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LIQUIDAÇÃO DO ACTIVO
VENDA DE IMÓVEL
MASSA INSOLVENTE
NULIDADE DA VENDA
Sumário
(cfr. nº 7, do art.º 663º, do CPC): I. O legislador do CIRE pôs, em larga medida, de lado todos os princípios relativos à invalidade da venda em ação executiva e veio a consagrar, nos artigos 163.º e 164.º do CIRE, uma solução diversa em que é conferida proteção ao adquirente do bem em relação aos interessados processuais, em particular aos credores, mas também ao insolvente. II. Este desequilíbrio é mitigado por via da ineficácia dos atos de alienação de bens que, violando o disposto nos art.º 161º e 162º do CIRE, venham a gerar obrigações para a massa insolvente que excedam manifestamente as da contraparte, ou seja, do adquirente dos bens (art.º 163º, n.º 1 do CIRE) e também pela responsabilização do Administrador da Insolvência nos termos do n.º 3 do art.º 164º. III. Desta forma, a violação das formalidades legais previstas nos artigos 161º e 162º, não geram, só por si, a ineficácia da venda efetuada sem o cumprimento das mesmas, a menos que venha a gerar obrigações para a massa insolvente que excedam manifestamente as do adquirente do bem. IV. Não consagrando o CIRE meio processual para o efeito, é acertada a conclusão do despacho recorrido no sentido de que a pretensão de declaração de ineficácia dos atos do administrador da insolvência, deitando mão do disposto no n.º 1 do artigo 163.º do CIRE, tem que ser deduzida em ação declarativa que correrá por apenso ao Processo de Insolvência, não podendo, assim, o juiz do processo decidir essa matéria de forma incidental, no processo principal. V. A jurisprudência recente do Tribunal Constitucional, ao julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da CRP, a norma contida nos artigos 163.º e 164.º, n.ºs 2 e 3, do CIRE, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada, marcando uma evolução jurisprudencial, surge no âmbito das consequências da venda de bens onerados com direitos reais de garantia em violação do disposto no nº 2 do art.º 164º do CIRE, por via da aplicação do art.º 163º do mesmo diploma aos casos ali previstos. VI. Esta jurisprudência, resultante da questão debatida a propósito do art.º 164º do CIRE, é inaplicável ao disposto nos arts. 161º e 162º do CIRE, dado o teor literal do art.º 163º do mesmo diploma que prevê que “a violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, exceto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte.”
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
1. “A” e “B” foram declarados insolventes por sentença de4/03/2020, transitada em julgado.
2. Foi dispensada a realização de assembleia de apreciação do relatório, apresentado relatório e determinado, por despacho de 30/04/2020, o prosseguimento dos autos com a liquidação do ativo.
3. Em 17/04/2020, a Sra. Administradora da Insolvência procedeu à apreensão do prédio urbano - verba n.º 1 - terreno para construção - descrito (…) sob o n.º (…) da freguesia de (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), no qual foi implementado um imóvel com dois pisos, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e sob o artigo (…), com um valor patrimonial de 351.893,55€, apreensão que veio a ser retificada por auto de 3/07/2021.
4. Por despacho de 28/09/2020 foram julgadas válidas as apreensões.
5. Foi realizado leilão eletrónico para venda do imóvel através da modalidade de venda de leilão eletrónico, por via da plataforma E-leilões pelo montante de 242.250,00€, tendo-se frustrado a venda porquanto apenas foi alcançado um registo de oferta no montante de 149.768,93€.
6. Foram interpelados os credores hipotecário de 1.º e 2.º grau e os devedores, para emissão de pronúncia quanto à redução do preço de venda para 85% do preço anteriormente anunciado e quanto à realização de nova diligência de venda através da plataforma E-Leilões.
7. Não tendo sido manifestada qualquer oposição, foi promovida a venda do imóvel, através de leilão eletrónico, por via da plataforma E-leilões, tendo sido obtido um registo de oferta no 143.622,00€, a qual submetida à consideração do credor hipotecário e dos devedores, foi recusada.
8. Após ter sido recolhido o devido consentimento para nova redução do preço de venda, foi promovida nova diligência de venda do imóvel, através de leilão eletrónico por via de encarregado de venda, tendo a referida diligência decorrido entre 1 e 15 de dezembro de 2021, tendo a sido publicitada pelo valor de 175.025,63 €.
9. Não foi obtida qualquer proposta de compra.
10. Nessa sequência foi o credor hipotecário interpelado para querendo, apresentar proposta de compra à massa.
11. Por requerimento de 7/03/2022 os devedores “A”, e mulher “B” vieram, em virtude da informação prestada pela Exma. Sra. Administradora de Insolvência, quanto à proposta de compra do imóvel constante na verba nº 1 pelo Credor hipotecário, pelo valor de 142.200,00 €, bem como da sua aceitação e adjudicação do referido ao Proponente, apresentar reclamação da mesma, requerendo, que: “Declarada nula a decisão da Exma. Sra. Administradora de Insolvência e, consequentemente ser revogada a sua decisão de aceitação da proposta e adjudicação do imóvel ao credor hipotecário Proponente, com todas as consequências legais daí resultantes;// 2) Suspensa a venda e entrega do imóvel, tendo em conta que o mesmo constitui casa de habitação própria dos Insolventes, ao abrigo da Lei nº 4-B/2021, com todas as consequências legais daí resultantes.”
12. Sobre este requerimento incidiu despacho de 14/03/2022, mediante o qual se decidiu indeferir o peticionado sobre o ponto 1) (nulidade da decisão da Sra. AI e consequentemente revogação da sua decisão de aceitação da proposta e adjudicação do imóvel ao credor hipotecário), e sob o ponto 2), despacho que transitou em julgado.
12. Em 22/04/2022 a Sra. Administradora da Insolvência apresentou informação quanto ao estado da liquidação informando ter aceite a proposta de compra do credor hipotecário pelo valor de 142.200,00 €, mais informando que tendo em conta o despacho de 14/03/2022, interpelou o credor hipotecário no sentido de proceder ao depósito de 20 % do valor do preço proposto, e para agendamento da escritura pública de compra e venda, sendo que aguarda pelo depósito em falta.
13. Em 16/04/2024 a Sra. Administradora da Insolvência informou nos autos que o credor hipotecário, tendo cedido os créditos reconhecidos nos autos, deixou de ter interesse na aquisição do imóvel, pelo que, a adjudicação se considerou resolvida, tendo sido determinada nova venda por leilão eletrónico no portal e-Leilões.
14. Em 23.05.2024 foi enviada pela Sra. Administradora da Insolvência aos devedores e aos credores mensagem de correio eletrónio com o seguinte teor: De: (…) Enviado: 23 de maio de 2024 11:33 Para: (…) Cc: (…) Assunto: RE: Proc. 3555/19.2T8VFX “A” e “B” Anexos: 0107AP3555.19.2T8VFX Certidão de Encerramento de Leilão.pdf Exmos. Senhores Credores e Devedores, No seguimento do e-mail infra, vimos dar conhecimento a V/ Exas. da certidão de encerramento do leilão, que terminou com a apresentação de proposta de valor superior ao valor mínimo de venda, sendo que, serão iniciadas as diligências com vista à outorga da escritura de compra e venda. Ao V/ dispor para qualquer esclarecimento Atentamente, (…)
15. Em 24/05/2024 na sequência da comunicação referida os devedores, “A”, e mulher “B”, apresentaram requerimento que denominaram “reclamação” pedindo que a Sra. Administradora de Insolvência suste as diligências que se encontram em curso com vista à conclusão dos procedimentos de venda e seja declarada nula a decisão da Exma. Sra. Administradora de Insolvência de aceitação do valor proposto em causa e, consequentemente ser revogada a sua decisão de aceitação da proposta em causa e consequente adjudicação do imóvel.
