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COMPETÊNCIA MATERIAL
EMBARGO EXTRAJUDICIAL DE OBRA NOVA
Sumário
I - A competência do tribunal em razão da matéria afere-se em função dos termos em que a acção é proposta, determinando-se pela forma como o requerente estrutura o pedido e os respectivos fundamentos (causa de pedir), independentemente da apreciação do seu acerto substancial. II - A competência material para conhecer de um procedimento cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova, em que uma Junta de Freguesia, pressupondo a dominialidade pública de um caminho público vicinal (e não a defesa de um seu direito privado), pretende suspender uma obra nele realizada por um particular por a mesma não se encontrar por si licenciada, pertence à jurisdição administrativa.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório
A Junta de Freguesia ... instaurou contra AA e EMP01..., Lda, procedimento cautelar de “ratificação judicial de embargo de obra nova”[1], como preliminar da ação que anuncia que irá intentar, peticionando que seja decretada a ratificação do embargo feito e, em consequência:
a) Ser ordenado à requerida que proceda de imediato e por completo à paragem das obras, não licenciadas pela Junta de Freguesia ..., que encetou no caminho vicinal conhecido como caminho ...” do domínio da Freguesia ... e que se abstenha da sua continuação, por qualquer meio.
b) Ser a requerida expressamente advertida que incorre no crime de desobediência se prosseguir as obras objecto de embargo.
c) A condenação da requerida a colocar o caminho vicinal no estado em que mesmo se encontrava antes da sua intervenção ilícita, em cinco dias, nomeadamente tapando a vala e buracos que naquele abriu e ainda condenada a retirar canos ou qualquer outra estrutura de tubagem que nele instalou e enterrou no subsolo do caminho e, por último, condenada a abster-se da prática de qualquer acto lesivo do domínio da Freguesia sobre o identificado caminho vicinal, com a cominação de, em qualquer dos casos se assim não proceder, ser condenada a pagar a título de sanção pecuniária compulsória a quantia de 100,00 € (cem euros) por cada dia de incumprimento.
Para tanto, e em síntese, alegou ser o órgão executivo da Freguesia ..., no concelho ..., e que, nessa qualidade, é responsável pela manutenção e gestão dos caminhos vicinais, e que sempre praticou os atos de conservação, manutenção e sinalização dos caminhos vicinais da dita freguesia, procedendo a desmatação, limpeza e reparação do solo dos ditos, por onde transitam, essencialmente, os moradores da freguesia, proprietários e trabalhadores agrícolas.
Existe um caminho de terra conhecido como caminho ..., localizado junto ao aqueduto da Rua ..., que é um caminho vicinal, e que nestes caminhos não é permitido, sem licença da Junta, abrir covas ou fossos e fazer ou colocar qualquer espécie de instalações, mesmo com carácter provisório, seja no solo, no subsolo ou no espaço aéreo.
No dia 27 de junho de 2024, foi contactada por um residente, que a informou que naquele caminho encontrava-se uma retroescavadora e que ali tinha iniciado o rasgo de uma vala, sem a sua autorização.
Deslocou-se ao local e verificou que tinha sido cortado o tubo de água, pertença da Junta de Freguesia, que garante o abastecimento de água da nascente do ... à população de ..., a qual ficou sem acesso a água canalizada durante várias horas e que tinha sido aberta uma vala com o comprimento de 120 metros, sendo que pretendiam ainda ocupar mais 500 metros.
Como não pararam a obra, apesar de interpelados para o efeito, a obra foi embargada, e, apesar disso, no dia seguinte, a Requerida “tapou” a vala que já tinha aberto, não sem antes aí colocar um tubo de canalização de água.
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Por despacho de 11/07/2024, a requerente foi convidada a aperfeiçoar a petição inicial, o que fez, tendo apresentado novo requerimento inicial (cfr. Ref.ªs ...36 e ...46).
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Não tendo sido dispensado o contraditório, foi ordenada a citação da requerida (ref.ª ...71).
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Citada, a requerida apresentou oposição (ref.ª ...04) onde se defendeu por impugnação e por excepção, invocando nesta parte a nulidade da petição inicial, por falta de auto escrito da realização do embargo, a cumulação de pedidos incompatíveis, a incompetência do Tribunal em razão da matéria, a ilegitimidade da requerente e a existência de litispendência.
Quanto à incompetência do Tribunal, alegou, em síntese, que a matéria controvertida trata do licenciamento de uma obra realizada em caminho público e que deve ser julgada pelos Tribunais Administrativos.
