TUTORIA
ALTERAÇÃO PROVISÓRIA
AUDIÇÃO PRÉVIA
PRINCIPIO DA PREVALÊNCIA DA FAMÍLIA
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
Sumário

Sumário: (da exclusiva responsabilidade da Relatora)
1.A decisão recorrida enquadra-se na previsão do art. 28º do RCPTC, sendo uma decisão provisória que altera a tutoria, também provisória, anteriormente instituída.
2.A falta de audição prévia da apelante para se pronunciar sobre a sua possível remoção do cargo de tutora provisória, sobre os factos que lhe são imputados, e sobre os elementos ou meios probatórios de suporte, encontra-se no presente caso legitimada pelo art. 28º nº4 do RGPTC, cabendo à apelante reagir nos termos previstos no nº5 do referido art 28º (o que fez, optando pela via do recurso).
3.O princípio da prevalência da família previsto na alínea h) do art 4º da LPCJP (dever de dar prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável) cede perante o principio do superior interesse da criança, critério decisório preponderante, pois conforme consta expressamente na alínea a) do art 4º da LPCJP “a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem”.
4.Se é a família biológica que não está a garantir a segurança do menor, é óbvio que o superior interesse do menor implicará a adoção de uma providência adequada a acautelar tal segurança, mesmo que em detrimento da sua integração nessa família biológica.

Texto Integral

Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa:
I.Relatório:

O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou ação para instituição de tutela ao menor AA, nascido a ... de ... de 2020, residente na ... Cacém, filho de BB e de CC.
Peticionou que fosse nomeada provisoriamente ao menor, como tutora, a sua tia materna DD, com integração enquanto vogais do ... de EE, madrinha do menor, e FF.
Alega, para tal e em síntese que, os pais do menor faleceram em 15.07.2022, e nesse dia o menor foi entregue à tia materna por elementos da PSP, DD, com quem ficou a viver.
Em 14.10.2022 foi proferido o seguinte despacho:
“Vem o Ministério Público requerer, ao abrigo do artigo 28.º do RGPTC, seja tomada decisão provisória no sentido de ser indigitada tutora provisória ao menor AA, a sua tia materna DD, atento o falecimento dos pais da criança em 15.07.2022 e o facto de a criança se encontrar confiada à tia materna desde então, sendo ela quem lhe tem prestado todos os cuidados necessários ao seu desenvolvimento.
Sucede, porém, que a tia não consegue diligenciar pela inscrição do menor em creche, tampouco tratar de documentação junto da Segurança Social ou em outros organismos públicos ou privados, por falta de decisão que, legalmente, ateste que a tia tem poderes para representar o menor a seu cargo.
Assim, nos termos do artigo 28.º, n.º 1 do RGPTC, o Tribunal decide indigitar provisoriamente como tutora a tia materna do menor, DD.
O menor AA fica confiado aos cuidados da tia materna, DD, sua tutora provisória, que exercerá as mesmas responsabilidades na medida em que tal seria exigido aos pais, cabendo assegurar-lhe os cuidados de higiene, alimentação, educação, saúde, vestuário, formação cívica e moral, bem como religiosa até atingir os 16 anos.
Exercerá, em exclusivo, as questões de particular importância da vida do menor e poderá tratar de qualquer assunto relacionado com a obtenção de documentação inerente ao percurso escolar, social e de saúde da criança, junto de organismos públicos e privados.
A tutora provisória deverá diligenciar pela matrícula do menor em creche, promovendo a sua integração em equipamento escolar e diligenciar junto da Segurança Social pela eventual obtenção de prestações sociais de que o menor possa beneficiar.
Notifique.
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Para vogais do ... nomeio EE, madrinha do menor, e FF (artigo 1952.º, n.º s 1 e 2 do C.C.)
Solicite à EMAT a realização de inquérito sobre a situação do menor e idoneidade e caracterização do agregado sócio-familiar de DD, indicada para o cargo de tutora, bem como de EE e FF, vogais do ..., no prazo máximo de 30 dias.”
