I. Não viola os princípios in dubio pro reo e da livre apreciação da prova a condenação pelo Tribunal da Relação de arguido que havia sido absolvido pelo tribunal de 1ª instância se aquele partiu dos mesmos meios probatórios, procedeu a uma análise diferente da efectuada em 1ª instância e concluiu, sem margem para dúvida, pela imputação dos factos ao recorrente, demonstrando à saciedade as razões lógicas pelas quais os factos se passaram da forma exposta, à medida que aponta os erros de raciocínio da decisão de 1ª instância que levaram à sua insubsistência.
II. Não constitui erro notório na apreciação da prova (art. 410º nº 2 al. c) do Código de Processo Penal) a alteração da decisão absolutória sem indicação de novos elementos probatórios ou razões jurídicas concretas para justificar essa reversão quando a análise efectuada partindo dos mesmos meios probatórios demonstra as razões lógicas da decisão.
III. Comete o crime de simulação de crime, p. e p. pelo art. 366º nº 1 do Código Penal o arguido que denuncia às autoridades crime de furto que sabia que não tinha ocorrido.
IV. Comete o crime de falsificação o arguido que preenche e entrega na Seguradora uma participação de sinistro bem sabendo que os factos participados não ocorreram, não sendo necessário que um documento tenha força probatória plena para ser alvo de falsificação.
V. Comete uma tentativa acabada de burla o arguido que pratica todos os actos típicos do crime, idóneos a produzir o resultado típico, de acordo com o plano delineado mas não alcança o seu desiderato por razões alheias à sua vontade. o o acórdão da Relação não se pronunciou sobre a ofensa de caso julgado, o AFJ 2/2024 não é aplicável directamente ao caso.
I – RELATÓRIO
Por sentença de 4.7.2024, o tribunal singular absolveu o arguido AA, divorciado, nascido a ........77, natural de ..., filho de BB e de CC, residente na rua da ..., da prática de um crime de simulação de crime p. e p. pelo art. 266º nº 1 do Código Penal; de um crime de falsificação de documentos p. e p. pelos art.s 255º al. a) e 256º nº1 al. b) do Código Penal; e, de um crime de burla qualificada na forma tentada p. e p. pelos art.s 22º, 23º e 217º nº1 e 2 do Código Penal; mais julgou o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante Companhia de Seguros Fidelidade – Mundial, SA contra o arguido/demandado totalmente improcedente.
Inconformada, a assistente/demandante Companhia de Seguros Fidelidade – Mundial, SA recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, por acórdão de 22.1.2025, decidiu:
«…julgar procedente o recurso interposto pela assistente Companhia de Seguros Fidelidade – Mundial, SA, pelo que, consequentemente, revogando a sentença recorrida:
A – Alteram a matéria de facto nos termos consignados em II-C da fundamentação deste aresto;
B – Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo art.º 366.º, n.º 1, do Código Penal, condenam o arguido AA na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de €6 (seis euros);
C – Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. d), com referência ao art.º 255.º, al. a), ambos do Código Penal, condenam o arguido AA na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de €6 (seis euros);
D – Operando o cúmulo jurídico das penas de multa a que se reportam as als. B e C deste dispositivo, condenam o arguido AA na pena única de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de €6 (seis euros), o que perfaz um total de €780 (setecentos e oitenta euros);
E – Pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artgs 217.º, n.ºs 1 e 2, e 218.º, n.º 2, al. a), com referência aos artgs 22.º, n.ºs 1 e 2, al. a), 23.º, n.º 2, 26.º e 202.º, al. b), todos do Código Penal, condenam o arguido AA na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por 2 (dois) anos, subordinada ao dever de pagar nesse período de tempo à assistente/demandante o montante indemnizatório a que infra irá ser condenado no ponto G-i) deste dispositivo;
F – Revogam a sentença recorrida na parte em que condenou a assistente no pagamento de taxa de justiça quanto à parte criminal;
G – Julgam o PIC deduzido pela assistente/demandante Companhia de Seguros Fidelidade – Mundial, SA, totalmente procedente, por provado, pelo que, consequentemente:
i) Condenam o arguido/demandado AA no pagamento àquela da quantia de €6.110,83 (seis mil cento e dez euros e oitenta e três cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais emergentes, acrescida dos respetivos juros de mora, calculados à taxa legal, desde a notificação para contestar o PIC até integral e efetivo pagamento;
ii) Condenam o arguido/demandado AA no pagamento das custas respeitantes à instância cível.
