RESPONSABILIDADE CRIMINAL
ADMINISTRADOR DE DIREITO E DE FACTO
Sumário

I - …“na nossa lei ninguém pode ser criminalmente responsável apenas em razão das suas qualidades ou situações funcionais e também nisso se distingue a responsabilidade criminal da responsabilidade politica ou moral, o que é importante acentuar neste tempo ….A responsabilidade penal é pessoal, o que significa que não há responsabilidade por facto de outrem, ou seja, é responsável só e todo aquele as quem é objectiva e subjectivamente imputável o facto ilícito.
…o conceito de administrador de direito é aquele que é empossado nos termos legais e estatutários para exercer a função de administrador. O administrador de facto é a pessoa que exerce efetivamente os poderes do cargo embora não tenha sido designado nos termos legais ou a posse do cargo sofre de qualquer vício.(…)
II - O art. º12 do Código Penal contempla ambas as situações: o que importa é que a pessoa que aja voluntariamente como administrador…Compreende-se bem que assim seja. O direito penal estabelece comandos, ou seja, impõe e proíbe determinadas condutas e fá-lo para proteger bens jurídicos penalmente relevantes. O que especialmente releva é que esses bens não sejam ofendidos por quem tem o dever de não os ofender, importando pouco ou nada… as qualidades formais daquele que os ofende.

Texto Integral

Processo: 71/24.4IDAVR.P1

Acordam em conferência na Primeira secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:


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1-RELATÓRIO

Nos presentes autos que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 1, realizou-se instrução, por requerimento do arguido AA, na sequência de acusação deduzida pelo Ministério Público, na qual lhe é imputada a prática, em co-autoria material, de Um Crime de Abuso de Confiança Fiscal, p. e p. pelos arts. 7º, nº. 3, 105º, nºs. 1, 2 e 4 da Lei nº. 15/01 de 05.06 (RGIT)., tendo sido, a final e quanto a este, proferido despacho de não pronúncia.


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Não se conformando, o Ministério Público recorreu para este Tribunal da Relação pugnando pela prolação de decisão que determine a pronúncia do arguido pela prática daquele ilícito criminal.

Apresentou as seguintes ‘conclusões’ na motivação de recurso (transcrição):

«a. Por despacho de 16.10.2024, o Ministério Público deduziu acusação (Ref.ª 135194995), contra os arguidos BB, AA e a sociedade “A..., Lda”, imputando-lhes a prática, em co-autoria material, de um crime de abuso de confiança contra administração fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º (s) 1 a 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias;

b. Inconformado com o despacho de acusação, o arguido AA requereu a abertura de instrução alegando, em suma, que apenas foi gerente formal da sociedade arguida “A..., Lda” e que a gerência da mesma passava exclusivamente pelo seu pai, o arguido BB.

c. Com o RAI juntou prova documental, indicou o co-arguido BB para prestar declarações e arrolou testemunha.

d. A Mm. º Juiz de Instrução entendeu não se encontrar suficientemente indiciada a prática pelo arguido AA do crime de abuso de confiança fiscal, designadamente que o mesmo também fosse responsável pela administração e gestão da sociedade arguida.

e. Julgou procedente o RAI do arguido, não o pronunciando.

f. O MP discorda da não pronúncia do arguido AA por duas ordens de razão: 1) os elementos de prova recolhidos são suficientes para afirmar que o arguido tinha o domínio do facto em relação à gestão/administração da sociedade arguida, não lhe sendo alheio os desígnios da sociedade;

g. 2) Porque ainda que assim não se entenda, o que por mera hipótese académica se admite, os administradores de direito não ficam exonerados dos deveres que derivam do cargo que ocupam legalmente e devem ser responsabilizados não apenas pelos actos que praticou, mas também pela omissão de comportamentos que impunham em razão da qualidade funcional que exerce e assumiu publicamente, no seio de uma pessoa jurídica.

h. Com efeito, da concatenação dos elementos de prova recolhidos nos autos resulta que ao arguido AA, não era alheia, tal como pretende fazer crer, a gestão da sociedade arguida.

i. Desde a sua constituição em 09.07.2021 até 13.06.2023 (data em que assumiu de novo a gerência de direito o arguido BB), foram registadas seis alterações ao nível da gerência da arguida “A..., Lda”;

j. O arguido BB exerceu sempre a gerência de facto da sociedade, o que sucedeu mesmo quando deixou de ser representante legal da sociedade, ou seja, no período compreendido entre 15.11.2021 e 13.06.2023;

k. Neste período foram gerentes de direito ou nominal CC, sogra do arguido AA, a quem este convenceu a aceitar tal nomeação, por ser da conveniência do arguido BB, apesar de não ter qualquer ligação funcional com a sociedade arguida – veja-se a missiva junta aos autos a fls. 84 que CC dirigiu ao Diretor Finanças de Aveiro.

l. Á semelhança do que sucedeu posteriormente com o arguido AA, o arguido BB emitiu uma declaração em que assume a gerência de facto da sociedade, desonerando esta representante legal.

m. A designação como gerente de direito do arguido AA não foi, tal como pretende o arguido fazer crer, ocasional e motivado por um problema de saúde do arguido BB (tal como declarou), mas corresponde a um modo de actuação levado a cabo por ambos, com o objectivo de ludibriar as autoridades e defraudar os credores.

