CONTRATO DE MÚTUO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
Sumário


.1- Na aplicação do princípio da livre apreciação da prova, a convicção do julgador é obtida em concreto, entre o mais, face a toda a prova produzida, com recurso ao bom senso, às regras da experiência, quer da vida real, quer da vida judiciária e à diferente credibilidade de cada elemento de prova.
.2- Para descobrir se além do capital são devidos juros na obrigação de restituição do capital entregue no âmbito de um contrato de mútuo nulo por falta de forma, não há que recorrer às normas que regulam o mútuo, mas aos efeitos da nulidade: por força do disposto no nº 3 do artigo 289º do Código Civil que remete para o artigo 1271º desse diploma, considerando que a boa-fé cessa com a citação (artigo 564º do Código de Processo Civil) são devidos juros de mora à taxa legal a contar da citação, por se consideraram frutos civis (artigo 212º do Código Civil).

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I - Relatório

Apelantes (e Réus):   AA e mulher BB
Apelados (a Autora e seu marido, interveniente principal ativo provocado): CC e DD
Apelação:  em ação declarativa de condenação com forma comum

A Autora peticionou que se declare que o contrato de mútuo celebrado entre as partes é nulo e que se condenem os Réus a restituir-lhe a quantia de € 53.000,00 (cinquenta e três mil euros), acrescida dos juros legais já vencidos, no montante de € 10.600,00 (dez mil e seiscentos euros), bem como dos juros de mora vincendos, até efetivo e integral pagamento.
  Alegou, para tanto e em síntese, que a Autora emprestou aos Réus, em 23 de novembro de 2007, a quantia de 53.000,00 €, obrigando-se estes a restituir tal quantia em três meses; tal mutuo é nulo por vício de forma.
Os Réus contestaram por impugnação, invocando, em síntese, que não celebraram em nome próprio qualquer contrato de mútuo; foi, sim, celebrado pela Autora um contrato de mútuo com a sociedade de que os Réus eram sócios e que tal sociedade foi declarada insolvente em 2012, sem que o crédito tenha sido reclamado na insolvência. Acrescentaram que a responsabilidade pelo fracasso da sociedade não pode ser imputada à gestão efetuada pelo Réu.
 Após a realização de audiência final, foi proferida sentença, que julgou a ação parcialmente procedente, declarou nulo o contrato de mútuo celebrado entre as partes e condenou os RR. a pagar à A. e interveniente a quantia de 53.000 €, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, a contar da citação até efetivo e integral pagamento.

É desta sentença que os Recorrentes interpõem recurso, com as seguintes
conclusões:
 […]
18ª Não tendo a Autora provado a existência de um acordo com os Réus mediante o qual estes teriam de restituir àquela a quantia de 53.000,00€, no prazo de três meses - como ela alegava e lhe cabia provar - e, ao invés, tendo duas testemunhas (o Engº EE e FF) assegurado haver o compromisso segundo o qual a Autora emprestava à empresa e esta, em troca, ia levar a cabo obras para aquela e para o seu marido, não é possível ter-se como existente o contrato de mútuo entre a Autora e os Réus. É que não existe mútuo sem obrigação de restituir.
19ª Não resultando provados os elementos que permitiriam afirmar que entre a Autora e os Réus se havia celebrado o contrato de mútuo, não é possível fazer apelo à inobservância de forma legal de tal contrato e à restituição que caberia fazer nessa situação, à sombra o disposto nos art.ºs 1143,º, 220,º e 289,º n,º 1, todos do Cód. Civil.
Sem prescindir
20ª Afirmando a Autora (artigo 9º da petição inicial) que o mútuo invocado era «sem juros» o mesmo tem de considerar-se como gratuito.
21ª Os juros moratórios, de natureza indemnizatória, resultam da mora do devedor, a qual, no caso do mútuo gratuito, só acontece quando há interpelação para o pagamento. Não tendo havido interpelação, a serem devidos juros de mora, estes contam-se da sentença condenatória.
22ª A Sentença impugnada viola o disposto nos artigos 607.º, 608.º, n.º 2, 610.º, n.º 2, alínea b)  e 615.º, n.º 1, alíneas d) e e) do Código de Processo Civil e os artigos 220.º, 289.º n.º 1, 341.º, 342.º, 805.º, 1143.º, 1145.º, n.º 1 e 1148.º, nºs 1 e 2 do Código Civil.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO APLICÁVEIS DEVE CONCEDER-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, DEVE: 