*
Em discordância com o acórdão da Relação vem agora interposto recurso pelo arguido AA para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. O presente recurso é interposto para o Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo dos artigos 406.º, 407.º, n.º 2, alínea a), 408.º, n.º 1, alínea a), 411.º e 432.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, visando a anulação do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, que condenou o arguido após ter sido absolvido em primeira instância.
2. A decisão do Tribunal da Relação violou o princípio in dubio pro reo, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, ao condenar o arguido sem demonstrar objetivamente como afastou as dúvidas expressamente reconhecidas pela 1.ª instância.
3. A 1.ª instância, que teve contacto direto com a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, reconheceu a insuficiência de prova para uma condenação e aplicou corretamente o princípio in dubio pro reo, absolvendo o arguido devido à existência de dúvida razoável.
4. O Tribunal da Relação alterou aquela decisão absolutória sem indicar novos elementos probatórios ou razões jurídicas concretas para justificar essa reversão, violando os artigos 127.º e 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal.
5. A condenação do arguido baseou-se numa interpretação subjetiva da prova, sem um juízo de certeza quanto aos factos imputados, em violação do princípio da presunção de inocência, constitucionalmente protegido.
6. O Tribunal da Relação errou na subsunção jurídica dos factos, ao condenar o arguido pelo crime de simulação de crime (p. e p. artigo 366.º, n.º 1, do Código Penal), sem demonstrar que o arguido tinha conhecimento da falsidade da denúncia no momento em que a efetuou.
7. O crime de simulação de crime exige dolo direto, ou seja, que o agente tenha plena consciência de que o crime que denuncia não ocorreu, o que não ficou provado nos autos.
8. O Tribunal da Relação não demonstrou objetivamente como afastou a dúvida sobre a intenção do arguido, presumindo o dolo sem prova clara, o que contraria a necessidade de certeza jurídica na condenação penal.
9. Relativamente ao crime de falsificação de documento (p. e p. artigos 255.º e 256.º do Código Penal), o Tribunal da Relação errou ao considerar que a participação do sinistro configura um documento juridicamente relevante, sem demonstrar que possuía força probatória suficiente para induzir terceiros em erro.
10.A simples comunicação de um sinistro à seguradora não tem, por si só, força probatória plena, pois a seguradora tem o dever de verificar os factos denunciados antes de conceder qualquer indemnização, não sendo possível presumir automaticamente a intenção fraudulenta do arguido.
11. A Relação não demonstrou que o arguido agiu com dolo direto, essencial para a caracterização do crime de falsificação de documento, acabando por inverter o ónus da prova, ao presumir a intenção fraudulenta sem base factual suficiente.
12. No que diz respeito ao crime de burla qualificada na forma tentada (p. e p. artigos 22.º, 23.º, 73.º e 217.º do Código Penal), a Relação não demonstrou a existência de atos de execução, sendo juridicamente impossível qualificar a conduta como uma “tentativa acabada”.
13. Para que se verifique a tentativa, é necessário que haja um começo de execução do crime, não bastando a intenção do arguido ou a realização de meros atos preparatórios.
14. A 1.ª instância concluiu, corretamente, que não se verificaram atos de execução do crime de burla, pelo que a condenação pela Relação constitui um erro de direito, que deve ser corrigido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
15. O Tribunal da Relação violou o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal) ao reavaliar a matéria de facto sem demonstrar concretamente quais os elementos novos e decisivos que justificaram a alteração da decisão de primeira instância
16. A alteração da matéria de facto em sede de recurso só pode ocorrer quando existam erros evidentes na apreciação da prova ou quando sejam indicados elementos objetivos que permitam afastar a convicção formada pelo tribunal de 1.ª instância, o que não aconteceu no presente caso.
17. O Tribunal da Relação não justificou de forma clara e objetiva como reavaliou a prova para condenar o arguido, substituindo-se indevidamente ao tribunal de primeira instância e violando o direito a um julgamento justo e imparcial.