n. Este modo de proceder não só não era desconhecido do arguido AA, como contribui de forma activa para este desígnio, não só convencendo terceiros a aceitar a titularidade da gerência de direito como constituindo uma sociedade, durante o período em que era gerente de direito da arguida “A..., Lda”, para a qual foi transferido de forma fraudulenta bens da sociedade arguida, designadamente um automóvel como os próprios trabalhadores, conforme parecer do administrador de insolvência junto aos autos a fls. 170 e ss.;

o. Face ao exposto é imperioso concluir que os autos reúnem indícios suficientes de que o arguido AA tinha o domínio do facto no que concerne à gestão e aos desígnios da sociedade arguida, devendo por esse motivo ser responsabilizado criminalmente nos termos que constam da acusação.

p. Ainda que assim não se entenda, devem o arguido AA ser penalmente responsabilizado pela omissão de comportamentos que se impunham em razão da qualidade funcional que exerce e assumiu publicamente no seio de uma pessoa jurídica.

q. Os administradores de direito, mesmo que não exerçam de facto a administração não ficam desonerados dos deveres que derivam do cargo que ocupam legalmente.

r. Se um cidadão assume, ainda que tacitamente que forneceu voluntariamente a sua identidade para que outro pudesse em seu nome gerir os destinos de uma determinada sociedade, haverá, pelo menos de conformar-se que a mesma seja utilizada de um modo antijurídico.

s. O juízo de censura que merece este comportamento resulta precisamente desse desleixo e conformação com os eventuais resultados lesivos.

t. Pelo exposto, ao não pronunciar o arguido AA, o Mm. º Juiz fez uma incorrecta apreciação dos indícios, com a consequente violação do disposto no artigo 308.º, n.º 1, aplicável ex vi artigo 283.º, n.º 3 do C.P.Penal.

u. Termos em que, salvo o devido respeito por entendimento contrário, o douto despacho recorrido deverá ser revogado, e substituído por outro que pronuncie o arguido AA, nos exactos termos que constam da acusação….»


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O arguido AA, nas suas alegações de resposta, concluiu nos seguintes moldes:

CONCLUSÕES:

1. O recurso interposto pelo Ministério Público tem como objeto a decisão de não pronúncia proferida nos presentes autos, estribando o Ministério Público a sua discordância quanto a tal decisão no entendimento de que nos autos existem indícios suficientes da prática do crime de abuso de confiança fiscal.

2. Conforme decorre da análise atenta da profusa, preclara e bem ponderada fundamentação da douta decisão recorrida, a mesma afigura-se integralmente acertada e conforme ao direito aplicável, sendo absolutamente consequente com a prova produzida na instrução, não merecendo qualquer reparo.

3. A descrição factual, determinada nos artigos 283.º, n.º 3, alínea b), e 374.º, n.º 2, do CPP, é o corolário da estrutura acusatória do nosso processo penal, pela qual o objecto do processo é fixado pela acusação, que delimita o poder de cognição do tribunal, e é garante dos direitos de defesa do arguido.

4. A conclusão plasmada na alínea ‘n’ da motivação do recurso apresentado pelo Ministério Público extravasa totalmente o objeto da acusação, sendo notório que em nenhum dos artigos que compõem a douta acusação pública, numerados de 1. a 18., se faz a mínima referência a tal suposto facto, se é que se pode chamar facto a um mero juízo de valor, levianamente produzido e ilustrativo do mais flagrante desrespeito pela presunção de inocência, porquanto para além de o arguido nunca antes ter sido confrontado com tal ‘facto’ no âmbito dos presentes autos, não está sequer tal alegação estribada numa qualquer decisão judicial transitada em julgado!

5. Analisado o recurso apresentado pelo Ministério Público, verifica-se uma repetição integral da motivação do recurso nas conclusões, o que equivale à falta destas, constituindo motivo de rejeição do recurso - artigo 414.º, n.º 2, do CPP.

6. As razões da discórdia do Ministério Público relativamente à decisão de não pronúncia do arguido, subsumem-se por um lado na alegada suficiência dos elementos de prova recolhidos para afirmar que o arguido tinha o domínio do facto em relação à gestão/administração da sociedade arguida, e por outro na conclusão de que os administradores de direito não ficam exonerados dos deveres que derivam do cargo que ocupam legalmente.

7. O entendimento expresso pelo recorrente Ministério Público é, salvo o devido respeito, erróneo e advém de uma conceção exasperada do Direito e da Ação Penal.

8. À luz da concreta (e concludente) prova produzida nos autos, cujo elenco está perfeitamente delimitado na decisão recorrida (págs. 8, 9 e 10), e desconsideradas as extrapolações feitas pelo Ministério Público no respetivo recurso, adivinhando intenções e extraindo conclusões avessas à prova concretamente produzida, de cuja apreciação crítica, sublinhe-se, o recorrente ‘foge como o diabo foge da cruz’, a conclusão não podia ser outra senão a que foi plasmada na decisão de não pronúncia proferida pelo tribunal a quo, não merecendo nenhuma censura, porquanto foi a mesma devida e assertivamente fundamentada, em estrito respeito e concordância com o Direito aplicável.

9. Importa assim analisar a motivação de facto e de direito do tribunal a quo, na qual se estribou afinal a decisão (que consideramos inteiramente acertada) de não pronúncia do arguido pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, cuja transcrição consta da motivação da presente resposta.