A) DECLARAR-SE A NULIDADE DA SENTENÇA RECORRIDA por omissão de pronúncia (arts. 608.º, nº 2 e 615.º, nº 1, alínea d) e e) do CPC); ou, se assim se não entender,
B) REVOGAR-SE A D. SENTENÇA RECORRIDA, nos termos e nos aspectos indicados neste recurso”

II -   Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Assim, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, não pode este tribunal apreciar questões que não tenham sido levantadas nas alegações; da mesma forma também não pode decidir questões que não tenham sido levantadas antes destas (as denominadas questões novas), exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Tudo posto, face às conclusões do recurso, importa analisar as seguintes questões:
-- Se a sentença é nula;
--  Se deve ser alterada a matéria de facto no sentido pugnado pelos Recorrentes e em caso afirmativo se tal alteração determina a improcedência do pedido;
-- a data a partir da qual se devem contar os juros de mora.

III - Fundamentação de Facto

Segue o elenco da matéria de facto provada e não provada a considerar, indicando-se os factos selecionados na sentença (os quais, mantendo-se, são reproduzidos sem qualquer menção adicional):

- Factos provados:
1) A Autora, em inícios do mês de novembro de 2007, foi contactada em ..., país onde habitualmente reside, pelo seu irmão – GG, no sentido de emprestar aos Réus a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros).
2) O referido empréstimo seria efetuado sem juros e destinava-se ao pagamento de dívidas do casal (constituído pelos Réus), relacionadas com a habitação daqueles.
3) À data, a Autora, mostrou-se pouco recetível, até porque, não tinha disponível na sua conta à ordem da Banco 1..., em Portugal, tal montante.
4) Por insistência de seu irmão - GG, no dia 6 de novembro de 2007, junto da Banca Francesa – Banco 2..., acabou por ordenar a transferência de € 25.800,00 (vinte e cinco mil e oitocentos euros), para a conta à ordem da Banco 1..., de que era titular na agência de ....
5) E, no dia 23 de novembro de 2007, requereu, junto da EMP01..., a transferência no valor de € 24.839,52 (vinte e quatro mil oitocentos e trinta e nove euros e cinquenta e dois cêntimos), refente a um seguro de vida, sob a forma de X/ E GARANTIA, com apólice nº ...66, de que era titular, para a referida conta bancária da Banco 1....
6) A Autora, com essas duas transferências, conseguiu arrecadar a quantia de € 54.664,08 (cinquenta e quatro mil seiscentos e sessenta e quatro euros e oito cêntimos), na conta bancária nº ...00, de que era titular na Banco 1..., agência de ....
7) A pedido dos Réus, no dia 23 de novembro de 2007, foi-lhes mutuada a quantia de € 53.000,00 (cinquenta e três mil euros), com obrigação de restituição.
8) Isto porque, segundo aqueles, os € 50.000,00 (cinquenta mil euros), inicialmente solicitados, não chegavam para a liquidação da dívida em causa.
9) O Réu AA tinha procuração para movimentar a conta identificada em 6).
10) O Réu usou essa procuração para movimentar a quantia de 53.000 € em discussão nos autos.
11) Os Réus não restituíram à A. a quantia mutuada.
12) A sociedade “EMP02..., Lda” foi declarada insolvente em 2012.
13) A A. não reclamou qualquer crédito nessa insolvência.

- Factos não provados:
Não resultaram provados quaisquer outros factos com interesse para a justa decisão da causa.

Nomeadamente, não resultaram provados os seguintes factos:
I. O referido empréstimo seria efetuado pelo prazo de três (3) meses.
II. A Autora acordou com os Réus assinar uma declaração de dívida durante o período das férias de Natal, quando esta viesse a Portugal de férias.
III. O que nunca chegou a acontecer, porquanto, os Réus, com esta ou aquela desculpa, sempre se furtaram à assinatura da referida declaração.
IV. Porque a Autora insistiu na restituição do dinheiro emprestado, o primeiro Réu, em meados de junho de 2008, prometeu que iria liquidar a dívida, alegando que o empréstimo do Banco estava “quase a sair” e que, até ao final desse ano, tudo seria liquidado.
V. A Autora socorreu-se dos serviços do seu mandatário e enviou aos Réus uma carta a solicitar a entrega da quantia mutuada.
VI. Existiu um mútuo no valor de 53.000,00€ da A. à sociedade “EMP02..., Lda.”, da qual os RR eram sócios.
VII. Empréstimo que foi efetuado no final do ano de 2007, sem prazo e sem juros, e que se destinava ao pagamento de dívidas da referida sociedade às Finanças.

