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PARTICIPAÇÃO DE ACIDENTE DE VIAÇÃO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
Sumário
I – A participação de acidente de viação, consistindo num documento emitido por um órgão de polícia criminal no âmbito das suas competências, configura documento autêntico, sendo-lhe aplicável o estatuído no artigo 371.º do Código Civil; II – Tal documento tem força probatória plena, no que respeita à realidade fáctica nele exposta como praticada pelo participante ou por este atestada com base na respetiva perceção direta; no que respeita aos factos adquiridos com base na interpretação de outros elementos operada pelo participante, não se encontram abrangidos pela força probatória plena do documento, valendo tal conteúdo fáctico da participação como um elemento sujeito à livre apreciação do julgador; III – A improcedência da impugnação da decisão relativa à matéria de facto importa se considere prejudicada a apreciação da questão de direito suscitada na apelação, se a solução que a recorrente defende para o litígio assenta na rejeitada alteração da factualidade provada. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 1523/22.6T8PTM.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo Central Cível de Portimão
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
1. Relatório
(…) intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra (…) – Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação da ré a pagar-lhe: i) a título de responsabilidade civil, a quantia de € 9.830,87, acrescida de juros de mora contados ao dobro da taxa legal, desde 16-10-2019 até efetivo e integral pagamento; ii) a título de incumprimento do dever de resposta fundamentada, o montante de € 81.400,00, acrescido de juros de mora contados ao dobro da taxa legal, desde 16-10-2019 até efetivo e integral pagamento.
Baseia o pedido formulado em acidente de viação que descreve, ocorrido no dia 23-06-2019, na Urbanização (…), em (…), em que o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (…) – relativamente ao qual havia a ré assumido a responsabilidade civil emergente de danos causados a terceiros –, conduzido por (…), embateu, por culpa que imputa em exclusivo ao respetivo condutor, no veículo ligeiro de passageiros de matrícula (…), conduzido pela autora, causando-lhe lesões, tendo sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais, como tudo melhor consta da petição inicial.
A ré contestou, defendendo-se por impugnação, aceitando a transferência da responsabilidade civil em causa e impugnando parte da factualidade alegada na petição inicial, como tudo melhor consta do articulado apresentado, pugnando pela improcedência da ação.
Dispensada a audiência prévia, foi fixado o valor à causa e proferido despacho saneador, após o que se identificou o objeto do litígio e se enunciou os temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença, na qual se julgou improcedente a ação e se absolveu a ré do pedido, condenando-se a autora nas custas respetivas.
Inconformada, a autora interpôs recurso desta decisão, pugnando pela respetiva revogação e substituição por outra que julgue a ação procedente, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1º As questões a serem apreciadas no presente recurso são:
A) a dinâmica do acidente, determinando a responsabilidade na ocorrência do mesmo;
B) os danos causados na esfera da autora em consequência do embate;
C) Assunção da responsabilidade pelo acidente por parte da ré; – Conhecimento pela ré dos danos sofridos pela autora.
2º - No caso concreto, em face do material probatória, documental e testemunhal angariado para os presentes autos, deveria não constar o artigo 12 da matéria dada como provada, ao invés, deveria constar da matéria dada como provada que o veículo da A, como se pode verificar do anexo 5 do relatório junto a fls. 20, já estava para além do cruzamento, o que significa que já tinha iniciado a manobra, para virar para a sua moradia e que o veículo segurado na R. tentou ultrapassar o veículo da A. pela direita, razão pela qual se deu o embate e que o condutor daquele veículo, ou seja do veículo segurado na R., – circulava a uma velocidade excessiva.
3º- O veículo da A. circulava a uma velocidade de 10 Km/H sendo que o veículo segurado na R, colidiu pela direita com o veículo da A, a uma velocidade de 50 a 55 Km/H.
4º - As conclusões reportadas no relatório junto a fls. 20 são feitas com base essencialmente no croqui elaborado pela entidade policial, junto aos autos, que permitiu a testemunha … fazer uma reconstituição do acidente e esclarecer com rigor sobre a dinâmica do acidente, sendo que tal documento não foi devidamente valorado pelo douto tribunal.
5º - O veículo segurado R., colidiu com o veículo da A. a uma velocidade de 50 a 55 km /hora.
6º - Ora, com base na velocidade mantida pelo veículo segurado na R., não se pode assumir que este para o veículo da A. tenha vindo da direita, mas que se aproximou por de trás e tentou ultrapassá-lo pela direita.
7º - As ultrapassagens são por regra feitas pela esquerda, muito mais tendo em conta a configuração da via, o que obriga a que o condutor do veículo que pretende efetuar a ultrapassagem, tenha cuidados redobrados, isto é, apenas a deverá fazer se se verificarem as condições de segurança para tal e exclusivamente pela esquerda, o que não sucedeu.
8º - O veículo segurado na R. esta igualmente obrigado a respeitar as regras do Código da Estrada aplicáveis a um veículo que passa ou ultrapassa, ou seja, a passar ou ultrapassar o Renault pela esquerda.
9º - A estrada percorrida pelo Seat e pelo Renault pode ser vista em linha reta por vários 100 m sem curva na área em questão.
10º - A análise dos danos nos veículos Seat e Renault permite indubitavelmente uma configuração de colisão que foi compreensivelmente efectuada pela testemunha (…) no seu relatório e que foi novamente explicada na sua audição. Verificou-se então que o Seat colidiu com a parte traseira da porta do passageiro do Renault num ângulo relativo de 25º a 30°. Esta colisão ocorreu com o Seat a superar claramente a velocidade do Renault. Os cálculos científicos apresentados pela referida testemunha revelaram uma velocidade de 50,4 a 55,3 km/h para o Seat e de 8,6 a 13,5 km/h para o Renault no momento da colisão.