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Na sequência de solicitação do Tribunal (em face de exposição de EE junta aos autos a 21.11.2023), foi junto aos autos a 07.03.2024 relatório social que se dá por reproduzido, e que contém a seguinte conclusão:
“Em suma e em resposta ao vosso pedido, apuramos que EE continua a manter disponibilidade para fazer parte do conselho de família. Apurámos ainda que ao que tudo indica DD é que não será suficientemente responsável/adequada para op apel de tutora da criança, pois com o decurso da nossa intervenção verificámos não só que a diversos níveis é a que menores competências emocionais apresenta para exercer na prática as responsabilidades parentais, como se vem confirmando agora com evidências mais fortes (e com o facto de EE ser impedida de estar mais presente na vida do afilhado), que DD não salvaguarda os interesses do sobrinho, mostrando-se negligente para com o mesmo quer em áreas básicas dos cuidados (higiene, vestuário e supervisão), quer no que respeita ao incutir-lhe regras e na promoção do seu salutar desenvolvimento, voltando a ausentar-se do país, e a deixar o AA sem a devida supervisão, quando se comprometeu na nossa presença e na presença de EE e de GG a deixar o AA aos cuidados da madrinha sempre que tivesse que se ausentar para o estrangeiro ou mesmo em território nacional (desde que não pernoitasse em casa, ou caso sentisse que não poderia estar a horas em casa para receber o AA, após a permanência do mesmo na ama).
Parece-nos que face aos dados recolhidos, que já mantêm alguma consistência desde que começámos a intervir no âmbito do presente processo, que se tem que reequacionar o projeto de vida do AA, não devendo em nosso entender a criança continuar sob a responsabilidade de alguém que não promove o seu bem estar, e que por outro lado também não promove (antes pelo contrário) as relações que a criança possa vir a estabelecer quer com os familiares da madrinha quer com toda a sua família paterna.”
A exposição e o relatório social não foram notificados à apelante.
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Foi junto a 12.05.2024 autos relatório de 10.05.2024, cujo teor se dá por reproduzido, com a seguinte conclusão/parecer:
“Face ao exposto, nesta e essencialmente nas informações/relatórios anteriores remetidos por esta equipa ao Tribunal, somos de parecer que o cargo de tutora deve ser exercido pela Sra. EE, residente na ..., a quem deve ser entregue o AA, e em nosso entender o quanto antes, para que de forma estável passe a fazer parte do seu agregado familiar e a mesma possa tratar das questões médicas e inscrição escolar do menino (o que nunca conseguiu convenientemente por não ser a sua responsável legal) por forma a colmatar-se todo o período de instabilidade a que a criança tem estado sujeita. O AA deve continuar a manter convívios com as tias e outros familiares, sendo que estes momentos devem quanto a nós ser acordados sempre com Sra. EE, que nunca nos pareceu pretender manter conflitualidade com os familiares biológicos do AA, mas sempre demonstrou colocar acima de outros valores a questão da salvaguarda do bem-estar e dos direitos desta criança.”
O relatório social não foi notificado à apelante.
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Em 05.09.2024 foi exarada nos autos a seguinte promoção:
No relatório de 12-5-2024 é dito que:
“Face ao exposto, nesta e essencialmente nas informações/relatórios anteriores remetidos por esta equipa ao Tribunal, somos de parecer que o cargo de tutora deve ser exercido pela Sra. EE, residente na ..., a quem deve ser entregue o AA, e em nosso entender o quanto antes, para que de forma estável passe a fazer parte do seu agregado familiar e a mesma possa tratar das questões médicas e inscrição escolar do menino (o que nunca conseguiu convenientemente por não ser a sua responsável legal) por forma a colmatar-se todo o período de instabilidade a que a criança tem estado sujeita. O AA deve continuar a manter convívios com as tias e outros familiares, sendo que estes momentos devem quanto a nós ser acordados sempre com Sra. EE, que nunca nos pareceu pretender manter conflitualidade com os familiares biológicos do AA, mas sempre demonstrou colocar acima de outros valores a questão da salvaguarda do bem-estar e dos direitos desta criança” (sublinhado nosso).
Em face do exposto, p. que seja proferida decisão a nomear como tutora EE após audição dos vogais de conselho de família já nomeados, assim como a tutora indicada na petição inicial.