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Notificada para, querendo, se pronunciar acerca da matéria de excepções invocadas pela requerida na sua oposição, a requerente pugnou pela sua improcedência (ref.ªs ...78 e ...73).
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A 30/10/2024, foi realizada uma tentativa de conciliação, que se revelou infrutífera (ref.ª ...57).
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Seguidamente, foi designada data para a realização da audiência de julgamento, a qual se veio a realizar a 12/02/2025 (ref.ª ...32).
Posteriormente, a Mm.ª Juíza “a quo” proferiu sentença, datada de 20.02.2025, nos termos da qual decidiu (ref.ª ...07):
Julgar «procedente a exceção de incompetência material invocada pela Requerida, e em consequência, este Juízo Local Cível de ..., da Comarca de Vila Real, declara-se absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer dos pedidos efetuados nestes autos pela Requerente, e, em consequência, absolve-se a Requerida da instância».
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Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a requerente (cfr. Ref.ª ...50), tendo formulado, a terminar as respetivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«1) A obra levada a cabo pela requerida-sociedade foi feita em caminho vicinal que integra o património da Junta de Freguesia, cuja administração lhe cabe por lei, nos termos das alíneas ff) e ii) do nº 1 do artigo 16º do Reg. Jurídico das Autarquias Locais e também pelo Regulamento aprovado pela Assembleia de Freguesia ..., em 16 de dezembro de 2023, i.e., “Regulamento da Ocupação dos Caminhos Vicinais e Outros Locais Públicos da Freguesia ..., cuja existência e genuinidade não foi questionada. 2) Daí que não se entenda que para conhecer da causa, havia a necessidade prévia de indagar da competência do órgão autárquico, da requerente ou da Câmara Municipal, para licenciar a obra, quando é manifesto que essa competência compete legalmente e por regulamento à requerente. 3) O mesmo vale quanto à suposta necessidade prévia de apurar da validade do Regulamento, quando a sua existência e genuinidade não foi alvo de controvérsia. 4) Igualmente não era necessário saber, muito menos indicar, qualquer lei habilitante do dito “Regulamento” que notoriamente não visa regulamentar qualquer lei, nem se trata de regulamento independente, pois que não tem como propósito introduzir uma disciplina jurídica inovadora no âmbito das atribuições da requerente artigo 139.º do CPA). 5) Também e nesse sentido o “Regulamento” não tinha de ser publicado em Diário da República. 6) Não se verifica a excepção de incompetência absoluta em razão da matéria, nos supra alinhados fundamentos, destacando-se que a lide reveste natureza de direito privado. 7) O Tribunal a quo é competente para conhecer da providência cautelar de ratificação de obra nova e não o tribunal administrativo (que aliás, não tem competência legal para conhecer da ratificação do embargo de obra nova). 8) Ocorreu errónea interpretação e aplicação da lei e a infracção, designadamente ao artigo 64º do CPC, do artigo 13º, nº 3 da CRP, do artigo 397º do CPC e do artigo 7º do DL nº 34593 de 11 de Maio de 1945. Termos em que deve o presente recurso proceder e em consequência ser julgado que o tribunal a quo não é incompetente em razão da matéria, não se verificando a excepção de incompetência absoluta, pois compete ao mesmo, como tribunal comum ajuizar da questão e nesta decorrência deve determinar-se a remessa dos autos ao Juízo Local Cível de ...-Juiz 1 a fim de apreciar e decidir do mérito da causa, o que se requer a V.ªs Ex.ªs. Assim decidindo, farão V.ªs Ex.ªs aliás, como sempre, JUSTIÇA!!».
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Contra-alegou a requerida, pugnando pela manutenção da decisão recorrida e improcedência do recurso (cfr. Ref.ª ...15).
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo da decisão (cfr. Ref.ª ...57).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, importa verificar e decidir, apenas, qual das duas ordens de tribunais – a dos tribunais judiciais/comuns ou a dos tribunais administrativos – é a competente, em razão da matéria, para julgar o presente procedimento cautelar.
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III. Fundamentação de facto
As incidências fáctico-processuais relevantes para a decisão do presente recurso são as que decorrem do relatório supra (que, por brevidade, aqui se dão por integralmente reproduzidas).
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IV. Fundamentação de direito
1. Indagar qual o tribunal materialmente competente para a causa: se o Tribunal comum ou se os Tribunais Administrativos e Fiscais.