IV - Fundamentação

A) Da nulidade da sentença (arts. 608.º, nº 2 e 615.º, nº 1, alínea d) e e) do Código de Processo Civil)
Os Réus defendem que a sentença padece de nulidade, porquanto na matéria de facto provada e não provada não se pronunciou sobre os seguintes factos:
- que os Réus eram sócios da EMP02... Lda e
- que existia uma dívida fiscal da referida sociedade que foi paga.
Classificam esta omissão como uma causa de nulidade da sentença, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Civil, por falta de pronúncia de questão que devia ser conhecida, uma vez que invocaram estes factos na contestação, em impugnação da causa de pedir apresentada pela Autora.
Ora, no artigo 608º, nº 2 do Código de Processo Civil, que define as questões que o juiz deve resolver, aponta-se para aquelas que dizem respeito à causa de pedir e às exceções ou outras questões jurídicas apresentadas pelas partes e que cumpra oficiosamente apreciar. As questões a decidir não abarcam todos os argumentos que as partes tenham trazido aos autos, mas apenas os assuntos que importem para a decisão. Questões e argumentos são conceitos diferentes.
Ora, dentro da matéria de facto a atender cada facto corresponderia a um argumento, peça de um conceito com peso jurídico que a parte traz aos autos para fundar a sua posição.
Por outro lado, e de forma mais relevante, a falta de pronúncia sobre factos relevantes para a decisão de que se queixam os Recorrentes (e que pretendem ver provados) traduz-se na impugnação da matéria de facto provada e não provada, a qual tem, na estrutura do Código de Processo Civil um tratamento específico, lavrado no artigo 662º, nº 2. alínea c) e nº 3 alínea c), que prevê a necessidade de ampliação da matéria de facto, determinando que sendo necessário, implica a repetição do julgamento, caso não constem do processo todos os elementos que permitam a alteração da matéria de facto.
Assim, não se verifica a nulidade prevista nas alíneas d) do artigo 615º do Código de Processo Civil, por esta dizer apenas respeito a questões jurídicas e não a simples factos, havendo, em sede de apreciação da impugnação da matéria de facto, que verificar se estes necessitavam de ser apreciados e se a sua avaliação origina a ampliação da matéria de facto.
Os Recorrentes invocam ainda, embora sem fundamentar, que se verifica a nulidade prevista na alínea e) do Código de Processo Civil, mas a condenação ficou aquém do pedido, pelo que também improcede a nulidade fundada nesta alínea.
Não se verifica, pois, a nulidade da sentença.