18.O acórdão recorrido violou a presunção de inocência do arguido, ao condená-lo sem prova inequívoca da sua culpa, impondo-lhe, na prática, o dever de demonstrar a sua inocência, em clara inversão do ónus da prova
19. Nenhum arguido pode ser condenado com base em meras presunções ou indícios insuficientes, sendo necessária uma prova clara e objetiva que permita afastar qualquer dúvida razoável sobre a sua culpa.
20. Assim, requer-se ao Supremo Tribunal de Justiça que anule o acórdão da Relação, restabelecendo a decisão absolutória proferida pela primeira instância, por ser esta a única que respeita os princípios constitucionais e legais aplicáveis, garantindo a correta aplicação do direito.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V. EXAS SUPRIRÃO, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE E, POR VIA DISSO, CONFIRMAR-SE A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA EM 1.ª INSTÂNCIA ASSIM SE FAZENDO INTEIRA E SÃ JUSTIÇA
NORMAS VIOLADAS:
ARTº : 32.º, N.º 2, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA;
ARTº: 127º, 410.º, N.º 2, ALÍNEA C), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL;
Respondeu o Ministério Público, concluindo:
1. Na fundamentação do Acórdão, este não invoca qualquer dúvida insanável, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, com indicação clara e coerente das razões que fundaram a convicção do tribunal, pelo que, inexiste lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo.
2. O douto Acórdão não padece de qualquer erro na apreciação da prova e menos ainda notório, que se retire do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
3. Os factos dados como provados integram o tipo legal dos três crimes pelos quais o arguido ora recorrente foi condenado, mostrando-se correta a qualificação jurídica efetuada.
4. Não ocorre violação do princípio da presunção de inocência pois, a convicção a que a Relação chegou mostra-se objeto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbra arbítrio na apreciação da prova.
5. O douto Acórdão proferido pela Relação do Porto fez correta interpretação e aplicação do direito, não merecendo qualquer censura, devendo, por isso, o recurso do arguido ser rejeitado por ser julgado improcedente, e desse modo ser confirmado integralmente o douto Acórdão recorrido.
Porém, V. Exas., farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA.
Respondeu a assistente/demandante Companhia de Seguros Fidelidade – Mundial, SA, concluindo pela improcedência do recurso:
1. O recurso de revista apresentado pelo Arguido versa, no essencial, as seguintes questões, com as quais pretende sustentar a revogação do acórdão recorrido:
d) incorreu em violação de princípios fundamentais do processo penal, designadamente, violou o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do CPP, e, consequentemente, enferma dos vícios previstos no art.º 410º, n.º2 do CPP, o princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência, artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, dos quais resulta que, na presença de dúvidas razoáveis, quanto à verificação dos elementos (objectivo e subjectivo) constitutivos de um crime, estas sejam resolvidas a favor do arguido,
e) o tipo subjetivo dos crimes em cuja prática o Arguido foi condenado, que pressupõe a verificação de dolo direto, não foi juridicamente fundamentado no acórdão recorrido;
f) Consequentemente, pretende a “(…) improcedência do pedido de indemnização civil formulado pela demandante, pois tal condenação baseia-se, igualmente, em factos e fundamentos que não se encontram demonstrados nos autos”.
2. A decisão sob escrutínio de V.Exas, em sede do recurso de revista, é o acórdão proferido pela Relação do Porto e não a sentença de 1ª Instância, nomeadamente, “(…) as dúvidas expressamente reconhecidas pela 1.ª instância”, que fundamentaram a absolvição do Arguido nessa sede.
3. Sendo o objecto do presente recurso de revista o acórdão da Relação, o que importa apurar nesta sede é se a decisão recorrida é arbitrária, subjectiva, por violação dos princípios legais aplicáveis á apreciação da prova, e se, por via da aplicação desses princípios, se justificaria uma dúvida insanável que motivasse a absolvição do Arguido, em obediência ao princípio in dúbio pro reo.
4. Nos termos dos art.ºs 432º, n.º1, alª. a) e 434 do CPP, o recurso de revista versa apenas matéria de direito, sem prejuízo de conhecer dos vícios previstos no artigo 410º, nº2 do CPP ou de eventuais nulidades da decisão recorrida, que não deva considerar-se sanada.
