Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
BOA FÉ
ABUSO DE DIREITO
INEFICÁCIA DO NEGÓCIO JURÍDICO
Sumário
I - Se o direito positivado, nas soluções concedidas pelos regimes das divergências entre declaração e vontade e pelo regime da impugnação pauliana, não se mostra suficiente para permitir ao credor evitar a dissipação ou o esvaziamento do património do devedor, garantindo a satisfação do seu crédito, deve valer o instituto do abuso do direito. II - A celebração de um negócio jurídico, através de mecanismos de interposição de pessoas e de falsidade de declarações, no sentido de prejudicar o credor, não pode ser tolerada pela ordem jurídica, impondo-se a declaração de invalidade desse negócio por aplicação do regime do abuso de direito. III - A ineficácia representa uma forma de invalidade que é um minus em relação à nulidade ou anulabilidade do negócio e a sua declaração bastará para a garantia do crédito do credor, permitindo a execução dos imóveis no património do terceiro, como se os executasse no património do devedor. IV - Tendo sido constituído um direito de uso e habitação, no quadro da aquisição de um imóvel, em que os termos dos dois atos se interligaram fraudulentamente, o restabelecimento da garantia patrimonial só é alcançado através da declaração de ineficácia, em relação ao credor, da integralidade do negócio jurídico. V - Admitir apenas a decisão de ineficácia em relação à nua propriedade implicaria que o credor só pudesse executar tal direito de (nua) propriedade que, por estar comprimido pelo direito de uso e habitação, que é impenhorável e intransmissível, de pouco ou nada serviria para satisfazer o seu crédito.
EMP01... – UNIPESSOAL, LDA., intentou a presente ação declarativa com processo comum contra AA, BB, CC, e EMP02..., UNIPESSOAL LDA. pedindo a declaração de ineficácia, em relação à autora, do negócio de doação de dinheiro efetuada pelos primeiros dois réus à terceira ré para aquisição por esta de vários imóveis à quarta ré, reconhecendo a possibilidade de a autora executar tais imóveis no património da terceira ré, bem como na declaração de ineficácia, em relação à autora, da aquisição pelos primeiros dois réus à quarta ré do direito de uso e habitação do mesmo imóvel, permitindo à autora executar os imóveis em propriedade plena.
Alega para o efeito que, no âmbito da sua atividade comercial, forneceu aos primeiros dois autores diversos bens, pelos quais exigiu o pagamento do respetivo preço, sem que estes nada tenham vindo pagar, tendo em consequência sido condenados em processo judicial a tal pagamento e instaurado a autora o subsequente processo executivo, extinto porém quando ambos os réus foram declarados insolventes – sendo o crédito da autora reconhecido em sede deste último processo.
Alega também que, antes de ser intentada a ação judicial, mas já depois de celebrado o negócio, a terceira ré, representada pelos primeiros dois réus (seus progenitores), adquiriu à quarta ré vários imóveis, tendo também no mesmo ato os primeiros dois réus adquirido o direito de uso e habitação sobre os mesmos.
Alega contudo que a terceira ré não tinha rendimentos suficientes à data do negócio para o pagamento por ali supostamente titulado, concluindo que os montantes necessários foram doados pelos dois primeiros réus, garantindo estes o uso e habitação a seu favor, com vista assim a assegurar que ficariam na titularidade do imóvel, sem que o mesmo pudesse ser penhorado por qualquer forma, obviando assim ao pagamento do crédito da autora.
Citados os réus, vieram os três primeiros réus contestar, defendendo-se por impugnação, alegando todos em síntese que o imóvel foi adquirido com fundos próprios da terceira ré e com dinheiro emprestado/cedido pelos avós e outros familiares, com a intenção de adquirir uma casa para viver com os seus pais, inexistindo assim qualquer ato de diminuição da garantia patrimonial da autora, e sendo que o valor atribuído ao direito de uso e habitação foi uma exigência da parte da Conservatória do Registo Predial à qual são alheios.
A quarte ré apresentou também contestação, defendendo-se primeiramente por exceção, invocando a ineptidão da petição inicial e a sua ilegitimidade para a causa.
Em sede de impugnação, alega que desconhecia por completo os restantes réus, tendo o negócio sido celebrado através de mediadora imobiliária, não tendo assim praticado qualquer ato com vista a prejudicar a autora.
*
Foi proferido despacho saneador, julgando improcedentes as exceções suscitadas pela quarta ré, fixando o objeto do litígio e temas da prova.
*
A final veio a ser proferida sentença que julgou a ação procedente e declarou verificado o abuso de direito, pelos primeiros três réus, na celebração dos negócios descritos em 12) e 13) da matéria de facto provada.
Em consequência, declarou os mesmos ineficazes perante a autora, nos moldes em que se encontram celebrados, bem como o direito de uso e habitação constituído a favor dos primeiros réus, reconhecendo à autora o direito de executar os imóveis também ali descritos no património da terceira ré, em propriedade plena, até ao limite do seu crédito.
*
Inconformados com a sentença vieram os réus AA, BB e CC, interpor recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
[…]
AAAA. Conforme se extrai da sentença recorrida, o Tribunal “a quo” entendeu que a forma como foi proposta a acção impetrada pela Autora, e os pedidos nela formulados por esta, não eram adequados, sendo que, oficiosamente, e sem consulta das partes, entendeu convolar tais pedidos de impugnação paulina para abuso de direito!
BBBB. Caso não seja decretada a nulidade arguida neste recurso nos capítulos anteriores – o que só por hipótese académica se admite –, sempre a figura do abuso de direito não pode ser aplicada aos autos; e mesmo que o fosse, não estão preenchidos os requisitos para ser declarado, e, nessa sequência, os Réus/recorrentes deveriam/devem ser absolvidos dos pedidos formulados pela Autora, o que se pede pelo presente recurso.
CCCC. Realce-se que o Tribunal “a quo” não decretou a ineficácia da doação em dinheiro que deu como provado ter existido entre 1º e 2ª Ré à 3ª Ré – e a manter-se este facto como provado pela Tribunal “Ad Quem”, o que só por hipótese académica se admite –, razão pela qual, a doação foi perfeitamente válida!
DDDD. Repetimos que o abuso de direito é uma forma de defesa por excepção (peremptória) e nunca a causa de pedir de um acção onde se pretende exercer um direito. (neste sentido Acordão do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães de 09.06.2020, proferido no âmbito do processo nº 1429/14.2T8CHV-A.G1, disponível em www.dgsi.pt)
EEEE. Ora, a Autora não podia beneficiar de uma defesa por excepção do abuso de direito quando é a própria que propõe a acção! A defesa por excepção é direito dos demandados!
