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APELAÇÃO
ADMISSIBILIDADE
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
COMPETÊNCIA MATERIAL
ACÇÃO COMUM
AMBIENTE
NORMAS URBANÍSTICAS
Sumário
I. Não é admissível recurso de apelação autónomo e intercalar contra a decisão, proferida no despacho saneador, que julga improcedente a excepção de ilegitimidade. II. Cabe aos tribunais judiciais o conhecimento de uma acção que decorre entre o Ministério Público e um particular, na qual se pede a reposição de imóveis no estado em que se encontravam antes de serem ilegalmente alterados, em violação de normas urbanísticas e para defesa do direito ao ambiente. (Sumário elaborado pelo Relator)
Texto Integral
Acordam os Juízes da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa
I. O relatório
O Ministério Público
interpôs a presente acção comum, contra Libustemar - Gestão de Imóveis Lda,
peticionando: Nestes termos, atento o valor ecológico da área, a necessidade de assegurar a conservação dos valores naturais (flora, fauna, paisagem, solo e água), um baixo nível de intervenção humana e a gestão do território, deve a presente ação ser julgada procedente e, em consequência, ser proferida decisão que condene a ré: 1. A não autorizar/tolerar novas construções no prédio rústico ou abertura de caminhos. 2. A remover, em prazo que se afigura razoável fixar entre 60 a 90 dias, a expensas suas, todas as construções existentes no prédio. 3. A selar, a expensas suas, o furo de captação de água. 4. A limpar, em prazo que se afigura razoável fixar entre 60 a 90 dias a expensas suas, o prédio por forma a repor o coberto vegetal natural. 5. Relativamente a cada um dos pedidos, com vista a assegurar o efetivo respeito, pede-se que, nos termos do art.º 829º-A do C. Civil, seja aplicada e fixada sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento, no montante de 500,00€ (quinhentos euros).
A ré contestou, impugnando motivadamente parte da factualidade vertida na petição inicial e terminando: NESTES TERMOS Deve a presente ação ser julgada não provada e improcedente e, consequentemente: a) Deve a Ré ser absolvida da instância com fundamento na verificação das excepções de (i)incompetência absoluta do tribunal por se tratar de matéria sujeita pela lei e pela Constituição à jurisdição administrativa e (ii) ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário. Assim não se entendendo, no que se não concede, b) Deve a Ré ser absolvida do pedido por ser manifesta a improcedência dos fundamentos que sustentam os pedidos formulados nos autos e os mesmos violarem de forma flagrante o direito de propriedade e os princípios da necessidade e proporcionalidade constitucionalmente consagrados.
O Digno Autor respondeu, propugnando pela improcedência das excepções.
Com dispensa de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, onde se decidiu: 3. Improcede, em consequência, a exceção de incompetência absoluta invocada pela R.. 3. Improcede, assim, a exceção da ilegitimidade passiva invocada pela R..
Mais foi delimitado o objecto do litígio e foram selecionados os temas da prova.
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Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões: I. É manifesta a procedência do presente recurso porquanto o douto Despacho Saneador recorrido não fez correta interpretação da causa de pedir e dos pedidos formulados pelo ora Recorrido, tendo em consideração o objeto do litígio fixado no mesmo Despacho Saneador. II. O entendimento sustentado na decisão recorrida reporta-se ao facto de o Tribunal a quo ser materialmente competente para dirimir o litígio sub judice, tendo em conta que a presente ação cível foi intentada pelo Ministério Público com fundamento na legitimidade que a Lei de Bases da Política de Ambiente confere para a "tutela plena e efetiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos em matéria de ambiente" (cfr. n.º 1 do artigo 7.º da referida Lei). III. Sucede que, na sua petição inicial, o então Autor configurou a causa de pedir e os pedidos formulados como se tratando de uma alegada violação das normas constantes do PDM Almada, do Plano de Ordenamento da Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa da Caparica e do RJREN. IV. Com efeito, da ação tal como configurada pelo Autor, nos presentes autos está em causa a apreciação do cumprimento dos pressupostos urbanísticos legais e regulamentares no que concerne às "construções" implantadas no terreno propriedade da Recorrente, bem como a sua responsabilidade na autorização para tal implantação, ainda que os mesmos possam ter indiretamente repercussões no ambiente e qualidade de vida. V. Assim sendo, o verdadeiro objeto da presente ação compreende a apreciação do cumprimento dos pressupostos urbanísticos legais e regulamentares no que concerne às "construções" implantadas no terreno propriedade da Recorrente e da aplicação de medidas de tutela da legalidade urbanística do referido terreno. VI. As normas constantes dos instrumentos normativos cuja violação o Autor invoca como causa de pedir consubstanciam normas de direito administrativo, designadamente, normas urbanísticas, ainda que tenham como ratio a proteção do ambiente e da qualidade de vida, enquanto cumprimento da tarefa cometida pelo legislador ao Estado, prevista no artigo 66.