16. Para o efeito alegaram em síntese que: Pela Exma. Sra. Administradora de Insolvência foi emitido o “Auto de Apreensão de Bens – Atualizado”, e junto no Apenso A, no dia 03.07.2020, no qual consta como verba n.º 1, o “prédio urbano – terreno para construção – descrito na (…) CRP de (…) sob o n.º (…) da freguesia de (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), no qual foi implementado um imóvel com dois pisos, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e sob o artigo (…) – RC/1.º, com um valor patrimonial de 351.893,55 €.// a Exma. Sra. Administradora de Insolvência veio agora informar, através de correio eletrónico remetido em 23.05.2024, pelas 11:33 horas (já junto como doc. 1), que o leilão eletrónico se deu por terminado com a apresentação de proposta para aquisição do imóvel em causa, alegadamente superior ao valor mínimo da venda, referindo-se à proposta com o ID n.º (…), de 22-05-2024, 11:54 horas, com o valor de 232.353,76 €, valor relativamente ao qual o que não se pode conceder// a referida proposta deve ser, desde logo, rejeitada, em virtude do atualmente verificado desfasamento sobre a identificação do bem apreendido e objeto de proposta de venda, decorrente da circunstância de, no terreno destinado a construção, que foi apreendido e objeto de proposta de compra, ter sido concluída uma habitação implantada na qual vivem os Insolventes// Desfasamento, esse, que provoca, consequentemente, um desfasamento sobre o valor a atribuir a tal bem (desde logo, quanto ao valor tributário), impondo-se alterar a decisão de venda, designadamente quanto ao valor, a qual deverá, necessariamente, ter em consideração a nova realidade (terreno e prédio urbano implantado no mesmo)// Não sendo, por tal razão, e desde logo, de aceitar a proposta que consta dos autos, devendo suspender-se a venda do imóvel e, consequentemente, as diligências de venda e da outorga da escritura de compra e venda do imóvel apreendido nos autos// conforme resulta da Caderneta Predial já junta, dúvidas não existem de que as duas frações autónomas e independentes supra referidas estão avaliadas nos seguintes valores: 1) CV – cave: com valor patrimonial de 213.305,03 €; 2) RC/1º: com valor patrimonial de 151.324,21 €.// Assim, não poderia a Exma. Sra. Administradora de Insolvência ter decidido com decidiu, nomeadamente aceitação e adjudicação do imóvel ora em discussão, pelo tão inferior valor de 232.353,76 €, incorrendo em nulidade, pelo que, também por esse motivo não poderá tal imóvel ser vendido pelo valor proposto em causa.// Aceitar-se o valor proposto em causa, estar-se-á perante uma situação a coberto da figura do enriquecimento sem causa consagrada no artigo 473.º do CC.// o preço da proposta revela-se francamente inferior ao valor corrente no mercado, para o tipo de imóvel com construções (designadamente habitação) em causa.// acresce que, face ao disposto no art.º 163º do CIRE existe um manifesto excesso das obrigações assumidas pela Massa Insolvente.
17. Pronunciou-se a Sra. Administradora da Insolvência conforme requerimento de 4/06/2024 pelo indeferimento do requerido considerando a nova “Reclamação” dos Insolventes mais um expediente para condicionar/impedir os procedimentos de liquidação do ativo apreendido, procedimento esse semelhante ao adotado em Março/2022, e que mereceu indeferimento por despacho datado de 14/03/2022. Mais informou que a diligência de venda, e subsequente adjudicação do imóvel, são do conhecimento das partes e do público, que teve hipóteses de concorrer à mesma, não constando uma vez mais dos autos qualquer evidência de proposta séria de montante superior.
18. Em 30/09/2024, o tribunal proferiu despacho julgando procedente a exceção dilatória de nulidade do processado por erro na forma aplicável, indeferindo, em consequência, o requerimento incidental apresentado pelos devedores em 24/05/2024.
Inconformados apelaram os devedores pedindo a revogação do despacho com as legais consequências, formulando as seguintes conclusões:
1) Conforme consta dos autos, vieram os Insolventes apresentar Reclamação no dia 24-05-2024, contra a decisão de iniciar as diligências com vista à outorga da escritura de compra e venda do imóvel apreendido nos autos, emitida pela Exma. Sra. Administradora de Insolvência/Fudiciária (…), o que fizeram nos termos acima reproduzidos;
2) Entendeu a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo que a forma processual própria para a alegação dos pressupostos da ineficácia do ato do administrador, nos termos do artigo 163.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), é a ação comum;
3) Sendo por isso, o requerido pelos Devedores (Insolventes) legalmente inadmissível, quando deduzido incidentalmente no processo de insolvência;
4) Assim, por decisão de fls., decidiu a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo: «… Pelo exposto, julgo procedente a exceção dilatória da nulidade do processado por erro na forma aplicável, e, em consequência, indefiro liminarmente o requerimento incidental. …»;
5) Salvo o devido respeito, não podemos concordar com a referida decisão;
6) Dúvidas não existem de que a aceitação da proposta por parte da A.I., necessitaria do consentimento prévio da assembleia de credores, por se tratar da prática de ato jurídico que assume especial relevo para o processo de insolvência – vide artigo 161.º, n.ºs 1, 2, 3, al. g) e 4 do CIRE;
7) Estamos, pois, perante a prática por parte da A.I. de ato especial de relevo sem que esta tenha adotado os procedimentos legais para tal, violando as referidas disposições legais, sendo o procedimento da venda inválido;
8) Invalidade essa que prejudica a eficácia do ato de aceitação da proposta por parte da A.I.;
9) A forma processual própria para a alegação dos pressupostos da ineficácia do ato do administrador não terá forçosamente de ser feita através de uma ação comum, tal como decidiu a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo;
10) Mas, tal como os Insolventes/Devedores fizeram, de forma incidental no processo de insolvência, mais concretamente no apenso de liquidação do ativo, perante o Juiz da insolvência;
11) É o que decorre dos art.s 91.º, n.º 1, 195º, n.º 1, 723.º, n.º 1, alíneas c) e d), e 839.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ao caso por força dos art.s 1.º (no sentido de que o processo de liquidação insolvencial é para todos os efeitos uma execução, com a particularidade de ser universal e 17.º, ambos do CIRE;
12) Dispõe o artigo 195.º, n.º 1, do CPC: “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa;
13) E dispõe o artigo 723.º, n.º 1, do CPC: “Sem prejuízo de outras intervenções que a lei especificamente lhe atribui, compete ao juiz: a) (…); b) (…) c) Julgar, sem possibilidade de recurso, as reclamações de atos e impugnações de decisões do agente de execução, no prazo de 10 dias; d) Decidir outras questões suscitadas pelo agente de execução, pelas partes ou por terceiros intervenientes, no prazo de cinco dias”;
14) Dispõe por sua vez o artigo 839.º, n.º 1, do CPC: “Além do caso previsto no artigo anterior, a venda só fica sem efeito: a) (…); b) (…); c) Se for anulado o ato da venda, nos termos do artigo 195.º”;
15) Não faria sentido, que estando em causa uma questão incidental surgida no domínio da liquidação e com repercussão direta sobre o processo de insolvência – cujo decurso se quer urgente e cuja liquidação do ativo se quer ver tratada com prontidão – se admitisse o recurso a um meio processual autónomo – ação de processo comum – para a sua apreciação jurisdicional;
16) A invocação, apreciação e decisão do cerne da controvérsia em causa só pode ter lugar nos próprios autos da liquidação insolvencial, pois trata-se da apreciação do aí ocorrido, impondo-se a intervenção da totalidade dos interessados, garantindo-se desse modo o devido contraditório e a obtenção de uma decisão vinculativa para o universo dos interessados;
17) Esta tutela não seria possível de garantir num quadro de posterior instauração de ações autónomas e dispersas, pois, para além da necessária delimitação dos sujeitos, tal potenciaria a contradição de julgados;
18) A decisão da Meritíssima Juiz a quo, baseou-se na norma prevista no artigo 163º do CIRE, a qual dispõe “A violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”;
19) Conforme foi alegado pelos Insolventes/Devedores, a A.I. no procedimento de venda do prédio urbano que constitui a verba n.º 1 do Auto de Apreensão de Bens, violou o disposto nos n.ºs 1, 2, 3, al. g) e 4, do artigo 161º do CIRE, e em que as obrigações por ela assumidas excedem manifestamente as da contraparte;
20) Devendo, por isso, neste caso, serem os atos praticados pela A.I. no procedimento de venda considerados ineficazes, sem que os Insolventes/Devedores tenham de lançar mão de ação comum;
21) Acresce ainda, que a decisão tomada pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo viola o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa;
22) O art.º 20º, nº 1, da Constituição da República estatui: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos” e o n.º5 – “Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”;
23) A decisão recorrida, baseou-se na norma prevista no artigo 163.º do CIRE;
