RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
DECISÃO SINGULAR
INADMISSIBILIDADE
RECURSO DE REVISÃO
FUNDAMENTOS
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS
DECISÃO
FORÇA VINCULATIVA
RETROATIVIDADE
CASO JULGADO
REENVIO PREJUDICIAL
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
ERRO DE ESCRITA
RETIFICAÇÃO
Sumário


A alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil só deverá aplicar-se às decisões de instâncias internacionais relativas à aplicação de normas jurídicas a um caso individual.

Texto Integral

ACORDÃO EM CONFERÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Reclamantes: SANDOZ A/S e SANDOZ FARMACÊUTICA, LDA.

I. — RELATÓRIO

1. SANDOZ A/S com sede na Dinamarca, e SANDOZ FARMACÊUTICA, LDA., intentaram a acção declarativa contra MERCK SHARP & DOHME CORP, com sede nos Estados Unidos da América, pedindo que fosse declarada a nulidade do certificado complementar de protecção nº 189 e ordenado o cancelamento do respectivo registo.

2. O Tribunal da Propriedade Intelectual proferiu sentença em que julgou improcedente a acção.

3. Inconformadas, as Autoras interpuseram recurso de apelação.

4. O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou, por unanimidade, a decisão do Tribunal da Propriedade Intelectual.

5. Inconformadas, as Autoras interpuseram recurso de revista.

6. O Supremo Tribunal de Justiça confirmou, por unanimidade, a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa.

7. SANDOZ A/S e SANDOZ FARMACÊUTICA, LDA., vieram entretanto interpor recurso de revisão.

8. Finalizam a sua alegação com as seguintes conclusões:

1. As Recorrentes vêm interpor recurso sobre o acórdão proferido pela 7.ª seção do Supremo Tribunal de Justiça nos autos de Revista n.º 281/17.0YHLSB.L1.S1, pelo que a presente revisão funda-se e, logo, tem como objeto a referida decisão, aliás transitada em julgado. Com efeito, o referido acórdão transitou em julgado no dia 4 de junho de 2021.

2. As Recorrentes, sendo parte na causa e, ademais, resultando prejudicadas com o caso julgado visado pela presente revisão, têm legitimidade e encontram-se em tempo, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, na alínea a) do n.º 2 e n.º 3 do artigo 697º do CPC.

3. Nos termos do referido Acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça concluiu, sobre o essencial, que o Certificado Complementar de Proteção n.º189 (CCP189) preenche todas as condições e/ ou os requisitos previstos no Regulamento (CE) n.º 469/2009, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de maio de 2009, relativo ao certificado complementar de proteção para os medicamentos (Regulamento CCP), para a concessão do certificado, nomeadamente o requisito constante do artigo 3.º, al. a), do Regulamento CCP, e julgou improcedente o recurso de revista, interposto sobre a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do qual se peticionava a revogação daquela decisão e, em consequência, que aquele CCP fosse julgado nulo, em resultado da respetiva concessão se mostrar contrária ao disposto no artigo 3.º do Regulamento CCP, e ordenada a sua revogação em conformidade.

4. O fundamento do presente recurso de revisão assenta no disposto no artigo 696.º, alínea f), doCPC, estatuindo que a decisão transitada em julgado apenas pode ser objeto de recurso de revisão quando “Seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português“, reconduzindo-se, assim, à prolação e, logo, existência de decisão judicial definitiva cujo decisório se revela manifestamente inconciliável com o acórdão emanado deste Supremo Tribunal de Justiça transitado em julgado em 4 de junho de 2021.

5. A decisão de instância internacional vinculativa para o Estado Português invocada ao abrigo do recurso de revisão é constituída pela decisão proferida peloTribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) nos processos C-119/22 e C-149/22, no dia 19 de dezembro de 2024, designadamente nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 698.º do CPC.

6. As Recorrentes encontram-se em tempo, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 697º do CPC.

7. A decisão proferida pelo TJUE assenta na mesma matéria de facto e direito que foi apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão objeto do presente recurso de revisão.

8. A inconciliação entre as duas decisões assenta no facto de no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça esta alta instância ter feito uma interpretação do artigo 3.º, al. a), do Regulamento CCP que contradiz a interpretação imposta pelo TJUE na decisão que serve de base e/ ou fundamento à revisão requerida. E aplicando a interpretação imposta pelo TJUE apenas resta concluir que, contrariamente ao julgamento feito pelo STJ sobre a matéria, o CCP189 é nulo e, consequentemente, impõe-se ordenar a sua revogação em conformidade.

9. Se por hipótese, meramente teórica e sem nunca conceder, se entendesse a inaplicabilidade ao caso dos autos do disposto na alínea f) do artigo 696.º do CPC, então esta previsão normativa dificilmente será aplicável a qualquer outro caso, revelando-se, pois, totalmente desprovida de efeito útil, na medida em que estamos perante uma decisão internacional de recurso que se debruça sobre precisamente a mesma matéria de facto e direito apreciada no acórdão objeto do recurso de revisão.

10. Ambas as decisões judiciais em confronto, quer o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (transitado em julgado), quer a recente decisão emanada do TJUE, se debruçaram sobre a mesma matéria de facto, na medida em que analisaram, entre outros, os certificados complementares de proteção (CCP) para medicamentos, nomeadamente os CCPs compreendendo simvastatina/ezetimiba com base na EP‘599, e a observância ou não do disposto no artigo 3.º do Regulamento CCP na concessão dos mesmos- cfr. Conclusão contida na página 27 do acórdão recorrido e página 37 da decisão proferida pelo TJUE.

11. Quer o acórdão recorrido, quer a decisão proferida pelo TJUE debruçam-se sobre certificados complementares de proteção, tendo considerado especificamente o CCP para o produto compreendendo a associação das substâncias ativas simvastatina /ezetimiba concedido com base na patente base EP720599–cfr. Conclusão contida na página 29 do acórdão recorrido e parágrafo 37 da decisão do TJUE.

12. Quer o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, quer a decisão do TJUE, debruçaram-se ainda sobre a mesma matéria de direito na medida em que ambos os referidos órgãos jurisdicionais emitentes apresentaram a respetiva interpretação para o disposto no artigo 3.º, al. a) e c), do Regulamento CCP – cfr. Sumário da decisão e página 32 do acórdão recorrido e ponto 3 e parágrafo 70 da decisão do TJUE.