11º - Realça-se que as fotografias dos dois veículos tiradas pelos agentes da polícia mostram danos de colisão no veículo Renault da autora, desde o início da porta do passageiro até à frente, na direção da caixa da roda, e danos na zona do para-choques dianteiro esquerdo e no arco da roda esquerda do veículo segurado na Ré.
12º- O veículo Renault da autora não estava, portanto, parado, o que resulta das próprias declarações da autora na sua audição, mas também do parecer da testemunha (…), bem como do facto de os testemunhas presentes no Seat não terem mencionado quaisquer luzes de travagem do veículo Renault da autora.
13º - Tendo em conta as declarações convincentes da autora na sua audição, o conteúdo da peritagem da testemunha (…) e as explicações científicas apresentadas na sua audição, bem como o testemunho do agente de polícia (…), deve afirmar-se que as violações das regras relevantes do Código da Estrada foram efectuadas pelo condutor do veículo segurado na R., sendo as mesmas, a causa do evento danoso, por violação da proibição de efetuar uma manobra de ultrapassagem pela direita, bem como por violação do dever acrescido de cuidado que lhe incumbe, e por desrespeito do limite de velocidade de 50 km/h na zona em causa.
14º - Pelo que somos a concluir que a responsabilidade exclusiva pelo acidente é do condutor do veículo segurado na Ré, ou seja, (…).
15º - A ré, enquanto responsável pelo seguro de responsabilidade civil do veículo Seat, é, por conseguinte, obrigada a indemnizar a autora pelos danos sofridos.
16º - Nessa conformidade o Tribunal deveria ter considerado essa matéria para proferir a decisão final, sendo essencial que se pronunciasse sobre a mesma, para proferir uma decisão conscienciosa, porque a tanto o tribunal esta obrigado.
17º - Ora, salvo o devido respeito por diversa opinião, não pode a Recorrente, concordar com a apreciação da prova levada a cabo, discordando, consequentemente dos fundamentos que suportam a douta decisão prolatada quanto a matéria de facto e quanto á solução de direito.
18º - Impugnada a decisão da matéria de facto com base em meios de prova sujeitos à livre apreciação (in casu, documentos particulares, testemunhas ou presunções), com cumprimento dos requisitos previstos no artigo 640.º do CPC, cumpre à Relação proceder à reapreciação desses meios de prova e reflectir na decisão da matéria de facto a convicção que formar, nos termos do artigo 662.º.
19º - Ao contemplar diverso entendimento, o Mm.º Tribunal a quo incorreu em violação do artigos 640.º e 662.º do Código de Processo Civil e 1.º, 12.º, 13.º, 14.º, 14.º, 18.º e 21.º do Código da Estrada.
Por outro lado,
20º - Os danos alegados pela Recorrente, são compatíveis com o sinistro que se discute nos presentes autos.
21º - Devido aos ferimentos sofridos e ás fortes dores sofridas pela A., que perduraram por um longo período, à duração da incapacidade de trabalhar, à perda total do gozo das férias em consequência do acidente e necessidade de interromper as mesmas e regressar à Alemanha, para tratamento posterior, todos estes danos merecem a tutela do direito pelo que a R. deve pagar à Autora uma indemnização por danos morais num montante não inferior a 8.000,00 euros, montante que se peticiona.
22º - Dito isto e voltando ao caso concreto sub judice, atendendo que a culpa do acidente se deveu ao condutor segurado na Ré, pelo que que deverá ser arbitrada um valor mais alto, a título de indemnização os seguintes danos:
• Pedido de indemnização por danos morais de 8.000,00 euros;
• Danos materiais para aluguer de automóveis 425,00 euros;
• € 75,40 pagos pela participação do acidente automóvel;
• € 1.330,47 pagos pela peritagem ao perito (…);
• Total: € 9.830,87.
23º - A Ré tem de pagar à Autora os custos do carro que alugou juntamente com o pagamento do depósito, num montante total de 425,50 euros, pois a empresa de aluguer de automóveis (…) não devolveu o depósito à Autora, mais uma franquia de 1.000,00 euros.
24º - Por outro lado, a indemnização, a título de danos não patrimoniais, deverá, como sabemos, compensar os lesados pelos danos físicos e morais sofridos e a sofrer.
26º - Também aqui inexistem critérios “exactos”, fixados por lei, determinando esta que, à míngua desses critérios, a indemnização seja arbitrada com base na equidade.
Assim, aplicando as regras da equidade, deve in casu, atender-se às consequências físicas e morais que para a recorrida resultaram do acidente, acima reproduzidas. As incapacidades, as dores e as consequências que ficam dos acidentes de viação constituem, em geral, para os lesados o fim de uma vida saudável e são ofensas ilícitas à personalidade física e moral das pessoas, direito fundamental consagrado constitucionalmente, pelo que o quantum indemnizatório deve constituir uma contrapartida digna e justa.
27º - A Autora deve ser ressarcida de todos os danos patrimoniais por si peticionados.
28º - Ao contemplar diverso entendimento, o Mm.º Tribunal a quo incorreu em violação dos artigos 494.º, 496.º e 566.º do Código Civil.
Por outro lado,
29º - A Recorrente, requereu a condenação da Ré nos custos inerentes pelo não atendimento dos prazos previstos no DL n.º 291/2007 no que respeita à assunção da responsabilidade pelo acidente.
30º - O DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto regula o Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, estabelecendo o Capítulo III um conjunto de regras e procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel (artigo 31.º).
31º - Prevendo o artigo 36.º um conjunto de prazos a observar pela empresa de seguros com vista ao cumprimento dos seus deveres de diligência e prontidão.
32º - Estabelecendo o artigo 38.º (proposta razoável) do mesmo diploma que:
“1 - A posição prevista na alínea e) do n.º 1 ou no n.º 5 do artigo 36.º consubstancia-se numa proposta razoável de indemnização, no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte.