10. Apesar de se considerar que a motivação apresentada pela Meritíssima Juiz a quo é suficientemente clara, objetiva e assertiva quanto à decisão de não pronúncia do arguido, pensa-se ser de utilidade à sindicância e conclusão sobre o evidente acerto da mesma, chamar à colação, em proximidade e similitude com o caso dos presentes autos, a jurisprudência supracitada no artigo 30º da motivação da presente resposta.

11. Assim como, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 12 de fevereiro de 2025, no âmbito do Processo n.º 241/23.2IDAVR.P1, que versou sobre o recurso apresentado pelo Ministério Público, insurgindo-se igualmente contra o despacho de não pronúncia quanto ao arguido AA, que julgou improcedente tal recurso e manteve a decisão recorrida.

TERMOS EM QUE, SEM NECESSIDADE DE MAIS CONSIDERAÇÕES, DEVE A DECISÃO DE NÃO PRONÚNCIA OBJECTO DE RECURSO, SER CONFIRMADA, NEGANDO-SE PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.(…)”


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Nesta sede a Exma. Procuradora-geral Adjunto, no seu parecer, pronunciou-se no sentido de que deverá manter-se o teor da decisão recorrida, afastando-se assim da tese recursiva. Segundo a mesma “(…), tal como expresso na decisão recorrida com a qual se concorda, os autos não fornecem, para efeitos do artº 283º nº 1 do CPP, os indícios suficientes de que o filho do arguido BB, o arguido AA e que desenvolvia na sociedade actividade na área fabril, tivesse responsabilidade directa na gerência da sociedade arguida e que foi o responsável pelo incumprimento das prestações tributárias não obstante seja formalmente gerente de direito dessa mesma sociedade.

Para além da referência formal no acto societário da gerência de AA não foram recolhidos, para além da certidão de registo, quaisquer outros elementos que permitam concluir que o arguido exercia de forma efectiva essa gerência.

Inexistem documentos quer de ordem administrativa quer comercial por si assinados; das testemunhas arroladas nenhuma o indica como gerente, ou evidencia ordem ou decisão por este tomada no alegado período da gerência; não foram recolhidas e juntas quaisquer provas que indiciem tal gerência.

Seguimos de perto o Acórdão do Tribunal de Guimarães de 25.06.19, in dgsi:

“I) A gerência de facto, real e efectiva, constitui requisito da responsabilidade dos gerentes, não bastando a mera titularidade do cargo, ou o que se designa por gerência nominal ou de direito. II) Com efeito, não há qualquer presunção legal que faça decorrer da qualidade de gerente nominal ou de direito, o efectivo exercício da função e que faça inverter o referido ónus de prova que recai sobre o estado, cumprindo salientar que da inscrição no registo comercial da nomeação de alguém como gerente apenas resulta a presunção legal (art.º11º do Código do Registo Comercial) de que o nomeado é gerente de direito, não de que exerce efectivas funções de gerência e só quem tem a seu favor uma presunção legal, escusa de provar o facto a que ela conduz (art.º350º, nº 1, do Código Civil)…”.(…)”


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Foi cumprido que foi o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP.

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Colhidos os vistos e indo os autos à conferência, cumpre apreciar e decidir.

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2-FUNDAMENTAÇÃO

2.1-QUESTÕES A DECIDIR

Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.

Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso apresentada e tendo em conta de que nos encontramos perante uma decisão instrutória de não pronúncia, a questão central a decidir é:

- a de saber se da prova produzida, quer em sede de inquérito, quer na fase de instrução, resultam indícios suficientes da prática do ilícito criminal que é imputado ao arguido AA em sede acusatória.

A par desta questão suscita-se a questão de saber:

- se o arguido AA, na qualidade de administrador de direito, responde criminalmente por atos praticados pela sociedade relativamente aos quais teria um dever de agir.


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2.2- A DECISÃO RECORRIDA (transcrição):

«(…)

Decisão Instrutória:

1. Relatório:

No termo do Inquérito a que respeitam os presentes autos o Ministério Público proferiu despacho final deduzindo Acusação, como de fls. 102 e segs. resulta, imputando aos arguidos “A..., Lda.”, BB e AA a prática, em co-autoria material, de Um Crime de Abuso de Confiança Fiscal, p. e p. pelos arts. 7º, nº. 3, 105º, nºs. 1, 2 e 4 da Lei nº. 15/01 de 05.06 (RGIT).

Na sequência de tal decisão o arguido AA veio requerer a abertura de Instrução, como decorre de fls. 130 e segs., pugnando pela prolação de decisão instrutória de não pronúncia, tendo invocado, para o efeito, em síntese, nunca ter exercido, de facto, qualquer acto de gerência da dita sociedade.

Na presente fase de Instrução procedeu-se à realização de diligências de Instrução e de Debate Instrutório, como documentam os autos.


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Nenhuma nulidade, outra excepção ou questão prévia obsta à decisão.

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2. Fundamentação:

2.1. Das finalidades da Instrução:

(…)

2.2. Dos Factos Suficientemente Indiciados:

1 - “A..., Lda.”, pessoa coletiva n.º ..., é uma sociedade por quotas com sede no Largo ..., na freguesia ..., ..., ... e ..., do concelho de Santa Maria da Feira, ... ..., com capital social de € 41.000,00, cujo objecto social se traduz na fabricação e comercialização de calçado, e que se obriga pela intervenção de um gerente.