Designo para a realização de reunião de conselho de família o dia 17-9-2024 às 13:30.
Relatório de 7-3-2024 e de 12-5-2024:
P. que seja extraída com urgência certidão dos autos, que me deverá ser entregue, a fim de ser ponderada a instauração de processo de promoção e proteção.
Em 06.09.2024 foi proferido o seguinte despacho:
“Proceda como promovido na parte final do segmento de douta promoção que antecede.
Atendendo ao já por nós discorrido no despacho de 17 de abril de 2024, e que novamente é reproduzido no relatório da EMAT de 12.05.2024, há indicadores de que o AA está exposto a negligência e a ser educado sem regras/limites, percetível em comportamentos disfuncionais da criança, com notícia de que o menino circulava sozinho na rua, não sendo devidamente cuidado.
EE era, aliás, impedida de estar mais presente na vida do afilhado), DD não salvaguarda os interesses do sobrinho, mostrando-se negligente para com o mesmo quer em áreas básicas dos cuidados (higiene, vestuário e supervisão), quer no que respeita ao incutir-lhe regras e na promoção do seu salutar desenvolvimento, voltando a ausentar-se do país, e a deixar o AA sem a devida supervisão, quando se comprometeu na presença da EMAT e na presença de EE e de GG a deixar o AA aos cuidados da madrinha sempre que tivesse que se ausentar para o estrangeiro ou mesmo em território nacional (desde que não pernoitasse em casa, ou caso sentisse que não poderia estar a horas em casa para receber o AA, após a permanência do mesmo na ama).
É parecer da EMAT que o cargo de tutora deve ser exercido pela Sra. EE, residente na ..., a quem deve ser entregue o AA, o quanto antes, para que de forma estável passe a fazer parte do seu agregado familiar e a e a mesma possa tratar das questões médicas e inscrição escolar do menino (o que nunca conseguiu convenientemente por não ser a sua responsável legal) por forma a colmatar-se todo o período de instabilidade a que a criança tem estado sujeita.
O AA deve continuar a manter convívios com as tias e outros familiares, sendo que estes momentos devem ser acordados sempre com Sra. EE, que nunca nos pareceu pretender manter conflitualidade com os familiares biológicos do AA, mas sempre demonstrou colocar acima de outros valores a questão da salvaguarda do bem-estar e dos direitos desta criança.
Assim, nos termos do artigo 28.º, n.º 1 do RGPTC, o Tribunal decide alterar e substituir a tutoria provisória e indigitar provisoriamente como tutora do menor EE, sua madrinha.
O menor AA fica confiado aos cuidados da madrinha, EE, residente na ..., sua tutora provisória, que exercerá as mesmas responsabilidades na medida em que tal seria exigido aos pais, cabendo assegurar-lhe os cuidados de higiene, alimentação, educação, saúde, vestuário, formação cívica e moral, bem como a liberdade religiosa (esta até atingir os 16 anos).
Exercerá, em exclusivo, as questões de particular importância da vida do menor e poderá tratar de qualquer assunto relacionado com a obtenção de documentação inerente ao percurso escolar, social e de saúde da criança, junto de organismos públicos e privados.
A tutora provisória deverá diligenciar pela matrícula do menor em creche, promovendo a sua integração em equipamento escolar e diligenciar junto da Segurança Social pela eventual obtenção de prestações sociais de que o menor possa beneficiar.
O menor deverá continuar a conviver com as tias, sendo esses momentos agendados pela tutora provisória ora indigitada.
Passe mandados de condução do menor à casa da tutora provisória ora indigitada, devendo EE, FF e DD, serem notificadas pessoalmente do despacho, por OPC, aquando da sua execução.
Remeta os mandados ao OPC competente que deverá cumprir os mesmos em articulação com a técnica da EMAT gestora do processo.
Comunique, de imediato, à EMAT, com nota de muito urgente.”
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Os mandados foram cumpridos, tendo o menor sido entregue a EE.
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Em 17.09.2024 teve lugar reunião de ....