13. O acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça perfilha interpretação sobre uma fonte de direito comunitário, no caso um Regulamento, que contradiz direta e ostensivamente a interpretação vinculativa sobre o disposto no artigo 3.º, al. a) do Regulamento CCP resultante da decisão proferida pelo TJUE.

14. A contradição inconciliável resulta, em termos sumários, das interpretações defendidas por um e outro órgão jurisdicional sobre o artigo 3.º, al. a) do Regulamento CCP -cfr. Sumário do acórdão recorrido e ponto 2 da decisão do TJUE.

15. É indisputável que a decisão proferida pelo TJUE contraria em absoluto a interpretação perfilhada pelo STJ no acórdão a rever e/ ou recorrido, mostrando-se, assim, contrária ao disposto no artigo 3.º., al. a) do Regulamento CCP.

16. O TJUE esclareceu como se deverá aferir se a combinação se enquadra invenção e afastou completamente a interpretação seguida no acórdão a rever para o disposto no artigo 3.º, al. a) do Regulamento CCP.

17. O TJUE veio, de forma cristalina, explicar que para preenchimento do artigo 3.º, al. a) do Regulamento CCP é necessário que a patente base descreva que a combinação dos dois ingredientes ativos tem um efeito combinado que vá além da mera adição dos efeitos destes dois ingredientes ativos.

18. As duas decisões são absolutamente inconciliáveis na medida em que o acórdão a rever e/ ou recorrido interpreta o artigo 3.º, al. a) do Regulamento como apenas exigindo a referência ao produto – expressa ou implícita – nas reivindicações da patente base, quando o TJUE esclareceu, a título prejudicial, que tal não será suficiente se a patente de base não descrever o efeito combinado dos dois ingredientes ativos que compõem o produto.

19. O acórdão a rever e/ ou recorrido deverá ser revogado por este STJ, no quadro dos presentes autos de recurso de revisão, e substituído, em conformidade, por outra decisão nos termos da qual se julgue o CCP189 nulo e se ordene a sua revogação em conformidade.

20. Caso o acórdão recorrido tivesse aplicado a interpretação do artigo 3.º, al. a) do Regulamento CCP perfilhada pelo TJUE na decisão que serve de base à revisão, teria concluído pela procedência do recurso de revista, então interposto pelas Recorrentes, declarando, em conformidade, a nulidade do CCP189.

21. Tal como consta do acórdão a rever e/ ou recorrido, foi dado como provado nos presentes autos que: “24. — A EP599 não revela a vantagem da terapia de associação face à monoterapia, nem revela dados experimentais.“

22. Aquele facto reflectem precisamente a matéria de facto que o TJUE determina como necessária para apreciação do requisito constante do artigo 3.º, al. a) do Regulamento CCP.

23. Nos termos do artigo 267.º do TFUE a interpretação do TJUE tem efeitos erga omnes em todas as jurisdições europeias. Esse efeito erga omnes das decisões proferidas no âmbito de reenvios prejudiciais significa que, ao interpretar o direito da UE, todos os tribunais nacionais são obrigados a aplicar não só a parte dispositiva de uma decisão prejudicial, mas também a ratio da interpretação ali vertida.

24. A decisão proferida pelo TJUE produz efeitos retroativos (ex tunc) salvo se excecionalmente forem fixados efeitos limitados no tempo, circunstancialismo este que, no caso em análise, não se verifica.

25. No presente caso, a decisão proferida pelo TJUE não limitou os efeitos no tempo, pelo que produz efeitos retroativamente, inclusivamente relativamente ao acórdão recorrido.

26. A manter-se na ordem jurídica a interpretação sobre o disposto no artigo 3.º, al. a) do Regulamento CCP consagrada no acórdão a rever e/ recorrido, o que, nunca concedendo, se equaciona apenas para efeitos de raciocínio hipotético, resultarão ostensivamente violados os princípios da uniformidade e a harmonização na aplicação do direito da União no território dos Estados-Membros, porquanto a jurisdição portuguesa estará a contrariar direta e expressamente a jurisprudência do TJUE e dos restantes Estados-Membros.

27. O presente recurso de revisão, tal como que o mesmo se encontra devidamente instruído, nomeadamente com os elementos necessários nos termos do disposto no artigo 698º do CPC, requerendo-se a Vs. Exas., nessa conformidade, se dignem admitir o mesmo, com todas as consequências legais.

28. Deverá ser revogado o acórdão a rever e/ ou recorrido e substituindo-o por outro que, nomeadamente, julgue procedente a nulidade do CCP189 e ordene a sua revogação em conformidade.

Termos em que, e nos mais de Direito aplicáveis, devem V. Exas.:

i. Admitir o presente recurso extraordinário de revisão, por se encontrarem verificados os pressupostos e requisitos previstos no artigos 696º n.º 1 alínea f), 697º e 698º, todos do CPC;

ii. O que se requer, com todas as consequências legais.

9. Em 2 de Maio de 2025 foi indeferido o requerimento de interposição do recurso de revisão, ao abrigo do n.º 1 do artigo 699.º do Código de Processo Civil.

10. SANDOZ A/S e SANDOZ FARMACÊUTICA, LDA., vêm agora reclamar para a conferência do despacho proferido em 2 de Maio de 2025.

11. Fazem-no nos seguintes termos:

I. - O descortinado erro material de escrita e a correção necessária

1. Por via do presente, a Sandoz AS e a Sandoz Lda, ora Reclamantes, começam por reivindicar a retificação de erro material de escrita contido no despacho judicial, assinado (eletronicamente) em 2 de maio de 2025, designadamente no respetivo dispositivo, que, por facilidade de exposição, transcrevem abaixo:

'Face ao exposto, indefere-se o presente requerimento de interposição de recurso de revista (…)',

2. porquanto o dispositivo transcrito acima encerra manifesto erro material de escrita.

Com efeito,

3. o recurso interposto pela Sandoz AS e pela Sandoz Lda, contrariamente ao afirmado na citada passagem do despacho judicial referenciado em intróito, não foi de revista, mas de REVISÃO, como, de resto, ressalta claro dos autos.

4. Por conseguinte, é manifesta a inexatidão da citada passagem no dispositivo do despacho judicial, assinado (eletronicamente) em 2 de maio de 2025, na certeza de que a mesma, atenta a fundamentação do referido despacho judicial e os demais elementos documentados nos autos, apenas poderá resultar de manifesto lapso.