2 - Desde a data da sua constituição, o que sucedeu a 09/07/2001, a sociedade arguida teve por gerentes, DD e BB (doravante BB) que cessaram funções, respectivamente, a 24/08/2021 e a 15/11/2021.

3 - Entre 15/11/2021 e 12/01/2023, CC foi gerente da sociedade arguida.

4 - Entre 12/01/2023 e 13/06/2023, a sociedade arguida teve por gerente de direito AA (doravante, AA).

5 - Desde 13/06/2023 e até à presente data, BB tem sido o gerente de direito da sociedade arguida.

6 - Desde 12/01/2023 e até à presente data, o arguido BB tem exercido de facto as funções de gerente da “A..., Lda.” e, enquanto tal, compete-lhe tomar todas as decisões relativas à gestão desta e à respectiva área financeira, dando ordens aos funcionários, realizando encomendas, representando-a perante clientes, fornecedores e repartições públicas e é o responsável pelo pagamento dos impostos devidos ao Estado Português.

7 - No que respeita ao IVA (Imposto sobre o Valor Acrescentado), a sociedade arguida encontrava-se enquadrada no regime de periodicidade trimestral, e quanto ao IRC está enquadrada no regime geral de tributação, da área do Serviço de Finanças de Feira 1.

8 - No exercício da sua actividade comercial, a sociedade arguida, através do arguido BB, seu gerente de facto, desenvolveu a referida actividade de fabricação e comercialização de calçado que se encontra sujeita a IVA, comercializando e vendendo os seus bens, emitindo as respectivas facturas, recebendo dos compradores os preços correspondentes, liquidando e recebendo também desses mesmos clientes o IVA que incidiu sobre essas mesmas operações, e

9 - Assim, entre Abril de 2023 e Junho de 2023, as prestações tributárias por conta do IVA liquidadas e recebidas pelo arguido BB ascenderam ao valor total de € 9.903,00 (nove mil e três euros).

10 - A sociedade arguida encontrava-se sujeita à obrigação de enviar a declaração periódica do imposto e correspondentes meios de pagamento ao Estado Português, até ao dia 25/09/2023.

11 - No dia 18/09/2023, a sociedade arguida entregou ao Estado Português a declaração periódica de IVA, segundo trimestre de 2023.

12 - Os arguidos não entregaram o valor de € 9.903,00 ao Estado Português, até ao dia 25/09/2023, nem posteriormente.

13 - Em 31/07/2024, os arguidos foram notificados para pagar o valor de € 9.903,00, acrescido de coima no valor de € 3.122,42, no prazo de 30 dias.

14 - Os arguidos não realizaram tais pagamentos.

15 - O arguido BB sabia que a sociedade arguida estava obrigada a entregar os montantes dos impostos recebidos por ela, bem como os deduzidos e retidos, ao Estado Português, dentro dos prazos legais de que também tinha conhecimento.

16 - Não obstante, o arguido BB não quis entregar ao Estado Português, a quantia monetária relativa ao IVA, dentro dos prazos legais, nem no prazo de trinta dias após notificado para o efectuar.

17 - O arguido BB pretendeu agir da forma como agiu, por si e em representação da sociedade arguida, com o intuito concretizado de integrar aquele valor do IVA, no património da arguida, causando prejuízos de igual montante ao Estado Português.

18 - O arguido BB agiu sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que toda a descrita conduta lhe estava legalmente vedada.


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2.3. Dos Factos Não Suficientemente Indiciados:

1 - Desde 12/01/2023 e até à presente data, o arguido AA tem exercido, conjuntamente e de facto, as funções de gerente da “A..., Lda.” e, enquanto tal, compete-lhe tomar todas as decisões relativas à gestão desta e à respectiva área financeira, dando ordens aos funcionários, realizando encomendas, representando-a perante clientes, fornecedores e repartições públicas e é o responsável pelo pagamento dos impostos devidos ao Estado Português.

2 - O arguido AA actuou, de forma conjugada com o arguido BB, nos termos mencionados e descritos nos pontos 8) a 14) da factualidade indiciada supra.

3 - O arguido AA sabia que a sociedade arguida estava obrigada a entregar os montantes dos impostos recebidos por ela, bem como os deduzidos e retidos, ao Estado Português, dentro dos prazos legais de que também tinha conhecimento.

4 - O arguido AA não quis entregar ao Estado Português, a quantia monetária relativa ao IVA, dentro dos prazos legais, nem no prazo de trinta dias após notificado para o efectuar.

5 - O arguido AA pretendeu agir da forma como agiu, em conjugação de esforços e de vontades, por si e em representação da sociedade arguida, com o intuito concretizado de integrar aquele valor do IVA, no património da arguida, causando prejuízos de igual montante ao Estado Português.

6 - O arguido AA agiu sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que toda a descrita conduta lhe estava legalmente vedada.


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3. Crime Imputado e Motivação:

Aos arguidos vem imputada a prática, em co-autoria material, na forma consumada, de Um Crime de Abuso de Confiança Fiscal, p. e p. pelos arts. 105º, nºs. 1, 2 e 4 e 7º, nºs. 1 e 3 da Lei nº. 15/01 de 05.06 (RGIT).

Com a entrada em vigor da Lei nº. 15/01 de 05.06 o ilícito penal em causa passou a estar previsto no art. 105º do aludido diploma legal, segundo o qual se dispõe, no seu nº. 1, que “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias”, preceituando o nº. 2 do referido preceito legal que “para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja”.

