que deveria ter havido lugar a despacho de rejeição e não a designação de audiência, como acima expus.”

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1. Cf. ac. STJ 4/6/2024, Proc. 1/22.8KRPRT-K.S1 Cons. Lopes da Mota www.dgsi.pt

2. Idem; e ac STJ 30/4/2025 proc. 634/24.8PILRS-B.S1, www.dgsi.pt