INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
REENVIO
Sumário

O reenvio dos autos para novo julgamento com vista à descoberta da verdade material - ou, como no caso, ao apuramento de factos que preencham o tipo objectivo do ilícito imputado -, pressupõe que se conheça a existência concreta de prova nesse sentido.

Texto Integral

Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
1. Por sentença de 19 de Dezembro de 2024 foi o arguido AA absolvido da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º e 69.º, n. 1, alínea a), ambos do Código Penal.
2. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso apresentando as seguintes conclusões da motivação:
“(…)
I. O acórdão recorrido padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, porquanto perante a factualidade considerada provada, poderia-deveria o Tribunal a quo ter chamado a depor os agentes da PSP que procederam à fiscalização rodoviária do arguido e que determinaram a sua condução a estabelecimento hospitalar, tendo em vista a sua submissão à realização de teste de pesquisa de álcool no sangue;
II. Assim, impõe-se, salvo melhor e mais douto entendimento, a intervenção do Tribunal como poder-dever quando se entenda estar-se perante diligência imprescindível e necessária à descoberta da verdade, ao abrigo do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal (doravante CPP);
III. O artigo 340.º do CPP, que regula os princípios gerais para produção de prova que não tenha sido indicada pelas partes antes da audiência de julgamento, consagra, legal e genericamente, o princípio da investigação ou da oficialidade;
IV. Deste modo, considerado o Tribunal a quo que não dispunha de todos os elementos que entendia imprescindíveis à boa decisão da causa, e sendo ainda possível apurar tais elementos de prova, o Tribunal tinha o poder-dever de indagar, à luz do princípio da oficiosidade, pela produção dos meios de prova cujo conhecimento se lhe apresenta como necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, não podendo, sem mais, absolver o arguido, sob pena de total falimento dos desideratos processuais que se pretendem alcançar e do completo esvaziamento do poder de investigação, direcção e, em última instância, de decisão do Juiz;
V. É o que resulta do sistema acusatório temperado pelo sistema da investigação objectiva e imparcial do Tribunal, o que significa, em suma, que o esclarecimento do material de facto não pertence exclusivamente às partes, mas em último termo ao Juiz, sobre quem recai o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente - independentemente das contribuições das partes - o facto submetido a julgamento1, sendo consensual a ideia de que o Código de Processo Penal consagra um modelo de processo basicamente acusatório integrado por um princípio subsidiário e supletivo de investigação oficial;
VI. Ora, constatando o Tribunal a quo que testemunhas ouvidas em audiência, BB e CC, Agentes da PSP, que acorreram “ao local dos factos por aí ter sucedido um sinistro automóvel, sendo-lhes solicitado que conduzissem o arguido para fiscalização por seus colegas da Esquadra de Trânsito, o que fizeram”, sem que tivessem presenciado a condução de veículo pelo arguido ou esclarecido em que circunstâncias o arguido foi identificado no local e a razão da sua submissão a teste de álcool no sangue, impunha-se, por isso e quanto a nós, que fosse solicitado à Esquadra de Trânsito da Amadora o envio do auto de participação do acidente de viação a que se reporta o auto de participação de fls. 2 e que fossem chamados a depor os agentes que se deslocaram ao local do acidente e que determinaram a condução do arguido a estabelecimento hospitalar para a realização de exame ao álcool no sangue, tendo em vista, assim, a busca da prova da verdade material como pressuposto e fundamento da decisão condenatória ou absolutória;
VII. Verifica-se, deste modo, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art.º 410.°, n. ° 2, al. a), do CPP, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição - Cfr. entre outros os Acórdãos do STJ de 6/4/2000, in BMJ n.º 496, pág. 169 e de 13/1/1999, in BMJ n.º 483, pág. 49;
VIII.   Admite-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal “a quo” através dos meios de prova disponíveis, apreciados de forma crítica e segundos os princípios da livre apreciação da prova e das regras da experiência comum, seriam dados como provados, determinando uma alteração da qualificação jurídica da matéria de facto, ou da medida da pena ou de ambas (Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, 2a Ed., pág. 737 a 739);
IX. Se é certo que o Tribunal está vinculado à apreciação de todos os meios de prova constantes dos autos e oferecidos pelos sujeitos processuais, tem também o Tribunal o já aludido poder-dever de indagar pela produção de meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure primordial à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, à luz do preceituado no, também já, referenciado artigo 340º do CPP;
X. No contexto da produção da prova, a diligência em causa configurava-se como manifestamente essencial e imprescindível para o apuramento da verdade material e para a boa decisão da causa;
XI. Contudo, optou o Tribunal a quo, de modo conformista, pela renúncia à actuação dos seus poderes de investigação para acabar por se estribar no princípio “in dúbio pro reo” sem que previamente tenha esgotado todas as vias de afastamento da insanabilidade da dúvida;
XII. Não pode manter-se a decisão recorrida por violação da norma do art.º 340.º do Cód. Proc. Penal, e há que extrair as consequências dessa violação, padecendo a sentença recorrida, por isso, do mencionado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos previstos na alínea a) do nº 2, do artigo 410.º do CPP; e
XIII.   Em face do vício detectado, resulta a impossibilidade de se decidir da causa, impondo-se, por isso, repetir o julgamento, devendo, para o efeito, ser reenviado o processo nos termos do consagrado nos artigos 426.º e 426.º - A, ambos do CPP.