24) Esta norma foi considerada inconstitucional por Ac. STJ de 04.04.2017 , cujo sumário a seguir se reproduz: “A interpretação que o acórdão recorrido acolhe, no que respeita ao art.º 163.º do CIRE, sentenciando que um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela actuação do administrador da insolvência, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar tal questão perante o juiz do processo, e que a decisão judicial proferida na 1.ª instância, que decretou a pedida nulidade daquela venda, é ilegal por o acto ser eficaz, restando ao lesado intentar acção de responsabilidade civil contra o administrador da insolvência, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados; viola o art.º 20.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, por não assegurar, imediatamente no processo, tutela efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de pronta intervenção do julgador.”;
25) O referido acórdão que diz respeito a credor hipotecário que se insurgiu judicialmente contra os atos do A.I., pode e deve ser igualmente aplicável ao presente caso, em que quem se insurge judicialmente contra os atos do A.I. são os Insolventes/Devedores, devido à invalidade do procedimento de venda;
26) Isto porque os factos e a solução jurídica que aos mesmos é dada é semelhante em ambos os casos;
27) A decisão recorrida foi baseada em norma cuja interpretação foi julgada inconstitucional no referido Acórdão;
28) A decisão recorrida é também ela inconstitucional, por ofender o artigo 20º, n.ºs 1 e 5 da CRP;
29) Pelo que deve a decisão recorrida ser Revogada pelos fundamentos de facto e de direito acima expostos, o que desde já se requer com todas as consequências legais daí resultantes;
30) Por outro lado, é conhecida a natureza urgente do processo de insolvência, constante no artigo 9.º do CIRE, no qual está bem patente os princípios da celeridade, eficiência e economia processual que não se coadunam com este tipo de condutas processuais;
31) Os princípios da celeridade, da eficiência e da economia processual prescrevem que as normas legais sejam aplicadas e interpretadas de modo a privilegiar uma condução do processo ágil, adequada e económica;
32) Tais princípios não se podem considerar como tendo sido respeitados, ao não apreciar e decidir as questões que lhe foram colocadas e obrigando os Recorrentes a instaurar uma nova ação (ação comum) para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, com todas as implicações que isso acarreta;
33) Pelo que não se compreende assim a decisão tomada pela Meritíssima Juiz, devendo a decisão de fls. ser revogada, com todas as consequências legais daí resultantes;
34) Verifica-se, assim, que no Despacho recorrido não se procedeu a uma correta interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis ao caso em concreto;
35) Sofrendo o Despacho recorrido de nulidade por violação do disposto nas al. c) e d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC;
36) Nulidade que aqui se invoca com todos os efeitos legais;
37) Lendo, atentamente, a decisão recorrida, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto suscetível de revelar, informar, e fundamentar, a real efetiva situação, do verdadeiro motivo do não deferimento da pretensão dos Recorrentes;
38) A decisão recorrida viola o disposto no artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), uma vez que segundo esta disposição Constitucional, “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na Lei”;
39) A decisão recorrida não é de mero expediente, daí ter de ser suficientemente fundamentada;
40) E, a decisão recorrida viola o disposto no artigo 204.º da CRP, uma vez que esta norma é tão abrangente, que nem é necessário que os Tribunais apliquem normas que infrinjam a Constituição, basta apenas e tão só, que violem “os princípios nela consignados”;
41) Na verdade, a decisão recorrida viola os princípios consignados na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente consignados nos artigos 13.º e 20.º já acima invocado;
42) O artigo 13.º da CRP dispõe: “1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.”
43) Com a decisão recorrida os Recorrentes são discriminados e tratados de forma diferente e sem motivo para tal;
44) E a decisão recorrida viola o disposto no artigo 202.º da CRP., nomeadamente o n.º 2, uma vez que: “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos... e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”, circunstância que não se verifica no presente caso;
45) Isto é, o (Tribunal) com a decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos dos Alegantes, ao não fundamentar exaustivamente a sua decisão, e nem sequer aplicar a as normas legais aplicáveis ao caso em concreto;
46) A Meritíssima Juiz limitou-se apenas e tão só, a emitir um Despacho “economicista”, isto é, uma decisão onde apenas de uma forma simples e sintética foi apreciada a questão, sem ter em conta os elementos constantes no processo, o decurso do processo e os princípios dele decorrentes;
47) Deixando a Meritíssima Juiz de se pronunciar sobre algumas questões que são essenciais à boa decisão da causa, nomeadamente as acima expostas, e fechando olhos aos deveres que lhe são impostos;
48) Mesmo que assim se não entenda, o Despacho recorrido tem de ser revogado por outro motivo;
49) O Despacho recorrido não está fundamentado, tanto de facto como de direito, tendo em conta o disposto no n.º 1 do artigo 154.º do CPC: “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”;
50) E, nos termos do n.º 2 da mesma norma legal/processual: “A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição”;
51) Neste caso em concreto, a Meritíssima Juiz não fundamentou de facto e de direito a sua decisão;
52) Cometeu, pois, uma nulidade;
53) Assim, deverá ser REVOGADA a decisão recorrida;
54) O Despacho sob recurso violou:
− O disposto nos artigos 1.º, 9.º, 17.º, 161.º, n.º s 1, 2, 3, al. g), 4 e 5 e 163.º do CIRE;
− O disposto nos artigos 91.º, n.º 1, 154º, 195.º, n.º 1, 668.º, n.º 1 al.s c) e d) e 839.º, n.º 1, al. c) do CPC;
− O disposto nos artigos 13.º, 20.º, n.ºs 1 e 5, 202.º, n.º 2, 204.º e 205.º da CRP.
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O recurso foi admitido, tendo a Mma. Juiz a quo pugnado pela inexistência das nulidades invocadas.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II. Do Objeto do recurso:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes —artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber:
1) se a decisão recorrida enferma das nulidades previstas nas alíneas b), c), e d) do artigo 615.º/1, do Código de Processo Civil.
2) se o despacho recorrido deve ser revogado face ao disposto no art.º 163º do CIRE por referência ao art.º 161º do mesmo diploma, porquanto viola o disposto no art.º 20.º, n.ºs 1 e 5 da CRP
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III. Fundamentação
De facto
A factualidade a considerar na motivação de direito é a que consta do relatório deste acórdão que aqui se dá por integralmente reproduzida e bem assim aquela que foi considerada no despacho recorrido nos seguintes termos:
- O valor patrimonial tributário do imóvel apreendido sob a verba n.º 1 constante do auto de apreensão é de 351.893,55 €.
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De Direito
1. Das nulidades do despacho recorrido
Com o presente recurso pretendem os apelantes a revogação do despacho interlocutório constante da Ref. n.º (…) do apenso de liquidação do ativo (apenso C) proferido no dia 30/09/2024.
Nas conclusões 34 a 37 arguiram contra o despacho recorrido as nulidades a que aludem as alíneas c) e d) do art.º 615º do CPC (na consideração de que a referência feita nas alegações aos art.º 668º do CPC se terá ficado a dever a mero lapso) e bem assim a constante da alínea b) do mesmo preceito (conclusão 37 a 47).
Após pugnarem pela revogação do despacho recorrido à luz das normas previstas quer no CIRE, quer no CPC quer na CRP, defendem os apelantes que aquele enferma da nulidade por violação do disposto nas alíneas c) e d) do art.º 615º do CPC dizendo, em suma, que a Mma. Juiz a quo não procedeu a uma correta interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto (conclusão 35).
Prosseguem, arguindo a nulidade prevista na alínea d) (conclusão 35) alegando que na decisão recorrida a MMª Juiz deixou de se pronunciar sobre questões essenciais à decisão da causa (conclusão 47), alegação que, a ocorrer, integraria a nulidade prevista na al. d) do art.º 615º do CPC.
A Mma. Juiz a quo pronunciou-se nos termos do disposto no art.º 617º do CPC pela não ocorrência das nulidades imputadas.
Apreciando.
Dispõe o n.º 1 do art.º 615º do CPC, aplicável aos despachos por força do disposto no n.º 3 do art.º 613º do mesmo diploma que:
«1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.»
O art.º 615º do CPC prevê o elenco taxativo de nulidades que podem afetar a sentença.
Relativamente ao fundamento previsto na primeira parte da alínea c) do nº 1 do art.º 615º do CPC dizem-nos Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in Código de Processo Civil anotado, vol. 2º, 4ª edição, pág. 736, que se trata de um dos vícios que respeita à estrutura da decisão – “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença”. Por sua vez, refere Rui Pinto in Os meios reclamatórios comuns da decisão civil, Revista Julgar Online, maio de 2020, págs. 18 e ss. que: “há vício lógico no próprio silogismo judiciário em que se estrutura a fundamentação da decisão, exigido pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 607.º, porquanto a decisão não é a conclusão lógica daqueles fundamentos, sejam estes as normas aplicadas (premissa maior) ou os factos provados (premissa menor).” Não se confunde com o erro de julgamento a que se conduzirá uma contradição entre os factos e a subsunção jurídica ou de decisão contra a lei, que respeita ao mérito e ao conhecimento de fundo.
