PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
PRINCÍPIOS DA ATUALIDADE E DA PROPORCIONALIDADE
ARQUIVAMENTO DO PROCESSO
Sumário

I - À salvaguarda do Superior Interesse da Criança são convocados princípios amplamente consagrados, como o da indispensabilidade, o da proporcionalidade, o da atualidade e o da necessidade da intervenção precoce.
II - Têm os princípios da atualidade e da proporcionalidade de ser entendidos no sentido de, para ser aplicada uma medida, a mesma ter de se revelar necessária e adequada à situação concreta de perigo em que o menor se encontre.
III - Não resultando demonstrados factos a fundamentar as invocadas dúvidas e preocupações da progenitora no atinentes aos apontados comportamentos não “normativos” da criança, na desnecessidade de aplicação de medida de promoção e proteção, não se justifica a continuação do processo de promoção e proteção.
IV - Não resultando concreta situação de perigo, nenhuma medida cabe aplicar e lugar existe para o arquivamento do processo.

Texto Integral

Processo nº 3032/22.4T8FNC-D.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)

Tribunal de origem do recurso: Juízo de Família e Menores do Porto - Juiz 1

Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. Carla Fraga Torres

2º Adjunto: Des. Teresa Pinto da Silva

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

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I. RELATÓRIO

Recorrente: a progenitora, AA

Nos presentes autos de promoção e proteção respeitantes ao menor BB, filho de CC e de AA, residente com a mãe no ..., tendo sido determinado o arquivamento do processo, por desnecessidade de medida, veio a progenitora apresentar-se a recorrer de tal decisão.

A situação do menor foi sinalizada à CPCJ ... pela progenitora dando conta de suspeita de abuso sexual da criança por parte da família paterna, tendo os autos sido remetidos a tribunal atenta a relação de parentesco do alegado abusador.

Em sede judicial, após avaliação diagnóstica efetuada pelo ISS e tomada de declarações aos intervenientes foi proferida decisão, provisória e cautelar, de apoio junto dos pais, a executar junto da mãe, devendo os convívios entre pai e filho efetuar-se no ... da Segurança Social.

Foram realizadas perícias de avaliação psicológica aos progenitores e ao menor.

Proferida a decisão cautelar, foi determinada a remessa dos autos para apensação ao processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais pendente no Juízo de Família e Menores do Porto.

Após várias vicissitudes, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto relativamente ao recurso que havia sido interposto pelo progenitor quanto à decisão provisória e cautelar proferida, a julgar o recurso procedente e a proceder à alteração da decisão recorrida nos seguintes termos:

a) Mantém-se a medida de promoção e proteção de apoio psicopedagógico da criança junto dos pais, prevista no art. 39º da LPCJP, aplicada a título provisório pelo período de 6 meses, revogando-se a fixação supervisionada dos convívios da criança com o pai no ... da Segurança Social:

b) Determina-se, igualmente a título provisório e pelo período de seis meses, a aplicação aos progenitores da criança da medida de apoio à família prevista no art. 42º, por referência ao art. 39º, ambos da LPCJP, devendo providenciar-se, na execução desta medida, por apoio psicopedagógico a ambos os progenitores.

Em cumprimento de tal decisão, reiniciado o regime de convívios entre pai e filho fixado (ainda que provisoriamente) nos autos de regulação das responsabilidades parentais, com vista à aplicação de medida de promoção e proteção definitiva, foi solicitado ao ISS a atualização da situação da criança e dos seus progenitores e designada data para declarações aos progenitores e às técnicas da EMAT com vista à reavaliação da situação.

Efetuada a diligência, no final da mesma foram os progenitores e o Ministério Público informados da intenção do tribunal de arquivar os autos de promoção e proteção, ao que o progenitor e Ministério Público manifestaram o seu acordo, tendo a progenitora manifestado oposição.