º, n.º 2, alínea a) da Constituição da República Portuguesa. VII. A violação de uma das normas previstas no Regulamento do PDM Almada, no Regulamento do Plano de Ordenamento da Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa da Caparica e no RJREN consubstanciar-se-á numa violação de normas urbanísticas, a qual apenas poderá ser concretamente apurada pelos tribunais administrativos e fiscais. VIII. O próprio artigo 4.º, n.º 1, alíneas a) e h) do ETAF preveem, respetivamente, que é da competência dos tribunais administrativos e fiscais "[a] tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais", a "[c]ondenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime", e "[a] condenação à adoção ou abstenção de comportamentos, pela Administração Pública ou por particulares" pelo que, ante os pedidos formulados pelo então Autor configurados na condenação de um particular à adoção ou abstenção de comportamentos, com fundamento em violação de normas urbanísticas, infere-se a sua subsunção às referidas normas. IX. Por sua vez, o artigo 2.º, n.º 2 do CPTA estabelece que: "[a] todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, designadamente para o efeito de obter: (...) h) A condenação à adoção ou abstenção de comportamentos, pela Administração Pública ou por particulares", confirmando, assim, que a apreciação de litígios de caráter condenatorio à adoção e abstenção de comportamentos por parte da Recorrente, em virtude de normas urbanísticas - alegadamente - violadas está sujeita à jurisdição administrativa e fiscal. X. O artigo 7.º da Lei de Bases do Ambiente não configura uma norma atributiva de competência aos tribunais, pelo que a apreciação de uma ação como a presente não deverá caber aos tribunais judiciais, que nesta matéria e como bem referido no despacho recorrido apenas têm competência genérica ou residual. XI. A ação está configurada pelo Autor como tendo uma causa de pedir marcadamente jusurbanística e com pedidos que visam justamente repor a alegada legalidade urbanística, o que apenas poderá ser apreciado e julgado pelos tribunais administrativos e fiscais, in casu, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada. XII. O tribunal exclusivamente competente para conhecer dos pedidos formulados pelo Recorrido é o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada e não o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. XIII. Pelo que, o despacho recorrido padece de erro de julgamento quanto às normas de competência aplicáveis, devendo o mesmo ser revogado e julgada procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal, com a consequente absolvição da Ré, aqui Recorrente, da instância, nos termos dos artigos 96.º, alínea a), 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a) e 577.º, alínea a) do CPC. XIV. O despacho recorrido padece ainda de erro de julgamento e violação do disposto nos artigos 30.º e 33.º do CPC. XV. Com efeito, a Ré, ora Recorrente, não sendo a proprietária das habitações que se pretende nos autos sejam "removidas" - mas apenas proprietária do solo no qual as mesmas se encontram implantadas -, não tem capacidade nem legitimidade jurídicas para executar uma eventual decisão condenatória que venha a ser proferida nos presentes autos, porquanto não dispõe de poderes para "remover" casas que são propriedade de terceiros e despejar as pessoas que nelas habitam. Nem para impor coercivamente, por qualquer modo, que os proprietários daquelas estruturas as removam ou procedam à sua demolição. XVI. Para que uma eventual sentença condenatória produza efeitos úteis, ou seja, para que seja possível executar a uma decisão judicial de condenação na "remoção" das referidas habitações, é necessário que sejam os seus proprietários condenados a remover as suas casas, na qualidade de partes na ação. Pois, só assim lhe será oponível a decisão judicial e só assim a mesma poderá ser coercivamente executada. XVII. Verifica-se, assim, sem qualquer margem para dúvida, uma situação de litisconsórcio necessário, que foi preterido e gera a ilegitimidade passiva da Ré, ora Recorrente. XVIII. Pelo que, deve também neste ponto, o presente recurso ser julgado provado e procedente, absolvendo-se a Ré, ora Recorrente, da instância com tal fundamento.
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O Ministério Público contra-alegou, propugnando pela improcedência do recurso.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, em separado e efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos, por despacho do relator, foi concedido às partes prazo para, querendo, se pronunciarem sobre a admissibilidade do recurso, no segmento respeitante à apreciação da excepção de ilegitimidade – nenhuma das partes responderam.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. *
II. O objecto e a delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
Admissibilidade do recurso, no segmento respeitante à apreciação da excepção de ilegitimidade.
Competência material do tribunal recorrido.
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III. Os factos
Encontra-se provada a factualidade supra exposta.
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IV. O Direito Admissibilidade do recurso, no segmento respeitante à apreciação da excepção de ilegitimidade.