Por sua vez, refere também Rui Pinto, in Ob. Cit., pág. 20 que ocorre obscuridade ou ambiguidade que tornem a decisão ininteligível quando “… (i) de uma parte da decisão se puder retirar mais do que um sentido ou se (ii) não se puder retirar sentido algum – respetivamente, ambiguidade ou obscuridade –, em termos que determinem que a própria decisão não é compreensível, nos termos gerais do artigo 236.º CC, ex vi artigo 295.º CC.
No caso, o despacho recorrido, que se pronunciou sobre a “reclamação” apresentada pelos apelantes contra a decisão da Sra. AI de iniciar as diligências com vista à outorga da escritura de compra e venda do imóvel apreendido nos autos sob a verba n.º1 e mediante o qual requereram: i) que a Sra. AI sustasse as diligências que se encontram em curso com vista à conclusão dos procedimentos de venda e, ii) a declaração de nulidade da decisão da AI de aceitação do valor proposto para a venda com a consequente revogação da sua decisão de aceitação da proposta em causa e consequente adjudicação do imóvel.
O despacho recorrido, julgando verificado a exceção dilatória da nulidade do processado por erro na forma aplicável, indeferiu liminarmente o requerimento incidental com a seguinte linha de argumentação: i) no que diz respeito à nulidade da venda, que esta fica sem efeito, nos termos do disposto nos artigos 839.º, n.º 1, al. c), e artigo 195.º, ambos do Código de Processo Civil; ii) que o CIRE prevê um regime especial enunciado nos seus arts.º 161º e 163º; iii) que nos termos deste último preceito, “a violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos atos do administrador da insolvência, exceto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte.”; iv) que no caso em apreço, os devedores alegam que o valor patrimonial tributário e de mercado do imóvel é superior à proposta apresentada. Porém, não inexiste notícia de proposta séria de montante manifestamente superior, circunstância em que a intervenção judicial se encontraria limitada à convocatória prevista no artigo 161.º/5.”; v) para além, a forma processual própria para a alegação dos pressupostos da ineficácia do ato do administrador, nos termos do artigo 163.º do CIRE, é a ação comum; vi) que peticionando-se a declaração de invalidade, na modalidade da ineficácia, nos termos do artigo 163.º, o requerido é legalmente inadmissível, quando deduzido incidentalmente, no processo de insolvência razão pela qual entendeu existir erro na forma do processo, nos termos do disposto no art.º 193º do CPC, nulidade do conhecimento oficioso (art.º 196º do CPC).
Ora, analisado o despacho recorrido e os seus fundamentos, nele não se surpreende qualquer vício lógico no raciocínio exposto pelo tribunal que, acrescente-se, é bastante claro, não sofrendo, nem de ambiguidade, nem de obscuridade.
Seja ou não, em face do direito aplicável, correta a argumentação expendida a mesma não é contraditória, não aponta num sentido contraditório à decisão quebrando o silogismo judiciário.
A arguida nulidade analisa-se numa manifesta discordância com o decidido, que deve ser apreciada em sede de mérito.
A decisão proferida não sofre da arguida nulidade, seja por contradição entre os fundamentos e a decisão, seja por obscuridade ou ambiguidade, nos termos da al. c) do nº 1 do art.º 615º do CPC.
No que diz respeito à nulidade prevista na alínea d) do art.º 615º (aplicável por remissão do art.º 613º, n.º 3) verifica-se quando o juiz se deixe de pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta concreta causa de nulidade consiste no facto de a decisão não se pronunciar sobre questões de que o tribunal devia conhecer.
É posição pacífica na doutrina (cf. entre muitos Alberto dos Reis, in CPC Anotado, V, pág.143, Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2ª edição pág. 690) a que vai no sentido de relacionar este vício da sentença com o dispositivo do art.º 608º do CPC, designadamente, com o seu nº 2, havendo, assim, de, por ele, ser integrado. Deste modo, a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não ter tido aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.
Porém, não é qualquer omissão de pronúncia que conduz à nulidade da sentença. Essa omissão só será, para estes efeitos, relevante quando se verifique a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias quanto às quais a lei imponha que sejam conhecidas e sobre as quais o juiz deva tomar posição expressa. Essas questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal (cf. n.º 2 do artigo 608.º do CPC) e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deve conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.
Esta nulidade está, pois, correlacionada com a 1ª parte do n.º 2 do art.º 608º do CPC, que dispõe: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; …”
Desta forma, a omissão de pronúncia é um vício gerador de nulidade da decisão judicial que ocorre quando o tribunal não se pronuncia sobre questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer motivo ou argumento aduzido pelas partes. A pronúncia cuja omissão releva incide, assim, sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objeto que é submetido à cognição do tribunal, correspondendo aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir (ou seja, às concretas controvérsias centrais a dirimir) e não aos motivos ou às razões alegadas. Não padece, por isso, de nulidade por omissão de pronúncia a sentença ou o despacho na qual o tribunal não responda, um a um, a todos os argumentos das partes ou que não aprecie questões com conhecimento prejudicado pela solução dada a anterior questão.
Concluindo genericamente (conclusão 35) que o despacho é nulo por violação do disposto nesta alínea d) os recorrentes alegam, igualmente de forma genérica, que o Tribunal recorrido não apreciou as questões que lhe foram suscitadas, obrigando-os a instaurar nova ação (ação comum) para a defesa dos seus direitos (conclusão 32).
Ou seja, mais uma vez, a arguida nulidade reconduz-se à discordância da solução de direito alcançada pelo Tribunal recorrido quanto à pretensão que formularam. Apreciando o pedido de declaração de nulidade da decisão da AI em adjudicar o imóvel apreendido nos autos, a Mma. Juiz a quo concluiu, no despacho recorrido que, face ao regime especial previsto nos arts. 161º e 163º do CIRE não só não se verificava fundamento para a requerida sustação da adjudicação, porquanto inexiste notícia de proposta séria de montante manifestamente superior, circunstância em que a intervenção judicial se encontraria limitada à convocatória prevista no artigo 161.º, n.º 5 e que, por outro lado, verificando-se a ineficácia do ato, a forma processual própria para a alegação dos pressupostos da ineficácia do ato do administrador, nos termos do artigo 163.º do CIRE, é a ação comum.
Ocorrendo pronuncia do Tribunal recorrido quanto às questões suscitadas pelos recorrentes e concluindo, no âmbito dos seus poderes oficiosos de cognição (art.º 196º do CPC), pela verificação da nulidade prevista no art.º 195º do CPC – erro na forma do processo -, nada se surpreende no despacho recorrido, também quanto a esta nulidade arguida.
Finalmente, quanto à a nulidade prescrita na alínea b) do art.º do art.º 615º do CPC entendem os apelantes que o despacho recorrido não está fundamentado, tanto de facto como de direito, tendo em conta o disposto no art.º 154º do CPC (conclusões 37, 49 e 50).
Está, assim, em causa o disposto no art.º 154.º do CPC, o qual dispõem que: «1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. // «2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade».
Este dever de fundamentação resulta de imperativo constitucional, tendo em atenção que o art.º 205.º, n.º 1 da CRP que estabelece que: «1. As decisões judiciais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/11/2020, processo n.º 1307/20.6T8VNF-A.G1, relator Jorge Teixeira: “Este dever de fundamentação cumpre, em geral, duas funções: uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação de controle crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação, e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, juízo concordante ou divergente; outra, de ordem extraprocessual, que procura tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão, garantindo a transparência do processo e da decisão.”
Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in Ob Cit., Vol. 1.º, pág. 329) dizem que: «Hoje, o preceito constitucional impõe o entendimento de que só o despacho de mero expediente (art.º 152º, n.º 4) não carece, por sua natureza, de ser fundamentado (já assim entendia Anselmo de Castro, Direito Processual Civil cit., III ps. 46-47), outro sendo o caso de toda a decisão, que direta ou indiretamente, interfira no conflito de interesses entre as partes».
Como refere Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, págs. 688 e 689, para que a decisão careça de fundamentação “não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.
Miguel Teixeira de Sousa (in Estudos Sobre o Processo Civil. pág. 221) refere que «(...) esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (artigo 208º, nº 1 CRP e artigo 158º, nº 1 CPC). O dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (…); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível».
No mesmo sentido se pronuncia, Lebre de Freitas in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pág. 669., afirmando que "... há nulidade quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação”.
O despacho posto em crise não é configurável como “despacho de mero expediente”, tendo em atenção que estes são aqueles que se destinam «a promover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes» (art.º 152.º n.º 4 do CPC), porquanto incidiu sobre uma pretensão específica dos devedores no sentido da suspensão das diligências em curso com vista à conclusão dos procedimentos de venda e ser declarada nula a decisão da Sra. AI de aceitação do valor proposto em causa com a consequente revogação da sua decisão de aceitação da proposta em causa.