Não obstante, foi requerido pelo progenitor, por considerar pertinente à decisão a proferir, a junção aos autos do relatório de perícia de avaliação forense realizada ao menor no âmbito do inquérito crime em curso por suspeita de abuso sexual à criança, bem como do registo áudio das declarações aí prestadas pela criança para memória futura e da ata dessa diligência, o que foi deferido.


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Foi proferida decisão com a seguinte parte dispositiva:

“Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos arts. 110º nº 1 al a) e 111º da LPCJP, tendo-se tornado desnecessária a aplicação de qualquer medida de promoção e proteção, determino o arquivamento dos presentes autos

Sem custas

Notifique (os progenitores, o ISS e o Ministério Público)”


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Apresentou a progenitora recurso de apelação, pugnando por que seja revogada a decisão recorrida, formulando as seguintes prolixas

CONCLUSÕES:

(…)


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O progenitor respondeu pugnando pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes
CONCLUSÕES:

(…)


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Respondeu o Ministério Público pugnando por que seja negado provimento ao recurso, sustentando:
“Interpõe a recorrente recurso do despacho proferido pela Mma. Juíza, a 7.03.2025, no qual pode ler-se que “ao abrigo do disposto nos artigos 110º, nº 1, al. a) e 111º da LPCJP, tendo-se tornado desnecessária a aplicação de qualquer medida de promoção e proteção, determino o arquivamento dos presentes autos.”
Esta decisão teve por relevante o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, a 20.06.2024, que revogou o regime de convívios supervisionados do BB, nascido a ../../2017, com o pai no ... da Segurança Social, por ser negativa e indesejável a restrição ao livre relacionamento entre ambos e implicar uma diminuição da duração dos convívios e das condições de normalidade do relacionamento; considerando, no entanto, que o conflito interparental persiste e constitui um fator de risco para o BB, afetando o seu bem estar emocional.
Mais resultou tal decisão do acompanhamento do regime de convívios entre pai e filho, entretanto, implementado e avaliado pelo ISS, da apresentação de indicadores de estabilidade emocional da criança, bem assim, da adesão dos progenitores, ao novo regime fixado, à inexistência de conflitos entre eles e à abertura e procura de apoio de clínico e de frequência de programas com vista ao exercício da coparentalidade positiva.
A decisão, em apreciação, foi tomada após conferência realizada entre os necessários intervenientes processuais e também levou em linha de valoração todas os elementos probatórios efetuados – perícias psicológicas do INMLCF e relatórios sociais do ISS.
O M.P. corroborou a proposta de arquivamento do processo, por entender que na sequência da execução e cumprimento do acórdão do tribunal superior, ainda em sede de revisão da medida de promoção e proteção, todo o acompanhamento da situação relativa à criança e decisões a tomar circunscrevem-se a factualidade a conhecer no âmbito da ação de Regulação de Exercício das Responsabilidades Parentais pendente, que se prende, entre outras questões, com a fixação da residência da criança, se no ..., se no ....
O BB depois de convívios mais duradouros com o progenitor demonstra estar estável emocionalmente e os progenitores apresentam maior colaboração e ausência de conflitos no cumprimento do regime de convívios em vigor.
Pelo que, a continuar a existir conflito parental, o mesmo merece ampla e adequada discussão em sede da providência tutelar cível.
É importante referir que na ação de RERP já se encontra designado dia para audiência de julgamento, a iniciar no próximo dia 30 deste mês de abril.
Do artigo 4º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível/ RGPTC, sob a epígrafe princípios orientadores, pode ler-se no nº 1 que “Os processos tutelares cíveis regulados no RGPTC regem-se pelos princípios orientadores de intervenção estabelecidos na lei de proteção de crianças e jovens em perigo (…).”
Do confronto das duas normas – em ambos os diplomas/ o artigo 4º, e equiparação dos institutos jurídico-processuais resultam, para além de outros, o princípio do superior interesse da criança e do jovem, da proporcionalidade e da atualidade, da responsabilidade parental e do primado da continuidade das relações psicológicas profundas.
Acresce ainda dizer, que caso sejam conhecidas outras circunstâncias, diferenciadas do conflito parental, que venham a justificar nova apreciação no foro da promoção e proteção, no superior interesse da criança e pugnando pela sua proteção e segurança, deverá ocorrer a reabertura do processo de promoção e proteção, apreciação a que o tribunal não será necessária e obrigatoriamente alheio.
Nesta conformidade, por força da evolução do circunstancialismo relativo à criança, estando em curso um regime de convívios com o progenitor, a fim de evitar a duplicação de intervenções processuais com o mesmo objetivo, deverá ser integralmente confirmada a sentença”.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, a questão a decidir é a seguinte:

- Do erro na decisão de arquivamento do processo de promoção e proteção dada a necessidade de medida.


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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

Considerou o Tribunal de 1ª instância provados os seguintes os factos com relevância para a decisão (transcrição):

1. BB nasceu a ../../2017 e encontra-se registado como filho de CC e de AA.

2. O exercício das responsabilidades parentais referentes ao menor encontra-se provisoriamente regulado no âmbito dos autos principais encontrando-se vigente o seguinte regime:

- A residência do BB encontra-se fixada junto da sua mãe, cabendo a ambos os progenitores o exercício das responsabilidades parentais quanto a questões de particular importância para a vida da criança;

- Relativamente aos convívios, diariamente, entre as 20 horas e as 20:30 horas, a progenitora deverá diligenciar e garantir o contacto telefónico entre o BB e o pai, preferencialmente por videochamada;

- Além disso, o menor de quinze em quinze dias, passará o fim-de-semana com o progenitor, sendo que, enquanto não for para o primeiro ano de escolaridade, esse fim-de-semana iniciar-se-á na quinta-feira e terminará no Domingo; sendo que em caso de o início ou o termo dos fins-de-semana quinzenais com o pai ser precedido ou sucedido de um feriado, os períodos de visitas iniciam-se e terminam, respetivamente, na véspera (quarta-feira ou, a partir da frequência do ensino básico, quinta-feira) e no dia do feriado, e, em caso de possibilidade de ponte, estendem-se por todo o tempo que abranja essa ponte.

- A marcação e toda a logística inerente ás viagens caberá ao pai, sendo os custos inerentes às viagens do BB repartidos igualmente por ambos os progenitores;

- Além disso, sempre que o pai se possa deslocar á ..., deverá avisar a mãe com pelo menos três dias de antecedência e poderá conviver com o filho livremente;

- O BB passa com o pai a totalidade das férias escolares de Carnaval, da Páscoa e do Verão, estas com exceção de quinze dias, a passar com a mãe, em altura por esta escolhida, dentro das férias de Verão do menor;

3. Na sequência de suspeita por parte da progenitora de abuso sexual ao menor nos períodos de convívio com o pai foi intentado o presente processo de promoção e proteção e, inicialmente, (a 26-10-2023) aplicada, a título urgente, provisório e cautelar, medida de apoio junto dos pais, a executar junto da mãe, devendo os convívios entre pai e filho efetuar-se no ... da Segurança Social.

4. No período em que os convívios entre pai e filho decorreram no ... (entre janeiro de 2024 e 11 de agosto de 2024) o BB revelou sempre entusiasmo para estar com o pai e foi percetível aos técnicos “a existência de uma relação positiva entre a criança e o pai, caraterizada pela proximidade e cumplicidade entre ambos.”

5. Da perícia de avaliação psicológica realizada pelo INML ao menor no âmbito dos presentes autos (e junta a 05-03-2024) resultam como principais conclusões que:

- o BB apresenta elevada capacidade cognitiva; elevada compreensão de factos;

- “quando intencionalmente induzido em erro pela perita, BB conseguiu detetá-lo, sendo capaz de o corrigir (..) foi resistente à sugestão, demonstrando capacidade de distinguir a verdade da mentira e a realidade da fantasia;

- “perceciona em ambos os progenitores a existência de elevado suporte emocional, num estilo vinculativo securizante e saudável;

- à data da presente avaliação não foram apurados nos relatos do BB possíveis indicadores de vitimização. De igual forma, BB não parece apresentar aversão ao contacto físico, apatia ou avidez afetiva (…);

- à data da observação não foi detetada em BB uma postura de “aliança” a um dos progenitores em detrimento do outro, sendo que inclusive a criança referiu (…) o facto de gostar de ambos e de querer passar o mesmo tempo com o pai que passo com a mãe (…)”.