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Inconformada com a decisão de 06.09.2024, DD intentou recurso de apelação, apresentando alegações com as seguintes conclusões:
“I- O recurso objecto mediato destas alegações resulta da discordância pela recorrente do constante no Douto Despacho, que foi proferido a 06 de setembro de 2024 e, que impôs a alteração da tutoria provisória da tia materna DD, indigitada provisoriamente a 14-10-2022 e, a consequente emissão de mandado de retirada do menor da casa da tia materna.
II- DD vem, mui respeitosamente, recorrer do despacho que a “removeu” do cargo de tutora provisória do menor AA, seu sobrinho.
III- A decisão, contida no douto despacho proferido, a 06-09-2024, viola o disposto no artigo 1949.º do Código Civil.
IV- A decisão, contida no douto despacho proferido, a 06-09-2024, viola, também, o disposto no art.º 3.º do Código Processo Civil.
V- O tribunal deve observar ao longo de todo o Processo o princípio do contraditório, proibindo-se situações de ausência de defesa pela parte contra quem é deduzida pretensão.
VI- Não sendo lícito ao tribunal decidir questões contra quem não seja previamente ouvido.
VII- Ora, DD, indigitada tutora provisória pelo tribunal a 14- 10-2022, não pôde pronunciar-se sobre a veracidade dos elementos trazidos aos autos ou sobre a veracidade das declarações contidas nos relatórios, apresentados pela Sra. Técnica, ao Douto tribunal.
VIII- A tutora provisória DD não foi ouvida previamente sobre os factos (elementos trazidos aos autos ou declarações contidas nos relatórios apresentados), não podendo, por isso, exercer o seu direito de defesa.
IX- Proferido despacho a 06 -09 2024, sem audição prévia da tutora provisória DD, viola o tribunal “ a quo” o disposto no artigo 3.º do Código de Processo Civil.
X- Também o tribunal “ a quo” antes de proferir o despacho de 06-09-2024, e antes de emitir o mandado de retirada e condução do menor, proferido a 10-09-2024, não ordenou a notificação do ... para se pronunciar ou opor, relativamente à alteração da tutora provisória, violando o disposto no artigo 1949.º do Código Civil.
XI- Sendo os elementos que integram o ... aqueles que tem condições para zelar pelo interesse e bem- estar do menor, carecia notificar-se o ... para se pronunciar sobre a “remoção” do cargo atribuído provisoriamente à tia materna DD.
XII- O Despacho, proferido a 06-09-2024 pelo tribunal “ a quo”, que justifica o mandado de retirada e condução do menor, violou de forma manifesta, o âmbito da intervenção e da proteção de menor, que se fundamenta em princípios como a intervenção mínima, proporcional e subsidiária, estatuindo uma intervenção indispensável, necessária e adequada ao afastamento do perigo.
XIII- No caso em concreto, e salvo o devido respeito, nenhuma situação de perigo existiu, que impusesse ao douto tribunal “ a quo” a emissão de mandado de retirada do menor da casa da tia materna, de forma abrupta, realizada pelo OPC.
XIV- A alteração da tutoria provisória efectuada pelo Tribunal “ a quo” carecia, que por despacho, fosse ordenada a notificação do ... para se pronunciar ou opor, conforme disposto no artigo 1949.º do Código Civil.
XV- Atendendo ainda à gravidade das declarações contidas nos relatórios apresentados ao Tribunal “ a quo”, relativas à incapacidade da tia materna DD de prover às necessidades básicas do menor ou relativas à notícia de que o menino circulava sozinho na rua, deveria o Tribunal “ a quo” ter permitido a audição da tutora, antes de proferir Despacho e antes da emissão de mandado de retirada do menor da casa da tia materna.
XVI- Ademais, o menor vive com a tia materna DD, desde Julho de 2022 até ao dia 11-09-2024,data em que foi executada a retirada do menor, tendo a alteração da tutoria provisória, ao indigitar como tutora do menor EE, sua madrinha, violado o princípio basilar da prevalência da família natural.
XVII- Nestes termos e nos mais de direito aplicável, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, mantendo-se como tutora do menor, a tia materna DD.