Formularam os apelantes uma pretensão, em situação de conflito de interesses, que impunham decisão fundamentada, não configurável como um mero exercício de um poder discricionário.
Nos termos do n.º 2 do art.º 154.º do C.P.C. a justificação da decisão não poderia ser por «simples adesão aos fundamentos alegados» por uma das partes, embora se ressalve o caso de se tratar de “despacho interlocutório”.
Os “despachos interlocutórios” são decisões judiciais que não põem termo ao processo, mas que podem ser suscetíveis de recurso autónomo, como decorre do sentido do n.º 4 do art.º 644.º do CPC. Tratam-se, portanto, de “decisões intercalares” que podem influir no resultado final do processo, em função da sua instrumentalidade ou prejudicialidade. O despacho recorrido é, formalmente, um “despacho interlocutório”. E, assim sendo, a justificação da decisão só poderá ser por “simples adesão” se a contraparte não tivesse apresentado oposição ao pedido e o caso fosse de manifesta simplicidade (art.º 154.º n.º 2, 2.ª parte, do CPC).
Ora, no caso a decisão recorrida foi simples, mas não se pode dizer que não fosse motivada.
Desde logo, e ainda que de forma simplificada enunciou a factualidade assente (por remissão para o relatório do despacho) nos seguintes termos: “Para o efeito, considero assente o relatado, e ainda: O valor patrimonial tributário constante do auto de apreensão é de 351.893,55 €.”
No que diz respeito à fundamentação de direito, impondo-se ao tribunal que, no mínimo, explicite o fundamento legal pelo qual a pretensão formulada não é admitida, tornando assim sindicável a decisão proferida, os seus fundamentos são perfeitamente percetíveis, por forma a permitirem às partes “o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação” e o “controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão, garantindo a transparência do processo e da decisão”.
O despacho recorrido expressa as razões do indeferimento da pretensão dos apelantes, com a linha de argumentação supra enunciada, de um modo coerente, justificado e percetível, já que, certo ou errado, deixa bem claro o critério em que se alicerça, ou seja, que peticionando-se a declaração de invalidade, na modalidade da ineficácia, nos termos do artigo 163º do CIRE, o requerido é legalmente inadmissível, quando deduzido incidentalmente, no processo de insolvência, julgando, por consequência, verificada a exceção dilatória da nulidade do processado por erro na forma aplicável, indeferindo, liminarmente, o requerimento incidental.
Em conclusão, resulta de tudo exposto que a decisão proferida contém fundamentos, não enfermando por isso de qualquer nulidade e, designadamente, as previstas no art.º 615º, nº 1, als. b), c) e d), do CPC, uma vez que os seus fundamentos não estão em oposição com a decisão e dá plena observância ao dever de fundamentação, quer de facto, quer de direito, indicando, de resto, diversa jurisprudência no sentido do decidido.
Improcede, assim, nesta parte a apelação.
*
2.
Passando à apreciação do mérito do despacho recorrido a questão que se coloca no presente recurso é a de saber se o julgado verificado erro na forma do processo tem razão de ser à luz do que prescreve o art.º 163º do CIRE e se, por consequência, a sua aplicação, à luz da interpretação que foi feita pelo tribunal a quo, é violadora do disposto no art.º 20º da CRP.
Importa, porém, antes de avançar na apreciação da questão colocada, delimitar o objeto de recurso tendo em consideração aquilo que foi impetrado pelos recorrentes e aquilo que foi decidido.
Na verdade, como é sabido, os recursos destinam-se a permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida, constituindo, assim, um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões novas, não apreciadas e discutidas nas instâncias, sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso.
Entendimento, conforme com a natureza dos recursos e subjacente às regras que dimanam dos artigos 635.º e 639.º do CPC, tem sido afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, com clareza e unanimidade.
Ora, no requerimento apresentado que foi objeto do despacho recorrido, os recorrentes circunscreveram a preterição das formalidades legais no âmbito do artigo 161.º do CIRE, tendo também sido sobre tal normativo que se moveu o despacho recorrido.
Vejamos então.
Em 24/05/2024 os apelantes apresentaram requerimento que denominaram de “reclamação” contra a decisão da Sra. AI de iniciar diligências com vista à outorga da escritura de compra e venda do imóvel apreendido nos autos sob a verba n.º1, pedindo que a Sra. AI suste as diligências que se encontram em curso com vista à conclusão dos procedimentos de venda e que seja declarada nula a sua decisão de aceitação do valor proposto em causa e consequentemente revogada a decisão de aceitação da proposta e consequente adjudicação do imóvel.
Como fundamento para a alegada nulidade, invocam: o desfasamento sobre a identificação do bem apreendido e objeto de proposta de venda, decorrente da circunstância de, no terreno destinado a construção, que foi apreendido e objeto de proposta de compra, ter sido concluída uma habitação implantada na qual vivem os insolventes, desfasamento, esse, que provoca, consequentemente, um desfasamento sobre o valor a atribuir a tal bem (desde logo, quanto ao valor tributário), impondo-se alterar a decisão de venda, designadamente quanto ao valor, a qual deverá, necessariamente, ter em consideração a nova realidade (terreno e prédio urbano implantado no mesmo); o imóvel em causa não é um terreno para construção, mas sim um terreno que é constituído por uma construção composta por Cave, Rés-do-chão e 1.º andar, cujo valor patrimonial total fiscal é de 364.629,24 €; o valor da proposta para venda é muito inferior ao valor patrimonial fiscal real; não poderia a Exma. Sra. Administradora de Insolvência ter decidido com decidiu, nomeadamente aceitação e adjudicação do imóvel ora em discussão, pelo tão inferior valor de 232.353,76 €, incorrendo em nulidade. Alegam, por outro lado, que, nos termos do disposto no artigo 163.º CIRE, “A violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos atos do administrador da insolvência, exceto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”; não existindo dúvidas de que existe um manifesto excesso das obrigações assumidas pela Massa Insolvente.
No despacho recorrido considerou-se inexistir a arguida nulidade face ao regime específico previsto no art.º 161º do CIRE, porquanto, pese embora os devedores aleguem que o valor patrimonial tributário e de mercado do imóvel é superior à proposta apresentada (…). Porém, inexiste notícia de proposta séria de montante manifestamente superior, circunstância em que a intervenção judicial se encontraria limitada à convocatória prevista no artigo 161.º/5.”. E, para além, que peticionando-se a declaração de invalidade, na modalidade de ineficácia, nos termos do art.º 163º, o requerido é legalmente inadmissível, quando deduzido incidentalmente, no processo de insolvência, verificando-se, por isso, erro na forma do processo, que determinou o indeferimento liminar do requerimento inicial.
Como é sabido, o processo de insolvência é um processo de execução universal e concursal, que tem como finalidade a satisfação dos credores, sendo por ele abrangido praticamente todo o património do devedor, e chamados todos os credores a intervir no processo, de modo a garantir a igualdade de todos aqueles que se encontrem nas mesmas condições (artigos 1º e 47º do CIRE).
O processo de insolvência rege-se também pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do CIRE (art.º 17º do CIRE).
Sem prejuízo, ao longo do CIRE, o legislador remeteu especificamente para algumas regras do CPC, em especial para as normas que regulam o processo executivo na parte relativa à tramitação de feição “executiva”, ou seja, a apreensão e liquidação, mas não só. A regra geral do art.º 17º, no entanto, vale também para as remissões expressas, ou seja, a aplicação dos preceitos do CPC dá-se enquanto os mesmos não contrariem disposições do CIRE.
A liquidação do ativo, prevista nuclearmente nos arts. 158º e ss. do CIRE mas igualmente regulada por outros preceitos legais, insere-se, claramente na fase “executiva” do processo de insolvência e está orientada diretamente para a finalidade principal do processo de insolvência – “destina-se à conversão do património que integra a massa insolvente numa quantia pecuniária a distribuir pelos credores, havendo, para isso, que proceder à cobrança dos créditos e à venda dos bens da massa insolvente, por forma a obter os respetivos valores (arts. 55º, n.º 1, al. a) e 158º (cf. Maria do Rosário Epifânio, Manual do Direito da Insolvência, 8ª edição, pág. 331).
Entre as demais funções consignadas no artigo 55.º incumbe ao administrador da insolvência promover a venda dos bens do insolvente, tendo em vista o pagamento das dívidas do insolvente (alínea a), do n.º 1).
Tais funções são exercidas sob a fiscalização da Comissão de Credores ou, na falta desta, pela Assembleia de Credores, e pelo juiz do processo (artigos 55.º, n.º 5, 58.º e 68.º), sendo que, no exercício desse poder de fiscalização, o juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substituí-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador da insolvência, considere, fundadamente, existir justa causa (artigo 56.º).