Comete, assim, o crime de abuso de confiança fiscal, por que foram acusados os arguidos, quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário.

Como elementos objectivos do tipo legal de crime podem assinalar-se a não entrega ao credor tributário pelo agente da prestação a que estava obrigado; a integração da prestação na esfera patrimonial do agente (apropriando-se assim da mesma, v.g., utilizando-a para pagar dívidas próprias); a existência de uma relação de confiança (resultante da investidura do agente, em virtude do cumprimento das suas obrigações fiscais, na qualidade de depositário de prestação tributária e detentor da mesma, a título temporário e com vista à sua entrega ao fisco) que é violada com a referida apropriação (cfr. LOPES ROCHA, Crimes e Contra-Ordenações Fiscais, in Textos de Direito Penal Económico e Europeu, vol. II, p.461).

No crime de abuso de confiança fiscal, o elemento “apropriação” tem significado diverso do previsto no crime de abuso de confiança tipificado no art. 205º do Cód. Penal.

De facto, no abuso de confiança fiscal não está em causa apenas a propriedade, como no crime previsto no Cód. Penal, mas antes o regular funcionamento do sistema fiscal, tendo em vista os objectivos constitucionalmente consagrados (cfr. arts. 103º e 101º da Const. Rep. Portuguesa) de justiça distributiva, a satisfação das necessidades financeiras do Estado, objectivos esses no âmbito dos quais são estabelecidos os já mencionados dever de colaboração com a administração fiscal e consequente relação de confiança.

Compreende-se assim que “para a sua consumação não é necessário que o autor faça sua a coisa, que disponha dela como se fosse própria, mas apenas que não a entregue, estando juridicamente obrigado a fazê-lo” (Augusto Silva Dias, O Novo Direito Penal Fiscal Não Aduaneiro, in Direito Penal Económico e Europeu - Textos Doutrinários, vol. II, 1999, a p. 275 e seg.).

A intenção do agente de obter um proveito económico traduz-se numa “intenção específica de enriquecimento, que não tem correspondência com qualquer resultado espaço-temporalmente distinto da omissão de entrega da prestação” (diversamente no crime previsto no Cód. Penal, em que tal resultado se traduz na própria apropriação da coisa).

Não é, portanto, relevante em sede de qualificação (sê-lo-á eventualmente na de determinação da necessidade ou da medida de pena, pela consideração da motivação dos arguidos), o facto de as quantias indevidamente (indevidamente, porque em desrespeito pela afectação das mesmas) retidas pelo agente terem ingressado no seu património (no seu património, i. e., na esfera de relações de conteúdo patrimonial de que era titular) mediante a afectação ao pagamento a credores seus, nomeadamente aos trabalhadores e fornecedores.

Ainda nesta hipótese, é o património do agente que fica enriquecido com aquelas quantias, solvendo com elas dívidas próprias.

Ainda que assim não se entendesse, certo é que o enriquecimento intencionado com a prática do crime de abuso de confiança pode ser próprio ou alheio (cfr. A. e loc.citados, p. 276).

Assim, perante um conflito de deveres que impõe a opção entre o dever de entregar ao fisco as quantias retidas ou cobradas a título de impostos e o cumprimento dos deveres contratuais para com os trabalhadores e fornecedores, deverá prevalecer aquele primeiro interesse colectivo (cuja superioridade relativamente aos segundos resulta, designadamente, da relevância criminal - e não meramente contratual - da sua violação: cfr.art. 36º, nº. 1, e art. 34º, al. b), ambos do Cód. Penal).

Aos elementos objectivos do crime acresce o elemento subjectivo do tipo legal que, como refere o Lopes Rocha (Crimes e Contra-Ordenações Fiscais, in Colectânea de Textos já citada, vol. II, p. 462), se esgota no dolo, “o qual se dirige à lesão da relação de confiança e à apropriação”.

Analisado o ilícito criminal em questão, importa referir o seguinte, atentos os elementos probatórios recolhidos nos autos:

Dúvidas inexistem que o arguido requerente de Instrução, AA, assumiu a qualidade de gerente de direito da sociedade arguida entre 12/01/2023 e 13/06/2023, pois que tal facto encontra-se averbado na certidão de matrícula da dita sociedade.

A questão que se coloca, com o RAI apresentado por este arguido, consiste em saber se dos presentes autos resultam elementos indiciários suficientes de que tais funções foram, de facto, efectivamente exercidas pelo arguido AA.

Consideramos que a resposta se impõe ser negativa, muito embora a razão que foi apresentada pelo co-arguido e pai do requerente de Instrução para a mudança de gerente de direito na matrícula não se tenha mostrado credível.

De facto, compulsados os autos decorre que nenhuma prova minimamente consistente foi produzida no sentido de permitir afirmar que o arguido AA, para além de funcionário da área da produção, tenha passado a determinar os destinos da sociedade, a tomar ou participar nas decisões que envolviam a empresa, a participar no processo decisório sobre os pagamentos a efectuar e/ou omitir, etc.

Com efeito, não foi inquirido, nos autos, qualquer funcionário da sociedade, assim como qualquer cliente e/ou fornecedor da mesma, não foram juntos quaisquer elementos documentais de onde se possa afirmar a participação do arguido AA nos destinos da sociedade, nomeadamente documentos por si subscritos e/ou assinados, etc.