6. Da perícia de avaliação psicológica realizada pelo INML à progenitora no âmbito dos presentes autos (e junta a 05-03-2024) resultam como principais conclusões que:

- não foram apurados indícios de sintomatologia ansiógena e/ou depressiva com significância clinica; não foram detetadas manifestações de sintomatologia invalidante;

- personalidade tendencialmente extrovertida, versátil, confiante, independente, espontânea, entusiasta e com facilidade em estabelecer relações sociais afetivas;

- não foram detetados traços de personalidade que possam consubstanciar distúrbios/alterações comportamentais limitativos de práticas parentais saudáveis por parte de AA;

- A examinada domina o conhecimento relativamente às rotinas, preferências, medos, necessidades educativas, sociais, afetivas e de imposição de regras e limites na criança, manifestando capacidade para reconhecer e assegurar as necessidades do BB, nas diversas fases do seu desenvolvimento psicossocial.

7. Da perícia de avaliação psicológica realizada pelo INML ao progenitor no âmbito dos presentes autos (e junta a 12-07-2024) resultam como principais conclusões que:

- não apresenta psicopatologia que o impeça de assumir a voluntariedade, intencionalidade e responsabilidade pelos seus comportamentos;

- “Apresenta um conjunto de fatores de proteção que poderão ser importantes para o exercício da parentalidade de forma autónoma e funcional, nomeadamente: caraterísticas de personalidade adaptativas, estabilidade emocional, estratégias de coping adequadas para lidar com acontecimentos emocionalmente exigentes, autonomia e capacidade para gerir os recursos da comunidade;

- (..) revela proximidade e envolvimento afetivo, capacidade de empatizar com a criança e com as suas necessidades;

- Parece ainda experienciar a sua função parental com importância, demonstrando proatividade e caraterísticas psicológicas que favorecem o exercício da parentalidade de forma autónoma e funcional;

8. Da perícia de psicologia forense realizada ao menor no âmbito do inquérito crime que corre termos com o nº 5292/23.4T9PRT pela 1ª secção do DIAP do Porto (junta aos autos a 23-01-2025) resultam como principais conclusões que:

- (…) apresenta uma estruturação de personalidade em formação, conforme espectável para a sua faixa etária (…) criança comunicativa, amigável e globalmente estável;

- (…) padrão de vinculação seguro com ambos os progenitores (…) demonstrou desejo de reunificação familiar;

- (…) bem integrado no contexto escolar e no grupo de pares;

- Aquando desta avaliação psicológica não apurámos indicadores de desajustamento psicológico com relevo clinico;

- (…) nível adequado de resistência à sugestionabilidade;

- (…) apresentava estruturas e processos cognitivos e afetivos que lhe permitiram fazer a distinção entre factos reais e imaginados e/ou fantasiados, assim como distinguir a verdade da mentira;

- (…) alguns dos alegados comportamentos não verbais que terão sido exibidos pelo examinando poderem ser algo normativos para as faixas etárias em que terão ocorrido e traduzirem-se em eventuais comportamentos exploratórios (…);

- (…) podendo os indicadores inerentes à suspeita descrita pela mãe resultar de alguma, ainda que eventualmente inadvertida, sobrevalorização dos mesmos;

- (..) embora tal não invalide que eventuais eventos abusivos possam ter ocorrido, aquando desta avaliação psicológica, não foram encontrados indicadores que fundamentassem inequivocamente a sua vivência pelo BB;