(…)”
2. O Arguido não respondeu ao recurso.
3. O Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal aderiu à argumentação expendida pelo Ministério Público junto da 1a Instância e pronunciou-se pela procedência do recurso e pelo reenvio do processo, nos termos e para os efeitos dos arts. 426.º e 426.º- A, ambos do Código de Processo Penal.
4. Âmbito do recurso e identificação das questões a decidir
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada (artigos 402º, 403º e 412º, n.º 1 do CPP), sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, designadamente, se existentes, dos vícios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
No caso, e face à motivação do recurso e respectivas conclusões importa, em concreto, decidir da existência do alegado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, previsto na alínea a) do n.º 2 do citado artigo 410.º do Código de Processo Penal.
III. Fundamentação
Vejamos os seguintes segmentos da sentença recorrida relativos à decisão da matéria de facto.
“(…)
Discutida a causa e produzida a prova, estão assentes os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa:
a. No dia 09/11/2019, pelas 18h00, o arguido encontrava-se junto ao a veículo de matrícula ..-..-GQ, na ..., viatura que tinha sido interveniente em acidente de viação.
b. Nas referidas circunstâncias, o arguido apresentava uma TAS de, pelo menos 1,55 g/l.
c. O arguido possui as condenações criminais registadas que constam do CRC junto aos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
(…)
Não se provou que:
1. Nas circunstâncias referidas nos factos provados o arguido conduziu o veículo de matrícula ..-..-GQ.
2. O arguido sabia que se encontrava sob a influência do álcool e em estado de embriaguez que lhe determinava necessariamente uma taxa de álcool no sangue superior a 1,20 g/L e, não obstante, quis e efectivamente logrou conduzir veículo automóvel na via pública.
3. Actuou de forma livre, voluntária, e consciente, bem sabendo que bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
(…)
No tocante aos antecedentes criminais do arguido, teve-se em conta o teor do CRC junto aos autos. E quanto à taxa de alcoolemia verificada no arguido, teve-se em conta o talão de alcoolímetro junto aos autos.
Não resultaram provados os factos descritos nos factos não provados, porquanto, em audiência, não foi produzida qualquer prova, documental ou testemunhal, que os confirmasse.
Nomeadamente, além do arguido não ter comparecido em audiência, as testemunhas ouvidas em audiência, BB e CC, agentes da PSP, relataram ter acorrido ao local dos factos por aí ter sucedido um sinistro automóvel, sendo-lhes solicitado que conduzissem o arguido para fiscalização por seus colegas da Esquadra de Trânsito, o que fizeram.
Pelo tanto e perante tal contexto probatório, não foi possível ao Tribunal formar uma convicção dotada da segurança e certeza necessárias a que se concluísse pela efectiva condução imputada ao arguido, circunstância relativamente à qual aquelas testemunhas revelaram total ausência de razão de ciência.
(…)”
Como referido supra, importa apreciar da alegada insuficiência para a decisão da matéria de facto que, como os restantes vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, sem apelo a outros elementos, mesmo que constantes do processo.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto verifica-se quando “os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão” (Acórdão do STJ de 20 de Abril de 2006).