Por seu turno, o co-arguido BB, pai do requerente de Instrução, quer no Inquérito, quer nesta fase processual e Instrução, manteve que a sociedade foi sempre apenas por si gerida, a si cabendo a tomada de todas as decisões que afetavam a sociedade, mesmo no período em que o seu filho figurou como gerente de direito, funções que, efectivamente, este nunca exerceu.

Assim, segundo este arguido, tal ocorreu dado que teve uns problemas de saúde, tendo sido sujeito a cirurgia, sendo essa uma solução que encontrou para prevenir qualquer contratempo decorrente eventualmente da operação, não tendo, porém, ocorrido necessidade de tal suceder, dado que a sua recuperação foi rápida.

Assim, segundo este arguido, o seu filho limitou-se a aceder ao seu pedido, mas de facto, nenhuma decisão veio a assumir enquanto gerente, mantendo-se as decisões na sua pessoa.

Para corroborar essa sua versão, o co-arguido BB juntou aos autos a Declaração constante de fls. 19 e segs., na qual assume a total responsabilidade exclusiva pela gerência da sociedade.

Durante a fase de Inquérito, o arguido AA prestou declarações, corroborando a versão do seu pai, como decorre de fls. 21 e segs., refutando ter tomado qualquer decisão na sociedade ou assinado qualquer documento.

Ora, muito embora, a justificação para o sucedido apresentada pudesse ter alguma credibilidade, à partida, a mesma deixa de ser credível ao analisarmos as sucessivas alterações de gerente de direito que ocorreram, conforme decorre da respectiva certidão de matrícula - cfr. fls. 91 e segs.

Porém, muito embora a justificação para a alteração da gerência de direito não nos tenha convencido ser verídica, o certo é que, tenha sido essa ou outra a razão do procedimento em causa, a questão é que não decorre dos autos que efectivamente o arguido AA tenha exercido de facto as funções de gerente.

Ainda pelo arguido foi junto aos autos o documento de fls. 141 verso, o qual consiste numa comunicação de despedimento de uma trabalhadora, efectuada no período em causa, assinada pelo arguido BB.

Pelo exposto, a versão do arguido requerente de Instrução segundo a qual nunca exerceu, efectivamente, as funções de gerente da sociedade arguida, tendo apenas se limitado a responder a um apelo familiar no sentido de figurar na matrícula nessa qualidade, em termos formais, nada sabendo da gestão da sociedade, nem tendo qualquer participação na mesma, não resulta, da prova produzida em sede de Inquérito e Instrução, desmentida ou contrariada por outros elementos probatórios.

Com efeito, na presente fase processual, foi ainda inquirida a testemunha EE, ex-contabilista certificado da sociedade, o qual afirmou ter sempre lidado, quanto às questões de gerência da sociedade, com o arguido BB e nunca com o filho deste, o qual tinha como trabalhador da área fabril.

Alega, assim, o arguido requerente de Instrução o seu desconhecimento e falta de vontade na realização dos factos que integram o cometimento do ilícito criminal em causa, pois que, de acordo com a sua versão, o mesmo não teve qualquer intervenção na não entrega das prestações tributárias devidas, ou sequer estava a par de tal omissão.

Importa salientar que “a chamada gerência de facto de uma sociedade comercial consiste no efectivo exercício das funções que lhe são inerentes e que passam, nomeadamente, pelas relações com os fornecedores, com os clientes, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade.

A mera inscrição no registo como gerente não constitui base factual bastante para se concluir pelo exercício dessa gerência, sendo necessário apurar que actos de gerência foram praticados durante o período a que se reporta a matéria delituosa” - cfr. Acórdão do TR de Guimarães de 26.04.2022, in www.dgsi.pt.

Como se salienta no Acórdão do TR de Guimarães de 25.06.2019, in www.dsgi.pt “A gerência de facto, real e efectiva, constitui requisito da responsabilidade dos gerentes, não bastando a mera titularidade do cargo, ou o que se designa por gerência nominal ou de direito.

Com efeito, não há qualquer presunção legal que faça decorrer da qualidade de gerente nominal ou de direito, o efectivo exercício da função e que faça inverter o referido ónus de prova que recai sobre o estado, cumprindo salientar que da inscrição no registo comercial da nomeação de alguém como gerente apenas resulta a presunção legal (art.º11º do Código do Registo Comercial) de que o nomeado é gerente de direito, não de que exerce efectivas funções de gerência”.

Ora, como já supra aludido, não existem elementos de prova recolhidos nos autos que se revelem suficientes de molde a permitir concluir que a gerência da sociedade arguida foi de facto efectivamente exercida pelo arguido AA.

Resulta, ainda, ser de destacar que aquando da data limite para pagamento da quantia aqui em causa o arguido AA já nem sequer a qualidade de gerente de direito detinha, pelo que não se poderá, também, por esta via, imputar-se-lhe a tomada de decisão sobre esse pagamento ou omissão do mesmo.

Concluímos que relativamente ao arguido AA da prova produzida nesta fase de Instrução e na fase antecedente de Inquérito não resultam indícios suficientes de que este arguido praticou os factos descritos no texto acusatório e assim incorreu na prática do ilícito criminal imputado, pelo que se impõe concluir pela Não Pronúncia deste arguido.