O BB continua a integrar o agregado da mãe, seu companheiro e irmão uterino, tendo alterado a residência;

Em termos escolares no ano letivo 2024/205 alterou de estabelecimento de ensino deixando de frequentar a “...” e passando a frequentar o ensino público no 2º ano de escolaridade, revelando boa adaptação embora apresente alguns atrasos nos níveis de conteúdos de aprendizagens (inerentes às diferentes abordagens de uma escola internacional e uma escola pública), estando a beneficiar de apoio escolar individualizado e a conseguir fazer as aquisições necessárias a acompanhar a turma

Como atividades extracurriculares pratica futebol e judo

Mantém acompanhamento psicológico

A mãe é colaborante com o estabelecimento de ensino e o pai já foi à nova escola e conheceu e falou com a professora do filho.

10. A progenitora manifestou abertura para frequentar o programa “Crianças no meio do conflito”, que visa uma coparentalidade positiva, sendo que tal programa pode ser frequentado independentemente da pendência ou não de processo de promoção e proteção e, num caso como o dos autos, em que está pendente processo com suspeita de abuso, não é adequada a sua frequência por ambos os progenitores;

11. Não tem havido qualquer situação de conflito entre os progenitores, que têm sido capazes de articular de forma tendencialmente adequada relativamente aos convívios e gestão da vida do filho;

12. Atualmente o BB apresenta indicadores de estabilidade emocional;

13. O progenitor mantém a sua habitação e situação na zona do ..., sendo investigador na área cientifica e encontrando-se a trabalhar na tese de doutoramento.

A habitação encontra-se com obras de recuperação e melhoramentos, pelo que o período de férias do BB com o pai foi passado numa casa cedida pela tia paterna.

Devido ao desgaste provocado por toda a situação inerente ao filho, o progenitor procurou apoio clínico em psiquiatria e psicologia.


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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

- Da necessidade de medida de promoção e proteção.

Analisando e decidindo da atual necessidade de aplicação de medida de promoção e proteção, considerou o Tribunal a quo, na esteira do que havia, já, sido decidido por este Tribunal da Relação, não se justificar atualmente a aplicação de qualquer medida e, assim sendo, determinou o arquivamento do processo. É contra tal decisão que se insurge a apelante, que pretende seja substituída por outra a manter os autos, com “manutenção, pelo menos a título provisório, da medida de apoio psicopedagógico à família e ao menor, e acompanhamento do menor junto dos pais, que no mínimo se propõe até decisão final de inquérito no processo-crime que decorre, com medida de acompanhamento juntos dos progenitores”.

Cumpre, pois, apreciar da necessidade de medida de promoção e proteção, como defende a apelante, ou se bem foi arquivado o processo, por desnecessidade, como sustenta o Ministério Público e o progenitor.

Estabelece o citado artigo 111.º, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, que “O juiz decide o arquivamento do processo quando concluir que, em virtude de a situação de perigo não se comprovar ou já não subsistir, se tornou desnecessária a aplicação de medida de promoção e proteção, podendo o mesmo processo ser reaberto se ocorrerem factos que justifiquem a referida aplicação”.

Enquadrando juridicamente [1] e revertendo para o caso, analisa o Tribunal a quo:

No caso dos autos a intervenção em sede de promoção e proteção iniciou-se na sequência de denúncia de eventual abuso sexual do BB com suspeita de que o abusador seria o pai ou alguém da família paterna, o que deu origem à tomada de decisão provisória, cautelar e urgente aplicando medida de apoio junto dos pais, a executar junto da mãe, devendo os convívios entre pai e filho efetuar-se no ... da Segurança Social.

No período em que tal medida esteve em vigor - entre janeiro de 2024 e 11 de agosto de 2024- o BB revelou sempre entusiasmo para estar com o pai e foi percetível aos técnicos “a existência de uma relação positiva entre a criança e o pai, caraterizada pela proximidade e cumplicidade entre ambos.”