2 - Em caso de incumprimento dos deveres fixados nas disposições identificadas no número anterior, quando revistam a forma dele constante, são devidos juros no dobro da taxa legal prevista na lei aplicável ao caso sobre o montante da indemnização fixado pelo tribunal ou, em alternativa, sobre o montante da indemnização proposto para além do prazo pela empresa de seguros, que seja aceite pelo lesado, e a partir do fim desse prazo.
3 - Se o montante proposto nos termos da proposta razoável for manifestamente insuficiente, são devidos juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial, contados a partir do dia seguinte ao final dos prazos previstos nas disposições identificadas no n.º 1 até à data da decisão judicial ou até à data estabelecida na decisão judicial.
4 - Para efeitos do disposto no presente artigo, entende-se por proposta razoável aquela que não gere um desequilíbrio significativo em desfavor do lesado.”
33º - O artigo 38.º, n.º 2, através da remissão para o seu n.º 1 e, deste para alínea e) do n.º 1 ou do n.º 5 do artigo 36.º estabelece como dever da seguradora cujo incumprimento é sancionado com o pagamento de juros em dobro: - Comunicar em 30 dias a assunção ou não assunção da responsabilidade e, no caso de assumir a responsabilidade e o dano ser quantificável no todo ou em parte, apresentar (outro não pode ser o sentido da expressão “consubstancia-se”) uma proposta razoável (aquela que não gere um desequilíbrio significativo em desfavor do lesado).
34º - Decorre da factualidade que a seguradora não comunicou com a Autora ou com alguém em sua representação. Logo, não contestou a sua responsabilidade nem apresentou qualquer proposta razoável de indemnização. E o dano é quantificável.
35º - Verificam-se os pressupostos de condenação da recorrida na taxa de juros agravada a que se reporta o artigo 38.º, n.º 2, do DL 291/2007, de 21 de agosto.
36º - São por isso devidos juros no dobro sobre o montante da indemnização que vier a ser fixado em definitivo pelo tribunal.
37º Decorre da factualidade que a seguradora não comunicou com a Autora ou com alguém em sua representação. Logo, não contestou a sua responsabilidade nem apresentou qualquer proposta razoável de indemnização. E o dano é quantificável.
38º - Desse modo deverá o cálculo da penalização prevista no artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.07 ter em conta essa data inicial.
39º - Dispõe o artigo 40.º (resposta fundamentada) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.07:
“1 - A comunicação da não assunção da responsabilidade, nos termos previstos nas disposições identificadas nos n.ºs 1 dos artigos 38.º e 39.º, consubstancia-se numa resposta fundamentada em todos os pontos invocados no pedido nos seguintes casos:
a) A responsabilidade tenha sido rejeitada;
b) A responsabilidade não tenha sido claramente determinada;
c) Os danos sofridos não sejam totalmente quantificáveis.
2 - Em caso de atraso no cumprimento dos deveres fixados nas disposições identificadas nos n.ºs 1 dos artigos 38.º e 39.º, quando revistam a forma constante do número anterior, para além dos juros devidos a partir do 1.º dia de atraso sobre o montante previsto no n.º 2 do artigo anterior, esta constitui-se devedora para com o lesado e para com o Instituto de Seguros de Portugal, em partes iguais, de uma quantia de (euro) 200 por cada dia de atraso.”
40º - Ora, a Ré só se pronunciou sobre o sinistro em sede judicial, na contestação. Violando desse modo o seu dever de “Comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo do prazo fixado na alínea a), informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento eletrónico”, previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 36.º, concretizado no n.º 1 do artigo 38.º e abrangido pelo campo de previsão do artigo 40.º, todos do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.07.
41º - Logo, o incumprimento do dever de resposta fundamentada constitui a seguradora como devedora para com o lesado e para com o Instituto de Seguros de Portugal, em partes iguais, de uma quantia de (euro) 200 por cada dia de atraso.
42º - A expressão em partes iguais sugere uma quantia única em divisão igualitária.
31º - Nesse sentido o Ac. TRG de 10-09-2013, Proc. n.º 2463/12.2TBBRG.G1, in www.dgsi.pt:
“O incumprimento do dever de diligência por parte da seguradora gera o direito previsto no artigo 40.º, n.º 2, do DL. 291/2007, de 21 de Agosto, que deverá ser exercido por cada um dos seus titulares, lesado e ISP.”
43º - Discutida a causa essa alegação tornou-se evidente de que a Recorrida não tinha apresentado a proposta a que legalmente se encontrava obrigada, assim incumprido de forma grosseira o decreto-lei acima mencionado.
44º - Com efeito, face ao incumprimento da R., de harmonia com o quadro legal que rege este tipo de situações, deveria ter sido esta condenada a pagar os juros em dobro (o que efetivamente sucedeu) e, além disso, deveria ter sido condenada a R. no pagamento de uma indemnização no montante diário de € 200,00 (sendo € 100,00 para o lesado e € 100,00 para o Instituto de Seguros de Portugal). Porém, a Recorrente não têm legitimidade para requer o pagamento a favor daquele Instituto apenas o montante que lhe deverá ser pago.
45º - O que fez a título pessoal quando peticionou a condenação da Ré nos custos inerentes pelo não atendimento dos prazos previstos no DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto no que respeita à assunção da responsabilidade pelo acidente, onde se inclui, sem margem para dúvidas, este montante indemnizatório, que foi olimpicamente ignorado pelo Tribunal a quo.
46º - Ao não ter decido assim, violou o Mm.º Juiz a quo o douto entendimento dos artigos 31.º, 36.º, 38.º a 40.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto».
A ré apresentou contra-alegações, sustentando dever ser rejeitada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, por incumprimento de ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil, e pronunciando-se no sentido da manutenção do decidido.
Por acórdão de 12-09-2024 desta Relação, foi rejeitada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto deduzida pela apelante e julgada improcedente a apelação, tendo-se confirmado a sentença recorrida e condenado a apelante nas custas.
A apelante interpôs recurso de revista, o qual foi admitido.