O administrador responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem, sendo a sua culpa apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado (artigo 59.º, n.º 1). O administrador responde igualmente pelos danos causados aos credores da massa insolvente se esta for insuficiente para satisfazer integralmente os respetivos direitos e estes resultarem de ato do administrador (artigo 59.º, n.º 2).
No que concerne em particular à liquidação, o administrador dispõe mesmo da faculdade de escolher a modalidade da alienação dos bens que entender ser a mais adequada à maximização do produto da liquidação, que é o objetivo que está adstrito a prosseguir com zelo, podendo optar por qualquer das que são admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente, sem para o efeito depender de qualquer deliberação ou autorização dos credores (artigo 164.º, n.º 1).
Para a prática de alguns atos, pelo seu relevo económico, a lei exige, porém, que o administrador obtenha o consentimento da comissão de credores, ou, não existindo aquela, da assembleia de credores (artigo 161.º). Apesar de a atuação do administrador da insolvência estar genericamente submetida à fiscalização da comissão de credores, a lei subordina a eficácia de certos atos jurídicos a prévio consentimento dos credores, a que a lei designa de atos de especial relevo para o processo de insolvência.
Como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda in Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa Anotado, 3ª edição, pág. 605, a lei não fornece o conceito de ato de especial relevo, mas no n.º 2 indica os fatores a ter em conta para a qualificação dos atos e sua eventual integração no universo que o processo respeita. Além disso, o n.º 3 fornece uma enumeração de atos que, independentemente de quaisquer circunstâncias, são legalmente considerados de especial relevo.
No que interessa aos autos, cabe à Comissão de Credores ou, não existindo esta, à Assembleia de Credores, dar o consentimento prévio para a prática de atos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência, entre eles o da alienação de qualquer bem do insolvente por preço igual ou superior a € 10.000,00, que represente pelo menos de 10% do valor da massa insolvente à data da declaração da insolvência (art.º 161º, n.ºs 1, 2 e 3 al. g).
No caso da alienação que seja considerada ato de especial relevo para efeitos do artigo 161º, o Administrador da Insolvência deve comunicar à Comissão de Credores e ao Insolvente, com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data prevista para a transação, a identidade do adquirente e todas as demais condições do negócio (n.º 4 do artigo 161.º do CIRE). Podendo o juiz do processo sobrestar na alienação do bem e convocar a Assembleia de Credores para dar o seu consentimento a essa alienação, se tal lhe for requerido pelo Insolvente, ou por um credor ou grupo de credores cujos créditos representem, pelo menos um quinto do total dos créditos não subordinados, e resultar do requerimento que será plausível que a alienação a outro interessado se mostre mais vantajosa para a massa insolvente (n.º 5 do artigo 161.º). Por outro lado, impõem-se ainda ao AI a obrigação de ouvir o credor com garantia real sobre o bem a alienar, sobre a modalidade de alienação, informando-o do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a determinada entidade, credor esse que pode, no prazo de uma semana, propor a aquisição do bem por preço superior ao do valor base ou da venda projetada (n.ºs 2 e 3, do artigo 164.º do CIRE)
Isto posto, escolhida uma modalidade, questionamo-nos sobre as formalidades que a mesma deverá respeitar e isto porque se é certo que há determinadas particularidades que são essenciais ao regime de determinada modalidade de venda, outras são insuscetíveis de ser cumpridas nos autos de insolvência ou não são sequer nele exigíveis, não obstante constituírem fundamento para anulação da venda nos autos de execução.
O que já não será aceitável é a violação de determinados princípios e regras essenciais da venda executiva.
Assim, existirá invalidade da venda como previsto no previsto no art.º 838º do mesmo diploma, sempre que se reconheça a existência de algum ónus ou limitação ou erro sobre a coisa transmitida resultante da sua falta de conformidade (Cf. Luís Menezes Leitão, in Ob. Cit., Loc. Cit.), mas neste caso, a invalidade opera apenas a pedido do comprador, situação que não é a dos autos em que a invalidade é suscitada pelo próprio devedor.
Por seu turno, no art.º 839º do CPC surgem elencados os casos em que a venda fica sem efeito, prevendo-se, no caso da alínea c) a anulação do ato da venda nos termos do disposto no art.º 195º do CPC.
No caso dos autos, a razão da arguição da invalidade da venda pelos apelantes reconduz-se, na sua essência, ao facto de a adjudicação ao proponente, por leilão eletrónico, o ter sido por valor inferior ao seu valor patrimonial.
E, tal como sucedeu no caso tratado no Acórdão desta secção de 24/04/2025, processo n.º 26074/20.0T8LSB-J.L1, Relatora Fátima Reis Silva e em que a ora relatora foi 2ª adjunta, uma vez que ainda não se consumou a venda – a efetuar necessariamente por escritura pública, que ainda não terá sido outorgada -, os recorrentes não vêm, consequentemente, pugnar pela declaração de nulidade ou de anulação da venda, mas antes pela declaração de nulidade, ou de anulação, do ato de aceitação da proposta e consequente adjudicação do imóvel apreendido.
Como se referiu no despacho recorrido, a arguição de nulidade dos apelantes “remete-nos para a causa de invalidade da venda executiva prevista nos artigos 839.º/1, al. c), e artigo 195.º, ambos do Código de Processo Civil.”
Com efeito, o CIRE não contém qualquer regulação sobre matéria de nulidades (processuais ou outras), pelo que o regime aplicável terá de ser buscado, sempre com as devidas adaptações, no CPC.
O art.º 839º, n.º 1, al. c) do CPC estabelece que a venda fica sem efeito c) se for anulado o ato da venda, nos termos do artigo 195.º.
O artigo 195.º do CPC estabelece as regras gerais sobre a nulidade dos atos. Assim, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa (n.º 1). Em anotação a este preceito referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa in Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, Vol. I, pág. 260 que: “Este sistema remete o juiz para uma análise casuística, suscetível de só invalidar o ato que não possa, de todo, ser aproveitado, sendo certo que a nulidade de um ato acarreta a invalidação dos atos da sequência processual que daquele dependam absolutamente”.
Resulta dos autos, que o valor patrimonial tributário do imóvel apreendido sob a verba n.º1 constante do auto de apreensão é de 351.893,55 €, alegando os recorrentes que atualmente aquela verba tem o valor patrimonial de 364.629,24 €, situando-se neste ponto em particular o fundamento da arguição da nulidade da venda, ao defenderem que o valor patrimonial do imóvel é o limite intransponível pelo qual pode ser vendido, revelando-se, de resto, muito inferior ao valor corrente do mercado.
Ora, se é certo que do referido artigo 164.º do CIRE não pode resultar que os poderes do AI sejam absolutos quanto ao preço pelo qual os bens podem ser colocados em venda, não há lugar à aplicação do disposto nos arts. 812º e 816º do CPC nos termos do art.º 17º, nº1 do CIRE, dado que a tramitação prevista naqueles preceitos contraria o regime especificamente desenhado pelo legislador da insolvência para a liquidação do ativo (cf. neste sentido o Acórdão desta secção de 24/04/2025, supra citado).
Compreende-se, todavia, que, na maioria das situações, deverá o Administrador da Insolvência, na primeira tentativa de venda dos bens apreendidos, fixar o respetivo valor com observância do disposto no artigo 812.º do Código de Processo Civil, o qual impõe, no caso de bens móveis, a consideração do valor de mercado, e, no caso de bens imóveis, a adoção do valor mais elevado entre este e o valor patrimonial tributário.
Tal entendimento justifica-se pelas frequentes discrepâncias que se verificam entre estes dois parâmetros de avaliação, que, por vezes, assumem uma expressão considerável. Não é, contudo, menos certo que pode ocorrer a situação inversa, nomeadamente quando o imóvel apreendido integra uma estrutura em construção ou já edificada, como sucede no caso dos autos.
Sendo assim, frustrada a venda pelo valor mais elevado, nada obsta a que o Administrador da Insolvência fixe valores distintos em subsequentes tentativas de venda, como aliás defende Pedro Ortins de Bettencourt, in Da liquidação em processo de Insolvência – Uma perspetiva prática, publicada na Julgar On Line, n.º 31, pág. 17.