A vinculação afetiva segura do BB relativamente a ambos os seus progenitores é igualmente confirmada amplamente pelas perícias realizadas ao menor tanto no âmbito dos presentes autos como na realizada no inquérito crime.

A medida aplicada foi objeto de recurso e alterada pelo Tribunal da Relação nos seguintes temos:

a) Mantém-se a medida de promoção e proteção de apoio psicopedagógico da criança junto dos pais, prevista no art. 39º da LPCJP, aplicada a título provisório pelo período de 6 meses, revogando-se a fixação supervisionada dos convívios da criança com o pai no ... da Segurança Social;

b) Determina-se, igualmente a título provisório e pelo período de seis meses, a aplicação aos progenitores da criança da medida de apoio à família prevista no art. 42º, por referência ao art. 39º, ambos da LPCJP, devendo providenciar-se, na execução desta medida, por apoio psicopedagógico a ambos os progenitores”.

Fundamenta o Tribunal a quo a decisão de arquivamento dos autos na desnecessidade de medida considerando:

A medida aplicada pelo Tribunal da Relação teve por fundamento (cf. Ac proferido a 20-06-2024 no Apenso G) a consideração de que a restrição ao livre relacionamento entre a criança e o progenitor não é desejável e tem influência negativa na relação do progenitor com o filho, por implicar uma diminuição quer da duração dos referidos convívios, quer das condições de normalidade do relacionamento entre pai e filho; no entanto o conflito interparental que persiste constitui um fator de risco para a criança, afetando o seu bem estar emocional.

Retomados os convívios nos termos previstos no regime de regulação das responsabilidades parentais vigente (ainda que ainda provisoriamente) e decorridos que se mostram vários meses e situação atual é a seguinte:- O regime de convívios tem vindo a ser cumprido, - Não tem havido qualquer situação de conflito entre os progenitores, que têm sido capazes de articular de forma tendencialmente adequada relativamente aos convívios e gestão da vida do filho, - Atualmente o BB apresenta indicadores de estabilidade emocional, - progenitor procurou apoio clinico em psiquiatria e psicologia, - A progenitora manifestou abertura para frequentar o programa “Crianças no meio do conflito”, que visa uma coparentalidade positiva, sendo que tal programa pode ser frequentado independentemente da pendência ou não de processo de promoção e proteção e, num caso como o dos autos, em que está pendente processo com suspeita de abuso, não é adequada a sua frequência por ambos os progenitores

Embora subsista o desentendimento entre os progenitores relativamente à regulação das responsabilidades parentais e embora subsistam claramente as suspeitas (certezas?) da progenitora, a verdade é que têm vindo a conseguir com sucesso que os seus desentendimentos não afetem o BB uma vez que a criança apresenta indicadores de estabilidade emocional.

Por outro lado, o progenitor beneficia de apoio clinico em psicologia e a progenitora mostra abertura para frequentar programa que visa uma coparentalidade positiva.

Tendo sido afastada pelo Tribunal da Relação do Porto qualquer necessidade de restrições ao convívio entre pai e filho (decisão a que todos os intervenientes devem obediência e respeito) e verificando-se que, apesar do conflito parental o BB revela estabilidade emocional e que o progenitor tem acompanhamento psicológico e a progenitora revela abertura para frequentar programa visando uma parentalidade positiva não se vislumbra qualquer necessidade de manutenção dos presentes autos”.
Conhecendo.
A concreta aplicação de uma medida de promoção e proteção a uma criança ou jovem depende da verificação de uma das situações de perigo para essa mesma criança ou jovem a que alude o artigo 3.°, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, Lei n.° 147/99, de 1 de Setembro (abreviadamente LPCJP), diploma a que pertencem os preceitos que doravante se citarem sem outra referência estatuindo tal artigo, com a epígrafe “Legitimidade de intervenção”:
"1. A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo.
2. Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontre numa das seguintes situações:
a) Está abandonada ou vive entregue a si própria;
b) Sofre maus-tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais;
c) Não recebe o cuidado ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal;
d)Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais;
e) É obrigada a atividade ou trabalhos excessivos ou inadequados para a sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudicais à sua formação ou desenvolvimento;
f) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional;
g) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação;
h)…”.