FFFF. Acontece que, no caso concreto, a aquisição dos imóveis em causa nos autos foi efectuada pela 3ª Ré, terceira em relação à obrigação com fundamento na qual a Autora propôs a acção de impugnação pauliana.
GGGG. Note-se que, não foi provado, nem sequer alegado pela Autora que a 3 Ré tivesse conhecimento do crédito daquela sobre os 1º e 2ª Réus!
HHHH. O raciocínio que o Tribunal “a quo” desenvolveu para justificar à aplicação do abuso do direito ao caso concreto, está ferida de erradas premissas e se suporte na matéria factual dada como provada.
IIII. Desde logo, o Tribunal “a quo” refere que o seu raciocínio deve ser aplicado quando há interposição de pessoas e falsidade de declarações!
JJJJ. Ora, analisada toda a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal “a quo”, não há um único facto provado na sentença recorrida que diga que foram proferidas declarações falsas por qualquer parte nos autos ou os negócios referidos foram celebrados por interposta pessoa.
KKKK. Pelo contrário, resulta provado nos autos que, pelo menos o alienante dos direitos em causa esteve sempre de boa-fé! (cfr. item -16 da matéria de facto dada como provada)
LLLL. Logo a seguir, o Tribunal alega que o abuso de direito deve ser aplicado como válvula de escape quando é exercido abusivamente um direito.
MMMM. Contudo, em momento algum da sua justificação para aplicação daquele instituto, o Tribunal “a quo” indica que direito foi abusivamente exercido e por quem!
NNNN. O Tribunal “a quo” ao não determinar e identificar este direito utilizado de forma abusiva ou por quem, não pode aplicar este instituto!
OOOO. De seguida, o Tribunal “a quo” chama à colação um Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra que nada tem que ver com a convolação feita poe Aquele, nestes autos.
PPPP. Enquanto naquele Acórdão da Relação de Coimbra determinou-se a ineficácia de uma doação não pela impugnação paulina pedida mas sim pela simulação;
QQQQ. Nos presentes autos, o Tribunal “a quo” não determinou a ineficácia da doação – pedido da Autora – mas sim a ineficácia de um contrato de compra e venda celebrado por quem não era devedor do Autor – a 3ª Ré) – e um terceiro de boa-fé que vendeu a esta uns imoveis – a quarta Ré, pedidos não formulados pela Autora!
RRRR. Isto é, o exemplo dado é completamente diferente destes autos!
SSSS. Prosseguindo no seu raciocínio, o Tribunal “a quo”, vem dizer que o que a Autora – ou seja, o Tribunal “a quo”, de moto próprio e autonomamente, substitui-se à vontade não expressa pela Autora – realmente pretende é a ineficácia do negócio celebrado entre a 3ª e 4ª Ré, e, assim, poder executar os imoveis que estão na propriedade da 3ª Ré
TTTT. Contudo, esta intenção fabricada pelo Tribunal “a quo” não corresponde à intenção da Autora, pedida na acção em causa!
UUUU. O que a Autora pediu na acção que, de forma livre e esclarecida propôs, foi a ineficia da doação feita pelos 1º e 2ª Ré à 3º Ré, e não a ineficácia do contrato de compra e venda celebrado entre 3ª Ré e 4ª Ré, e subsidiariamente, é que pediu a permissão de executar o imóvel adquirido pela 3ª Ré, caso aquela ineficácia da doação fosse determinada pelo Tribunal!
VVVV. Contudo, o Tribunal “a quo” não determinou a ineficácia da doação feita pelos 1º e 2ª Réus à 3ª Ré, logo, não podia proceder o pedido subsidiário, ou seja, a execução do património da 3ª Ré.
WWWW. Mais: O Tribunal “a quo” vem dizer que se extrai da matéria de facto provada que a atuação dos Réus foi no sentido de prejudicar a Autora!
XXXX. Contudo, em momento algum, este facto que os Réus tiveram intenção de prejudicar a Autora foi dado como provado na sentença recorrida! Pelo que o Tribunal “a quo” não podia alicerçar o seu raciocino em algo que não está no processo!
YYYY. Vem ainda, acrescentar, o Tribunal “a quo” que, nos termos do abuso de direito, a execução deve abranger a totalidade dos prédios – e não só a propriedade nua – porque só assim se garante o efeito da ineficácia, apoiando-se no decidido num Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora.
ZZZZ. Contudo, e mais uma vez, este Acórdão citado pelo Tribunal “a quo” refere-se factos e circunstâncias completamente diferentes da dos autos.
AAAAA. Em tal Acórdão estava em causa uma doação de um imóvel de pais para filho e os pais reservaram para si o uso e habitação.
BBBBB. No caso dos autos, a propriedade nua do prédio foi transmitida por contrato oneroso em que, pelo menos o vendedor estava de boa-fé e o uso e habitação foi adquirido ao mesmo terceiro de boa-fé!
CCCCC. Não se pode equiparar o que é diferente.
DDDDD. Com este raciocínio, o Tribunal “a quo” acaba por comparar institutos que não são comparáveis nem compatíveis, para elaborar uma sentença em que “Com as devidas adaptações, considerou que os negócios referidos em 12) e 13) são ineficazes perante a autora, nos termos em que se mostram celebrados, concedendo à autora o direito de executar os imóveis objeto de tais negócios no património onde se encontram (no caso, no património da terceira ré), até ao limite do seu crédito” o que não podemos aceitar e sindicamos!
EEEEE. Relembre-se que o Abuso de Direito não é um meio de Conservação de garantias patrimoniais do credor, mas sim um exercício e tutela de direitos, e como tal estão previstos no Código Civil em capítulos diferentes e distantes.
FFFFF. Por fim, sempre diremos que não estão preenchidos os requisitos necessários para ser possível a aplicação do abuso de direito ao caso dos autos.