Por acórdão de 27-02-2025, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu o seguinte: Pelo exposto, julga-se procedente a revista, e em consequência: a) anula-se o acórdão recorrido; b) determinando a baixa dos autos para que o Tribunal da Relação, se possível pelos mesmos Senhores Juízes Desembargadores, aprecie a impugnação da matéria de facto, seguindo-se a decisão de direito.
*
As custas do recurso são a cargo da recorrida.
Face ao decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, cumpre apreciar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto deduzida pela apelante, após o que se aferirá se assiste à autora o direito que invoca a ser indemnizada pela ré, bem como, em caso afirmativo, o montante a arbitrar.
2. Fundamentos
2.1. Decisão de facto
2.1.1. Factos considerados provados em 1.ª instância:
1. Em junho de 2019, a Autora pretendeu gozar férias em Portugal, na casa que tem em Aljezur, e assim, à sua chegada a Faro, em 19.06.2019, alugou um veículo ligeiro de passageiros da marca e modelo Renault Clio, com a matrícula portuguesa (…), junto da empresa de aluguer de automóveis (…) Rent-a-Car, no aeroporto de Faro, conforme contrato de aluguer n.º (…) – fls. 12 v./53 v. (artigo 1º da petição inicial).
2. O período de aluguer acordado foi de 6 dias até 24.06.2019 (artigo 2º da petição inicial).
3. Os custos de aluguer ascenderam a € 125,50, e o depósito necessário foi de € 300,00 (artigo 3º da petição inicial).
4. A (…) Rent-a-Car onerou a conta de cartão de crédito da Autora com um montante total de € 425,50 (artigo 4º da petição inicial).
5. No dia 23.06.2019, pelas 16:30, a Autora e (…) foram intervenientes num acidente de viação na Urbanização (…), Sector M, lote …, … (artigo 5º da petição inicial, retificada a fls. 137 verso).
6. A Autora conduzia o veículo com matrícula (…) na via, na direção à sua casa em (…), Sector M, Casa …, de noroeste para sudeste, ou seja, vinda da costa – fls. 138 v. (artigo 6º da petição inicial, retificada a fls. 137 verso).
7. (…) conduzia o automóvel de passageiros com a matrícula (…), tendo a ré assumido a responsabilidade de indemnizar terceiros pelos danos que viesse a causar, conforme apólice n.° (…) – fls. 39 verso (artigo 7º da petição inicial).
8. Vindo do sentido em que circulava o veículo segurado na R., uma via de traçado retilíneo, a casa da A. fica do lado direito da via (artigo 8º da petição inicial e artigo 5.º do Código de Processo Civil).
9. Na proximidade imediata da casa da Autora há um cruzamento em formato T – fls. 19 v. (artigo 9º da petição inicial).
10. No sentido em que a Autora circulava, o cruzamento em causa situava-se à sua direita (artigo 10º da petição inicial).
11. A via estava seca e havia um passeio à direita. A via tinha 8,80 m de largura, e não havia outros veículos a circular – fls. 17/118 (artigo 11º da petição inicial).
12. A Autora passara pelo cruzamento da via e, depois, encostou à esquerda, tendo imobilizado o veículo, para depois avançar e entrar na sua propriedade. Assim, avançou e aproximou-se do eixo da via, sensivelmente em frente do portão da sua casa, iniciando a manobra de virar à direita para aceder à sua propriedade, quando o “(…)” que seguia do lado direito da via embateu no “Renault” que cortou a linha de circulação do “(…)” (artigos 12º e 13º da petição inicial e 5º e 7º da contestação).
13. O veículo “(…)” embateu no “Renault”, num ângulo relativo de 25˚ a 30˚, sensivelmente antes do portão da casa da autora (cfr. os vestígios assinalados a fls. 118), a cerca de 3,40 m do passeio do lado direito, sendo que os veículos vieram a ficar imobilizados na posição que mostram as fotografias de fls. 18 e croqui de fls. 118, em termos compatíveis com o embate supra referido. O embate deu-se entre a parte dianteira do Seat (“…”) e a porta frontal direita do Renault (“…”) – (artigo 14º da petição inicial).
14. Da colisão resultaram danos em ambos os veículos e quatro feridos ligeiros – fls. 121 (artigo 15º da petição inicial).
15. A GNR foi chamada ao local do acidente e elaborou a participação de acidente de viação com o n.º de registo … e NPAV … – fls. 13 (artigo 16º da petição inicial).
16. A Autora regressou à Alemanha, como previsto, no dia seguinte após o acidente (artigo 21º da petição inicial).
17. A Autora queixou-se de dores, situando-se as mesmas na coluna cervical e no tórax, pelo que procurou assistência médica e foi examinada por médico no dia 25.06.2019 (artigo 22º da petição inicial).
18. A Autora sofreu em consequência do acidente dor na zona da coluna cervical, do lado direito, mobilidade limitada a um certo grau, sem défices neurológicos. Dor acima do músculo trapézio do lado esquerdo, dor no tórax do lado direito, no decurso do arco costal, sem dispneia – fls. 68 (artigo 23º da petição inicial).
19. A Autora esteve sem trabalhar durante 14 dias (artigos 24º e 28º da petição inicial).
20. Queixando-se de dores, no mesmo dia 25.05.2019, pelas 14:50 horas, a Autora deslocou-se ao hospital do (…), em (…), na Alemanha (artigo 25º da petição inicial).
21. Foi elaborado o documento de fls. 69 verso (artigos 26º e 29º da petição inicial).
22. A empresa de aluguer de automóveis (…) não devolveu o depósito à Autora, mais uma franquia de 1.000,00 euros (artigo 31º da petição inicial).
23. A ré não fez quaisquer declarações conclusivas à autora relativamente à assunção de responsabilidade, muito menos prometeu o pagamento ou apresentou qualquer proposta, sendo que a autora também não lhe comunicou ter sofrido qualquer dano corporal (artigos 39º da petição inicial e 26º e 38º da contestação).