B) Da impugnação da matéria de facto

a) Do não conhecimento da impugnação de factos irrelevantes para a decisão da causa
A proibição da prática de atos inúteis encontra-se prevista no artigo 130º do Código de Processo Civil e nos termos do artigo 7º nº 1 deste diploma, “na condução e intervenção no processo, devem os magistrados”.., concorrer “para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”. Mesmo que se entenda (como se entende) que se deve dar prevalência à justiça material sobre uma mera justiça formal (sem esquecer que para tanto importa respeitar as regras processuais, ainda que lidas com flexibilidade, porque sem respeito pelas mesmas tal não será possível), há sempre que ter em conta que importa obter uma tempestiva aplicação da justiça, sob pena da mesma não ter eficácia razoável. Ora, só a aplicação racional dos meios e esforços de todos os intervenientes processuais permite essa eficiência.
 Assim, é mister não desperdiçar tempo e meios na apreciação de factos que não importam para a solução justa do litígio ou que por si só, são insuscetíveis de alterar a decisão dada pela 1ª instância. Entre estes casos, logo saltam à vista aqueles que consistem na impugnação de factos que são totalmente irrelevantes para a decisão da causa ou o aditamento de outros que também nada interessam para tal efeito.
Não se diga que a manutenção de factos provados numa sentença que não correspondem à verdade ou a não inclusão daqueles que se provaram sempre poderia prejudicar a parte em processos posteriores. Não é assim, porquanto “Os fundamentos de facto não assumem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado”, como se menciona no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de 10/11/2016, no processo 2560/10.9TBPBL.C1, na esteira da melhor doutrina e ampla jurisprudência. Com efeito, nesse sentido se pronunciam ANTUNES VARELA, in Manual de Processo Civil, 1984, p. 697, TEIXEIRA DE SOUSA, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 577, e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2/03/2010,no proc. n.º 690/09.9 (“Os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente”) e de 5/5/2005 no processo nº 05B69 (“1. O princípio da eficácia extraprocessual das provas, consagrado no art. 522º, nº 1, do Código de Processo Civil, significa que a prova produzida (depoimentos e arbitramentos) num processo pode ser utilizada contra a mesma pessoa num outro processo, para fundamentar uma nova pretensão, seja da pessoa que requereu a prova, seja de pessoa diferente, mas apoiada no mesmo facto.2. Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial.3. Transpor os factos provados numa acção para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui.”)
Isto posto, há que ver se os factos aqui em debate têm algum interesse para a decisão da causa.
O que aqui se discute é se os Autores emprestaram aos Réus determinada quantia que estes estão obrigados a devolver, através de um contrato formalmente nulo.
Os Réus não deduziram qualquer exceção: impugnaram a causa de pedir afirmando que esta não correspondia à verdade. Fizeram-no de forma motivada, dizendo não só que não foram parte no empréstimo, mas acrescentando que ocorreu um empréstimo efetuado pelos Autores à sociedade de que eram sócios.
Tal não altera em nada a estrutura da ação: cabe, como bem salientam os Recorrentes, aos Autores o ónus de provar a sua causa de pedir: a celebração do contrato de mutuo com os Réus.
Enfim, a existência de um empréstimo a uma sociedade que não é parte nos autos não é de forma alguma uma questão central nos autos. Faz parte, é certo, da impugnação motivada trazida aos autos pelos Réus, mas não é necessária a sua prova para que a ação possa falhar: bastaria que se não provasse a causa de pedir invocada pelos Autores. No rigor da lógica, até se poderia demonstrar que ocorreram dois empréstimos (um aos Réus e outro à sociedade de que eram sócios, embora tal fosse muito improvável), o que não impediria que a obrigação de pagamento se mantivesse nos Réus. É por isso patente a superfluidade da prova do facto central em que os Réus fundam a sua impugnação motivada para a decisão da causa.
Por outro lado, os factos que os Recorrentes pretendem que se provem (que eram sócios dessa sociedade e que esta pagou uma dívida fiscal) não são sequer centrais na sua impugnação motivada: são meros factos instrumentais que poderiam ajudar na prova do invocado empréstimo à sociedade. Assim, não se mostra útil a sua fixação, bastando que o tribunal os avaliasse e, caso entendesse que os mesmos se provavam e afastavam a demonstração dos factos que constituem a causa de pedir, dar esta como não provada.
Assim, por desnecessidade, o tribunal não devia, nem deve, por não ter relevo na decisão, pronunciar-se sobre a prova (ou não prova) destes dois factos.