O artigo 4.°, com a epígrafe “Princípios orientadores da intervenção”, consagra os princípios a observar, em tais casos, estatuindo:
"A intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo obedece aos seguintes princípios:
a) Interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;
b) Privacidade - a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada;
(...)
e) Proporcionalidade e atualidade - a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade;
f) Responsabilidade parental - a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem;
g) Primado da continuidade das relações psicológicas profundas – a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante;
h) Prevalência da família - na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável.
(…)”.

Do quadro fáctico da causa não resulta a existência de uma, atual, real situação de perigo, revelando-se desnecessária a aplicação de medida de promoção e proteção.

Na verdade, sendo à salvaguarda do Superior Interesse da Criança convocados princípios amplamente consagrados como o da indispensabilidade, o da proporcionalidade, o da atualidade e o da necessidade da intervenção precoce, comecemos por deixar claro não resultarem demonstrados factos a fundamentar às invocadas dúvidas e preocupações da progenitora no atinentes aos apontados comportamentos não “normativos” da criança justificativos da aplicação de qualquer medida.

É a própria progenitora a concluir “nunca desconfiou do Progenitor” (cfr. conclusão XX) que, perante as situações que descreve “se demonstrou despreocupado” (cfr. conclusão XVI) e que “apresentou queixa-crime para que as autoridades pudessem investigar” (cfr. conclusão XIX).