A questão a apreciar e decidir reside em determinar se se verifica (ou não), a excepção (dilatória) de incompetência material, determinando se, como decidiu o Tribunal “a quo” (e conforme defendido pela Apelada), o presente procedimento cautelar de embargo extrajudicial da obra nova versa sobre matéria do foro administrativo e, por isso, competente, em razão da matéria, para o apreciar e julgar são os tribunais administrativos,ou, ao invés, como sustenta o apelante, se deve concluir-se pela competência dos tribunais comuns.
A competência do tribunal é um pressuposto processual para que o tribunal se ocupe da questão, a apreciar em concreto, perante cada acção, em ordem a determinar se entre esta e aquele existe a conexão considerada relevante e decisiva pela lei, atribuindo-lhe o poder para apreciar a causa. Proposta a acção em tribunal diferente do que decorre das regras de competência, verifica-se a incompetência do tribunal que consiste na “insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação”[2].
Do art. 209º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) resulta que, para além do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas, existem duas categorias de tribunais, que são, justamente, as ordens de tribunais previstas na lei: os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais.
Dispõe o art. 211.º, n.º 1, da CRP que “[o]s tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
Este preceito atribui aos tribunais judiciais uma competência própria em matéria cível e criminal e uma competência residual quanto ao que não pertencer à competência de outras ordens jurisdicionais[3].
Sob a epígrafe “Fatores determinantes da competência na ordem interna”, prescreve o art. 60º do CPC: “1 - A competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código. 2 - Na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território”.
Na concretização do enunciado constitucional estabelecido no n.º 1 do art. 211.º da CRP, prevê o art. 64.º do CPC que são “da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
A competência dos tribunais comuns, em razão da matéria, é residual, isto é, afirma-se na ausência de qualquer outra ordem jurisdicional com competência para a causa.
A competência em razão da matéria (ratione materiae) respeita à distribuição do poder jurisdicional pelas diversas espécies e ordens de tribunais considerados no mesmo plano, isto é horizontalmente, sem que entre eles exista uma qualquer relação de subordinação ou dependência hierárquica[4].
A infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (art. 96º, al. a), do CPC), traduzindo-se numa excepção dilatória (arts. 576º, n.º 1, e 577º, al. a), do CPC), de conhecimento oficioso do tribunal (art. 578º do CPC), que, consoante o tipo de processo e a fase processual em curso, acarreta a absolvição dos réus da instância ou o indeferimento liminar da petição inicial (arts. 99º, n.º 1, e 278º, n.º 1, al. a), do CPC).
Nos termos da Lei n.º 62/2013, de 26/08 [que aprovou a Lei da Organização do Sistema Judiciário[5] (abreviadamente designada LOSJ)]:
- “Na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território” (art. 37º, n.º 1).
- “A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei” (art. 38º, n.º 1).
- “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (art. 40º, n.º 1).
O tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa (art. 91º, n.º 1, do CPC).
Compete, por outro lado, aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (art. 212º, n.º 3, da CRP).
Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais «nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto» (art. 1º, n.º 1, da Lei n.º 13/2002, de 19.02, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - ETAF), sendo essa competência aferida à data da propositura da ação (art. 5º, n.º 1, do ETAF).
Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, à fiscalização da legalidade de actos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública e à fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos e às relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores (art. 4º, n.º 1, alíneas b), c), d), e o), do ETAF).
Partindo dos citados arts. 212°, n.° 3, da CRP, e 1º, n.º 1, do ETAF, a competência dos tribunais administrativos e fiscais dependerá da ponderação sobre se se está, ou não, perante pleitos derivados de relações jurídicas administrativas (e fiscais), sendo que só no primeiro caso tal competência se verificará.
Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, pois, a existência de uma relação jurídica administrativa.
Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que, por via de regra, confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração[6];
Como nota Vieira de Andrade[7], a lei não define o que se entende por “relação administrativa”, questão que “sendo fulcral, devia ser resolvida expressamente pelo legislador. Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa”, no sentido estrito tradicional da “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração (…). A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito publico e o direito privado (…)”.