5. O assinalado erro material consubstancia, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 613.º e no n.º 1 do artigo 614.º, ambos constantes do CPC, erro material passível de correção, impondo-se, assim, a respetiva retificação.

II — Fundamentação

6. A presente reclamação tem por objeto o despacho judicial, assinado (eletronicamente) em 2 de maio de 2025, que indeferiu liminarmente o recurso extraordinário de revisão interposto pelas Reclamantes, nos termos e ao abrigo do disposto na alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil.

7. Com o devido respeito e salvo melhor entendimento, as Reclamantes consideram que tal decisão incorre em erro de julgamento, por interpretar de forma excessivamente restritiva os pressupostos para a aplicação da norma em causa, desconsiderando, nomeadamente, os efeitos vinculativos da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), bem como os deveres constitucionais e convencionais assumidos pelo Estado Português.

a) Inconciliabilidade manifesta entre a decisão do TJUE e o acórdão recorrido

8. A decisão do TJUE, proferida nos processos apensados C-119/22 e C-149/22, incide sobre a mesma questão de fundo discutida no acórdão recorrido: a nulidade do Certificado Complementar de Proteção (CCP) n.º 189, concedido com base na patente EP599 e relativo à associação fixa das substâncias ativas sinvastatina e ezetimiba, enquanto medicamento abrangido por uma autorização de introdução no mercado (AIM) para o tratamento da hipercolesterolemia, por violação dos requisitos estatuídos no artigo 3.º, alínea a), do Regulamento (CE) n.º 469/2009.

9. O TJUE foi claro ao afirmar que a validade de um CCP, nos termos do artigo 3.º, alínea a), do Regulamento (CE) n.º 469/2009, exige que a patente base revele expressamente o efeito combinado dos princípios ativos, não bastando uma mera referência implícita ou funcional ao produto nas respetivas reivindicações, interpretação esta que se opõe de forma frontal à adotada pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão objeto do recurso de revisão.

10. Tal contradição traduz uma verdadeira incompatibilidade normativa entre ambas as decisões, que preenche integralmente o conceito de "inconciliabilidade" previsto na alínea f) do artigo 696.5 do CPC.

b) A vinculação dos tribunais nacionais à jurdência do TJUE

11. Nos termos do artigo 267.9 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), o TJUE é a única instância competente para interpretar, com autoridade, o Direito da União Europeia.

12. Esta competência interpretativa vincula todos os tribunais nacionais, conforme resulta do artigo 8.Q, n.Q 4 da Constituição da República Portuguesa, que estabelece o primado do Direito da União.

13. Sendo que qualquer disposição ou prática da ordem jurídica nacional que afete a plena eficácia do Direito da União deve ser afastada, mesmo que anterior ou posterior.

14. Foi este também o entendimento perfilhado no célebre Acórdão do TJUE, proferido no caso 'Simmenthal' (proc. 106/77), disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:61977CJ0106, cuja jurisprudência vem sendo aplicada até aos dias de hoje.

15. No referido acórdão, o TJUE proferiu as seguintes palavras-:’

"17 Além do mais, por força do princípio do primado do direito comunitário, as disposições do Tratado e os actos das instituições directamente aplicáveis têm por efeito, nas suas relações com o direito interno dos Estados-membros, não apenas tornar inaplicável de pleno direito, desde o momento da sua entrada em vigor, qualquer norma de direito interno que lhes seja contrária, mas também — e dado que tais disposições e actos integram, com posição de precedência, a ordem jurídica aplicável no território de cada um dos Estados-membros — impedir a formação válida de novos actos legislativos nacionais, na medida em que seriam incompatíveis com normas do direito comunitário.

Com efeito, o reconhecimento de uma qualquer forma de eficácia jurídica atribuída a actos legislativos nacionais que invadem o domínio no qual se exerce o poder legislativo da Comunidade, ou que por qualquer forma se mostrem incompatíveis com disposições do direito comunitário, implicaria a negação do carácter efectivo dos compromissos assumidos pelos Estados-membros, por força do Tratado, de modo incondicional e irrevogável, contribuindo assim para pôr em causa os próprios fundamentos da Comunidade.

O mesmo entendimento decorre da economia do artigo 177. ° do Tratado, nos termos do qual qualquer órgão jurisdicional nacional pode, sempre que considerar necessário para o julgamento da causa, solicitar ao Tribunal de Justiça que se pronuncie, a título prejudicial, sobre uma questão de interpretação ou de validade relativa ao direito comunitário.

O efeito útil desta disposição seria diminuído se o juiz estivesse impedido de dar, imediatamente, ao direito comunitário uma aplicação conforme à decisão ou à jurisprudência do Tribunal.

Decorre de tudo quanto precede que qualquer juiz nacional tem o dever de, no âmbito das suas competências, aplicar integralmente o direito comunitário e proteger os direitos que este confere aos particulares, considerando inaplicável qualquer disposição eventualmente contrária de direito interno, quer seja esta anterior ou posterior à norma comunitária.

É, assim, incompatível com as exigências inerentes à própria natureza do direito comunitário, qualquer norma da ordem jurídica interna ou prática legislativa, administrativa ou judicial, que tenha por consequência a diminuição da eficácia do direito comunitário, pelo facto de recusar ao juiz competente para a aplicação deste direito, o poder de, no momento dessa aplicação, fazer tudo o que é necessário para afastar as disposições legislativas nacionais que constituam, eventualmente, um obstáculo à plena eficácia das normas comunitárias.

Assim, o tribunal nacional está, assim, obrigado a aplicar na íntegra o Direito da União e a não aplicar qualquer norma interna que com ele colida, sem necessidade de aguardar pela sua revogação ou declaração de inconstitucionalidade/' (realce e sublinhado nosso).

16. Atento o exposto, o TJUE deixou claro que quaisquer disposições ou práticas da ordem jurídica nacional que comprometam a plena eficácia do Direito da União devem ser afastadas, mesmo que anteriores ou posteriores, dado que essas disposições e atos da União integram, com posição de precedência, a ordem jurídica aplicável em cada Estado-Membro.