Nestes termos, a alienação do bem por valor inferior ao seu valor patrimonial, depois de realizadas tentativas anteriores de venda que resultaram desertas, não assume, por si só, relevo bastante para afetar a validade da proposta apresentada, nem é suscetível de influenciar a decisão da causa. Com efeito, importa reconhecer que, em sede de processo de insolvência, são frequentes as situações em que se registam desvios significativos entre o valor da avaliação, o valor de mercado e aquele que, em termos práticos, representa uma efetiva oportunidade de satisfação dos créditos. Tal circunstância pode conduzir a que os credores se vejam forçados a aguardar indefinidamente por propostas que atinjam o valor patrimonial ou o valor base de licitação, estabelecido com referência ao mercado — propostas essas que, não raras vezes, poderão nunca vir a concretizar-se.
Não obstante, e como se decidiu no despacho recorrido, a infração cometida só teria valor de nulidade (art.º 195.º do CPC, ex vi do disposto no art.º 17.º do CIRE) caso tivesse sido alegado e demonstrado que plausivelmente a alienação a um outro interessado seria mais vantajosa para a massa insolvente, por só assim ser possível concluir que o ato omitido teve influência na decisão. Porém, inexiste notícia de proposta séria de montante manifestamente superior, sendo certo que, neste caso, a intervenção judicial se encontraria limitada à convocatória prevista no artigo 161.º, n.º 5.
É que, o legislador do CIRE, pôs, em larga medida, de lado todos os princípios relativos à invalidade da venda em ação executiva e veio a consagrar, nos artigos 163.º e 164.º do CIRE, uma solução diversa em que é conferida proteção ao adquirente do bem em relação aos interessados processuais, em particular aos credores, mas também ao insolvente. Este desequilíbrio é mitigado por via da ineficácia dos atos de alienação de bens que, violando o disposto nos art.º 161º e 162º, venham a gerar obrigações para a massa insolvente que excedam manifestamente as da contraparte, ou seja, do adquirente dos bens (art.º 163º, n.º1 do CIRE) e também pela responsabilização do Administrador da Insolvência nos termos do n.º 3 do art.º 164º, que fica obrigado a colocar o credor na posição que decorreria se a alienação fosse pelo preço proposto pelo credor ou ainda, na falta de notificação ao credor garantido nos termos do n.º2 do art.º 164º do CIRE, na responsabilização do Administrador da Insolvência pelo diferencial entre o preço da alienação do bem e o do crédito garantido, deitando mão ao disposto no art.º 59º do CIRE. (Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Ob. Cit., págs. 612 e ss.).
Por conseguinte, nessa situação devem distinguir-se os efeitos ao nível interno, isto é, entre o administrador, o insolvente e os credores, em que o administrador, para além de poder ser destituído, é chamado a responder pelas consequências da sua atuação ilícita e terá de indemnizar os danos resultantes para os credores, dos efeitos ao nível externo, isto é, ao nível das relações com terceiros, estranhos ao processo de insolvência, em que se mantém a validade e eficácia do ato praticado. Desta forma, a violação das formalidades legais previstas nos artigos 161º e 162º, não geram, só por si, a ineficácia da venda efetuada sem o cumprimento das mesmas, a menos que venha a gerar obrigações para a massa insolvente que excedam manifestamente as do adquirente do bem.
Nessa medida, não consagrando o CIRE meio processual para o efeito, é acertada a conclusão do despacho recorrido no sentido de que a pretensão de declaração de ineficácia dos atos do administrador da insolvência, deitando mão do disposto no n.º 1 do artigo 163.º do CIRE, têm que ser deduzidas em ação declarativa que correrá por apenso ao Processo de Insolvência (cf. Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, 614 e 615) não podendo, assim, o juiz do processo decidir essa matéria de forma incidental, no processo principal.
É facto, como referem os apelantes, que existe jurisprudência, nomeadamente do Tribunal Constitucional a julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, a norma contida nos artigos 163.º e 164.º, n.ºs 2 e 3, do CIRE, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada. É o caso do Acórdão do STJ de 4/04/2017, proferido no processo n.º 1182/14.0T2AVR-H.P1, mencionado pelos apelantes nas suas alegações e o Acórdão do TC 616/2018, processo 251/2018.
Porém, esta jurisprudência recente, marcando uma evolução jurisprudencial, surge no âmbito das consequências da venda de bens onerados com direitos reais de garantia em violação do disposto no nº 2 do art.º 164º do CIRE, por via da aplicação do art.º 163º do mesmo diploma aos casos ali previstos.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13/06/2019, processo n.º 231/17.4T8VNF-C.G1, relator Alcides Rodrigues, (citado no Acórdão desta secção de 24/04/2025 supra referido) no tocante às consequências da venda de bens onerados com direitos reais de garantia em violação ao disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 164º do CIRE perfilam-se, na jurisprudência e na doutrina, três vias interpretativas: “i) Uma delas, que se tem como maioritária, sustenta que a ilicitude decorrente daquelas omissões, em si, não afecta a validade ou eficácia da venda efectuada, havendo apenas uma responsabilidade do administrador da insolvência perante os credores recorrentes, no sentido de lhes garantir a diferença entre o valor porque foi alienado o bem e o valor do seu crédito garantido. A violação daquele normativo apenas constitui (ou pode constituir) causa de destituição e de responsabilidade civil perante o credor garantido que não foi ouvido sobre a modalidade da venda e/ou que não foi informado sobre o valor base fixado ou o preço da alienação projectada.
ii) Outra corrente jurisprudencial, no pressuposto da primeira, recusou a aplicação da norma contida nos “arts. 163.º e 164.º, n.º 3, do CIRE”, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição, ao não assegurar uma tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido.
Chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade dessa interpretação, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 616/2018, de 21/11/2108, processo n.º 251/2018 (relator Teles Pereira), decidiu:
- “julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, a norma contida nos artigos 163.º e 164.º, n.ºs 2 e 3, do CIRE, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada”.
iii) Uma outra posição minoritária tem defendido que a inobservância do n.º 2 do art.º 164º do CIRE pode consubstanciar uma nulidade processual que acarreta a anulação da venda. Foi essa a posição sufragada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18/02/2010, processo n.º 632/06 (José Manuel Carvalho Ferraz), no qual se concluiu que no processo de insolvência, “antes da venda, o credor com garantia real deve ser ouvido sobre a modalidade da venda e informado do valor base dos bens para venda”.
Porém, e conforme posição já por nós subscrita no Acórdão desta secção de 24/04/2025 supra referido, esta questão tem sido debatida a propósito do art.º 164º do CIRE e é inaplicável ao disposto nos arts. 161º e 162º do CIRE, dado o teor literal do art.º 163º do mesmo diploma que prevê que “a violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, exceto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte.”
O art.º 161º dispõem sobre os atos jurídicos que assumem “especial relevo para o processo de insolvência”, cuja prática exige o consentimento da comissão de credores ou, na sua falta, da assembleia de credores, impondo ainda o legislador o dever de comunicação ao devedor e o art.º 162.º regula a alienação da empresa. Ora, nos termos do art.º 163.º, a violação do disposto nos dois artigos (161.º e 162.º) “não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, exceto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”. O que significa que “para lá das consequências a nível dos atos praticados, a violação de qualquer dos dois citados artigos, consubstanciando a prática de um ilícito e o incumprimento de um dever a cargo do administrador, suscetibiliza a respetiva responsabilidade e constitui sempre justa causa de destituição” (cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, in obr. cit. p. 612 (nota 3).
Já quanto às exigências impostas no art.º 164.º (sob a epígrafe “modalidade da alienação”), o legislador omitiu qualquer referência à cominação associada à violação pelo administrador das formalidades aí consignadas quanto ao dever de informação permitindo, pois, a discussão sobre se a questão deve ser resolvida encontrando respostas no âmbito do próprio direito insolvencial – seja por via da aplicação do art.º 163.º, seja pela aplicação analógica da cominação estabelecida na segunda parte do nº 3 do art.º 164.º, para outro tipo de situação – ou, ao invés, se é necessário/justificado convocar o regime geral previsto para a execução singular considerando, no que ao caso interessa, o disposto no art.º 839.º, nº1, alínea c) do CPC, nos termos do qual a venda “fica sem efeito” “se for anulado o ato da venda, nos termos do art.º 195.º”, preceito este alusivo às “regras gerais sobre as nulidades dos atos” (cfr. os arts. 186.º a 202.º do CPC) (cf. o Acórdão desta secção de 8/03/2020, proferido no processo 150/19.0T8BRR-C.L1, relatora Isabel Fonseca, aqui primeira adjunta) o que deu origem às supra mencionadas posições formadas na jurisprudência e doutrina como se dá nota no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13/06/2019.
De facto, e nesta matéria, temos, atualmente, como incontornável a orientação definida pelo acórdão nº 616/2018 do TC de 21-11-2018, mas ela é apenas válida a propósito do art.º 164º do CIRE e é inaplicável ao disposto nos arts. 161º e 162º do CIRE, dado o teor literal do art.º 163º.