24. A Autora pagou € 75,40 pela participação do acidente automóvel e € 1.330,47 pela peritagem ao perito … (artigo 48º da petição inicial).
2.1.2. Factos considerados não provados em 1.ª instância:
Consignou-se na sentença que, além da resposta restritiva a alguns artigos, não se provou:
- Que o Seat circulasse em “velocidade excessiva” (artigo 18º da petição inicial).
2.2. Apreciação do objeto do recurso
2.2.1. Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
A apelante põe em causa a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida, defendendo a modificação da redação do ponto 12 da factualidade julgada provada e o aditamento à matéria assente do ponto tido por não provado em 2.1.2..
Sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, dispõe o artigo 662.º do Código de Processo Civil, no n.º 1, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Esta reapreciação da decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto deve, de forma a assegurar o duplo grau de jurisdição, ter a mesma amplitude que o julgamento efetuado na 1.ª instância, o que importa a apreciação da prova produzida, com vista a permitir à Relação formar a sua própria convicção.
No caso presente, cumpre reapreciar a decisão de facto proferida pela 1.ª instância, no que respeita aos pontos impugnados pela recorrente, com vista a apurar se, face à prova produzida, devem ser efetuadas as modificações preconizadas no recurso interposto.
Defende a apelante o seguinte:
i) o aditamento à matéria provada do ponto tido por não provado em 2.1.2., com a redação seguinte: Que o Seat circulasse em “velocidade excessiva”;
ii) a modificação do ponto 12 de 2.1.1. – com a redação: A Autora passara pelo cruzamento da via e, depois, encostou à esquerda, tendo imobilizado o veículo, para depois avançar e entrar na sua propriedade. Assim, avançou e aproximou-se do eixo da via, sensivelmente em frente do portão da sua casa, iniciando a manobra de virar à direita para aceder à sua propriedade, quando o “(…)” que seguia do lado direito da via embateu no “Renault” que cortou a linha de circulação do “(…)” –, passando a ter a redação indicada na 2.ª conclusão das alegações de recurso, a saber: «O veículo da A, como se pode verificar do anexo 5 do relatório junto a fls. 20, já estava para além do cruzamento, o que significa que já tinha iniciado a manobra, para virar para a sua moradia e que o veículo segurado na R. tentou ultrapassar o veículo da A. pela direita, razão pela qual se deu o embate e que o condutor daquele veículo, ou seja do veículo segurado na R., - circulava a uma velocidade excessiva».
No que respeita ao ponto tido por não provado em 2.1.2. – com a redação: Que o Seat circulasse em “velocidade excessiva” –, verifica-se que dele não consta qualquer indicação relativa à concreta velocidade a que seguia o veículo Seat, nem que o mesmo circulasse a velocidade compreendida entre determinados limites ou a velocidade superior a algum concreto limite.
Como tal, não poderá deixar de se considerar que o teor deste ponto comporta apenas um elemento conclusivo baseado num conceito jurídico, a saber, o excesso de velocidade.
Peticionando a autora a condenação da ré a indemnizá-la por danos decorrentes de embate do veículo Seat – relativamente ao qual havia a seguradora demandada assumido a responsabilidade civil emergente de danos causados a terceiros – no veículo conduzido pela demandante, por culpa que imputa em exclusivo ao condutor do veículo seguro, com fundamento, além do mais, no excesso de velocidade que imprimia à viatura, verifica-se que a invocada velocidade excessiva configura um elemento jurídico com relevo para a solução preconizada; por outro lado, a expressão em causa traduz-se numa conclusão baseada em factos não inseridos na respetiva redação, o que impede se verifique se estes resultam ou não da prova produzida.
Como tal, considerando que o elemento constante do ponto constante de 2.1.2. não constitui matéria de facto, antes assumindo natureza conclusiva, não há que determinar o seu aditamento à factualidade provada, antes se impondo a respetiva eliminação da factualidade considerada não provada.
Quanto ao ponto 12 de 2.1.1., defende a apelante a respetiva modificação, passando a ter a redação seguinte: «O veículo da Autora, como se pode verificar do anexo 5 do relatório junto a fls. 20, já estava para além do cruzamento, o que significa que já tinha iniciado a manobra, para virar para a sua moradia e que o veículo segurado na Ré tentou ultrapassar o veículo da Autora pela direita, razão pela qual se deu o embate e que o condutor daquele veículo, ou seja do veículo segurado na Ré – circulava a uma velocidade excessiva».
Analisando a redação defendida pela apelante para o ponto 12, verifica-se que integra os elementos seguintes:
i) «o veículo da A. (…) já estava para além do cruzamento, o que significa que já tinha iniciado a manobra, para virar para a sua moradia»;
ii) «o veículo segurado na R. tentou ultrapassar o veículo da A. pela direita, razão pela qual se deu o embate»;
iii) «o condutor daquele veículo, ou seja do veículo segurado na Ré – circulava a uma velocidade excessiva».
O teor conferido pela 1.ª instância ao ponto 12, por seu turno, integra os elementos seguintes:
a) A Autora passara pelo cruzamento da via e, depois, encostou à esquerda, tendo imobilizado o veículo, para depois avançar e entrar na sua propriedade. Assim, avançou e aproximou-se do eixo da via, sensivelmente em frente do portão da sua casa, iniciando a manobra de virar à direita para aceder à sua propriedade;
b) … quando o “(…)” que seguia do lado direito da via embateu no “Renault” que cortou a linha de circulação do “(…)”.
Verificando que a redação preconizada pela apelante para o ponto em apreciação integra, na parte final, o supra analisado elemento constante de 2.1.2., afastada se encontra, pelos motivos já expostos, a inclusão no ponto 12 do segmento iii), relativo à velocidade excessiva a que circulava o veículo segurado na Ré.