Prossegue o citado autor referindo que devem ser consideradas relações jurídicas administrativas aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actua com vista à realização de um interesse público legalmente definido. E excluem-se, em princípio, do âmbito substancial da justiça administrativa as relações de direito privado em que intervém a Administração, isto é, as decorrentes da actividade de direito privado da administração, quer seja a que corresponde ao mero exercício da sua capacidade privada (negócios auxiliares, administração do património, gestão de estabelecimento económicos em concorrência), quer se trate de actividades funcionalmente administrativas, quando ou na medida em que se desenvolvam através de institutos jurídicos privatísticos (subvenções fornecimentos de bens e de serviços), ainda que toda a actividade administrativa esteja sujeita aos princípios fundamentais do direito administrativo[8].
Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira[9], na jurisdição administrativa estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico administrativas (ou fiscais), ou seja, litígios em que um dos sujeitos é uma entidade pública ou uma entidade privada que actua como se fosse pública e em que os direitos e os deveres que constituem a relação emergem de normas legais de direito administrativo ou referem-se ao âmbito substancial da própria função administrativa.
Como é entendimento maioritário da jurisprudência e doutrina, a competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respetivos fundamentos (causa de pedir), independentemente da idoneidade do meio processual utilizado e da apreciação do seu acerto substancial[10]. Por isso, para se aferir da competência material do tribunal importa apenas atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados.
Há que atender, assim, ao direito a que ele se arroga e às consequências que, a partir daí, pretenda que o tribunal declare ou decrete.Isto porque o objeto do processo é, em regra, conformado pela pretensão do autor, a qual traça o âmbito máximo do “thema decidendum”, sob pena da posição do Réu poder revestir um efeito redutor do objeto processual, o que não se nos afigura correto.
Por outro lado e tal como é, aliás, entendimento doutrinal e jurisprudencial uniforme, a competência do tribunal, em geral, não está dependente da personalidade judiciária de demandante(s) e demandado(s) ou sequer da legitimidade das partes, sendo que para a aferição da mesma nada releva um julgamento quanto à procedência da pretensão ou da ação. É que saber se a configuração jurídica que os interessados dão à sua pretensão é ou não correta, ou se procedem as razões dos demandados, é questão que já contende com o mérito do processo e que não deve interferir na decisão sobre a competência do tribunal.
O procedimento cautelar tem que ser proposto no tribunal que seja competente em razão da matéria para julgar a causa principal (art. 364º, n.º 1, do CPC)[11].
O procedimento cautelar de embargo de obra é um procedimento cautelar especificado, que vem regulado no artigo 397.º do CPC, nos seguintes termos:
“1 - Aquele que se julgue ofendido no seu direito de propriedade, singular ou comum, em qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse, em consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou ameace causar prejuízo, pode requerer, dentro de 30 dias a contar do conhecimento do facto, que a obra, trabalho ou serviço seja mandado suspender imediatamente. 2 - O interessado pode também fazer diretamente o embargo por via extrajudicial, notificando verbalmente, perante duas testemunhas, o dono da obra, ou, na sua falta, o encarregado ou quem o substituir para a não continuar. 3 - O embargo previsto no número anterior fica, porém, sem efeito se, dentro de cinco dias, não for requerida a ratificação judicial”.
O embargo judicial de obra nova é uma providência cautelar nominada que procura regular provisoriamente um litígio, garantindo a “estabilização da situação de facto” até que o direito seja declarado e reconhecido na acção principal de que aquela providência depende. Esta providência visa impedir a violação (ou a continuação da violação), de um direito real (direito de propriedade, de servidão predial, de superfície, de usufruto de uso e habitação) ou pessoal de gozo ou da posse em virtude da execução de uma obra, trabalho ou serviço novo, que cause ou ameace causar prejuízo ao seu titular. Trata-se de uma providência conservatória, na medida em que tem como objetivo principal “suspender provisoriamente uma obra cuja suspensão definitiva ou cuja demolição possa vir a ser decretada na ação”[12]. Pretendem evitar-se danos ou o seu agravamento. É dependência da acção em que se peça a demolição ou a condenação a não executar a obra, trabalho ou serviço.
Na sua essência, o embargo de obra nova visa a suspensão da obra, por a sua realização estar a causar ou ameaçar causar um prejuízo ao titular do direito de propriedade ou de outro direito real ou pessoal de gozo ou posse, sendo que, quando é este direito real o afectado na sua essência, a jurisprudência dos tribunais superiores[13] e do Tribunal de Conflitos[14], têm considerado que a competência é dos tribunais comuns.
No caso em análise, o requerente alegou, no requerimento inicial, que, no dia 27/06/2024, efetuou o embargo extrajudicial duma obra da autoria da recorrida, levada a cabo sobre um caminho público, de natureza vicinal (especificamente, o caminho de terra conhecido como caminho ..., localizado junto ao aqueduto da Rua ...).