GGGGG. Assim, deverá a sentença recorrida ser revogada por outra que absolva os Réus dos pedidos formulados pela Autora.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente; e, por consequência, deverão V. Excas., Venerandos Desembargadores substituir a sentença recorrida por Acórdão que:
A) Declare a ineptidão da petição inicial, por esta padecer de clara insuficiência e consequente ininteligibilidade na exposição da causa de pedir nos termos do artigo 186.º, n.º 1 e 2, al. a) do CPC, conjugada com o artigo 577.º, al. b) do CPC, declarando-se a nulidade de todo o processo e absolvendo-se a os Réus da instância (art. 576.º, n.º 2 do CPC), sendo que esta excepção é de conhecimento oficioso;
B) Declare a Nulidade da Sentença por violação do Direito ao Contraditório e Proibição de Decisão Surpresa, previsto no artigo 3, nº 3 e 195, ambos do CPC, violação do Princípio do Dispositivo, previsto no artigo 5 do CPC, e violação das alíneas b), c), d) e e), do artigo 615, nº 1 do CPC: excesso de pronuncia e condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível;
ou ao invés,
C) Declare a nulidade da sentença por falta de fundamentação que levou o Tribunal “a quo” a dar como provado a existência de doação/entrega do montante de 150.000,00 € pelos 1º e 2ª Réus à 3ª Ré (facto 15 da matéria provada) e não provado que a aquisição descrita em 12) e 13) foi integralmente paga pela terceira ré, com recurso a fundos próprios (facto a) da matéria julgada não provada), e da ambiguidade ou obscuridade na fixação de tal facto que torna a decisão ininteligível, em violação do dever imposto pelo artigo 607, nº 4 e artigo 615, nº 1, alienas b) e c), ambos do CPC.;
Sendo certo que,
D) Com recurso à reapreciação da prova gravada e a prova enunciada na motivação de facto (ou ausência de prova) modifique os factos ínsitos nos itens 14) e 15) da matéria de facto provada para não provada; e os factos ínsitos no item a) da matéria não provada para provada, nos termos expostos nas presentes alegações e conclusões;
E concomitantemente,
E) Com esta alteração da matéria de facto, absolva os Recorrentes dos pedidos formulados pela Autora,
Sendo certo que
F) Mesmo mantendo-se a matéria provada e não provada, declare que o abuso de direito não pode ser aplicável aos autos, por inadmissível ou por não verificados os seus pressupostos de aplicação, e, nessa sequencia, serem os Reus absolvidos da totalidade dos pedidos formulados pela Autora.
*
Foram apresentadas contra-alegações, pugnando a recorrida pela manutenção do decido.
*
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
*
II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC).
No caso vertente, as questões a decidir que ressaltam das conclusões do recurso interposto são as seguintes:
- Da ineptidão da petição inicial;
- Da nulidade da sentença;
- Da modificação da decisão da matéria de facto;
- Do mérito da sentença.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. Os factos 3.2.1. Factos Provados
Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
1) A autora é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio de mobiliário de madeira e artigos de decoração.
2) Os dois primeiros réus são casados entre si e progenitores da terceira ré.
3) A quarta ré é uma sociedade comercial dedicada à compra e venda de bens imobiliários e revenda dos adquiridos para esse fim e à construção de edifícios.
4) No âmbito da sua atividade comercial, a autora, em 22/06/2015, vendeu aos primeiros dois réus diversos móveis e artigos de decoração, identificados na fatura junto como doc. 2 com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5) Os bens consistiam em mobiliário destinado a equipar e decorar a casa de morada de família dos réus, incluindo mesas, papel de parede, tapetes e cortinados.
6) Autora a primeiros dois réus ajustaram o preço de €23.247,00.
7) O pagamento deveria ter sido efetuado até ao dia ../../2015.
8) Os primeiros dois réus foram, por diversas vezes, interpelados para o seu cumprimento já após o decurso do prazo, sem que, no entanto, o tenham feito integralmente.
9) Na sequência da falta de pagamento atempado do preço, a autora e os primeiros dois réus celebraram um acordo para pagamento em prestações.
10) Na data de celebração, o montante em dívida era de €21.320,00, o qual deveria ser pago em 43 mensalidades.
11) Os primeiros dois réus apenas pagaram a primeira mensalidade do plano de pagamento, que se venceu a 01 de dezembro de 2015.
12) Em 22/03/2017, a terceira ré, representada pelos seus progenitores mediante procuração outorgada a favor dos mesmos, outorgou com a quarta ré escritura pública segundo a qual declarou adquirir a esta o imóvel correspondente à fração ..., designada pela letra ..., no Bloco ..., ... andar, na Avenida ..., freguesia das ..., ..., assim como a Garagem n.º ..., correspondente à fração ....
13) Na mesma altura, os primeiros dois réus declararam adquirir o direito de uso e habitação de ambos os imóveis, pelo montante de €86.000,00, representando também a terceira ré na aquisição da raiz ou nua propriedade pelo preço global de €64.000,00.
14) À data dos negócios supra descritos, a terceira ré tinha 19 anos de idade, era estudante, não tinha qualquer fonte de rendimentos e vivia por conta dos pais.
15) Foram os dois primeiros réus que entregaram à terceira ré, sem qualquer contrapartida da parte desta, a quantia de €150.000,00 necessária ao pagamento da aquisição descrita em 12).
16) A quarta ré não conhecia qualquer dos réus previamente à celebração do negócio, bem como não conhecia quaisquer dos contornos da restante factualidade descrita nestes autos.
17) Em consequência do incumprimento referido em 8), a autora intentou, em 22/10/2018, uma ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra os primeiros dois réus, que correu termos no Juízo Local Cível de Vila Nova de Famalicão Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, sob o n.º 6644/18...., peticionando a condenação destes no pagamento dos valores em dívida, que se computavam, à data, em € 28.549,99.
18) No âmbito do referido processo, foi proferida sentença, já transitada em julgado, na qual foram os réus condenados no pagamento à autora da quantia de €25.038,54, acrescida de juros moratórios vincendos após a propositura da ação, calculados sobre a quantia de €20.820,00.
19) Como os réus não pagaram qualquer montante à autora, esta apresentou requerimento executivo, que seguiu termos no Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão, Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, sob o n.º 7028/19.....
20) Após várias diligências de consulta de bens penhoráveis, realizadas pelo agente de execução, não foi encontrado qualquer bem, crédito ou direito suscetível de penhora para satisfação do crédito da autora.
21) Posteriormente, a autora tomou conhecimento que a segunda ré havia sido declarada insolvente, pelo que a execução foi extinta.
22) De igual forma, em 07/04/2021, foi o primeiro réu também declarado insolvente por sentença proferida pelo Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão, Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga.
23) A autora foi citada para os referidos atos de insolvência, enquanto uma das cinco maiores credoras do insolvente, tendo ali sido reconhecido o seu crédito no montante de €24.766,06.