17. Concluindo-se, dessa forma, que mesmo decisões nacionais transitadas em julgado devem ser conformadas à jurisprudência do TJUE, desde que haja via processual idónea — como sucede no caso do recurso de revisão.

c) A alínea f) do artigo 696.º do CPC não exige que a instância internacional seja hierarquicamente superior

18. O despacho judicial reclamado introduz, sem respaldo na letra da lei, a exigência de que a instância internacional de recurso seja hierarquicamente superior aos tribunais nacionais.

19. Tal requisito não consta do texto da alínea f), que apenas exige que a decisão seja definitiva, proferida por uma instância internacional de recurso, e vinculativa para o Estado Português — todos requisitos inequivocamente preenchidos pelo TJUE.

20. Aliás, o DL nº 303/2007, de 24-08, que introduziu este novo fundamento de admissibilidade de recurso extraordinário de revisão, constante da alínea f), do art. 696.º, do CPC, justifica no preâmbulo que este fundamento de recurso permitirá que a decisão interna transitada em julgado possa ser revista quando viole normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte, ou seja, permitindo a execução de uma decisão, entre outros, do TJUE, através deste instituto de recurso.

d) Interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa

21. Por outro lado, e salvo o devido respeito, a interpretação perfilhada na decisão reclamada, excluindo a jurisprudência do TJUE do âmbito da alínea f) do artigo 696.º do CPC, viola o disposto no artigo 8.º, n.º 4 da CRP, que impõe aos tribunais nacionais o dever de respeitar e aplicar o Direito da União Europeia com primazia sobre o direito interno.

22. Impõe-se, pois, uma interpretação da alínea f) conforme à Constituição, que permita o seu acionamento com base em decisões do TJUE, sob pena de comprometer a integração europeia e os deveres decorrentes dos Tratados.

23. A interpretação do artigo 696.º, a|. f) do CPC segundo a qual o recurso de revisão não é admissível nos casos em que a decisão transitada em julgado for oponível a uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia é inconstitucional por violar o princípio da aplicação do direito europeu decorrente do artigo 8.º, n.º 4 da CRP.

24. Por sua vez, o despacho judicial reclamado incorre também num erro de interpretação do artigo 282.º da CRP.

25. Com efeito, o disposto no artigo 282.º da CRP é exclusivamente aplicável às decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional, não sendo aplicável ao caso em apreço, em que a decisão subjacente ao recurso de revisão foi proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.

26. Como nota preliminar, o artigo 282.º da CRP prevê expressamente que os efeitos sobre decisões transitadas em julgado é exclusivamente aferido, naquele caso, relativamente às decisões do Tribunal Constitucional, não sendo aplicável a outras instâncias internacionais de recurso.

27. Assim, a interpretação perfilhada no despacho judicial reclamado esvaziaria de conteúdo o fundamento de recurso de revisão previsto na alínea f) do artigo 696.º do CPC, porquanto o mesmo refere-se exclusivamente a instâncias internacionais de recurso, como ocorre no caso dos presentes autos.

e) Incoerência na exclusão do TJUE face à admissão do TEDH

28. O Supremo Tribunal de Justiça já admitiu, em jurisprudência anterior (cfr. Proc. 5817/07.2TBOER), que decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) podem justificar a revisão de decisões nacionais com base na alínea f) do artigo 696.s do CPC, sob pena de tornar a norma inócua.

29. Ora, sendo o TJUE um órgão com competência normativa direta e cujas decisões produzem efeitos erga omnes — ao contrário do TEDH, cujas decisões são, regra geral, inter partes —, excluir o primeiro e admitir o segundo revela incoerência e desproporcionalidade jurídica.

30. Tal incoerência é ainda mais evidente no presente caso, em que a decisão do TJUE que fundamenta o recurso de revisão interposto pelas reclamantes se pronuncia precisamente sobre a mesma norma de direito da União Europeia, sobre a mesma patente e o mesmo CCP e sobre o mesmo 'produto' objeto do acórdão recorrido, interpretando diretamente o artigo 3.^, alínea a), do Regulamento (CE) n.Q 469/2009.

f) A distinção entre decisões interpretativas e aplicativas é infundada e contrária ao regime da alínea f) do artigo 696.9 do CPC

31. Mais, o juízo vertido no despacho judicial reclamado limita, salvo o devido respeito, a aplicação da alínea f) do artigo 696.º do CPC às decisões que apliquem normas jurídicas a casos individuais, excluindo, por consequência, as decisões interpretativas — distinção que não tem base legal.

32. A jurisprudência do TJUE, ainda que interpretativa, integra o conteúdo das normas da União Europeia e vincula todos os órgãos jurisdicionais nacionais.

33. No caso em apreço, a decisão europeia incide diretamente sobre o mesmo produto constituído pelo medicamento composto pela combinação de substâncias ativas (sinvastatina/ezetimiba), sobre a mesma patente (EP599) e sobre o mesmo CCP (CCP189).

34. Assim, a aplicação da jurisprudência do TJUE não representa, pois, um exercício teórico ou abstrato: trata-se de uma decisão que corrige diretamente a interpretação anteriormente feita pelo Supremo Tribunal de Justiça, no que respeita à aplicação ao caso em concreto do disposto no artigo 3.5, alínea a), do Regulamento (CE) n.5 469/2009.

35. Ao contrário do que alega o Supremo Tribunal de Justiça na decisão de que agora se reclama, a retroatividade da jurisprudência interpretativa do TJUE não colide com os valores da certeza jurídica — colide, isso sim, com a manutenção de decisões nacionais inconciliáveis com o Direito da União, o que justifica precisamente o mecanismo de revisão,

36. A interpretação perfilhada nsingular despacho judicial que indeferiu liminarmente o recurso de revisão, no sentido de que o regime previsto no artigo 696.º, aç. f) do CPC apenas será aplicável a casos individuais, implica o risco sério de tornar inútil o Tribunal de Justiça da União Europeia porquanto a interpretação de normas europeias não será aplicável aos processos nacionais. Ou seja, as decisões do TJUE apenas produzirão efeitos nas restantes jurisdições europeias, não sendo aplicáveis em Portugal. Isto porquanto é um facto notório que os processos de reenvio são particularmente - e justificadamente - morosos, pelo que, a vingar tal interpretação, as decisões não irão produzir efeitos nos processos judiciais pendentes em Portugal.