Por isso é que não é correta a conclusão dos apelantes (conclusão 26), ao sustentar que o juízo de inconstitucionalidade da interpretação do art.º 163º efetuada pelo despacho recorrido de que os factos e a solução jurídica dada é semelhante em ambos os casos.
Com efeito, e volvendo ao disposto no art.º 163º do CIRE, preceito que constitui a trave mestra do regime da liquidação do ativo, que justifica, aliás, a orientação jurisprudencial maioritária (desenvolvida, repete-se, a propósito da violação do nº2 do art.º 164º do CIRE) que sustenta que a ilicitude decorrente daquelas omissões, em si, não afeta a validade ou eficácia da venda efetuada, havendo apenas uma responsabilidade do administrador da insolvência perante os credores recorrentes, no sentido de lhes garantir a diferença entre o valor porque foi alienado o bem e o valor do seu crédito garantido. A violação daquele normativo apenas constitui (ou pode constituir) causa de destituição e de responsabilidade civil perante o credor garantido que não foi ouvido sobre a modalidade da venda e/ou que não foi informado sobre o valor base fixado ou o preço da alienação projectada. Não apenas a desjudicialização, mas, em especial, uma ideia de eficiência e celeridade, dado que, na valorização de ativos, estamos já num cenário desfavorável, de liquidação, pelo que a identificação e rápido aproveitamento das condições de mercado é essencial à satisfação dos interesses dos credores (art.º 1º nº1 do CIRE) (apud Acórdão desta secção de 24/04/2025).
A este propósito, David Sequeira Dinis e Luís Bértolo Rosa in A proteção de credores garantidos e o regime do artigo 164.º, n.º 2, do CIRE, Revista de Direito da Insolvência, nº2, abril de 2018, págs. 9 a 38, em especial, págs. 22 e 23 e nota 14, identificam a razão de ser de um diferente regime entre a violação das formalidades previstas nos arts. 161º e 162º e nº 2 do art.º 164º, no facto de, nas segundas, se dar uma violação direta e imediata de direitos subjetivos individuais ou garantias processuais do credor garantido, que estes autores defendem serem corolários do seu direito real de garantia; “Diferentemente, a prática de atos de especial relevo sem autorização da comissão de credores (ou da assembleia de credores), não implica violação direta e imediata de quaisquer direitos individuais (ou garantias processuais individuais) dos credores, mas tão só a violação de regras de fiscalização da atividade do Administrador da Insolvência por parte da comissão de credores (ou da assembleia de credores).” E prosseguem anotando que o art.º 161º do CIRE tutela interesses difusos e o nº2 do art.º 164º do mesmo diploma tutela “posições jurídicas individuais associadas à posição de credor garantido.”
Como acima se referiu a eventual preterição das formalidades da venda (nomeadamente no que diz respeito ao valor pelo qual o bem apreendido veio a ser adjudicado) não são, por si só, fundamento da declaração de ineficácia do ato de alienação dos bens, nem de nulidade da venda, só podendo vir a ser declarada a ineficácia do ato relativamente à massa falida, nos termos do n.º 1 do artigo 163.º do CIRE se, em ação declarativa, a instaurar, nomeadamente pelos apelantes, for reconhecido que a violação do disposto nos art.º 161º e 162º do CIRE conduziu a um manifesto desequilíbrio entre as obrigações assumidas pelo Sr. Administrador da Insolvência e as do adquirente do bem.
E, esta interpretação do disposto no art.º 163º do CIRE por referência ao art.º 161º, levada a cabo pelo Tribunal recorrido, ao contrário do defendido pelos apelantes, não se baseou, como vimos, em norma cuja interpretação foi julgada inconstitucional, não enfermando em si qualquer juízo de inconstitucionalidade e isto porquanto – a venda do bem por valor inferior ao seu valor patrimonial -, gera os efeitos previstos no art.º 163º do CIRE, ou seja, não são suscetíveis de gerar ineficácia dos atos praticados a menos que estivesse demonstrado o circunstancialismo ali descrito, o que não sucede.
Não se surpreende, nestes termos, que qualquer das normas aludidas, cuja interpretação e aplicação levaram à conclusão no despacho recorrido de que a declaração da ineficácia do ato, só pode ser declarada nos termos do artigo 163.º do CIRE se, em ação declarativa, a instaurar, for reconhecido que a violação do disposto nos artigos 161º e 162º do CIRE conduziu a um manifesto desequilíbrio entre as obrigações assumidas pelo administrador da insolvência e as do adquirente do bem, tenha sido interpretada ou aplicada em violação das regras constitucionais, designadamente os nºs 1 e 5 do art.º 20º da CRP.
O princípio da proibição da indefesa, ínsito no direito fundamental de acesso à justiça consagrado no art.º 20º, n.º 1 da CRP, tem sido caracterizado pelo Tribunal Constitucional como a proibição da “privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito” (cf. entre outros o Acórdão n.º 278/98).
Todavia, decorre também da jurisprudência do mesmo Tribunal que o princípio da proibição da indefesa não é um princípio absoluto, devendo ser ponderado com outros princípios conflituantes, o que pode levar à limitação do seu alcance, desde que não se transforme numa restrição intolerável». Afirmou-se no Acórdão n.º 20/2010, que: “Da estrutura complexa que detém o princípio do processo equitativo, consagrado no artigo 20.º da Constituição, decorrem, para o legislador ordinário, para além da obrigação que se cifra em não lesar o princípio da ‘proibição da indefesa’, a obrigação de conformar o processo de modo tal que através dele se possa efetivamente exercer o direito a uma solução jurídica dos conflitos, obtida em tempo razoável e com todas as garantias de imparcialidade e independência, existindo à partida, entre os valores da ‘proibição da indefesa’ e do contraditório e os princípios da celeridade processual, da segurança e da paz jurídica, uma relação de equivalência constitucional, devendo o legislador optar por soluções de concordância prática, de tal modo que das suas escolhas não resulte o sacrifício unilateral de nenhum dos valores em conflito, em beneficio exclusivo de outro ou de outros”
O Tribunal reconhece, portanto, ser possível introduzir limitação à garantia de acesso aos tribunais em nome do interesse geral ou público (assim, o Acórdão n.º 658/06).
Desta jurisprudência decorre que o princípio da proibição da indefesa não é um princípio absoluto, devendo ser ponderado com outros princípios conflituantes, o que pode levar à limitação do seu alcance, desde que não se transforme numa restrição intolerável.
Com a redação dada ao art.º 163º o legislador do CIRE visou, além do mais, afastar a possibilidade de impugnação dos atos do administrador - substantivos ou de procedimento - diretamente perante o juiz da insolvência e, em contrapartida, passou-se a conferir expressamente - art.º 59.º do CIRE – um direito indemnizatório aos credores e ao devedor, contra o administrador da insolvência, pelos danos causados em decorrência da inobservância culposa dos respetivos deveres funcionais (esse direito indemnizatório do devedor e dos credores é a exercitar, naturalmente, através da competente ação autónoma de processo comum). Pretendeu-se deste modo, sem prejuízo, pois, para o exercício do direito à reparação do prejuízo a que haja lugar, afastar do âmbito da insolvência subterfúgios das partes do processo (devedor e credores) relativamente aos atos do administrador da insolvência. É este o sentido e alcance, cremos, do aludido ponto 10 do Preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE onde se afirma que a supremacia dos credores no processo de insolvência é acompanhada da intensificação da desjudicialização do processo, com a redução da intervenção do juiz ao que estritamente releva do exercício da função jurisdicional, permitindo a atribuição da competência para tudo o que com ela não colida aos demais sujeitos processuais, desaparecendo a possibilidade de impugnar junto do juiz os atos do administrador da insolvência (sem prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa).
Nestes termos, e em conclusão, quanto ao objeto do presente recurso e à luz dos parâmetros constitucionais anteriormente expostos, a decisão impugnada não assenta em norma previamente julgada inconstitucional. Acresce que a norma consagrada no artigo 163.º do CIRE, por remissão ao disposto no artigo 161.º, na interpretação que lhe foi conferida no caso sub judice, não configura qualquer restrição ao direito fundamental de acesso aos tribunais e de defesa consagrado no artigo 20.º da CRP, não se verificando qualquer violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva ali consagrado.
Nestes termos, não merece provimento o recurso, improcedendo as respetivas conclusões.
*
IV. Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em julgar integralmente improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Lisboa, 27-05-2025
Susana Santos Silva
Isabel Fonseca
Paula Cardoso