b) Dos critérios para a apreciação da impugnação da matéria de facto
Na reapreciação dos meios de prova deve-se assegurar o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância -, efetuando-se uma análise crítica das provas produzidas.
É á luz desta ideia que deve ser lido o disposto no artigo 662º nº 1 do Código de Processo Civil, o qual exige que a Relação faça nova apreciação da matéria de facto impugnada.
Como explanado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2012 no processo 649/04.2TBPDL.L1.S1, (sendo este e todos os acórdãos citados sem menção de fonte consultados no portal www.dgsi.pt) “A reapreciação das provas que a lei impõe ao Tribunal da Relação no art. 712.º, n.º 2, do CPC, quando haja impugnação da matéria de facto que haja sido registada, implica que o tribunal de recurso, ponderando as razões de facto expostas pelos recorrentes em confronto com as razões de facto consideradas na decisão, forme a sua prudente convicção que pode coincidir ou não com a convicção do tribunal recorrido (art. 655.º, n.º 1, do CPC).
A reapreciação da prova não se reduz a um controlo formal sobre a forma como o Tribunal de 1.ª instância justificou a sua convicção sobre as provas que livremente apreciou, evidenciada pelos termos em que está elaborada a motivação das respostas sobre a matéria de facto.”
 Assim, visto que vigora também neste tribunal o princípio da livre apreciação da prova, há que mencionar que esta não se confunde com a íntima convicção do julgador.
A mesma impõe uma análise racional e fundamentada dos elementos probatórios produzidos, estribando-se em critérios de razoabilidade e sensatez, recorrendo às regras da experiência e aos parâmetros do homem médio.
A formação da convicção não se funda na certeza absoluta quanto à ocorrência ou não ocorrência de um facto, em regra impossível de alcançar, por ser sempre possível equacionar acontecimento, mesmo que muito improvável, que ponha em causa tal asserção, havendo sempre a possibilidade de duvidar de qualquer facto.
É obvio que “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”, como explica Vaz Serra in Provas – Direito Probatório Material”, in BMJ 110/82 e 171.
Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz – meio da apreensão e não critério da apreensão – a ideia de que mais do que ser possível (pois não é por haver a possibilidade de um facto ter ocorrido que se segue que ele ocorreu necessariamente) e verosímil (porque podem sempre ocorrer factos inverosímeis), o facto possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível.” cf. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-06-2014 no processo 1040/12.2TBLSD-C.P1.
A convicção do julgador é obtida em concreto, face a toda a prova produzida, com recurso ao bom senso, às regras da experiência, quer da vida real, quer da vida judiciária, à diferente credibilidade de cada elemento de prova, à procura das razões que conduziram à omissão de apresentação de determinados elementos que a parte poderia apresentar com facilidade, a dificuldade na apreciação da prova por declarações e a fragilidade deste meio de prova.
Igualmente importa a “acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da ação.” (mesmo Acórdão).
Vejamos, postas estas linhas de raciocínio, se a matéria de facto provada e não provada devia ter sido fixada no sentido pretendido pelos Recorrentes.