XVIII- O Douto Despacho violou o disposto no artigo 3.º do Código de Processo Civil, e o disposto no artigo 1949.º do Código Civil, violou o princípio basilar da prevalênciada família natural, e violou, de forma manifesta, o âmbito da intervenção e da proteção do menor, que se fundamenta em princípios como a intervenção mínima, proporcional e subsidiária, estatuindo uma intervenção indispensável, necessária e adequada ao afastamento do perigo.
XIX- Assim, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, alterando-se o Douto despacho proferido a 06-09-2024 e notificado à tia materna DD a 11-09-2024, data da execução da retirada do menor da casa da tia materna, realizada pelo OPC.
Com o que será feita a habitual
JUSTIÇA!”
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O MP contra-alegou, com as seguintes conclusões:
“1. Conforme sentença de 6-9-2024 foi nomeada como tutora provisória do menor AA EE ficando a integrar o Conselho de Família GG como protutora e DD como vogal.
2. Não se conformando com tal decisão DD apresentou recurso alegando que a sentença proferida a 18-09-2024 viola o princípio do contraditório e o princípio basilar da prevalência da família natural, assim como o disposto no artigo 3.º do Código Processo Civil.
3. Não se pode olvidar que o processo de tutela é de jurisdição voluntária – artigo 12.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível – estando a sua tramitação abrangida pelo regime previsto no artigo 67.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
4. Não se olvida igualmente que o artigo 25.º n.º 1 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível estabelece que “as partes têm direito a conhecer as informações, as declarações da assessoria técnica e outros depoimentos, processados de forma oral e documentados em auto, relatórios, exames e pareceres constantes do processo, podendo pedir esclarecimentos, juntar outros elementos ou requerer a solicitação de informações que considerem necessárias” sendo nos termos do n.º 3 do mesmo diploma “garantido o contraditório relativamente às provas que forem obtidas pelos meios previstos no n.º 1”.
5. Contudo, o artigo 28.º n.º 1 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível estabelece que “em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, a requerimento ou oficiosamente, o tribunal pode decidir provisoriamente questões que devam ser apreciadas a final, bem como ordenar as diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efetiva da decisão” estabelecendo o n.º 4 que “o tribunal ouve as partes, exceto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência”.
6. Verifica-se que os relatórios da EMAT não foram notificados aos afetados pela decisão designadamente ao tutor, protutor e vogal do conselho de família indicados na petição inicial e referenciados em tais relatórios, não tendo o conselho de família sido ouvido quanto à possibilidade de alterar a nomeação do tutor.
7. Por outro lado, da conjugação dos citados normativos, uma conclusão se impõe que é a de que ao Tribunal não está vedada a prolação de decisão provisória sem audição das partes quando tal puser em risco a eficácia da providência.
8. Ora os relatórios retratavam a recorrente como uma pessoa muito conflituosa que negligenciava o menor, deslocando-se amiúdes vezes ao estrangeiro deixando este entregue às filhas, tendo o menor sido detetado desacompanhado na rua, o que poderá indiciar uma atitude negligente, sendo que a conduta e personalidade da recorrente poderia eventualmente colocar em causa a eficácia da providência.
9. Assim, conclui-se que não se verifica a nulidade invocada nos termos dos artigos 3.º e 195.º do Código de Processo Civil, não tendo sido violadas as normas invocadas.
Pelo exposto, deverá o recurso interposto ser considerado improcedente, devendo manter-e em vigor a decisão provisória datada de 6-9-2018, e que nomeou EE como tutora provisória), assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA!
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O recurso foi admitido como recurso ordinário, de apelação, com subida imediata, em separado, e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II -Objeto do Recurso:
Segundo as conclusões do recurso, as quais delimitam o respetivo objeto, a questão a apreciar é a seguinte:
- Aferir se o despacho recorrido deve ser revogado por virtude da violação do disposto nos arts 3º do CPC e 1949º do CC, e dos princípios da prevalência da família natural, intervenção mínima e proporcionalidade e subsidiariedade.
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III -Fundamentação de Facto:
Os factos relevantes para a decisão são os que constam do relatório supra.