No que respeita aos segmentos i) e ii) da redação defendida pela apelante, no seu confronto com os segmentos a) e b) constantes da decisão recorrida, vejamos se os elementos probatórios indicados pela apelante impõem a preconizada modificação da redação do ponto 12.
No que respeita à questão de facto em apreciação, extrai-se da fundamentação constante da sentença recorrida o seguinte: A convicção do Tribunal quanto à factualidade dada como provada resultou da posição das partes (admitida por acordo e confessada – artigo 574.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil) e da conjugação da apreciação feita dos depoimentos testemunhais, também de acordo com as regras da experiência, e dos documentos juntos e para os quais foi sendo feita referência. A autora prestou declarações de parte. Reportou-se à dinâmica do acidente e aos danos que relacionou com o mesmo. Sobre a dinâmica, disse que se dirigia para casa e, como habitualmente, acionou o pisca para a direita, olhou para trás e viu um automóvel atrás de si. Um pouco antes do passeio, esse veículo embateu diretamente, em vez de se desviar, tendo o seu veículo sido empurrado, o que, nas suas palavras, foi terrível. Depois do acidente, não falaram (…) (…) confirmou ter elaborado o relatório junto a fls. 20 relativo à dinâmica do acidente, para o que se muniu sobretudo da versão apresentada pela autora que o contratou. Sem prejuízo de algumas notas que podem ser aplicáveis no caso e que decorrem das leis da física (os danos nos veículos indicam que no momento do embate num ângulo relativo de 25º a 30º), a verdade é que tem de ser ponderado o depoimento das pessoas que estiveram presentes no local e assistiram ao acidente, elementos que conjugados com as regras da experiência, poderão ditar versão diferente da apresentada pela testemunha. (…), militar da GNR, disse que elaborou o croqui e que concluiu ter havido excesso de velocidade do veículo que vinha atrás do da senhora, a autora, e que foi arrastado. Apurou o local de embate segundo o acordo entre ambos os condutores. Disse crer que a via era terra batida, segundo se lembra e não estava marcada. As características da via foram apuradas através de alguns depoimentos e das fotografias juntas relativas ao dia do acidente, assim como do croqui da participação. (…) (…), condutor do veículo que interveio no acidente com a autora, disse ter-se apercebido do veículo onde seguia a autora à sua frente e que não conseguiu evitar o acidente, já que o veículo estava encostado à esquerda e entrou na via da direita, por onde seguia. (…), irmã do condutor do “Seat”, disse que seguia como passageira, no banco de trás, atrás do condutor, com a mãe, localizou o acidente, mas disse que ia a conversar com a mãe. À frente, seguia o seu filho, (…). Disse que o “Renault” estava parado à esquerda e que se mandou para o meio da estrada, tendo-se apercebido em cima do embate e depois fechou os olhos. O “Renault” não tinha acionado o pisca e que o irmão travou (de que não há sinal), não tendo perceção de que os veículos ainda tivessem seguido após o embate, o que não é compatível com as fotografias juntas que mostram os veículos lado a lado, após o embate, numa posição que não pode ser a do embate, atendendo aos danos, claramente provenientes da colisão. A autora saiu do carro e foi para casa situada à direita, só tendo falado quando a “GNR” chegou. Ficou magoada, esteve no hospital e ficou com dores. (…), sobrinho do condutor do “Seat”, confirmou seguir no veículo ao lado do tio. Apercebeu-se do outro veículo interveniente quando estava junto à berma esquerda (de facto não há passeio à esquerda), tendo ficado com a ideia de que estava estacionado, quando de repente, a condutora passou a ocupar a via na diagonal, não se tendo apercebido de pisca. Fez referência a outros carros estacionados do lado esquerdo (existe um na fotografia de fls. 16 verso), daí ter concluído que também o “Renault” teria parado. O tio tentou desviar-se para a direita, mas sem sucesso, tendo os veículos “resvalaram” um pouco e o tio teve de sair pelo lado direito, pois os veículos ficaram lado a lado. (…), mãe do condutor do “Seat”, (…), disse que seguia atrás do pendura, mas que não se apercebeu de nada. (…) que consta do auto como testemunha do acidente (onde disse ter visto o acidente, quando um veículo de marca “Renault” pisou a berma do lado esquerdo e se atravessou na via para entrar na sua garagem – fls. 14), disse não se recordar de acidente entre um “Renault” e um “Seat” em 2019. Entretanto, disse que foi chamado à GNR e que relatou o que viu cerca de um mês antes, quando foi chamado, depois de ter sido identificado no local, pois era o condutor que seguia atrás dos dois carros que bateram. Não conseguiu descrever pormenores a não ser o facto de a estrada ter ficado obstruída. De referir que numa ação como a presente, o ónus da prova compete à autora e não à ré, ao contrário do que parece resultar das alegações apresentadas por escrito por aquela. Dos elementos recolhidos decorre que o veículo conduzido pela autora seguia à frente do outro veículo interveniente, o “(…)”, e que a intenção da autora era a de entrar para a sua propriedade, situada à direita. Várias testemunhas referiram o facto de se ter encostado à esquerda e de até ter parado, o que é credível tendo em conta as regras da experiência: seguindo pela via da direita e pretendendo entrar por um portão à direita, seria normal, ou invadir o lado esquerdo da via, abrindo a curva para poder entrar pelo portão, sem parar, ou encostar mais à esquerda e depois avançar para entrar pelo portão que se situava à direita. Segundo os depoimentos de quem não tinha direto interesse no desfecho da ação (ao contrário da autora, por isso não se deu provado que tivesse feito o pisca para a direita), a hipótese que se acolhe é a segunda. Assim também o dita o local dos danos dos dois veículos que apontam para uma inclinação relativa de 25˚ a 30˚ como referido no relatório que, para este efeito, se aproveita. Quanto ao mais, por não atender a outros elementos a que o Tribunal teve acesso, não será considerado. Os vestígios deixados no chão apontam para o facto de o local do embate se ter dado no lado direto da via, a 3,40 m do passeio (fls. 118). O facto de a testemunha (…) não se ter apercebido do acidente instantes antes contraria o que foi dito pela testemunha (…), que disse que antes do embate fechou os olhos e que o irmão ainda travou, não havendo, porém, sinal de travagem. Já o sobrinho do condutor referiu que o tio tentou desviar-se e travar. O facto de haver vestígios dos veículos junto à entrada para a casa da autora à direita (fls. 17/17 verso) mostra que o embate se deu nessa zona e depois os veículos avançaram um pouco para a frente. A ausência de rasto de travagem pode dever-se ao facto de nenhuma das viaturas levar grande velocidade que, em concreto, não foi apurada. (…)
Discordando deste entendimento, a apelante requer a reapreciação do croquis constante da participação de acidente de viação elaborada pela autoridade policial e do depoimento do participante, a testemunha (…), bem como do depoimento prestado pela testemunha (…) e do relatório pela mesma elaborado, sustentando que tais elementos probatórios impõem a alteração que defende da decisão de facto.