37. Tal interpretação colide diretamente não só com o disposto no artigo 696.s, ai. f) do CPC, nos termos acima expostos, mas também padece de inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 8.º, n.º 4 da CRP.

g) A revisão não contraria o princípio do caso julgado, mas decorre de exceção legal expressa

38. A alínea f) do artigo 696.s do CPC consagra uma exceção clara e expressa ao princípio do caso julgado, prevista pelo legislador para situações em que se verifique uma decisão internacional vinculativa incompatível com uma decisão nacional.

39. Note-se que é próprio Supremo Tribunal de Justiça que reconhece, no ponto 19 do despacho reclamado, que a norma permite derrogar o caso julgado mediante tais decisões.

40. No entanto, o que o Supremo Tribunal de Justiça parece ignorar é que a decisão do TJUE em causa preenche precisamente os requisitos da norma, ao interpretar com caráter vinculativo o artigo 3.º, alínea a), do Regulamento (CE) n.Q 469/2009.

41. Desta feita, invocar o princípio do caso julgado para recusar a aplicação de uma exceção legalmente prevista é esvaziar essa mesma norma, tornando-a inócua.

h) A segurança jurídica não pode prevalecer sobre a primazia do Direito da União

42. O argumento da insegurança jurídica não pode ser utilizado como escudo contra o cumprimento do Direito da União.

43. Desde logo, como o próprio TJUE reafirmou no já citado acórdão Simmenthal, as normas da União devem prevalecer, mesmo que entrem em conflito com decisões nacionais com trânsito em julgado.

44. Nesta senda, a revisão prevista na alínea f) do artigo 696.5 do CPC não se destina a reabrir indiscriminadamente processos findos, mas apenas a corrigir decisões nacionais incompatíveis com obrigações internacionais, garantindo assim a uniformidade e primazia do Direito da União.

45. Pelo que negar a revisão nestes termos compromete, não a segurança jurídica, mas a confiança dos cidadãos na capacidade do sistema judicial nacional de se conformar com os compromissos europeus.

46. Nestes termos e face ao acima exposto, deverá admitir-se a presente reclamação e, em consequência da mesma, revogar-se o despacho judicial reclamado, substituindo-o por acórdão que admita o recurso de revisão interposto pelas reclamantes nos termos e ao abrigo do exposto no artigo 696.9, ai. f) do CPC.

Ill — Conclusões

I. — O despacho judicial reclamado incorre em erro material, ao referir-se à interposição de um "recurso de revista" quando, na verdade, foi interposto um recurso extraordinário de revisão, erro esse corrigível nos termos dos artigos 613.º, n.º 2 e 614.º, n.º 1, ambos do CPC.

II. — O mesmo despacho indeferiu liminarmente o recurso de revisão apresentado pelas Reclamantes, com base numa interpretação restritiva e juridicamente incorreta da alínea f) do artigo 696.º do CPC.

III. — O fundamento do recurso de revisão reside na inconciliabilidade manifesta entre o acórdão transitado em julgado do Supremo Tribunal de Justiça e a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, proferida em 2024 nos processos C-119/22 e C-149/22, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 696.º, al. f) do CPC.

IV. — Ambas as decisões — a nacional e a internacional — incidem sobre a mesma questão de facto e de direito, relativa à validade do Certificado Complementar de Proteção (CCP) n.º 189 concedido com base na patente EP599.

V. — A interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça ao artigo 3.º, al. a), do Regulamento (CE) n.º 469/2009, diverge frontalmente da interpretação imposta pelo TJUE, configurando uma situação de inconciliabilidade normativa.

VI. — O TJUE determinou que não basta que o produto esteja mencionado nas reivindicações da patente; é necessário que a patente revele expressamente o efeito combinado entre os princípios ativos,

VII. — Os tribunais nacionais estão vinculados à jurisprudência do TJUE, nos termos do artigo 267.º do TFUE e do artigo 8.º, n.º 4 da CRP, devendo afastar normas ou decisões internas incompatíveis com o Direito da União — como reiteradamente reconhecido desde o acórdão Simmenthal (TJUE, proc. 106/77).

VIII. — A jurisprudência do TJUE tem efeitos vinculativos e retroativos (extunc), pelo que deve ser aplicada às decisões nacionais já transitadas em julgado, através do mecanismo da revisão.

IX. — O entendimento restritivo do despacho reclamado, que exige que a instância internacional seja "hierarquicamente superior" ou que exclui decisões interpretativas, não tem respaldo legal e compromete a utilidade da norma da alínea f) do artigo 696.º do CPC.

X. — A tentativa de restringir o alcance da alínea f) apenas a decisões "aplicativas" (e não interpretativas) é infundada, sem base legal e contraria o regime jurídico do recurso de revisão, que visa justamente dar aplicação prática à jurisprudência vinculativa do TJUE.

XI. — A revisão com fundamento na alínea f) do artigo 696.º do CPC constitui uma exceção expressamente consagrada ao princípio da autoridade do caso julgado, sendo o meio processual previsto pelo legislador para conformar decisões nacionais a obrigações internacionais vinculativas.

XII. — O Supremo Tribunal de Justiça já admitiu revisões fundadas em decisões do TEDH — cuja força normativa é, em muitos casos, inferior à do TJUE — o que torna incoerente e desproporcionada a rejeição de uma decisão deste último.

XIII. — A invocação da segurança jurídica para justificar o indeferimento da revisão não pode prevalecer sobre a primazia do Direito da União Europeia, sob pena de comprometer a unidade e eficácia da ordem jurídica europeia.

XIV. — A aplicação da alínea f) do artigo 696.º do CPC no presente caso é não só admissível como necessária, sob pena de subversão do princípio da primazia do Direito da União Europeia e de violação do artigo 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

XV. — O recurso de revisão interposto nos presentes autos reúne todos os requisitos legais, encontra-se devidamente instruído e foi tempestivamente apresentado, nos termos dos artigos 696.º, alínea f) do CPC.

Assim, deve a presente reclamação para a conferência ser julgada procedente, com:

— correção do erro material identificado;

— revogação do despacho judicial assinado (eletronicamente) em 2 de maio de 2025; consequente admissão do recurso extraordinário de revisão interposto, com todas as consequências legais.