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4. Decisão:

Pelo exposto, e por força do disposto nos arts. 307º e 308º, ambos do Código de Processo Penal, decide-se:

- Não Pronunciar o arguido AA, pela imputada prática, em co-autoria material, de Um Crime de Abuso de Confiança Fiscal, p. e p. pelos arts. 7º, nº. 3, 105º, nºs. 1, 2 e 4 da Lei nº. 15/01 de 05.06 (RGIT), antes determinando, quanto a este arguido, o oportuno arquivamento dos autos.


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(…)»

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2.3.- APRECIAÇÃO DO RECURSO.

2.3.1-Da apreciação dos indícios da prática pelo arguido de um Crime de Abuso de Confiança Fiscal, p. e p. pelos arts. 7º, nº. 3, 105º, nºs. 1, 2 e 4 da Lei nº. 15/01 de 05.06 (RGIT).

A instrução é uma fase facultativa do processo penal na forma comum que, nos termos do artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal, visa exclusivamente a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Esta comprovação judicial consiste na análise e ponderação dos meios de prova produzidos, no inquérito e em instrução, com a finalidade de verificar a existência, ou não, de indícios suficientes de se encontrarem preenchidos os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.

Com efeito, refere o artigo 308º, nº 1 do Código Processo Penal que, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

Nos termos do artigo 283º, n.º 2 do CPP, aplicável ex vi, nº 2 do artigo 308º do mesmo diploma legal, consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

Como refere Figueiredo Dias, os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição[1].

Também uma parte da jurisprudência tem seguido tese próxima da acabada de referir, ao considerar que existem indícios suficientes quando predomina a probabilidade de condenação[2], probabilidade esta que justifica a decisão processual de prossecução do processo até à fase de julgamento.

Não obstante, o que o recorrente põe em causa, divergindo da decisão instrutória, é a da não existência de indícios suficientes para submeter o arguido AA a julgamento.

Vejamos então, relativamente ao caso em apreciação se, com os elementos de prova existentes, o arguido for submetido a julgamento pelos factos que o Ministério Público lhe imputa na acusação pública, qual o grau de probabilidade da condenação, isto é, será mais provável a condenação do arguido ou a sua absolvição.

Entendeu a Mma. Juíza de Instrução que não se encontram indiciados factos respeitantes à apropriação, ou seja que: «compulsados os autos decorre que nenhuma prova minimamente consistente foi produzida no sentido de permitir afirmar que o arguido AA, para além de funcionário da área da produção, tenha passado a determinar os destinos da sociedade, a tomar ou participar nas decisões que envolviam a empresa, a participar no processo decisório sobre os pagamentos a efectuar e/ou omitir, etc.

Com efeito, não foi inquirido, nos autos, qualquer funcionário da sociedade, assim como qualquer cliente e/ou fornecedor da mesma, não foram juntos quaisquer elementos documentais de onde se possa afirmar a participação do arguido AA nos destinos da sociedade, nomeadamente documentos por si subscritos e/ou assinados, etc.

(…)»

Em sede recursiva, o Ministério Público não coloca em causa a ausência dos elementos acima enunciados, isto é, não contradiz o facto de não ter sido inquirido, qualquer funcionário da sociedade, ou cliente e/ou fornecedor da mesma assim, ou que não tenham sido juntos quaisquer elementos documentais de onde se possa afirmar a participação do arguido AA nos destinos da sociedade, pretendendo, contudo, extrair a presença de indícios suficientes de que o arguido AA tinha o domínio do facto no que concerne à gestão e aos desígnios da sociedade arguida das seguintes circunstâncias:

- a de que, “Desde a sua constituição em 09.07.2021 até 13.06.2023 (data em que assumiu de novo a gerência de direito o arguido BB), foram registadas seis alterações ao nível da gerência da arguida “A..., Lda”;

- a de que “O arguido BB exerceu sempre a gerência de facto da sociedade, o que sucedeu mesmo quando deixou de ser representante legal da sociedade, ou seja, no período compreendido entre 15.11.2021 e 13.06.2023;”

- a de que “Neste período foram gerentes de direito ou nominal CC, sogra do arguido AA, a quem este convenceu a aceitar tal nomeação, por ser da conveniência do arguido BB, apesar de não ter qualquer ligação funcional com a sociedade arguida – veja-se a missiva junta aos autos a fls. 84 que CC dirigiu ao Diretor Finanças de Aveiro.”

- a de que “Á semelhança do que sucedeu posteriormente com o arguido AA, o arguido BB emitiu uma declaração em que assume a gerência de facto da sociedade, desonerando esta representante legal.”

- a de que “A designação como gerente de direito do arguido AA não foi, tal como pretende o arguido fazer crer, ocasional e motivado por um problema de saúde do arguido BB (tal como declarou), …”.

Ora, o recorrente parte das condutas acima descritas, nomeadamente, as anteriores alterações da titularidade da gerência e da justificação clínica para as mesmas, as quais, sublinhamos, foram imputadas apenas ao arguido BB, para retirar a conclusão, sem mais, de que “Este modo de proceder não só não era desconhecido do arguido AA(…)”:

Diga-se, desde já, que o recorrente carece de razão, pois que, sendo incontestável a inexistência de outra prova testemunhal ou documental, é inviável retirar daquelas condutas perpetradas pelo arguido BB qualquer conclusão quanto ao modo de exercício da gerência por parte do arguido AA ou quanto ao conhecimento de que este teria relativamente às decisões e atos levados a cabo pelo seu pai, co-arguido os autos, no exercício da gerência de facto que a este é atribuída.