c) Concretização

Os Recorrentes pretendem que não se provaram os pontos n.º 7º, 8º e 11º da matéria de facto provada e que se provaram os factos dados como não provados sob os nºs VI e VII e da matéria de facto. Pretendem ainda que seja aditados dois pontos à matéria de facto provada.
Estes pontos têm, respetivamente, os seguintes dizeres:
---matéria de facto provada: 7. A pedido dos Réus, no dia 23 de novembro de 2007, foi-lhes mutuada a quantia de € 53.000,00 (cinquenta e três mil euros), com obrigação de restituição. 8. Isto porque, segundo aqueles, os € 50.000,00 (cinquenta mil euros), inicialmente solicitados, não chegavam para a liquidação da dívida em causa. 11. Os Réus não restituíram à A. a quantia mutuada.”;
---matéria de facto não provada: “VI. Existiu um mútuo no valor de 53.000,00€ da A. à sociedade “EMP02..., Lda.”, da qual os RR eram sócios.  VII. Empréstimo que foi efetuado no final do ano de 2007, sem prazo e sem juros, e que se destinava ao pagamento de dívidas da referida sociedade às Finanças.”;
---matéria de facto que os Réus pretendem aditada: “Os Réus eram sócios da sociedade comercial EMP02... Lda., pessoa colectiva nº ...00, com sede no Lugar ..., ..., ... .... A sociedade comercial EMP02... Lda., tinha uma dívida à  Autoridade Tributária no valor de 53.000,00€, cuja data limite de pagamento era 30/11/2007 e que foi paga.”
 Como acabámos de ver estes factos dois últimos factos que os Recorrentes pretendem aditar são irrelevantes para a decisão a causa, pelo que, por desnecessidade, improcede esta pretensão.
Quanto à falta de prova da celebração do contrato de mutuo entre os Autores e Réus (e não entre aqueles e a sociedade de que estes eram sócios), que pretendem que seja atendida pela eliminação do ponto 7º da matéria de facto provada os Recorrentes salientam que era à Autora que cabia o ónus da prova desse facto e têm nisso toda a razão, face ao disposto no artigo 342º, nº 1, do Código Civil.
Para afastar a demonstração deste facto, em primeiro lugar,  negam a força probatória dos depoimentos das testemunhas HH, DD e GG.
Mais afirmam que a sua admissão do empréstimo à sociedade e o depoimento das testemunhas II, filha dos Réus, e de EE, FF, o documento epigrafado “Modelo 50” junto aos autos e as declarações de parte do Réu, nas quais confessou que o dinheiro foi “mexido” da conta da Autora pelo próprio Réu mediante uma procuração, sem saber precisar se o levantou ou se o “transitou” diretamente para as Finanças, o contacto efetuado pelo irmão  de ambos e as regras da experiência comum levam a que se considere como não provado que o empréstimo foi pessoal, devendo considerar-se provado que foi efetuado à sociedade. Por esta via defendem que se provaram os factos referidos na matéria de facto não provada nos pontos VI e VII.
Porque a prova do ponto 7.º é, na perspetiva dos Réus, o reverso dos pontos VI e VII, há que analisar conjuntamente estes pontos.
Ouvida e analisada a prova, entendemos que os Recorrentes carecem de razão.
Não há dúvidas nos autos que a Autora carregou uma sua conta bancária com 53.000,00 € e o Réu munido de uma procuração emitida a seu favor transferiu esse dinheiro. Os Réus aceitam, na sua contestação, que essa transferência foi feita no âmbito de um empréstimo e que o seu beneficiário se obrigou a devolver a quantia transferida, mas afirmam que o beneficiário da quantia foi uma sociedade e foi com esta que os Autores contrataram.
Desta forma, põem em causa com quem foi celebrado o contrato, afirmando que nada prova que não foi à empresa de que eram sócios. Afirmam que o facto de ter sido o irmão da Autora e do Réu que iniciou os contactos para que se realizasse tal empréstimo indicia que o empréstimo não foi pessoal, mas não se lhes consegue dar razão.
A intervenção do irmão da Autora e do Réu no sentido da realização do empréstimo induz fortemente a motivação e relação pessoal e familiar que lhe subjazia, afastando a ideia que o mesmo fosse efetuado à sociedade.
Também a forma como o mesmo teve lugar, mediante uma procuração outorgada a favor do Réu, que fez pessoalmente a transferência, nos leva a essa conclusão.
A existência do Modelo 50, relativo à dívida ao fisco não faz presumir que a Autora tenha emprestado o dinheiro à sociedade, visto que mesma não teve qualquer intervenção nesse documento. Nem tão pouco que o dinheiro fosse utilizado para esse fim. Mas mesmo que o destino que o Réu tivesse dado ao dinheiro fosse o pagamento dessa dívida (o que se não mostra comprovado), não resultaria desse facto que o dinheiro tivesse sido emprestado à sociedade.
Relevante é a quem a Autora emprestou o dinheiro e quem se obrigou a devolvê-lo e em que termos. Ora, tudo nos autos aponta para um empréstimo fundado em razão dos laços familiares que ligam os intervenientes:
--o facto do autor e Réu serem irmãos, de ter sido um irmão de ambos que intercedeu no sentido de o empréstimo ter lugar, de não ter sido sujeito a escrito, como seria o natural caso o beneficiário fosse uma sociedade e de ter sido executado mediante o uso de uma procuração outorgada ao próprio Réu.
Os elementos probatórios produzidos são suficientes para suportar estes factos: os documentos asseguram o carregamento da conta da Autora com o dinheiro mutuado, o Réu assume que mercê de uma procuração outorgada a seu favor o transferiu como entendeu, embora não saiba precisar se foi para uma outra conta ou diretamente ao Fisco, o depoimento do irmão do Réu, GG, que fez os contactos iniciais entre os seus outros  dois irmãos aqui partes, mostra-se muito forte nesse sentido, dando conta que também ele e a sua irmã HH emprestaram dinheiro ao Réu, pessoalmente, e que o mesmo não lhe foi devolvido.
Esta irmã, HH, depôs no sentido de confirmar os factos dados como provados.
O seu depoimento mostrou-se imparcial, muito objetivo, referindo que não viu as transações efetuadas, mas claro no sentido dos empréstimos terem sido feitos ao seu irmão e não à sociedade. Também foi perentório nesse sentido o depoimento do filho da Autora DD.
A filha do Réu, II, não afirma qualquer contacto direto com a tia ou outra razão de ciência direta que permita que seja posto em causa todo o circunstancialismo que rodeou o negócio, alterando os sujeitos do mesmo dos intervenientes físicos para a sociedade de que o Réu seria sócio. A existência de uma dívida ao fisco que tenha sido paga não implica que a Autora emprestasse o dinheiro para esse fim. E não conduz, tão pouco, à ideia que o Réu lhe afirmasse que quem ficaria obrigado à devolução seria a sociedade ou que estava a agir em nome desta. O mesmo se diga dos depoimentos de JJ, que confirmou a existência de um imposto que foi pago por transferência bancária, mas não explanou qualquer negócio entre a empresa e a Autora. Do seu depoimento decorre que nada sabia sobre os negócios entre o Réu e os seus irmãos, resumindo-se a afirmar o que este lhe havia contado.
FF teve um depoimento que não coincidia com o que foi invocado nos autos, afirmando que a irmã lhe entregou o dinheiro como adiantamento para umas obras que lhe iriam ser efetuadas, negando, pois, o mutuo quo tal. Também parece pretender ir nesse sentido o depoimento de EE. Estes depoimentos não reforçam o que foi invocado pelos Réus na contestação, antes consistindo já numa terceira versão, em que o empréstimo seria, afinal, o adiantamento de um preço (de uma obra que nunca teria tido lugar) e não têm por isso coerência suficiente com o teor dos autos para colocarem em causa o que decorre das circunstâncias em que decorreu o mutuo.
Por fim, não há qualquer documento que demonstre que tal dinheiro foi contabilizado na sociedade, fosse como pagamentos (os adiantamentos que foram aflorados por algumas testemunhas), como suprimentos, mútuos ou de outra forma, o que certamente ocorreria se o mesmo fosse realizado no âmbito da sua atividade comercial e para  poder ser reclamado à sociedade mais tarde.
Pelo exposto, há que manter como provados os factos nº 7º, 8º e 11º da matéria de facto provada e como não provados os retratados nos ponto VI e VII e da matéria de facto e indeferir o aditamento de factos relativos às dividas da sociedade e identidade dos seus sócios.