Alegou que tinha “sido cortado o tubo de água, pertença da Junta de Freguesia, que garante o abastecimento de água da nascente do ... à população de ... (que ficou sem acesso a água canalizada durante várias horas) e tinha sido aberta uma vala com o comprimento de 120 metros”, encontrando-se “no local dos trabalhos um tubo de canalização de água, com cerca de 3 polegadas de diâmetro, com comprimento muito superior ao comprimento da vala já aberta, daí depreendendo que a requerida pretendia rasgar e ocupar o caminho em comprimento superior a 500 metros” (arts. 13º e 14º).
Efectuou o referido embargo da obra porquanto esta não havia sido autorizada, nem licenciada pela Junta de Freguesia.
Invocou para tanto que:
- Nos termos do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento da Ocupação dos Caminhos Vicinais e Outros Locais Públicos da Freguesia ..., “nos caminhos vicinais da Freguesia ... não é permitido, sem licença da Junta, abrir covas ou furos (al. C) e fazer ou colocar qualquer espécie de instalações, mesmo com carácter provisório, seja no solo, …” (art. 10º).
- “Aquele Regulamento determina ainda que a ocupação dos caminhos vicinais da Freguesia ... está dependente de licenciamento da Junta de Freguesia, cujo procedimento se encontra regulado no artigo 4.º, estando ainda sujeita ao pagamento de taxas (nos termos do artigo 5.º)” (art. 11º).
- “A requerida nunca solicitou à Junta de Freguesia o licenciamento de qualquer obra ou trabalho no aludido caminho do ... (caminho vicinal) …” (art. 21º).
- “Pelo que nunca foi emitida qualquer licença para o efeito, levando a requerida a cabo as enunciadas obras e trabalhos à revelia da necessária licença ou autorização da Junta de Freguesia ..., com infracção da lei, com ênfase ao dito regulamento, e lesando o património público e violando o domínio da requerente em relação ao enunciado caminho vicinal sobre o qual exerce tutela e integra a esfera jurídico-patrimonial da requerente” (art. 22º).
Ora, tendo por referência a invocada causa de pedir e o efeito jurídico que pretende obter, a requerente não pretende ver reconhecido e salvaguardado um direito de propriedade sobre determinado bem que faz parte da sua esfera privada, pois não está em causa a defesa de um seu direito privado. No caso presente não estamos perante uma reivindicação de propriedade, já que a alegação da requerente é a de que a obra foi realizada sobre um caminho vicinal, que corresponde a um caminho público.
Está antes em causa a tutela da dominialidade pública do caminho vicinal, pretendendo a requerente suspender a obra nele realizada pela requerida por a mesma não se encontrar autorizada ou licenciada pela autoridade pública competente para o efeito (que, no caso, se arroga ser a própria requerente).
Ou seja, enquanto órgão executivo da Freguesia ..., invoca a requerente, como causa de pedir, a sua alegada competência para autorizar ou licenciar a obra e o facto de não a ter licenciado.
No fundo, como refere a recorrida, invoca a actuação ao abrigo do “ius imperium”.
Tal questão contende com a apreciação de um acto/relação de índole administrativa, designadamente aferir se a realização da dita obra está dependente da emissão de uma licença ou autorização, por parte da Administração (seja a Junta de Freguesia, como defendido pela recorrente, ou o Município, como preconizado pela recorrida[15]).
Resulta, aliás, da documentação junta aos autos que na Câmara Municipal ... corre procedimento n.º ...24 e ...3, em que foi determinado à ora recorrida “Auto de Embargo e Suspensão de Obras Particulares”, nos termos dos arts. 102º-B e 103º do Dec. Lei n.º 555/99, de 16/12.
Essa determinação foi objecto de reclamação por parte da ora recorrida nos termos do art. 191º do Código de Procedimento Administrativo, dirigida ao Presidente da Câmara Municipal ....
Por outro lado, as normas invocadas pela requerente não são de direito privado e o litígio não é, igualmente, de natureza privada.
A razão de ser do presente procedimento cautelar, o seu fundamento essencial e o pedido formulado não são típicos de processos que correm e cabem aos tribunais comuns, posto envolver manifestamente a sua resolução a convocação e aplicação de regimes de direito público – designadamente o licenciamento de obras incidentes sobre bens do domínio público, no caso um caminho público, vicinal –, sabendo-se que, em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo.