E se, por um lado, não conclui a apelante pela prática de abusos pelo progenitor, sequer afirma, concretas e consistentes, suspeitas - o que, a fazê-lo, se revestiria de grande gravidade, a ser tal destituído de fundamento -, apenas sendo aventada uma vaga referência: “apenas se apercebeu que o suspeito poderia ser o progenitor” (cfr. conclusão XXVI), por outro lado, afirma a existência de estabilidade emocional da criança e de cordialidade entre os progenitores.
Não existindo suspeitas minimamente fundadas em relação ao progenitor ou a qualquer membro da família paterna, sequer sendo especificamente apontadas, com um mínimo de consistência, pela progenitora, estando meramente a correr o processo de inquérito, despoletado por esta, sem que resulte a efetiva prática de quaisquer dos factos a que a apelante alude nas conclusões da apelação, sequer reais indícios, nenhuma razão existe para que o processo de promoção e proteção, autónomo daquele, continue.
Nenhum perigo, atual, resulta demonstrado existir e estando o BB a poucos dias de completar 8 anos de idade, sendo dotado de compreensão e entendimento (cfr. factos provados), bem reservará memórias dos comportamentos e atuações das pessoas com quem diretamente se relaciona, a poder reportar.
Com efeito, resultou provado que o BB apresenta elevada capacidade cognitiva e elevada compreensão de factos, quando intencionalmente induzido em erro pela perita, conseguiu detetá-lo, sendo capaz de o corrigir, foi resistente à sugestão, demonstrando capacidade de distinguir a verdade da mentira, a realidade da fantasia, perceciona em ambos os progenitores a existência de elevado suporte emocional, num estilo vinculativo securizante e saudável, à data da presente avaliação não foram apurados nos relatos do BB possíveis indicadores de vitimização, não parece apresentar aversão ao contacto físico, apatia ou avidez afetiva, à data da observação não foi detetada em BB uma postura de “aliança” a um dos progenitores em detrimento do outro, sendo que inclusive a criança referiu gostar de ambos e de querer passar com o pai o mesmo tempo que passa com a mãe.
Nenhumas suspeitas são concretizadas, nenhuns indícios contra o progenitor vêm suficientemente especificados, não resulta ter havido qualquer “confissão” da criança, nenhum risco fundado de abusos ou de represálias vem densificado e resulta existir, nada justificando se adotem medidas que vão contra a vontade manifestada, expressamente, pela criança que tem o direito de ter o pai tão presente na sua vida como a mãe, não sendo legítima injustificada atuação empreendida por um dos progenitores perturbadora do exercício de tal direito.
Outrossim, resulta admitir a progenitora poder estar-se perante “simples visionamento de filmes de cariz pornográfico” perturbador da criança, concluindo por suposições.
E não pode deixar de se suscitar a questão de poder ser tida como inadequada/indevida/errónea a interpretação por ela efetuada de comportamentos da criança, que afirma como havidos, podendo, também, ser havidos como desajustadas reações aos mesmos, a poderem constituir perturbação no bem-estar emocional do BB.
Acresce não serem os invocados comportamentos atuais e sequer resultar advirem os mesmos de real razão a constituir perigo para a criança.
E como bem acrescenta o Ministério Público a existir conflito parental terá de ser ponderada a adequada tutela, nas circunstâncias do caso, e a vir a justificar-se nova apreciação no foro da promoção e proteção, no superior interesse da criança e para sua proteção e segurança, sempre ocorrerá a reabertura do processo.
Neste conspecto, não havendo motivos minimamente sustentados, não se justifica que o processo de promoção e proteção se mantenha, nenhuma prejudicialidade existindo com inquéritos, sequer se podendo afirmar a existência de indícios de crime de que o menor seja vítima, nenhuma razão justificando a alteração da decisão recorrida.
Em suma:
- à salvaguarda do Superior Interesse da Criança são convocados princípios amplamente consagrados como o da indispensabilidade, o da proporcionalidade, o da atualidade e o da necessidade da intervenção precoce;
- têm os princípios da atualidade e da proporcionalidade de ser entendidos no sentido de, para ser aplicada uma medida, a mesma ter de se revelar necessária e adequada à situação concreta de perigo em que o menor se encontre;
- não resultando demonstrados factos a fundamentar às invocadas dúvidas e preocupações da progenitora no atinentes aos apontados comportamentos não “normativos” da criança, na desnecessidade de aplicação de medida de promoção e proteção, não se justifica a continuação do processo de promoção e proteção;
- e não resultando concreta situação de perigo e nenhuma medida cabendo aplicar, tem lugar, ao abrigo do disposto nos arts. 110º nº 1 al a) e 111º da LPCJP, o arquivamento do processo.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.


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As custas do recurso são da responsabilidade da recorrente dada a total improcedência da sua pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).

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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.


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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.


Porto, 4 de junho de 2025
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Carla Fraga Torres
Teresa Pinto da Silva
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[1] Após considerar:
A intervenção em sede de promoção e proteção e proteção apenas é legitima se verificada alguma das situações de perigo enunciadas no art. 3º nº 2 da LPCJP, …”
e referir:
O art. 4º da LPCJ apresenta as diretrizes básicas a levar em consideração aquando da intervenção para a promoção dos direitos e promoção da criança e do jovem em perigo.
Entre elas avulta, primacialmente, o princípio do interesse superior da criança e do jovem, segundo o qual são os interesses destes os a atender prioritariamente aquando da intervenção, atento o disposto na al. a) deste normativo.
Além deste, convém ainda chamar à colação os princípios da proporcionalidade e da atualidade, previstos na al. e) do referido preceito, nos termos dos quais a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança de encontra no momento em que a decisão é tomada, só se podendo interferir na sua vida e na da sua família na medida em que for estritamente necessário a essa finalidade.
Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança, saúde, prover o seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los e administrar os seus bens (art. 1878º Cód. Civ.), bem como promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos.
A intervenção estadual representa, geralmente, uma restrição dos direitos da criança e dos seus progenitores, pelo que tal intervenção tem necessariamente de obedecer aos princípios da necessidade e proporcionalidade.
Não existindo situação de perigo (tal como definido no art. 3º da LPCJP) ou se este deixar de subsistir, deve cessar a intervenção do Estado”,