C) Da aplicação do Direito aos factos apurados
a) do contrato de mútuo
Na impugnação da matéria de Direito os Recorrentes afirmam que não se pode assentar que ocorreu um mútuo nulo por vício de forma, visto que embora a Autora tivesse alegado que transferiu a quantia de 53.000,00 € para uma conta dos Réus, não o provou e que sem a entrega da coisa ao Réu não é possível ter-se como existente o contrato de mútuo entre as partes.
Explana, no que se concorda ser a doutrina tradicional, que o mútuo tem sido considerado um contrato real quoad constitutionem: só se verifica se ocorrer a tradição da coisa que constitui o seu objeto mediato. Celebrado o mútuo e entregue a coisa ao mutuário, este torna-se proprietário dela, ficando, em contrapartida, adstrito ao dever de pagar a retribuição - juros - quando a ela haja lugar (e aqui se não acordaram) e a restituir coisa do mesmo género, quantidade e qualidade. 
Com efeito, o contrato de mútuo é aquele pelo qual uma das partes – o mutuante – empresta à outra – o mutuário – dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade ( artigo 1142º do Código Civil). Por outro lado, a traditio não tem que consistir numa entrega material da coisa mutuada, sendo suficiente que o mutuante atribua ao mutuário a disponibilidade das quantias mutuadas.
No entanto, ao contrário do que afirmam os Recorrentes, resulta da matéria de facto, cuja impugnação improcedeu, que tal entrega teve lugar, visto que o Réu ficou com a quantia à sua total disponibilidade e utilizou-a para os fins que teve por convenientes, como decorre dos pontos 7, 9 e 10 da matéria de facto provada, onde se salienta o pedido dos Réus no sentido de lhes ser emprestada a quantia de € 53.000,00 (cinquenta e três mil euros), assumindo a obrigação de restituir tal quantia e a sua entrega e movimentação pelos Réu mediante uma procuração de que era titular.
Assim, há que entender que a autora cumpriu o ónus que lhe incumbia de provar os factos constitutivos do contrato de mutuo (a entrega de uma coisa fungível ou de dinheiro ao mutuário e a assunção, por esta, da obrigação de a restituir).