Em face do exposto, requer-se a V. Exas.:

a) se dignem ordenar, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 614.º, n.º 1,, do CPC, a retificação do erro material identificado acima, constante do dispositivo do despacho judicial referenciado em intróito, o qual dever-se-á, seguramente, a mero lapso;

b) Que seja admitida e julgada procedente a presente reclamação;

c) Que, em consequência, seja revogado a despacho judicial assinado (eletronicamente) em 2 de maio de 2025;

d) Que seja admitido o recurso extraordinário de revisão interposto, prosseguindo os autos os seus regulares termos, com a apreciação de mérito da causa.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

12. As Reclamantes constatam, com razão, que o despacho reclamado contém um erro de escrita.

13. Em vez de “indefere-se o presente requerimento de interposição de recurso de revista […]”, deveria ter-se escrito “indefere-se o presente requerimento de interposição de recurso de revisão, ao abrigo do segundo termo da alternativa do n.º 1 do artigo 699.º do Código de Processo Civil”.

13. Em consequência, defere-se o requerimento de rectificação do erro de escrita, ao abrigo do artigo 614.º do Código de Processo Civil.

14. Independentemente de erros de escrita, as Reclamantes impugnam, sem razão, o despacho de indeferimento de 2 de Maio de 2025.

15. O recurso de revisão foi interposto ao abrigo da alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil:

A decisão transitada em julgado […] pode ser objecto de revisão quando [s]eja inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português 1.

16. As decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia ao abrigo da alínea b) do n.º 3 artigo 19.º do Tratado sobre a União Europeia e do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia têm efeitos em relação a todos (erga omnes) 2.

17. Em termos em tudo semelhantes aos das leis, as decisões interpretativas do Tribunal de Justiça integram-se nas disposições do direito da União Europeia interpretadas.

18. Em complemento dos seus efeitos em relação a todos (erga omnes), as decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça têm efeitos retroactivos (ex tunc).

19. Os órgãos jurisdicionais nacionais devem aplicar a disposição interpretada a todas as relações jurídicas, independentemente de se terem constituído antes ou depois da decisão interpretativa do Tribunal de Justiça da União Europeia 3.

20. As Reclamantes alegam que “os tribunais nacionais estão vinculados à jurisprudência do TJUE, nos termos do artigo 267.º do TFUE e do artigo 8.º, n.º 4 da CRP, devendo afastar normas ou decisões internas incompatíveis com o Direito da União — como reiteradamente reconhecido desde o acórdão Simmenthal (TJUE, proc. 106/77)” 4 e que “[a] jurisprudência do TJUE tem efeitos vinculativos e retroativos (ex tunc), pelo que deve ser aplicada às decisões nacionais já transitadas em julgado, através do mecanismo da revisão” 5.

21. Ora o despacho reclamado nunca colocou em causa que os tribunais nacionais estivessem vinculados à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia ou que a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia tivesse efeitos retroactivos (ex tunc).

22. O problema está tão-só em que a constatação de que “[a] jurisprudência do TJUE tem efeitos vinculativos e retroativos (ex tunc)” não significa, sem mais, que “dev[a] ser aplicada às decisões nacionais já transitadas em julgado, através do mecanismo da revisão”.

23. O Tribunal de Justiça da União Europeia reconhece que o efeito retroactivo (ex tunc) das decisões interpretativas proferidas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia deve conciliar-se ou harmonizar-se com a força de caso julgado das decisões proferidas pelos tribunais nacionais 6.

24. Como se diz. por exemplo, no acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de Maio de 2022 — processo C‑869/19 —

“a fim de garantir tanto a estabilidade do direito e das relações jurídicas como uma boa administração da justiça, é necessário que as decisões judiciais que se tornaram definitivas após o esgotamento das vias de recurso disponíveis ou depois de terminados os prazos previstos para esses recursos já não possam ser postas em causa”.

25. Em consonância com o reconhecimento da importância do caso julgado para a boa administração da justiça, para a estabilidade do direito e para a estabilidade das relações jurídicas, designadamente das relações jurídicas privadas, o Tribunal de Justiça da União Europeia tem considerado constantemente que

“o direito da União [Europeia] não exige que, para ter em conta a interpretação de uma disposição pertinente desse direito adotada pelo Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional nacional deva, por princípio, rever uma decisão revestida da autoridade do caso julgado” 7.

26. Exceptua-se os casos em que a recusa de revisão das decisões revestida da autoridade de caso julgado conflitue com o princípio da efectividade 8 ou com o princípio da equivalência 9.

27. O facto de o direito da União Europeia não exigir que o o órgão jurisdicional nacional deva, por princípio, rever uma decisão revestida da autoridade do caso julgado faz com que caiam de imediato os argumentos deduzidos pelas Reclamantes de que “[a] aplicação da alínea f) do artigo 696.º do [Código de Processo Civil] no presente caso é […] necessária [para prevenir a] subversão do princípio da primazia do Direito da União Europeia e de violação do artigo 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa” 10 ou de que “[a] segurança jurídica […] não pode prevalecer sobre a primazia do Direito da União Europeia, sob pena de comprometer a unidade e eficácia da ordem jurídica europeia” 11.

28. Esclarecido que a constatação de que “[a] jurisprudência do TJUE tem efeitos vinculativos e retroativos (ex tunc)” não significa, sem mais, que “dev[a] ser aplicada às decisões nacionais já transitadas em julgado, através do mecanismo da revisão”, deve averiguar-se se a alínea f) do do artigo 696.º do Código de Processo Civil compreende o caso de conflito com uma decisão interpretativa do Tribunal de Justiça da União Europeia.

29. A alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil só permite que o princípio do caso julgado seja derrogado através de uma revisão (i) desde que haja uma decisão definitiva de uma instância internacional de recurso e (ii) desde que a decisão definitiva da instância internacional de recurso seja vinculativa para o Estado Português.

30. Ora as decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia ao abrigo da alínea b) do n.º 3 artigo 19.º do Tratado sobre a União Europeia e do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia não são decisões definitivas de uma instância internacional de recurso no sentido da alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil.

31. Em primeiro lugar, o reenvio previsto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia é um reenvio prejudicial — e, como reenvio prejudicial, só pode ser suscitado antes de ser proferida uma decisão pelo órgão jurisdicional de reenvio.

32. Em segundo lugar, ainda que pudesse ser suscitado depois de ter sido proferida uma decisão pelo órgão jurisdicional de reenvio, nunca o reenvio prejudicial poderia reconduzir-se a uma reapreciação das decisões proferidas pelos órgãos jurisdicionais nacionais.