Procedeu-se à reapreciação da participação de acidente de viação – designadamente do croquis junto aos autos em 29-10-2023 – emitida pela Guarda Nacional Republicana (Posto de … do Destacamento de Portimão) e subscrita pelo participante (guarda …), bem como do depoimento pelo mesmo prestado na audiência final na qualidade de testemunha.
A participação de acidente de viação consiste num documento emitido por um órgão de polícia criminal, isto é, por um oficial público, no âmbito das suas competências, dado dispor o n.º 2 do artigo 78.º do DL n.º 291/2007, de 21-08, que “a entidade fiscalizadora de trânsito que tome conhecimento da ocorrência de acidente de viação deve recolher todos os elementos necessários ao preenchimento da participação de acidente constante de modelo aprovado pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária”.
Tratando-se de um documento emitido por um oficial público, no âmbito das suas competências, a participação de acidente de viação configura documento autêntico, assim lhe sendo aplicável o estatuído no artigo 371.º do Código Civil.
Dispõe o n.º 1 deste preceito o seguinte: Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.
Decorre deste preceito que a força probatória plena dos documentos autênticos abrange unicamente os factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo e os dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora, não os meros juízos pessoais do documentador.
Em anotação ao citado artigo 371.º, afirma José Lebre de Freitas (Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, volume I, Coimbra, Almedina, 2017, págs. 459-460) que “o documento autêntico faz prova plena dos factos (declarações e outros) que nele são referidos como praticados pela autoridade ou oficial público documentador (p. ex., a leitura e a explicação da escritura pública pelo notário aos outorgantes: artigo 46.º, n.º 1, do Código do Notariado), bem como dos que nele são atestados como objeto da sua perceção direta (p. ex., a produção, pelos outorgantes, de declarações de compra e de venda perante o notário e a entrega, perante ele, pelo comprador ao vendedor, de um cheque de valor igual ao preço declarado como sendo o da compra e venda – artigo 42.º, n.º 2, do Código do Notariado); mas não daqueles que constituem objeto de declarações de ciência perante ele produzidas (p. ex., a entrega, antes da escritura, do preço da compra e venda pelo comprador ao vendedor, conforme a declaração confessória deste) ou constantes de documentos que lhe sejam apresentador (p. ex., o facto de o nome e demais elementos dos outorgantes da escritura serem efetivamente os que constam dos bilhetes de identidade apresentados ao notário), nem tão-pouco dos que sejam objeto de apreciações ou juízos pessoais seus (p. ex., o facto de os intervenientes no ato terem íntegras as suas faculdades mentais ao celebrá-lo: artigo 173.º, n.º 1-c), do Código do Notariado)”.
Sobre o valor probatório da participação de acidente de viação, explica Luís Filipe Pires de Sousa (Direito Probatório Material Comentado, Coimbra, Almedina, 2020, pág. 143) o seguinte: “(…) se o agente da autoridade efetua medições de rastos de travagem e os localiza, mede e anota a largura da faixa de rodagem, anota os sinais de trânsito e sua localização, anota o local onde ficaram os veículos imobilizados após o acidente, descreve os danos externos visíveis nos veículos, todos estes factos passam a estar abrangidos pela força probatória plena do documento autêntico em causa. Tal força probatória será desvirtuada, ilidida mediante a arguição e prova da falsidade ideológica (a largura não é x mas y, o rasto no é de 10 mas de 20, etc.) ou da falsidade material do documento (v.g., o agente fez constar no croquis algo que depois rasurou ou alterou)”. Acrescenta o autor (loc. cit.) que “no que tange à versão do acidente comunicada pelos intervenientes ao agente e demais elementos que este não presenciou, limitando-se a recolher declarações, o documento apenas prova plenamente que tais declarações foram feitas ao agente, fica provada a respetiva materialidade mas não a sua veracidade, sinceridade ou eficácia. Podem as partes demonstrar que a declaração não é verdadeira ou eficaz sem necessidade de arguir a falsidade do documento. Só terão de arguir a falsidade do documento, nesse segmento, se pretenderem demonstrar que constam do documento declarações diferentes das efetivamente prestadas. (…) As declarações dos intervenientes constituem um elemento de prova a utilizar pelo tribunal, a par das demais, sujeito ao princípio da livre apreciação da prova”.
No caso presente, no que respeita à realidade fáctica exposta na participação de acidente de viação em apreciação, verifica-se que o respetivo subscritor invoca o conhecimento direto das características da via onde se deu o sinistro, consignando que se deslocou ao local logo após a ocorrência do embate; porém, igualmente indica que o fez numa ocasião em que os dois veículos intervenientes no acidente ainda se encontravam no local onde se imobilizaram na sequência da colisão e que o estado do tempo era bom.