*
3.1.2. Factos Não Provados
a) A aquisição descrita em 12) e 13) foi integralmente paga pela terceira ré, com recurso a fundos próprios ganhos pela mesma e oferecidos pelos seus avós, tios e padrinhos.
b) Os avós da terceira ré sempre pretenderam oferecer aos netos um apartamento, e foram-lhes entregando dinheiro ao longo da vida com tal propósito.
*
3.2. O Direito 3.2.1. Da ineptidão da petição inicial
Consideram os recorrentes que a petição inicial é inepta, por insuficiência e ininteligibilidade da causa de pedir, nos termos do art. 186.º, n.º 1 e 2, al. a) do CPC, conjugado com o artigo 577.º, al. b) do CPC, o que deve levar à declaração de nulidade de todo o processo e à absolvição dos réus da instância. Invocam ainda que esta exceção é de conhecimento oficioso.
Ressalvado o devido respeito, não assiste razão aos recorrentes.
E por duas razões.
A primeira, é que a exceção de ineptidão da petição inicial foi já conhecida em sede de despacho saneador.
Embora arguida pela 4ª ré, o tribunal pronunciou-se concretamente sobre esta exceção, no sentido da sua improcedência.
Fê-lo nos seguintes termos:
«Na sua contestação, a Ré, EMP02..., Unipessoal, Lda., invoca a ineptidão da petição Inicial, por insuficiência e ininteligibilidade da causa de pedir, alegando, nesse sentido, que:
“3. Ora que, com o devido respeito, a aqui Ré não alcança a causa de pedir na petição inicial deduzida a juízo pela Autora.
4. A Autora apenas se serve do chamamento da aqui Ré à ação para invocar que a mesma celebrou um contrato de compra e venda com os demais réus.
5. Centrando a sua fundamentação de facto e de direito no contrato de doação celebrado entre os demais Réus, e ao qual a aqui Ré é totalmente alheia.
6. Não sendo possível à Ré perceber como poderá estar envolvida com um contrato gratuito celebrado entre os demais réus e, essencialmente, como a sua má fé pode aqui ser invocada (?).
7. A Autora não invoca qualquer nulidade, invalidade ou ineficácia do contrato celebrado entre a aqui Ré com os demais Réus.
8. Portanto, a Ré não alcança qual a sua posição de parte na presente ação, bem como qual a causa de pedir do qual emerge o pedido”.
A Autora exerceu o contraditório, pugnando pela inexistência da alegada ineptidão.
Cumpre apreciar e decidir.
(…)Ora, no caso dos autos, importa ter em consideração que a Autora funda a sua pretensão no instituto da impugnação pauliana, visando, no pedido, que se declare a ineficácia, em relação a si, dois actos: em primeiro lugar, da alegada doação dos 1.º e 2.º Réus à 3.ª Ré; em segundo lugar, da aquisição, pelos 1.º e 2.º Réus, à4.ª Ré, do direito de uso e habitação de dois imóveis.
Deste modo, o núcleo essencial dos factos constitutivos do direito invocado é constituído pela existência e data da constituição do crédito, pela prática de acto ou actos que diminuem a garantia patrimonial do crédito e, tratando-se de acto ou actos onerosos – como é o caso da aquisição pelos 1.º e 2.º Réus à 4.ª Ré –, pela má fé do devedor e do terceiro – Cfr., artigos 610.º, 512.º e 613.º, do Código Civil.
Ora, tendo em consideração os artigos 1.º a 16.º, 18.º a 20.º, 24.º a 27.º, 31.º, 46.º, 47.º e 54.º da Petição Inicial, impõe-se concluir que a Autora alegou o núcleo essencial dos factos constitutivos do direito que invoca, inexistindo, por isso, qualquer falta ou ininteligibilidade da causa de pedir.
Face ao exposto, julgo improcedente a ineptidão da petição inicial invocada pela Ré, “EMP02..., Unipessoal, Lda.”, na sua Contestação.»
Em sede de despacho saneador, houve por parte do tribunal a quo um pronunciamento concreto sobre a exceção de ineptidão da petição inicial.
Ora, o despacho saneador constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas, como decorre do disposto no art. 595.º, n.º 3, do CPC.
Tal é o caso.
Compreende-se que assim seja pois como refere Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa “Apenas residualmente as exceções dilatórias deixarão de ser decididas no despacho saneador. Tratando-se de uma peça processual que se destina a filtrar as questões que impedem o conhecimento de mérito, é de toda a conveniência que os obstáculos a tal conhecimento fiquem definitivamente afastados nesse momento, sob pena de se correr o risco de toda a atividade posterior se revelar inútil.”.[2]
Na situação concreta, uma vez que o Tribunal a quo já se pronunciou especificamente quanto à ineptidão da petição inicial, assente na insuficiência e ininteligibilidade da causa de pedir, não tendo os réus impugnado esta decisão, formou-se caso julgado formal quanto a esta questão.
Tal impede os réus de, nesta sede, suscitar, quanto à sua posição, a mesma questão.
A segunda razão, ligada à primeira, prende-se com a oportunidade da arguição da ineptidão da petição inicial e a inadmissibilidade de tal questão ser inovatoriamente apreciada em sede de recurso de apelação.
A ineptidão da petição inicial, geradora da nulidade de todo o processo, é de conhecimento oficioso; contudo, apenas pode ser arguida até à contestação ou neste articulado (artigo 198º n.º 1 do CPC) e pode ser apreciada no despacho saneador, se antes não tiver sido apreciada, e se não houver despacho saneador, pode ser conhecida até à sentença final (artigo 200º nº 2 do CPC).
Neste sentido, decidiu o acórdão desta Relação de Guimarães, de 21.11.2024, vincando que “a prolação de despacho saneador tem efeitos preclusivos quanto ao conhecimento das nulidades previstas nos arts. 186º e 193º, nº 1, significando isso que, proferido o despacho saneador, fica encerrada a hipótese de o juiz suscitar aquelas nulidades”.[3]
Também no acórdão do STJ de 13.05.2021 se refere que “tal como as outras exceções dilatórias, a nulidade de todo o processo é de conhecimento oficioso, mas este conhecimento oficioso está, no caso especial de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, limitado no tempo, nos termos do artigo 200.º, n.º 2, do CPC. Assim, proferida a sentença pelo Tribunal de 1.ª instância e tendo este apreciado e decidido o mérito do pedido, o Tribunal da Relação não podia, oficiosamente, ter conhecido da ineptidão da petição inicial e declarado a nulidade de todo o processo e, na sequência disso, absolvido os réus da instância”.[4]
Em suma, de acordo com o regime do n.º 2 do art. 200.º do CPC, precludiu a possibilidade de conhecimento da questão, não podendo a mesma ser inovatoriamente apreciada em sede de recurso de apelação.