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IV-Fundamentação de Direito:
Está em causa neste recurso, antes de mais, aferir se a prolação da decisão recorrida violou o princípio do contraditório que resulta do art. 3º do CPC, por tal decisão ter sido tomada sem audição prévia da apelante (então tutora provisória), a qual não se pôde pronunciar sobre a veracidade dos elementos trazidos aos autos ou sobre a veracidade das declarações contidas nos relatórios apresentados pela Sra. Técnica ao Douto tribunal, não sendo ouvida sobre os factos contidos nesse relatório, e, não podendo por isso exercer o seu direito de defesa.
E aferir se ocorreu violação do disposto no art. 1949º do CC.
O Ministério Público entende que não.
Vejamos.
O art. 3º nº2 do CPC estipula que: “Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
E o nº3 do mesmo preceito estipula que: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Por sua vez, o art. 1949 º do CC tem a seguinte redação:
A remoção do tutor é decretada pelo tribunal de menores, ouvido o conselho de família, a requerimento do Ministério Público, de qualquer parente do menor, ou de pessoa a cuja guarda este esteja confiado de facto ou de direito.
É certo que destas normas resulta que antes de se decidir um pedido de remoção de tutor se deve proceder à audição do tutor cuja remoção está em causa (ou seja, o própria visado no pedido da remoção – cf art. 3º nº2 do CPC), bem à auscultação do ....
Todavia, não podemos esquecer que nos encontramos perante uma providência tutelar cível (instauração de tutela) cujo processo, bem como os respetivos incidentes, estão sujeitos à regulação instituída pelo Regime Geral do Processo Tutelar Cível aprovado pela Lei 141/2015 de 08 de Setembro (cf. arts 1º e 3º al. al a) do RGPTC).
Este regime contém uma norma referente ao contraditório, o art. 25º, cujo nº1 estipula que:”As partes têm direito a conhecer as informações, as declarações da assessoria técnica e outros depoimentos, processados de forma oral e documentados em auto, relatórios, exames e pareceres constantes do processo, podendo pedir esclarecimentos, juntar outros elementos ou requerer a solicitação de informações que considerem necessárias.”
E o número 3 acrescenta que: É garantido o contraditório relativamente às provas que forem obtidas pelos meios previstos no n.º 1.
Mas este regime também contém uma norma especifica para as decisões provisórias e cautelares, o art. 28º.
Dispõe este artigo 28.º que:
“1 - Em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, a requerimento ou oficiosamente, o tribunal pode decidir provisoriamente questões que devam ser apreciadas a final, bem como ordenar as diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efetiva da decisão.
2 - Podem também ser provisoriamente alteradas as decisões já tomadas a título definitivo.
3 - Para efeitos do disposto no presente artigo, o tribunal procede às averiguações sumárias que tiver por convenientes.
4 - O tribunal ouve as partes, exceto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.
5 - Quando as partes não tiverem sido ouvidas antes do decretamento da providência, é-lhes lícito, em alternativa, na sequência da notificação da decisão que a decretou:
a) Recorrer, nos termos gerais, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido deferida;
b) Deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução.
Ora, a decisão recorrida enquadra-se na previsão do art. 28º do RCPTC, sendo uma decisão provisória que altera a tutoria, também provisória, anteriormente instituída.
E fá-lo, com base em fundamentos tais como: há indicadores de que o AA está exposto a negligência e a ser educado sem regras/limites, percetível em comportamentos disfuncionais da criança, com notícia de que o menino circulava sozinho na rua, não sendo devidamente cuidado; EE (madrinha da criança) era impedida de estar mais presente na vida do afilhado); DD (ora apelante) não salvaguarda os interesses do sobrinho, mostrando-se negligente para com o mesmo quer em áreas básicas dos cuidados (higiene, vestuário e supervisão), quer no que respeita ao incutir-lhe regras e na promoção do seu salutar desenvolvimento, voltando a ausentar-se do país, e a deixar o AA sem a devida supervisão, quando se comprometeu na presença da EMAT e na presença de EE e de GG a deixar o AA aos cuidados da madrinha sempre que tivesse que se ausentar para o estrangeiro ou mesmo em território nacional (desde que não pernoitasse em casa, ou caso sentisse que não poderia estar a horas em casa para receber o AA, após a permanência do mesmo na ama).