E na ausência de indícios suficientes para que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança, bem andou o juiz a quo ao proferir a decisão recorrida, decidindo pela não pronúncia do arguido.


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2.3.2 Responsabilidade penal do Administrador de Direito

Questão conexa com a anterior é a de saber se o arguido AA, na qualidade de mero administrador de direito, ainda assim, violou um dever de agir consubstanciado numa omissão com consequência penais.

Referiu o tribunal recorrido ao salientar que “a chamada gerência de facto de uma sociedade comercial consiste no efectivo exercício das funções que lhe são inerentes e que passam, nomeadamente, pelas relações com os fornecedores, com os clientes, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade.

A mera inscrição no registo como gerente não constitui base factual bastante para se concluir pelo exercício dessa gerência, sendo necessário apurar que actos de gerência foram praticados durante o período a que se reporta a matéria delituosa” - cfr. Acórdão do TR de Guimarães de 26.04.2022, in www.dgsi.pt.

(…)

Com efeito, não há qualquer presunção legal que faça decorrer da qualidade de gerente nominal ou de direito, o efectivo exercício da função e que faça inverter o referido ónus de prova que recai sobre o estado, cumprindo salientar que da inscrição no registo comercial da nomeação de alguém como gerente apenas resulta a presunção legal (art.º11º do Código do Registo Comercial) de que o nomeado é gerente de direito, não de que exerce efectivas funções de gerência”.”

A este propósito Germano Marques da Silva, na sua obra “Responsabilidade Penal dos dirigentes das Sociedades[3], salienta: “Importa insistir na ideia de que na nossa lei ninguém pode ser criminalmente responsável apenas em razão das suas qualidades ou situações funcionais e também nisso se distingue a responsabilidade criminal da responsabilidade politica ou moral, o que é importante acentuar neste tempo ….A responsabilidade penal é pessoal, o que significa que não há responsabilidade por facto de outrem, ou seja, é responsável só e todo aquele as quem é objectiva e subjectivamente imputável o facto ilícito.

(…)

1. A questão central de que nos devemos ocupar consiste na definição do critério para a individualização da pessoa física responsável pelos crimes societários. A propósito devemos assentar três premissas:

a) o princípio básico é o da personalidade da responsabilidade penal, segundo o qual os «responsáveis» não podem ser senão os agentes efectivos do facto ilícito;

(…)”.

E a propósito da distinção entre administrador de direito e administrador de facto diz o mesmo autor (ob.cit.pág.29 e ss) “…o conceito de administrador de direito é aquele que é empossado nos termos legais e estatutários para exercer a função de administrador. O administrador de facto é a pessoa que exerce efetivamente os poderes do cargo embora não tenha sido designado nos termos legais ou a posse do cargo sofre de qualquer vício.(…)

II. O art. º12 do Código Penal contempla ambas as situações: o que importa é que a pessoa que aja voluntariamente como administrador…Compreende-se bem que assim seja. O direito penal estabelece comandos, ou seja, impõe e proíbe determinadas condutas e fá-lo para proteger bens jurídicos penalmente relevantes. O que especialmente releva é que esses bens não sejam ofendidos por quem tem o dever de não os ofender, importando pouco ou nada… as qualidades formais daquele que os ofende.”

Ora, a questão que importa esclarecer é a de saber em que circunstâncias o gerente sem efectividade de funções, mas meramente de direito, isto é, aquele que não assume, voluntariamente, as funções inerentes a tal cargo, tem o dever de agir. Entende o já citado Professor Germano Marques da Silva[4] que tal gerente meramente de direito tem de ser responsabilizado pela sua omissão desde que se verifiquem os demais pressupostos da responsabilização. E dá como exemplo o caso em que “o administrador de direito sabe que a pessoa a quem confiou a gestão efectiva da sociedade não está a cumprir os seus deveres fiscais, não procedendo à entrega do IVA cobrado aos seus clientes, preenchendo desse modo o tipo legal do abuso de confiança fiscal e nada faz para que a sociedade cumpre o dever que a lei lhe impõe sobre pena de cometer aquele crime.

O caso dos autos, porém, não cabe nesta hipótese pois que dos factos indiciados não resulta que o arguido AA tivesse conhecimento do modo como o seu pai e co-arguido geria a sociedade arguida, em qualquer das suas variáveis, nomeadamente, que este último não estivesse a cumprir as obrigações fiscais da sociedade. E assim sendo, não é viável imputar-lhe a violação de um dever de agir com reflexos na sua responsabilidade penal, a qual permita equacionar um grau maior de probabilidade na sua condenação pelo crime de que vem acusado do que a sua absolvição.

Razão pela qual se decide manter a decisão recorrida, negando provimento ao recurso.


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3- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando a decisão recorrida.

Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público – art.º522 do C.P.P:


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Notifique.

(Elaborado e revisto nos termos legais – art. 94º n.º 2, do CPP)


Data e assinaturas electrónicas no canto superior esquerdo do documento.
Porto, 28/5/2025
Maria Ângela Reguengo da Luz
Pedro M. Menezes
Paula Guerreiro
____________
[1] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol I, 1984, pág.133.
[2] Cfr. entre outros, o Ac. TRP de 07-12-2016 (Manuel Soares), in www.dgsi.pt.
[3] da Universidade Católica Editora, pág.11;
[4] Ob.citada, pág.30 e ss.;