Termos em que improcede, nesta parte, o recurso.
3.2.2. Da nulidade da sentença
Sustentam os recorrentes que a sentença é nula, com base nos seguintes fundamentos:
a) violação do direto ao contraditório e proibição de “decisão-surpresa”;
b) por excesso de pronúncia e condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, em violação do principio do dispositivo, ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível e por falta de fundamentação (de facto de direito) que justifique a decisão; contradição entre a fundamentação e a decisão.
Quanto à violação do direto ao contraditório e proibição de “decisão-surpresa”.
Consideram os recorrentes que o Tribunal a quo não podia ter apreciado questões que as partes não suscitaram nem levaram à sua apreciação, como é o caso do regime do abuso de direito. Acrescentam, que não foi dada oportunidade às partes de exercerem o contraditório sobre a aplicação deste instituto.
Vejamos se lhes assiste razão.
O principio do contraditório tem expressão constitucional, emanando do direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (artigo 20º, da CRP), e no ordenamento processual civil tem concretização nos artigos 3º e 4º, do Código de Processo Civil.
O direito de acesso à justiça é densificado, entre outras dimensões, com o direito a um processo equitativo (n.º 4 do artigo 20.º), já que, como defende Miguel Teixeira de Sousa, de nada serve ao particular aceder à justiça se a sua posição em juízo não se encontrar igualmente protegida[5].
No quadro do direito ao processo equitativo, exige-se a estruturação processual de modo a garantir uma efetiva tutela jurisdicional, o que vem sendo materializado através de outros princípios, entre os quais o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas.
O princípio do contraditório está assim incindivelmente ligado ao direito a um processo justo e à tutela jurisdicional efetiva (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 675/2018).
O Tribunal Constitucional vem edificando o princípio do contraditório, mais do que o mero direito de contraditar a versão da contraparte, como uma garantia de participação efetiva das partes em todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão[6].
A participação efetiva, enquanto concretização do principio do contraditório, manifesta-se com essencialidade em três dimensões: impõe, em primeiro lugar, que a todas as partes seja dada a mesma oportunidade de se pronunciar no processo, através de uma «proibição de estabelecimento de qualquer discriminação arbitrária e materialmente infundamentada no que ao estatuto dos sujeitos processuais se reporta[7]; depois, relaciona-se diretamente com o principio da proibição da indefesa, materializado na possibilidade de a parte ver apresentada a argumentação antes de uma decisão judicial ser tomada, isto é, liga-se à regra fundamental da proibição da indefesa, de sorte que nenhuma decisão pode ser tomada pelo tribunal sem que previamente tenha sido dada a efetiva possibilidade ao sujeito demandado de a discutir, contestar e valorar; por fim, uma dimensão de influência no juízo, o poder exercer uma influência efetiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes de o tribunal decidir questões que lhes digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de umas e outras.
Vem o Tribunal Constitucional assinalando que o escopo do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito a incidir ativamente no desenvolvimento do processo e, por essa razão, o princípio opor-se-á, em regra, à adoção de decisões judiciais com fundamentos sobre os quais as partes não tenham oportunidade de se pronunciar[8].
No campo processual civil o principio do contraditório vem revelado em diversas disposições, encontrando-se genericamente concretizado no artigo 3.º, sob a epígrafe «Necessidade do pedido e da contradição».
Esta norma estatui que:
«1. O Tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2. Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3. O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4. Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência preliminar ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.».
A norma pode ser divida em dois segmentos: um, em que se atribui à parte o direito ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma ação ou requerida uma providência e, portanto, um direito à audição antes de ser tomada qualquer decisão, dando-se-lhe oportunidade de defesa; o outro, um direito de pronuncia e participação efetiva e de influência no juízo.
O primeiro dos segmentos correspondia a um sentido mais restrito do contraditório, o direito ao conhecimento e pronuncia sobre os elementos suscetíveis de influenciar a decisão carreados para o processo pela parte contrária (contraditório clássico ou horizontal), constituindo o segundo uma reivindicação antiga que na reforma de 1995 obteve consagração legal, assente no direito de ambas as partes intervirem para influenciarem a decisão da causa, assim se evitando decisões surpresa (contraditório vertical).
O campo de atuação do princípio do contraditório deixou de se restringir à defesa, no sentido negativo de oposição ou de resistência à atuação da parte contrária, para passar a ser a influência positiva e ativa na decisão, ou seja, passou a ser visto como o direito de provocar uma decisão favorável: o direito de intervir, participando para, usando os melhores argumentos, tentar convencer o julgador e obter um desfecho favorável, para si. E tem por objeto quer os argumentos factuais, incluindo provas, quer os jurídicos.
O normativo consagrado no artigo 3º, nº3, ao dispor expressamente que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, encerra a atual conceção mais ampla do princípio do contraditório, assente numa participação efetiva das partes no desenvolvimento do litígio e de influência na decisão.
Esta maior amplitude está em sintonia com a crescente tendência de substituição de um processo estritamente individualista, privatístico, por um direito processual mais justo e socialmente mais aberto, arredando a ultrapassada linha de orientação adjetiva e formalista, passando o juiz a ser visto não como um mero garante das regras do jogo honesto mas, antes, empenhado na solução concreta do conflito e mais aberto na consideração das consequências das soluções, tendo sempre o dever de fundamentar a sua decisão e deixando-se às partes o direito de a influenciar[9].
O âmbito da regra do contraditório, tradicionalmente entendido como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo, tem agora um campo mais vasto de discussão participada alargada e que visa prevenir as “decisões surpresa”.
Revertendo ao caso em apreciação, a decisão proferida foi-o em respeito pelo principio do contraditório, não podendo a decisão proferida constituir uma surpresa para os réus.
O efeito jurídico declarado pelo tribunal é o mesmo que a autora pretendia com a petição inicial (ineficácia do negócio celebrado entre os réus perante a autora), pese embora com um fundamento jurídico diverso do que sustentava a ação – fundada na impugnação pauliana e entendendo o Tribunal que o que esteve em causa foi o abuso da liberdade contratual, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.