No caso, invocou o Ministério Público que o Tribunal a quo podia e devia ter diligenciado pela identificação e posterior audição de testemunhas cujos depoimentos poderiam fazer prova do facto, não provado, relativo à condução pelo arguido do veículo matrícula ..-..-GQ.
Como resulta da motivação e respectivas conclusões, não está em causa não ter sido produzida prova suficiente do referido facto, tanto que toda a argumentação expendida no recurso assenta na existência de dúvida quanto a elementos essenciais ao preenchimento do tipo e na omissão do poder-dever de investigação do Tribunal de julgamento2.
Vejamos.
O artigo 340.º do Código de Processo Penal dispõe:
“1 - O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
2. - Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta.
3. - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis.
4. - Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a. (Revogada.)
b. As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
c. O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
d. O requerimento tem finalidade meramente dilatória.”
Assim, um dos princípios gerais de produção da prova é o princípio da investigação ou da oficialidade a que se refere o mesmo artigo 340.º, nos termos do qual o tribunal de julgamento pode e deve ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova que entenda necessários à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa.
No caso dos autos, e na sequência do incumprimento de injunção imposta em sede de suspensão provisória do processo3, o Ministério Público deduziu acusação indicando prova documental e arrolando como testemunhas os agentes da PSP BB e CC, identificados a fls. 3 como autuante e “testemunha da ocorrência”, respectivamente. Da audição destes em julgamento resultou que circulavam num carro patrulha, que foram chamados via rádio para prestar assistência, mais referindo que “o pessoal do trânsito também estava lá” e que apenas procederam ao transporte do arguido ao Hospital para realização de exame ao sangue. A testemunha BB foi confrontada com a Participação de fls. 3 e confirmou que a assinatura aí aposta é a sua.
O tribunal procedeu à produção e exame de toda a prova indicada em sede de acusação pública deduzida a 22 de Abril de 2023, por factos de 9 de Novembro de 2019. Em nenhum do momento da audiência - ou antes dela -, foi solicitada a produção de qualquer prova suplementar, nomeadamente a identificação e audição de outras testemunhas o que apenas em sede de recurso se considerou importante e necessário ao esclarecimento dos factos.
O reenvio dos autos para novo julgamento com vista à descoberta da verdade material - ou, como no caso, ao apuramento de factos que preencham o tipo objectivo do ilícito imputado -, pressupõe que se conheça a existência concreta de prova nesse sentido.
No recurso interposto considerou-se indispensável que o Tribunal a quo diligenciasse pela identificação de outros agentes da PSP e que estes fossem ouvidos com vista à prova da matéria da acusação. Não procedeu o recorrente a qualquer identificação das testemunhas em causa, não assegurou a sua existência, nem alegou que estas presenciaram a condução de veículo imputada ao arguido e, assim, que tinham um concreto conhecimento (e memória) dos factos.
Note-se que da prova produzida em audiência também não resultou como certo que outros elementos da PSP tenham esse concreto conhecimento.
Assim, não se identifica na sentença recorrida o alegado vício da insuficiência da para a decisão da matéria de facto, nem de qualquer outro dos vícios previstos no n.° 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, não podendo proceder a pretensão do recorrente.
III. Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 3.a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto mantendo na íntegra a sentença recorrida.
Sem custas. Notifique.
(Acórdão elaborado pela relatora e revisto pelos signatários - artigo 94º, n.º 2 do Código de Processo Penal).

Lisboa, 04-06-2025
Rosa Vasconcelos
Ana Rita Loja
Ana Paula Grandvaux
_______________________________________________________
1. Entre outros, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.97, proc. 413/97 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido sobre o P.C.S. 49/02.9 GTALQ.
2. “São estas dúvidas que cumpre tentar desvanecer com o depoimento das testemunhas decorrente da sua ciência directa, de modo a apurar a verdade dos factos.
 Tais dúvidas parecem-nos, por ora, ultrapassáveis com os depoimentos dos agentes da PSP que se deslocaram ao local na sequência do acidente de viação.”
3. No âmbito da suspensão provisória do processo, o arguido, de nacionalidade Finlandesa, cumpriu a injunção relativa à proibição de conduzir, não tendo procedido ao pagamento do montante fixado na mesma sede.