b) dos juros
Os Recorrentes  também  afirmam que porque o mutuo não era remunerado, como a própria Autora alegou, se estava perante uma obrigação pura ou com prazo em benefício do credor e por isso o seu vencimento só ocorria um mês após a interpelação, termos do n.º 1 e n.º 2 do art.º 1148.º do Cód. Civil, mais salientando que, no seu entender, neste caso não ocorreu qualquer interpelação.
Existem aqui dois pontos que afastam este entendimento: a citação é em si uma interpelação judicial, pelo que esta teve efetivamente lugar. Mais relevantemente ainda, uma vez que o contrato de mútuo é nulo por falta de forma, para descobrir a solução jurídica do caso não há que recorrer às normas que regulam o mútuo, mas aos efeitos da nulidade.
Por corresponder a entendimento que seguimos, expresso de forma exemplar, citamos sobre esta matéria a explicação lavrada no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-02-2015, no processo 46/14.1TBAMT.P1, o qual cita jurisprudência e doutrina muito útil e interessante em rodapé, mas que por simplicidade na exposição não reproduzimos: “Segundo o preceituado no art.º 289.º, n.º 1, do Código Civil, a declaração de nulidade tem como efeito a restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, não sendo a mesma possível em espécie, o valor correspondente.
Tem-se discutido na doutrina e na jurisprudência se deve ordenar-se a restituição das quantias em singelo ou se devem ser acrescidas de juros e a que título.
O entendimento predominante vai no sentido de serem devidos juros a partir da citação, ou da interpelação admonitória, se for anterior, por efeito da nulidade, e não da restituição segundo as regras do enriquecimento sem causa.
Contra esta corrente, costuma invocar-se o carácter subsidiário da obrigação de restituir por enriquecimento sem causa, expresso inequivocamente no art.º 474.º do Código Civil, não tendo lugar nos casos previstos no n.º 1 do citado art.º 289.º.
Por outro lado, conforme resulta deste preceito, a declaração de nulidade tem eficácia retroactiva, enquanto o enriquecimento sem causa apresenta um sentido não-retroactivo e actualista, como se alcança dos art.ºs 473.º e seguintes.
Depois, não há identidade de situações entre uma inexistência da obrigação à data em que a prestação foi efectuada, característica da repetição do indevido, segundo o art.º 476.º e uma existência de qualquer excepção a excluir a eficácia da obrigação, suporte da restituição por nulidade do negócio.
Finalmente, não sendo seguro que a unidade do sistema exige que os efeitos da declaração de nulidade sejam disciplinados pelas regras da repetição do indevido, prescritas nos art.ºs 476.º e 479.º a 481.º, a história do n.º 1 do art.º 289.º demonstra que essa solução não foi querida no nosso ordenamento jurídico.
Porque a declaração de nulidade do mútuo por vício de forma opera retroactivamente, deve ser restituído todo o capital mutuado (art.º 289.º, n.º 1, do Código Civil).
Contudo, por força da remissão operada pelo n.º 3 deste normativo para o preceituado nos artigos 1269.º e seguintes do mesmo diploma, a obrigação de restituir abrangerá não só o capital mutuado, mas também uma quantia equivalente ao montante dos juros de mora à taxa legal a contar da citação (ou da interpelação admonitória se esta tiver tido lugar), como frutos civis que são (art.ºs 289.º, 1270.º, n.º 1, e 212.º, todos do Código Civil), sendo que vale como interpelação a citação judicial para a acção.
O possuidor de boa fé faz seus os frutos até ao dia em que souber que se encontra a lesar com a sua posse o direito de outrem (art.º 1270.º, n.º 1), o que normalmente só acontecerá com a citação do réu, uma vez que a citação judicial faz cessar a boa fé nos termos do art.º 564.º, al. a), do CPC.
A posse de má fé, como acto ilícito que é, constitui o possuidor na obrigação de indemnizar, devendo, desde logo, restituir, pelo menos, os frutos civis que um proprietário medianamente diligente poderia ter obtido (cfr. art.º 1271.º do Código Civil), sendo que o conceito de frutos civis nos é fornecido pelo art.º 212.º do mesmo diploma legal.
Por outro lado, tratando-se de uma obrigação pecuniária, a indemnização corresponde aos juros legais a partir do dia da constituição em mora (art.ºs 804.º, 805.º, n.º 1 e 806.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Civil).”
Por tudo isto, bem andou a sentença em condenar nos exatos termos em que o fez, com base na nulidade do contrato de mútuo nos juros devidos a contar da citação.

V -  Decisão

Por todo o exposto, julga-se a apelação improcedente e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes (artigo 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Guimarães, 22 de maio de 2025

Sandra Melo
José Manuel Flores
Maria Amália Santos