Como bem sustenta o Mmº Juiz a quo, na sua pronuncia, a figura do abuso de direito é de conhecimento oficioso e as suas características enquanto válvula de escape do sistema permitem a sua adaptação às circunstâncias do caso concreto, na ausência de uma solução legal expressa que permita impedir uma situação de injustiça material clamorosa.
Estando disponíveis às partes toda a matéria fáctica que permitiu sustentar a decisão, o Tribunal não extravasou em parte alguma de tal matéria e do que foi alegado nos articulados, iuria nouit curia, como se destaca pelo artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil: às partes foi dada ampla oportunidade de discutir e produzir prova sobre os factos trazidos aos autos, e é ao Tribunal que incumbe procurar a solução jurídica mais adequada.
Ademais, embora a autora não tenha invocado o exercício abusivo de um direito por parte dos réus como fundamento da sua pretensão, implicitamente os réus tiveram de ter conta esse abuso de direito, designadamente por ter sido apresentada uma versão fáctica, que se veio a confirmar, que manifestamente consentia esta qualificação.
Na verdade, o que identifica a pretensão material do autor é o efeito prático-jurídico pretendido, e não a exata caracterização jurídico-normativa. Como é doutrinal e jurisprudencialmente pacifico, é lícito ao tribunal, alterando a coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação, sem que isso represente julgamento de objeto diverso.
Donde, a aplicação do instituto do abuso de direito, nos moldes configurados na sentença, como exercício abusivo da liberdade contratual nos termos do artigo 405.º do Código Civil, não constitui violação do princípio do contraditório, nem decisão-surpresa.
Quanto às nulidades da sentença, ao abrigo do art. 615.º, do CPC.
As causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no art. 615.º nº 1 do Código de Processo Civil.
O Prof. Castro Mendes[10], após a análise dos vícios da sentença, conclui que uma sentença é nula quando “não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia”.
Na senda da delimitação do conceito, adverte o Prof. Antunes Varela[11], que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”.
Quanto aos vícios invocados pelos recorrentes, sufragamos inteiramente o entendimento do Mmº Juiz a quo de que, essencialmente, tais nulidades se prendem com a circunstância de o Tribunal ter declarado o efeito pretendido pela autora com a petição inicial, embora com fundamento na figura do abuso de direito. Ora, como se observa, o efeito jurídico alcançado é o mesmo que a autora pretendia (ineficácia do negócio celebrado entre os réus perante a autora), pese embora com um fundamento jurídico diverso do entendimento que sustentava a ação – fundada na impugnação pauliana, e entendendo o Tribunal que o que esteve em causa foi o abuso da liberdade contratual da parte dos 1.º, 2.º e 3.º réus, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.
A circunstância de ter sido destacada a figura do abuso de direito para julgar procedente a posição da autora não constitui a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil, posto que esta pressupõe a omissão total de fundamentação de facto e de direito, e a decisão recorrida comporta a discriminação da matéria de facto provada e não provada e correspondente motivação – se a mesma se encontra corretamente avaliada, será causa de erro de julgamento, mas não de nulidade da decisão. Além do que é profunda e extensa a sua fundamentação de direito.
Também não se verifica a nulidade decorrente de ambiguidade ou obscuridade, pois que tal vício pressupõe a ininteligibilidade da decisão, implicando que não se possa, com segurança, determinar o sentido exato da mesma.
Ora, a sentença é clara, quer quanto à sua fundamentação de facto quer de direito e o sentido da decisão proferida não permite interpretações divergentes.
Por outro lado, o Tribunal expôs os seus argumentos e explicou a forma como, da matéria de facto provada e considerando a doutrina e teoria referentes à figura do abuso de direito, se poderia enquadrar a mesma na situação em apreço, inexistindo a contradição invocada entre a fundamentação e a decisão.
No que se refere ao excesso de pronúncia e condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, vícios previstos nas alíneas d) e e) do art. 615.º, n.º 1, do CPC, importar ter em conta que o Tribunal deu provimento ao pedido da autora, ainda que com fundamento diverso do peticionado – sendo que a causa de pedir é a utilização abusiva da liberdade contratual dos réus com vista a enriquecer o seu património e a mantê-lo simultaneamente afastado da ação dos credores, logo a solução jurídica alcançada manteve-se dentro desta quaestio de facto e direito, sem que se verifique excesso de pronúncia nem condenação extra ou ultra petitum.
Refira-se, por último, quanto ao princípio do dispositivo, que o tribunal não está vinculado às alegações das partes no que toca à matéria de direito. O que identifica a pretensão material da autora é o efeito prático-jurídico pretendido, e não a qualificação legal ou normativa da pretensão.
O pedido da autora visava a ineficácia da doação e a possibilidade de executar os imóveis no património da 3.ª Ré para satisfazer o seu crédito. A decisão de declarar a ineficácia dos negócios (aquisição dos imóveis) com base no abuso de direito alcançou este efeito prático pretendido, mesmo que por uma via jurídica diferente da impugnação pauliana.
Por tudo quanto se deixa exposto, improcede a arguida nulidade da sentença.
*
3.2.3. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto
Os recorrentes consideram que a factualidade constante dos pontos 14) e 15) da matéria de facto dada como provada deveria ter sido considerada não provada e que o facto a) da matéria de facto não provada deveria ter sido considerado provado.
Argumentam, em síntese, que o tribunal não especificou quais os meios de prova que levaram à conclusão da existência da entrega/doação do dinheiro, nem esclareceu quando ou como (ex: transferência bancária, tradição) esta entrega ocorreu; que a prova documental nos autos (extratos bancários, cheques) demonstra que o montante para o pagamento proveio da conta da 3ª Ré, o que contraria a ideia de que o dinheiro foi entregue pelos 1º e 2º Réus.
Apreciemos.
Os factos provados têm a seguinte redação:
14) À data dos negócios supra descritos, a terceira ré tinha 19 anos de idade, era estudante, não tinha qualquer fonte de rendimentos e vivia por conta dos pais.
15) Foram os dois primeiros réus que entregaram à terceira ré, sem qualquer contrapartida da parte desta, a quantia de €150.000,00 necessária ao pagamento da aquisição descrita em 12).
Por sua vez, e consequentemente, o facto não provado é do seguinte teor:
a) A aquisição descrita em 12) e 13) foi integralmente paga pela terceira ré, com recurso a fundos próprios ganhos pela mesma e oferecidos pelos seus avós, tios e padrinhos.