33. O Tribunal de Justiça decide, a título prejudicial, sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União Europeia 12 — não decide nem sobre a validade, nem sobre a interpretação, nem sobre o mérito das decisões dos órgãos jurisdicionais dos Estados-membros da União Europeia 13.

34. Esclarecido que as decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia ao abrigo da alínea b) do n.º 3 artigo 19.º do Tratado sobre a União Europeia e do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia não são decisões definitivas de uma instância internacional de recurso no sentido da alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil, o presente recurso de revisão pressupõe que deva fazer-se uma interpretação extensiva da alínea d) do artigo 696.º do Código de Processo Civil 14.

35. A interpretação extensiva da alínea d) do artigo 696,º do Código de Processo Civil concretizar-se-ia que a decisão transitada em julgado pudesse ser objecto de revisão desde que fosse inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional vinculativa para o Estado Português, ainda que não fosse em rigor uma instância de recurso.

36. Ora a pressuposição das Reclamantes de que deve fazer-se uma interpretação extensiva da alínea d) do artigo 696.º do Código de Processo Civil está, em princípio, certa:

38. A interpretação declarativa inutilizaria a alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil, fazendo — como faria — com que não se aplicasse a caso nenhum.

39. Em rigor não haver nenhuma instância internacional de recurso das decisões dos tribunais nacionais, “entendida como um tribunal, hierarquicamente, superior aos tribunais nacionais, com a finalidade de anular, modificar ou revogar actos jurídicos de direito interno, com base em erro de julgamento ou de procedimento” 15.

40. Como a interpretação declarativa inutilizasse a alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil, deve fazer-se uma interpretação extensiva da disposição legal.

41. O caso está tão-só em determinar o alcance e os limites da interpretação extensiva — do facto de se fazer uma interpretação extensiva para evitar que a alínea f) não se aplique a caso nenhum não se deduz, de forma alguma, que deva aplicar-se a todas as decisões de instâncias internacionais, ainda que não sejam instâncias de recurso

42. Entre os pontos mais ou menos consensuais estará o de que o alcance e os limites da interpretação extensiva da alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil devem determinar-se atendendo aos princípios e aos valores do direito português.

43. Ora, atendendo aos princípios e aos valores do direito português, deverá distinguir-se entre as decisões relativas à validade, à interpretação ou à integração de normas jurídicas e as decisões relativas à aplicação de normas jurídicas a um caso individual.

44. A alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil deverá aplicar-se às decisões de instâncias internacionais relativas à aplicação de normas jurídicas a um caso individual, desde que sejam vinculativas para o Estado português 16.

45. Embora deva aplicar-se às decisões relativas à aplicação de normas jurídicas a um caso individual, não deverá aplicar-se às decisões de instâncias internacionais relativas à validade, à interpretação ou à integração de normas jurídicas 17.

46. O problema está em que a aplicação da alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil a todas as decisões de instâncias internacionais relativas à validade, à interpretação ou à integração de normas jurídicas abstractas e gerais seria de todo em todo incompatível com o valor da certeza ou da segurança do direito.

47. Entre as decisões de instâncias internacionais relativas à interpretação ou a integração de normas jurídicas abstractas e gerais estão, sobretudo, as decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em sede de reenvio prejudicial.

48. O valor do caso julgado seria reduzido a pouco, a nada ou a quase nada, desde que uma decisão do Tribunal de Justiça que interpretasse uma disposição de um regulamento ou de uma directiva num determinado sentido significasse a revisão ou, tão-só, a admissibilidade da revisão de todas as decisões jurisdicionais, ainda que já transitadas em julgado, que interpretaram a disposição em causa noutro sentido, necessariamente diferente.

49. O caso sub judice é, de alguma forma, paradigmático:

50. O facto dado como provado sob o n.º 8 no recurso de revista diz-nos que a do vigência do certificado complementar de protecção n.º 189 terminou em 02 de Abril de 2019.

51. Em consequência, a revisão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Março de 2021 só poderia ter como consequência a afectação de situações jurídicas constituídas ao abrigo de uma decisão transitada em julgado — em termos incompatíveis com o princípio constitucional da confiança, enquanto consequência do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa 18.

52. As Reclamantes alegam que “[a] tentativa de restringir o alcance da alínea f) apenas a decisões ‘aplicativas’ (e não interpretativas) é infundada [e] sem base legal” 19.

53. Em primeiro lugar, não está de forma nenhuma em causa restringir o alcance da alínea f) e sim determinar os termos em que deve ampliar-se, através de uma interpretação extensiva, e em segundo lugar não está de forma nenhuma em causa uma interpretação infundada ou uma interpretação sem base legal — está em causa, sim, uma interpretação da alínea f) do artigo 696.º sistemática e teleologicamente fundada.

54. As Reclamantes alegam ainda que “[o] Supremo Tribunal de Justiça já admitiu revisões fundadas em decisões do [Tribunal Europeu dos Direitos do Homem] — cuja força normativa é, em muitos casos, inferior à do [Tribunal de Justiça da União Europeia] — o que torna incoerente e desproporcionada a rejeição de uma decisão deste último” 20.

55. Ora, entre as decisões proferidas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em sede de reenvio prejudicial existe uma diferença essencial:

56. As decisões proferidas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem são em toda a regra decisões individuais, aplicando-se a um caso — as decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em sede de reenvio prejudicial são decisões gerais, normativas, aplicando-se a um número indeterminado e indeterminável de casos.

57. Existindo uma diferença essencial entre os dois tipos de decisões, cai o argumento da incoerência e, em consequência, o argumento da desproporção.

58. Em favor de uma restrição do alcance da alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil às decisões de instâncias internacionais relativas à aplicação de normas jurídicas a um caso individual deverá ainda deduzir-se dois argumentos sistemáticos.

.

59. Em primeiro lugar, o artigo 13.º do Código Civil, sob a epígrafe Aplicação das leis no tempo. Leis interpretativas, restringe a retroactividade das leis interpretativas através da ressalva das decisões judiciais transitadas em julgado.

60. Em segundo lugar, o artigo 282.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, restringe a retroactividade das decisões do Tribunal Constitucional com força obrigatória geral ressalvando os casos julgados,

“salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido”.