Daqui decorre que a largura e demais características da faixa de rodagem e a posição dos veículos após o embate configuram factos que o subscritor da participação atesta com base nas suas perceções, pelo que se encontram abrangidos pela força probatória plena da participação, como documento autêntico; pelo contrário, a provável dinâmica do embate, mostrando-se desacompanhada por qualquer outro elemento, designadamente a perceção direta por parte do guarda, configura matéria de facto que não está abrangida pela força probatória plena do documento, dado que terá sido adquirido com base na interpretação de outros elementos operada pelo participante, que não assistiu ao embate.
Nesta conformidade, no que respeita à posição dos veículos após o embate, a participação de acidente de viação faz prova plena, sendo certo que tal força probatória não foi ilidida mediante a arguição e prova da falsidade ideológica.
Da reapreciação do depoimento prestado pela testemunha (…) não decorreu qualquer outro elemento, não constante da participação e respetivo croquis, com relevo para a apreciação da factualidade relativa à dinâmica do embate, designadamente quanto à atuação da autora, na condução da viatura Renault, na execução da manobra destinada a entrar no portão da respetiva moradia, e à atuação do condutor do veículo Seat.
Foi reapreciado o depoimento prestado pela testemunha (…), engenheiro físico que, a pedido da autora, efetuou uma peritagem relativa à dinâmica do embate e suas prováveis causas, tendo por base o mencionado croquis, fotos dos dois veículos após o embate e imagens da via onde ocorreu o sinistro, tendo elaborado o relatório junto aos autos pela autora. Estes elementos probatórios, porém, em nada infirmam a factualidade considerada assente pela 1.ª instância, deles decorrendo, inclusivamente, a probabilidade de ter a autora desviado o veículo que conduzia para a sua esquerda e, de seguida, dado início à manobra de mudança de direção para a direita, direcionando o veículo no sentido do portão da moradia localizada no lado direito da estrada, atento o sentido de marcha de ambos os veículos, ocasião em que terá este veículo sido embatido pelo veículo Seat.
Reapreciaram-se, ainda, os depoimentos prestados pelas testemunhas (…), condutor do veículo Seat, e (…), passageiro que seguia nesse veículo no lugar ao lado do condutor, ambos tendo esclarecido que o veículo conduzido pela autora se desviou para a esquerda e se imobilizou no lado esquerdo da via, após o que iniciou a manobra de mudança de direção para a direita, dirigindo-se no sentido do portão da moradia localizada no lado direito da estrada, cortando a via por onde circulava o veículo Seat, cujo condutor não conseguiu evitar o embate, por ter sido surpreendido pela manobra efetuada pela autora. Foram também reapreciadas as declarações de parte prestadas pela autora, das quais não se extraiu qualquer elemento seguro que esclareça a manobra efetuada, que não descreveu de forma suficientemente clara, afirmando que sinalizou a manobra acionando o pisca direito e que o automóvel que circulava atrás embateu no veículo que conduzia sem se desviar, o que não se mostra conforme aos danos sofridos pelos veículos, visíveis nas fotos juntas aos autos, ao local do embate assinalado no croquis e aos elementos constantes do ponto 13 de 2.1.1., julgado provado e não impugnado na apelação.
Nesta conformidade, tendo-se verificado que a reapreciação dos meios de prova indicados pela apelante não impõe decisão diversa da proferida pela 1.ª instância quanto aos dois segmentos em apreciação do facto constante do ponto 12 de 2.1.1., impugnado na apelação, mostra-se improcedente a peticionada modificação da decisão de facto constante da sentença recorrida.
Em conclusão, cumpre julgar improcedente a impugnação da decisão de facto deduzida pela apelante.
2.2.2. Obrigação de indemnização
Está em causa, no presente recurso, a responsabilidade civil emergente de embate ocorrido no dia 23-06-2019, na Urbanização (…), em (…), entre o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (…) – relativamente ao qual havia a ré assumido a responsabilidade civil emergente de danos causados a terceiros –, conduzido por (…), e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (…), conduzido pela autora.
Discorda a recorrente da decisão da 1.ª instância, na parte em que considerou que o embate não ocorreu em resultado de conduta ilícita e culposa do condutor do veículo segurado na ré, pelo que se concluiu não assistir à ré a obrigação de indemnizar a autora pelos danos sofridos em consequência do sinistro.
Defende a recorrente, na apelação, que a responsabilidade pela ocorrência do embate cabe em exclusivo ao condutor do veículo segurado na ré.
Verifica-se, porém, que a solução que a recorrente defende para o litígio assenta em matéria de facto não considerada provada, designadamente relativa à velocidade a que seguia o veículo de matrícula (…) e à circunstância de ter o respetivo condutor iniciado uma manobra de ultrapassagem pela direita ao veículo conduzido pela autora, o que não se provou – antes se tendo provado que a autora desviou o veículo que conduzia para o lado esquerdo e encostou à esquerda da via, imobilizando o veículo, na sequência do que avançou, aproximou-se do eixo da via e iniciou a manobra de viragem à direita, com vista a entrar no portão da respetiva propriedade, manobra que cortou a linha de circulação do veículo Seat, que circulava no mesmo sentido de marcha, pelo lado direito da via –, sendo certo que não defende a apelante qualquer alteração da matéria de direito a apreciar com base na factualidade fixada pela 1.ª instância.
Como tal, a não alteração da matéria de facto considerada provada importa se considere prejudicada a apreciação da questão da obrigação de indemnização a cargo da ré, suscitada pela recorrente na apelação, baseada em factualidade que não se encontra provada.
Nesta conformidade, face à improcedência da impugnação da decisão relativa à matéria de facto e à consequente não modificação da factualidade provada, cumpre considerar prejudicada a apreciação da questão de direito suscitada pela recorrente na apelação.
Improcede, assim, a apelação.
Em conclusão: (…)
3. Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.
Évora, 08-05-2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Emília Ramos Costa (1ª Adjunta)
Vítor Sequinho dos Santos (2º Adjunto)