Como é sabido, o Código de Processo Civil admite dois regimes diversos, no que tange ao recurso de apelação, no art.º 644º:
a) São susceptíveis de recurso imediato as decisões que ponham termo ao processo, procedimento cautelar ou incidente autónomo, bem como as decisões tipificadas no nº 2 do referido preceito;
b) As restantes decisões, independentemente da sua natureza, apenas podem ser impugnadas juntamente com o recurso de alguma das decisões previstas no nº 1 ou, se este não existir, em recurso único a interpor depois de a mesma transitar em julgado, desde que a impugnação tenha interesse autónomo para a parte, nos termos do nº 4, ambos do citado preceito.
Como refere Abrantes Geraldes, Recursos…, pg. 217, será caso de decisão intercalar que não admite recurso de apelação autónomo intercalar, O despacho saneador que, fora dos casos referidos no nº 1, al. b), aprecia alguma excepção dilatória (que não a de incompetência absoluta a que se reporta a al. b) do nº 2), sem que dele resulte a absolvição total ou parcial da instância.
No caso, estamos perante uma decisão que julgou improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade.
Tanto basta para concluir pela inadmissibilidade deste recurso de apelação, no segmento respeitante à apreciação da excepção de ilegitimidade.
Pelo exposto, não admitimos o presente recurso de apelação, nesta parte.
* Da competência material do tribunal recorrido.
No despacho saneador em crise, a Exma. Juiz a quo julgou improcedente a excepção de incompetência do tribunal recorrido, por não considerar competentes os tribunais administrativos.
Com o termo “jurisdição” designa-se o poder de julgar que, dentro da organização do Estado, é genericamente atribuído ao conjunto dos tribunais (cfr. art.º 202.º da Constituição da República) - representando a “competência” o fraccionamento do poder jurisdicional entre os diferentes tribunais.
Também se alude, com um alcance mais amplo, à “jurisdição” como o poder genericamente atribuído a certa categoria de tribunais em face das restantes categorias de tribunais, razão pela qual se diz, no art.º 109º, nº 1 do Código de Processo Civil que “há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas atividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão (...)”.
Assim, pertencendo os tribunais judiciais e os tribunais administrativos a ordens/categorias/espécies jurisdicionais diferentes (cfr. art.º 209º da Constituição da República), a questão é em substância uma questão de competência material.
E para a determinação desta competência, como ensinava o Prof. Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil”, página 95), “a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objeto, encarado sob um ponto de vista qualitativo - o da natureza da relação substancial pleiteada"; ou seja, é a partir da relação material controvertida (da relação jurídica objeto do litígio) configurada pelo autor - da causa de pedir invocada, da pretensão deduzida e da identidade das próprias partes - que se determina a competência material do tribunal.
Competência material que, de acordo com o artigo 38º, nº1 da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário - LOSJ), se fixa no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.
Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 7/11/2017, disponível em www.dgsi.pt: I- A competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da relação jurídica controvertida tal como é configurada pelo autor, em termos do pedido e da causa de pedir e da própria natureza dos sujeitos processuais. II- Competência essa que se fixa, de acordo com tal configuração, no momento da propositura da causa, sendo, como regra, irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.
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Alega a recorrente, a este respeito, que XI. A ação está configurada pelo Autor como tendo uma causa de pedir marcadamente jusurbanística e com pedidos que visam justamente repor a alegada legalidade urbanística, o que apenas poderá ser apreciado e julgado pelos tribunais administrativos e fiscais, in casu, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.
Dispõe o artigo 7.º, da Lei número 19/2014, de 14 de Abril, com a epígrafe «Direitos processuais em matéria de ambiente» que: "1 - A todos é reconhecido o direito à tutela plena e efetiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos em matéria de ambiente. 2 - Em especial, os referidos direitos processuais incluem, nomeadamente: a) O direito de ação para defesa de direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos, assim como para o exercício do direito de ação pública e de ação popular; b) O direito a promover a prevenção, a cessação e a reparação de violações de bens e valores ambientais da forma mais célere possível; c) O direito a pedir a cessação imediata da atividade causadora de ameaça ou dano ao ambiente, bem como a reposição da situação anterior e o pagamento da respetiva indemnização, nos termos da lei.”
Pelo que, a referida disposição legal, não contempla procedimento processual específico para que o Digno Autor faça valer os direitos consagrados na lei,
Assim, há que utilizar a ação declarativa comum regulada no Código de Processo Civil, atento o princípio da adequação entre o direito e a ação destinada a fazê-lo reconhecer em juízo (artigo 2.º, nº2 do Código de Processo Civil).