61. O texto do artigo 282.º da Constituição da República diz de forma implícita que uma decisão normativa do Tribunal Constitucional não permite à parte prejudicada pela aplicação de uma norma declarada inconstitucional interpor um recurso de revisão.

62. Face à relação entre as normas de direito constitucional e as normas de direito europeu, seria contraditório com o artigo 282.º da Constituição da República que uma decisão normativa do Tribunal de Justiça da União Europeia permitisse que a parte prejudicada pela divergência entre os tribunais nacionais e os tribunais europeus pudesse interpô-lo.

63. As Reclamantes alegam que havia no despacho reclamado um “erro de interpretação do artigo 282.º da [Constituição da República Portuguesa]” e que “o artigo 282.º da [Constituição da República Portuguesa] é exclusivamente aplicável às decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional, não sendo aplicável ao caso em apreço, em que a decisão subjacente ao recurso de revisão foi proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia”.

64. Ora, o artigo 282.º da Constituição da República Portuguesa foi tão-só convocado como um argumento sistemático para a interpretação da alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil — logo, não havia no despacho reclamado nenhum erro de interpretação do artigo 282.º da Constituição da República Portuguesa.

65. Finalmente, deverá dizer-se que a interpretação da alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil de forma a que não se aplique às decisões de instâncias internacionais relativas à validade, à interpretação ou à integração de normas jurídicas é aquela que melhor se concilia ou harmoniza com os princípios constitucionais.

66. O artigo n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da aplicação do direito da União Europeia com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

67. Ora o sistema dos princípios e dos valores constitucionais exige que, em regra, as decisões normativas proferidas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em sede de reenvio prejudicial não coloquem em causa a força de caso julgado de decisões judiciais.

68. Em consequência da exclusão das decisões normativas proferidas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em sede de reenvio prejudicial da hipótese da alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil, fica prejudicada a questão da conciliabilidade ou inconciliabilidade do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça em 18 de Março de 2021 com o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia de 19 de Dezembro de 2024.

III. — DECISÃO

Face ao exposto,

I. — defere-se o requerimento de rectificação de erro material;

II. — indefere-se a reclamação, confirmando-se o despacho reclamado.

Custas pelas Recorrentes SANDOZ A/S e SANDOZ FARMACÊUTICA, LDA.

Lisboa, 17 de Junho de 2025

Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)

José Maria Ferreira Lopes

António Barateiro Martins

_____


1. Os termos em que está redigida a alínea f) do artigo 696.º do Código de Processo Civil são algo imprecisos — em rigor, ainda que a alínea f) tenha sido desenhada para se aplicar, exclusiva ou essencialmente, aos acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, não há nenhuma instância internacional de recurso, “entendida como um tribunal, hierarquicamente, superior aos tribunais nacionais, com a finalidade de anular, modificar ou revogar atos jurídicos de direito interno, com base em erro de julgamento ou de procedimento” (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 2017 — processo n.º 5817/07.2TBOER.L1.S1).

2. Sobre o tema, vide por último Giuseppe Martinico, “Retracing Old (Scholarly) Paths. The erga omnes Effect of Interpretive Preliminary Rulings”, in. European Journal of Legal Studies, n.º 3 — 2023, págs. 37-70.

3. Sobre o tema, vide por último Lorenzo Cecchetti, “The Scope Ratione Temporis of the Interpretive Rulings of the ECJ: Should the Temporal Limitation Still be a Strict Derogation from Retroactive Effects?”, in. European Journal of Legal Studies, n.º 3 — 2023, págs. 71-106.

4. Cf. conclusão VII da reclamação.

5. Cf. conclusão VIII da reclamação.

6. Sobre o tema, vide por exemplo Araceli Turmo, “National Res Judicata in the European Union: Revisiting the Tension Between the Temptation of Effectiveness and the Acknowledgement of Domestic Procedural Law”, in: Common Market Law Review, vol. 58 (2021), págs.361-390, e em termos mais desenvolvidos Res Judicata in European Union Law, EULawLive Press, 2023, passim.

7. Cf. designadamente o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 11 de Setembro de 2019 — processo C-676/17 (parágrafo n.º 28).

8. Ou seja, com o princípio de que as modalidades processuais dos recursos que se destinam a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos litigantes pelo direito da União Europeia não não devem tornar impossível ou excessivamente difícil, na prática, o seu exercício.

9. Ou seja, com o princípio de que as modalidades processuais dos recursos que se destinam a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos litigantes pelo direito da União Europeia não devem ser menos favoráveis do que as que dizem respeito aos recursos semelhantes de natureza interna.

10. Cf. conclusão XIV da reclamação.

11. Cf. conclusão XIII da reclamação.

12. Cf. artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

13. Como se diz, exemplarmente, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de Julho de 2019 — processo n.º 18321/16.9T8LSB.L2-6 —, “[u]m pedido de reenvio prejudicial não serve para impugnar uma decisão judicial”, explicando-se que: “II. — A decisão a proferir pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no âmbito de tal pedido não tem por finalidade revogar decisões judiciais proferidas por Tribunais nacionais; III. — Tal pretensão não tem como função afrontar qualquer interpretação alega[da]mente errónea de normas internas ou aferir da violação de normas constitucionais dos diversos Estados-Membros; IV. — Uma questão prejudicial corresponde a uma pergunta/pedido de solução orientada para a obtenção de uma resposta que um órgão jurisdicional nacional de um Estado da União repute necessária para estear a solução de um litígio que lhe cumpra dirimir; V. — O seu objecto exclusivo é o Direito da União e o esforço de avaliação solicitado ao Tribunal de Justiça da União Europeia corresponde à interpretação ou formulação de juízo de validade incidente sobre esse Direito; VI. — No seio de um pedido de reenvio, o órgão jurisdicional nacional pede ao Tribunal de Justiça da União Europeia que formule a adequada leitura de uma norma jurídica do Direito dessa União cuja interpretação seja relevante para a solução do litígio que lhe cumpra concretizar”.

14. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 2017 — processo n.º 5817/07.2TBOER.L1.S1.

15. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 2017 — processo n.º 5817/07.2TBOER.L1.S1.

16. Como são tipicamente as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

17. Como são tipicamente as decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia proferidas em sede de reenvio prejudicial.

18. Expressão do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 202/2014, de 3 de Março de 2014.

19. Cf. conclusões IX e X da reclamação.

20. Cf. conclusão XII da reclamação.