Estes fundamentos, designadamente o facto de uma criança de tão tenra idade andar sozinha na rua, e de a tia se ausentar do país, deixando-o sem a devida supervisão, aliás à revelia do compromisso que tinha assumido perante a EMAT, a madrinha do menor e GG, aconselhavam efetivamente a alteração, de imediato, a título provisório, da situação da criança, de modo a acautelar a sua segurança e bem estar, passando a respetiva tutoria provisória (que estava entregue a tal tia) para a madrinha do menor.
Sendo notório que a prévia audição da ora apelante, a quem é imputada a falta de supervisão e de cuidados com o menor, bem como deslocações para o estrangeiro, poderia colocar em risco sério o fim ou a eficácia da providência, possibilitando, designadamente, que pudesse, entretanto, deslocar-se para o estrangeiro com o menor, e desse modo, obstaculizar ao cumprimento da decisão.
Logo, a falta de audição prévia da apelante para se pronunciar sobre a sua possível remoção do cargo de tutora provisória, sobre os factos que lhe são imputados, e sobre os elementos ou meios probatórios de suporte, encontra-se no presente caso legitimada pelo art. 28º nº4 do RGPTC, cabendo à apelante reagir nos termos previstos no nº5 do referido art 28º (o que fez, optando pela via do recurso).
Por outro lado, o mesmo art. 28, no nº3, prevê que para efeitos do disposto nesse artigo, “o tribunal procede às averiguações sumárias que tiver por convenientes”, norma que possibilita, portanto, ao Tribunal, segundo critérios de conveniência, optar por indagar ou não indagar a posição/ parecer do ....
Sendo que o superior interesse do menor, cuja segurança importava no imediato acautelar, sempre justificaria que uma decisão de natureza provisória e cautelar não ficasse pendente da auscultação do ..., a qual sempre exigiria a marcação e realização de uma reunião do referido ... para o efeito.
Não podemos olvidar que nos processos com natureza de jurisdição voluntária como é o presente (art 12º do RGPTC) o Tribunal, nas providências a tomar, não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art 987º do CPC).
A decisão recorrida não está, pois, inquinada por vício de violação do disposto nos arts. 3º do CPC e no art 1949 do CC.
Analisemos agora se a mesma decisão viola os princípios da prevalência da família natural, intervenção mínima e proporcionalidade e subsidiariedade.
Dispõe o Artigo 4.º do RGPTC, com epígrafe “Princípios orientadores”, que:
“1 - Os processos tutelares cíveis regulados no RGPTC regem-se pelos princípios orientadores de intervenção estabelecidos na lei de proteção de crianças e jovens em perigo e ainda pelos seguintes:
a) Simplificação instrutória e oralidade - a instrução do processo recorre preferencialmente a formas e a atos processuais simplificados, nomeadamente, no que concerne à audição da criança que deve decorrer de forma compreensível, ao depoimento dos pais, familiares ou outras pessoas de especial referência afetiva para a criança, e às declarações da assessoria técnica, prestados oralmente e documentados em auto;
b) Consensualização - os conflitos familiares são preferencialmente dirimidos por via do consenso, com recurso a audição técnica especializada e ou à mediação, e, excecionalmente, relatados por escrito;
c) Audição e participação da criança - a criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica ao tribunal, sendo garantido, salvo recusa fundamentada do juiz, o acompanhamento por adulto da sua escolha sempre que nisso manifeste interesse.
2 - Para efeitos do disposto na alínea c) do número anterior, o juiz afere, casuisticamente e por despacho, a capacidade de compreensão dos assuntos em discussão pela criança, podendo para o efeito recorrer ao apoio da assessoria técnica.
Assim, por vai da remissão efetuada no nº1 deste preceito legal, aplicam-se também os princípios orientadores previstos na LPCJP.