Analisada toda a prova, pode afirmar-se que estes foram os pontos de maior controvérsia no julgamento.
Os três primeiros réus, nas declarações que prestaram, na sequência do já por si defendido nas suas contestações, defenderam que o imóvel foi adquirido pela terceira ré (CC) com fundos próprios e dinheiro oferecido pelos avós e outros familiares. Alegaram que o objetivo era adquirir uma casa para a CC viver com os pais, e que a constituição do direito de uso e habitação a favor dos pais foi para garantir que teriam sempre onde morar.
Esta versão apresenta-se inverosímil.
A ré CC tinha apenas 19 anos à data da aquisição (22/03/2017), era estudante universitária e não tinha qualquer fonte de rendimentos, vivendo por conta dos pais. À partida, não teria rendimentos para adquirir um imóvel a pronto pagamento.
A aquisição foi operada com a constituição de um direito de uso e habitação a favor dos primeiros réus (os pais), que residiam e continuam a residir no imóvel. A explicação dos réus de que isso foi feito para garantir que os pais teriam sempre onde residir, é claramente insatisfatória.
E tão mais insatisfatória se torna quando se apurou que esta não foi a única situação, outra similar tendo ocorrido, como revelou o relatório da administradora de insolvência no âmbito do processo onde o primeiro réu foi declarado insolvente, de que se extrai que a terceira ré e o irmão eram também proprietários de uma loja, igualmente com direito de uso sucessivo constituído a favor dos pais.
A terceira ré afirmou beneficiar de uma bolsa de estudos universitária, o que parece estranho considerando o património que lhe permitiria adquirir um apartamento a pronto aos 19 anos e ainda uma loja.
A conjugação das declarações dos réus com os outros meios de prova, confirmou a falta de verosimilhança da versão por estes apresentada.
O depoimento da testemunha DD, mãe do primeiro réu e avó da terceira ré), de que o património da terceira ré derivava de prendas de tios, padrinhos e avós, não é credível.
É no mínimo improvável que, com outros oito netos, os avós conseguissem ter fundos suficientes para que uma única neta, detivesse aos 19 anos um património de €100.000 (quantia mencionada por eles), especialmente tendo em conta que as declarações de IRS dos avós não revelavam tanta capacidade financeira. O cálculo hipotético baseado nos valores mencionados pela avó para prendas anuais para cada neto (€3.000 a €5.000 por neto em 3 ocasiões festivas) resultaria num valor mínimo muito elevado, cerca de €81.000 por ano, apenas em prendas para os netos.
Por outro lado, nenhum tio ou padrinho veio depor para confirmar a oferta de quantias tão avultadas.
Houve contradições entre os depoimentos dos réus, da testemunha DD (avó) e do mediador imobiliário, testemunha EE, sobre quem procurou a casa e quem esteve presente na escritura.
Fundamental para o convencimento da inverosimilhança da versão dos réus foi a verificação dos movimentos bancários.
Como bem se analisou na sentença recorrida, o extrato bancário da conta que os réus afirmaram ser da terceira ré na altura do negócio mostrou aquisições e transações efetuadas em localidades da região norte (..., ..., ..., ..., ...) durante todo o mês de março de 2017. No entanto, a terceira ré estudava na ... durante a semana e só ia a ... aos fins de semana. É incompreensível, pelas regras da experiência comum e da física, que uma conta bancária usada pela ré CC mostrasse apenas despesas na zona norte, algumas efetuadas durante a semana quando ela residia a quase 300 km de distância e não mostrasse uma única despesa localizada na ... ou em zonas próximas.
Forçosa se impõe a conclusão de que não era a terceira ré quem utilizava a conta, mas sim alguém residente em ..., surgindo como muito mais plausível que fossem os dois primeiros réus.
Conjugando todos estes elementos, apreciando e valorando a prova à luz de raciocínios lógicos e das regras da experiência comum, sufragamos o convencimento do tribunal a quo, não se tendo por credíveis nem as declarações de parte dos réus, nem os depoimentos testemunhais, no que concerne à proveniência dos fundos para aquisição do imóvel, sendo os argumentos frágeis, improváveis, e contrários às regras da experiência e à prova documental junta aos autos.
Mantém-se, assim como provados os factos 14) e 15) e não provado o facto a).
*
3.2.3. Da subsunção jurídica
Subsistindo a factualidade provada e não provada nos termos exarados na decisão recorrida, importará ainda assim apreciar se a figura do abuso de direito pode ser aplicada à situação concreta.
A autora veio pedir a declaração de ineficácia da doação efetuada pelos primeiros réus à terceira ré do preço despendido para aquisição de duas frações autónomas, e a possibilidade de a autora executar no património da terceira ré tal imóvel, e ainda a declarar a ineficácia, em relação à autora, da aquisição pelos primeiros dois réus à quarta ré do direito de uso e habitação destas frações, permitindo à autora a penhora dos mesmos no âmbito da propriedade plena.
A autora configurou a ação como uma ação de impugnação pauliana.
O tribunal a quo demonstrou, passo a passo, em termos jurídico-normativos, que a realidade de facto não se subsumia a uma situação de impugnação pauliana, nem de simulação ou de reserva mental.
O regime da impugnação pauliana é afastado considerando que o negócio que se pretende impugnar não é a transmissão do imóvel em si, mas a doação do dinheiro utilizado para adquirir este imóvel, pelo que não se lograva conexionar prima facie o efeito da ineficácia pretendido. Acresce que, a terceira ré não foi a contraparte da autora no negócio que deu origem ao crédito, e também não se provou qualquer atuação de má fé da parte da quarta ré.
Por outro lado, fica excluída a possibilidade de aplicar quer o regime da simulação quer da reserva mental, porquanto intervém no negócio um terceiro de boa fé – a quarta ré, que desconhecia por completo a intenção dos restantes réus.
Dada a insuficiência destes mecanismos legais para reagir à dissipação ou esvaziamento do património dos devedores, o instituto do abuso do direito foi aplicado por se haver considerado que a conduta dos réus, embora pudesse parecer formalmente lícita, excedia manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim social e económico do direito, configurando um esquema para subtrair património à ação dos credores.
E aqui reside o ponto nevrálgico da questão, cumprindo qualificar o exercício do direito, consistente na liberdade contratual, por partes dos réus.