Atenta a causa de pedir, não estamos perante uma relação jurídica de direito privado, mas, sim, como vimos, uma relação jurídico-administrativa.
Estamos, pois, em face de uma providência cautelar que não versa sobre a alegada violação do direito de propriedade da requerente, mas sobre a ilegalidade da obra, do ponto de vista jurídico-administrativo, pelo que a competência para a sua apreciação, nos termos expostos, cabe aos tribunais administrativos e não aos tribunais comuns.
A delimitação do âmbito da competência material da jurisdição administrativa, in casu, é suscetível de ser enquadrada na situação descrita no art. 4º, n.º 1, alíneas b), c), d), e o), do ETAF.
Deste modo, tem de concluir-se que, nas circunstâncias do caso, é a jurisdição administrativa e fiscal a competente para conhecer do procedimento cautelar.
Consequentemente, a decisão recorrida deve ser mantida, improcedendo, pois, a apelação.
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As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade da recorrente, atento o seu integral decaimento (art. 527º do CPC).
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V. DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a presente apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo da requerente.
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Guimarães, 29 de maio de 2025
Alcides Rodrigues (relator)
Maria Luísa Duarte Ramos (1ª adjunta)
Ana Cristina Duarte (2ª adjunta)
[1] Proveniência do procedimento cautelar: Juízo Local Cível de ... – Juiz 1 – do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real. [2] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, Lex, p. 128. [3] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, anotação ao art. 64º, CPC Online, CPC: art. 1.º a 129.º, Versão de 2024/12, pp. 80/81, in https://drive.google.com/file/d/1NgBsOLsoGXMXNqzKRBmrQEI3u-VTSOy5/view [4] Cfr. Ac. do STJ de 12/10/2023 (relator Ferreira Lopes), in www.dgsi.pt. [5] Que estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário (art. 1º). [6] Cfr. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 2001, p. 518. [7] Cfr. A Justiça Administrativa (Lições), 12ª ed., Almedina, 2012, pp. 48/49. [8] Cfr. José Carlos Vieira de Andrade, obra citada, p. 50. [9] Cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2010, pp. 566 e 567 (em anotação ao art. 212.º, n.º 3, da CRP). [10] Cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, Coimbra Editora, p. 111, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra Editora, 1993, p. 91, Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 104, Miguel Teixeira de Sousa, A Nova Competência dos Tribunais Civis, Lex, 1999, 3ª ed., p. 25, Mariana França Monteiro, A Causa de Pedir na Acção Declarativa, Coleção Teses, 2004, Almedina, pp, 168/170, e, entre outros, os Acs. do STJ de 25/06/09 (relator Pinto Hespanhol), de 22/10/2015 (relator Tomé Gomes), de 13/10/2016 (relator Manuel Tomé Soares Gomes), de 29/11/2016 (relator Alexandre Reis), de 06/12/2016 (relator Fonseca Ramos), de 02/03/2017 (relator António Piçarra) e de 17/12/2020 (relatora Maria Clara Sottomayor), todos acessíveis em www.dgsi.pt. [11] Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 01.3.2007 (relator Sebastião de Póvoas) e do Tribunal de Conflitos de 07.7.2009, (relator Salazar Casanova), processo n.º 011/09 e 07.10.2009 (relator Jorge de Sousa), processo n.º 01/09 e o Ac. da RC de 20/04/2016 (relator Fonte Ramos), publicados in www.dgsi.pt.. [12] Cfr. Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2017, 3ª ed., Almedina, pp. 289 e 290. [13] Cfr., neste sentido, por exemplo, os Acórdãos da RE de 11.10.2022 (relator Manuel Bargado), de 30.06.2021 (relator Rui Machado e Moura) e de 25.03.2021 (relator Francisco Matos), in www.dgsi.pt. [14] Cfr., a título exemplificativo, Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 10.03.2016 (relatora Ana Boularot) e de 06.04.2022 (relatora Teresa Sousa), in www.dgsi.pt.. [15] A competência para licenciamento de obras em caminhos públicos é das Câmaras Municipais [cfr. o Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, que estabelece o regime jurídico da urbanização e da edificação, define, como princípio geral, a obrigatoriedade de licenciamento camarário de obras de construção civil previstas no art. 4.º, n.º 2, sendo que nos termos do disposto no art. 5º, do citado regime jurídico, o licenciamento de obras de construção civil compete à câmara municipal].