A presente ação declarativa comum pode ser instaurada no Tribunal Cível, pois são da competência dos Tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, conforme dispõem os artigos 213.º, 1º, 214.º, 3., da Constituição da República Portuguesa, 64.º, do Código de Processo Civil e 144.º, número 2., da Lei da Organização Judiciária.
De acordo com o artigo 4.º, número 1., alínea k), da Lei nº 13/2002, de 8 de Outubro, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à «prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas».
A proteção jurisdicional do ambiente é da competência dos tribunais comuns ou administrativos, consoante a natureza pública ou privada do autor da infração ambiental e a condição em que atua - artigo 4.º, número 1., alínea l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Cfr, JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DIAS, Direito Constitucional e Administrativo do Ambiente, Coimbra: Almedina, 2001, pág. 31 e seguintes), «[...] por outro lado, estando em causa violações de normas jusambientais perpetradas por entidades privadas (não exercendo funções materialmente administrativas) sem base em acto autorizativo, há uma situação de alternativa, devendo os autores populares provar a denúncia prévia da situação às autoridades competentes e a sua inércia para poderem recorrer aos tribunais administrativos. Sem esta operação prévia, o litígio terá uma coloração puramente privada — apesar da natureza pública do bem lesado ou ameaçado de lesão —, que permitirá o conhecimento pelos tribunais comuns (sem a presença da Administração em juízo, naturalmente)» (CARLA AMADO GOMES, Não pergunte o que o ambiente pode fazer por si; pergunte-se o que pode fazer pelo ambiente!, 2009, acedido em: https://www.icjp.pt/sites/default/files/media/390-447.pdf).
Assim sendo e no caso em apreço, concordamos com as conclusões do Digno Autor: 2. Na lógica da configuração oferecida pelo autor à sua pretensão, o que está em discussão é a não autorização de novas construções no prédio rústico ou abertura de caminhos e a remoção de todas as construções existentes, 3. Os pedidos formulados não incidem sobre qualquer ato administrativo, ato de gestão pública ou praticado por entidade pública. (Sublinhado nosso) 4. A recorrente é uma pessoa de direito privado e a tutela judicial aqui peticionada sob a forma de ação civil, é a forma própria para o efeito (artigos 213.º, 1º, 214.º, 3., da Constituição da República Portuguesa, 64.º, do Código de Processo Civil e 144.º, número 2., da Lei da Organização Judiciária, o artigo 7.º, da Lei número 19/2014, de 14 de Abril, artigo 4.º, número 1., alínea l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Neste sentido, veja-se o Acórdão desta Secção e relatado pela Exma. Ora 2ª Adjunta, de 07/11/2019, disponível para consulta em www.dgsi.pt: "Ao Ministério Público compete exercer a ação pública. Por isso, tem legitimidade para instaurar ações cíveis para defesa do direito ao ambiente como previsto no artigo 7º nº 2 al. a) da Lei das Bases da Política do Ambiente.”
Veja-se, do Tribunal dos Conflitos, o Acórdão de 19/4/2022, relatado por Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, disponível na mesma base de dados: Cabe aos tribunais judiciais o conhecimento de uma acção que decorre entre particulares e na qual se pede a reposição de imóveis no estado em que se encontravam antes de serem ilegalmente alterados, em violação de normas urbanísticas, bem como uma indemnização pelos danos causados em consequência dessas alterações.
Retirando-se da fundamentação deste Acórdão o seguinte trecho decisivo: não prejudica em nada a competência reclamada dos tribunais comuns o facto de se convocarem, para decisão, normas de direito público, de índole administrativa, entre os fundamentos de direito em que também repousa a decisão sobre direitos privados, visto o preceituado no art.º 96 .º, n.º 1, do CPC, atribuindo à jurisdição cível a assistência da plenitude de poderes para delas conhecer, inclusive dos incidentes, que se têm de compreender com o sentido lato de questões (cfr. Prof. José Alberto dos Reis, CPC, Anotado, 1, 236), nela suscitadas.” Também o actual Código de Processo Civil, no respectivo artigo 92.º, resolve o problema da (eventual) necessidade de conhecimento, em acções cíveis, de questões prejudiciais de natureza administrativa, por via da suspensão da acção ou da extensão da competência do tribunal, nos termos ali previstos.
Pelo que, concluímos, mostra-se materialmente competente o tribunal recorrido, nenhuma crítica havendo a fazer à decisão recorrida.
Daí a improcedência da apelação.
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V. A decisão
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em:
a) Não admitir o presente recurso de apelação, no segmento da decisão recorrida que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade e,
b) No restante, julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
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Lisboa e Tribunal da Relação, 5 de Junho de 2025 Nuno Lopes Ribeiro Vera Antunes Anabela Calafate