Diz-nos a lei que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito – art. 334.º do Código Civil. Esta norma da lei civil define em si mesma o que é um exercício abusivo de um direito, no sentido, de um uso clamorosamente contrário ao que dita a boa fé, os bons costumes ou o fim social ou económico desse direito.
O mecanismo do abuso de direito nasce de uma ideia de plena realização da justiça material, cobrindo situações aparentemente lícitas e legítimas face à lei positiva, mas que são exercidas de uma forma que se tem por manifesta e clamorosamente contrária ao sentimento de justiça da comunidade.
O juízo sobre o abuso de direito está dependente das conceções ético-jurídicas dominantes na sociedade, pois como refere Antunes Varela, a consideração do fim económico ou social do direito apela de preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei.[12]
Na síntese feita pelo acórdão do STJ de 27.04.2027, poder-se-á dizer que o abuso de direito abrange o exercício de qualquer direito de forma anormal, quanto à sua intensidade ou execução de modo a comprometer o gozo de direitos de terceiros, criando uma desproporção entre os respectivos exercícios, de forma ofensiva e clamorosa dos valores sociais que se têm como adquiridos[13].
No caso, resulta do quadro factual que a intenção dos dois primeiros réus foi a de adquirirem, para si, e não para a sua filha, uma habitação para residir, excluindo o imóvel da ação dos credores, sendo de notar que o direito de uso e habitação, nos termos do artigo 1488.º, do CC é intransmissível e não pode ser onerado por qualquer modo, o que significa em última análise que o mesmo é impenhorável e se encontra fora do alcance dos credores.
Deste modo, como bem se evidencia na decisão recorrida, teceram os réus um esquema ardiloso e relativamente bem montado, que redundaria na impossibilidade de os credores obterem a satisfação do seu crédito por via da execução de um imóvel que, aparentemente apenas, não pertence aos devedores, e que não encontra resposta no direito positivo, sobretudo pela intervenção de um vendedor de boa fé e excluído do conluio ou de qualquer pacto simulatório.
Ora, como bem se frisa, não pode a ordem jurídica quedar indiferente: está em causa a boa fé e a segurança do tráfego jurídico, e estaria assim encontrada uma forma de assegurar aos devedores incumpridores o incremento do seu património, obviando ao direito de os credores satisfazerem os seus créditos. A celebração de um negócio jurídico com vista a assegurar um aumento do património do devedor, mas celebrado através de mecanismos de interposição de pessoas e de falsidade de declarações não pode ser tolerada pela ordem jurídica – para mais quando os devedores ainda recorrem à constituição de um direito real de cariz impenhorável com vista a auxiliar tal objetivo.
Bem andou o tribunal a quo ao concluir que se o direito positivado, nas soluções concedidas pelos regimes das divergências entre declaração e vontade e pelo regime da impugnação pauliana, não se mostra suficiente, deve valer o esquema do abuso do direito; se o princípio da liberdade contratual é relevante, também o é o pacta sunt servada previsto no artigo 406.º - quem contrata deve cumprir o contratado, e quem é devedor deve conceder prioridade à liquidação de tais dívidas antes de adquirir património por vias travessas.
Quanto aos efeitos do abuso de direito, os mesmos deverão ser enquadrados conforme o caso concreto, sendo doutrinal e jurisprudencialmente entendido que em virtude da aplicação do instituto deverá ser encontrada a solução mais justa e lógica, que permita obviar à situação de desequilíbrio que resulta do exercício abusivo do direito.
Por outro lado, sendo de conhecimento oficioso a invalidade decorrente do abuso de direito, a circunstância de o pedido do autor consistir na declaração de ineficácia por procedência da impugnação pauliana, não consubstancia uma convolação inadmissível do pedido nem faz a sentença incorrer em nulidade.[14]
A ineficácia representa uma forma de invalidade que é um minus em relação à nulidade ou anulabilidade do negócio e a sua declaração bastará para a garantia do crédito da autora, permitindo a execução dos imóveis no património da terceira ré, como se os executasse no património dos primeiros dois réus.
Execução esta que deve também abranger a totalidade do prédio, como se os réus fossem plenos proprietários, pois que só assim se garante o efeito da ineficácia.
Tendo sido constituído um direito de uso e habitação, no quadro da aquisição de um imóvel, em que os termos dos dois atos se interligaram fraudulentamente, o restabelecimento da garantia patrimonial só é alcançado através da declaração de ineficácia, em relação ao credor, da integralidade do negócio jurídico. Admitir apenas a decisão de ineficácia em relação à nua propriedade implicaria que o credor só pudesse executar tal direito de (nua) propriedade que, por estar comprimido pelo direito de uso e habitação, que é impenhorável e intransmissível, de pouco ou nada serviria para satisfazer o seu crédito.[15]
Nestes termos, bem andou o tribunal a quo em julgar os negócios ineficazes perante a autora, nos termos em que se mostram celebrados, concedendo à autora o direito de executar os imóveis objeto de tais negócios no património onde se encontram (no caso, no património da terceira ré), até ao limite do seu crédito.
Consequentemente, terá de improceder a apelação.
*
IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
[1]Tendo por base o relatório da sentença. [2] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, 2ª Edição, pag. 720. [3] Acórdão, também citado pela recorrida, proferido no processo n.º 1862/18.0T8BCL.G2, e disponível em www.dgsi.pt. [4] Proferido no processo nº 1934/17.9T8PNF.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt. [5] Miguel Teixeira de Sousa, «A jurisprudência constitucional portuguesa e o direito processual civil», XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, 2008, p. 69. [6] Neste sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 675/2018, citando Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 4.ª Edição, Gestlegal, Coimbra, 2017, p. 127). [7] Lopes do Rego, «Acesso ao direito e aos tribunais», Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Aequitas, 1993, p. 44 [8] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 510/2015. [9] Neste sentido, o Acórdão da Relação de Guimarães de 19 de abril de 2018, disponível em www.dgsi.pt. [10] In “Direito Processual Civil”, Vol. III, p. 308. [11] In “Manual de Processo Civil”, p. 686. [12] In Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9ª edição pág. 565. [13] Proferido no Processo 1192/12.1TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt. [14] Neste sentido, o acórdão da Relação de Coimbra de 28/09/2022, proferido no proc. 33/21.3T8PNH.C1, disponível em www.dgsi.pt. [15] No mesmo sentido, o acórdão da Relação de Évora de 10/03/2022, proferido no Processo n.º 82/19.1T8STB.E1 e disponível em www.dgsi.pt.