Estes encontram-se previstos no art 4º da LPCJP, com a epigrafe “Princípios orientadores da intervenção” e o seguinte teor:
“A intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo obedece aos seguintes princípios:
a) Interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;
b) Privacidade - a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada;
c) Intervenção precoce - a intervenção deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida;
d) Intervenção mínima - a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do jovem em perigo;
e) Proporcionalidade e atualidade - a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade;
f) Responsabilidade parental - a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem;
g) Primado da continuidade das relações psicológicas profundas - a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante;
h) Prevalência da família - na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável;
i) Obrigatoriedade da informação - a criança e o jovem, os pais, o representante legal ou a pessoa que tenha a sua guarda de facto têm direito a ser informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se processa;
j) Audição obrigatória e participação - a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção;
k) Subsidiariedade - a intervenção deve ser efetuada sucessivamente pelas entidades com competência em matéria da infância e juventude, pelas comissões de proteção de crianças e jovens e, em última instância, pelos tribunais.
A apelante começa por invocar a violação do princípio da prevalência da família.
Não tem razão.
O princípio da prevalência da família previsto na alínea h) do art 4º da LPCJP (dever de dar prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável) cede perante o principio do superior interesse da criança, critério decisório preponderante, pois conforme consta expressamente na alínea a) do art 4º da LPCJP “a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem”.
Ora, se é a família biológica (tia que foi nomeada tutora provisória) que não está a garantir a segurança do menor, é óbvio que o superior interesse do menor implicará a adoção de uma providência adequada a acautelar tal segurança, mesmo que em detrimento da sua integração nessa família biológica.
Conforme se refere no Ac. do TRL de 17.01.2008 proferido no Processo 10193/2007-2 o princípio da prevalência da família pressupõe a existência duma família capacitada para assegurar o bem-estar do menor e mantê-lo afastado dos perigos que o possam afetar, situação que, de acordo com os fundamentos da decisão recorrida, atualmente não se verifica relativamente à tia.
Também não se verifica a invocada violação do principio da intervenção mínima (a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do jovem em perigo) e da subsidiariedade (a intervenção deve ser efetuada sucessivamente pelas entidades com competência em matéria da infância e juventude, pelas comissões de proteção de crianças e jovens e, em última instância, pelos tribunais), previstos respetivamente nas alíneas d) e K) do art 4º da LPCJP, porquanto a decisão provisória foi tomada pelo Tribunal no quadro de um processo tutelar cível em curso, ao abrigo de disposição legal expressa que permite a tomada de tal tipo de decisão (art 28º do RGPTC), cabendo-lhe pois em exclusivo a competência para decidir provisoriamente a alteração de tutoria, e não a qualquer outra entidade, o que fez com vista à salvaguarda do interesse do menor.
Por fim, também não se mostra violado o principio da proporcionalidade (e atualidade) previsto na alínea e) do art. 4º da LPCJP, nos termos do qual a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade.
Tal princípio de proporcionalidade, nos dizeres do Acórdão do TRL de 17.01.2008 suprarreferido, “pressupõe uma intervenção adequada à situação real verificada”.
Ora, in casu, conforme já se disse, os fundamentos aduzidos na decisão recorrida, designadamente o facto de uma criança de tão tenra idade andar sozinha na rua, e de a tia se ausentar do país, deixando-o sem a devida supervisão, à revelia do compromisso que tinha assumido perante a EMAT, a madrinha do menor e GG, aconselhavam efetivamente a alteração, de imediato, a titulo provisório, da situação da criança, de modo a acautelar a sua segurança e bem estar.
Donde se conclui pela proporcionalidade da providência decidida pelo Tribunal, a alteração, a título provisório, da sua tutoria, que estava entregue a tal tia, passando-a para a madrinha do menor, que é também uma pessoa próxima do menor.
Em suma, tendo em conta os seus fundamentos, a decisão provisória revelou-se necessária e adequada a acautelar a segurança e bem-estar do menor.
O recurso improcede.
***
V. DECISÃO:
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta 8ªsecção cível do Tribunal da Relação de Lisboa acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, mantêm a decisão recorrida.
Sem custas (artº 4º nº 2, al. f) do RCP).
Notifique.

Lisboa, 05.06.2025
Carla Matos
Octávio Diogo
Fátima Viegas