5. A impugnação da matéria de facto em sede do recurso de revista, fica limitada ao conhecimento da ocorrência daqueles vícios previstos no art.º410º, n.º2 do CPP, cuja verificação deve resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou quando a sua fundamentação, conjugada com as regras gerais da experiência comum, não permita concluir no sentido da decisão sobre a matéria de facto, acolhida naquele texto decisório.
6. Nos termos dos art.ºs 127º e 428º do CPP, nada impede que a Relação aprecie o julgamento da matéria de facto realizado na 1ªInstância, e foi precisamente essa tarefa que o Tribunal da Relação desempenhou nos presentes autos, com particular cuidado que se louva, ao não se demitir do poder-dever que lhe é imposto pelo art.º428º do CPP de, como verdadeiro segundo grau de jurisdição, “(…) verificar se na sentença se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.”–palavras de Germano Marques.
7. Diz o Arguido que “O Tribunal da Relação alterou aquela decisão absolutória sem indicar novos elementos probatórios ou razões jurídicas concretas para justificar essa reversão, violando os artigos 127.º e 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal”: conclusão n.º4, que é ostensivamente falsa, pois uma coisa é discordar da convicção sobre a factualidade em que se sustenta uma decisão judicial, outra é dizer que o Tribunal se baseia em juízos subjectivos, sem sustento nos factos que retira dos meios probatórios.
8. O Tribunal da Relação na decisão recorrida, no que respeita à matéria de facto, alterou a decisão da 1º Instância:
c) Dando como provados os factos que integram os n.ºs 8-A a 8-E;
d) Eliminando a matéria de facto dada como não provada na fundamentação da sentença.
9. Basta seguir a fundamentação da convicção da Relação vertida no texto do acórdão recorrido, para se concluir que a decisão sobre a matéria de facto não foi arbitrária ou subjectiva, como pretende o Arguido, mas antes seguiu um percurso lógico e racional, como refere Germano Marques, sustentado na apreciação de vários meios de prova que elenca, mais justificando os passos, ao longo daquele percurso lógico e racional, que permitiram chegar à motivação sobre a alteração da matéria de facto operada em sede recursiva.
10. Da análise de toda a prova indiciária que identifica na fundamentação do texto do acórdão recorrido, conjugada com as normas da experiencia comum como impõe o art.º 127º do CPP, a convicção do Tribunal da Relação não padece de qualquer vício, nos termos daquele normativo e do 410º do mesmo diploma, que permita pôr em crise a decisão sobre a matéria de facto vertida no acórdão recorrido, no sentido de que “(…) dada a confluência no mesmo sentido dos apontados indícios e em face das regras da experiência comum (na aceção que já vimos), pode-se concluir sem margem para qualquer dúvida (e muito menos razoável) que a decisão tomada pela 1.ª instância não se nos afigura defensável, a pretexto do princípio in dubio pro reo, por não concatenar devidamente todos os indícios que convergem para a versão da acusação, de forma que nos parece inequívoca, inexistindo assim qualquer motivo para qualquer dúvida”. – pág. 40/76 acórdão.
11. O princípio in dubio pro reo só pode ser chamado á colação e “(…) tem o seu campo de aplicação limitado às situações em que, no decurso da formação da convicção do julgador, este chegue a um ponto de indecisão inultrapassável quanto à circunstância de o arguido ter ou não praticado um determinado facto, que lhe é desfavorável. Nesse caso – e apenas nesse caso – deverá o tribunal fazer a aplicação de tal princípio”. – cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 29-09-2021, Proc. 120/14.4GBCTX.L1 -3, in www.dgsi.pt.
12. O Tribunal da Relação do Porto, partindo dos meios de prova que elencou na sua fundamentação (em particular as imagens que documentam o modus operandi – a partir do qual apura a impossibilidade de se acondicionar e transportar os artigos reclamados no tempo e nas 9 caixas ali visionadas – e o acionamento do alarme apenas quando o “assaltante” abandona o local, depois de se introduzir nas instalações e das sucessivas entradas e saídas sem tal ter acontecido) alcançou um juízo de certeza sobre os factos que deu como provados, pela chamada prova indirecta, circunstancial ou por presunção, a qual, nos termos dos art.ºs 349º e350º do C. Civil, permite a partir de um facto conhecido, através das regras da experiência, extrair um outro facto e dar este último como provado, para lá de qualquer dúvida razoável.
13.Conforme jurisprudência citada no Acórdão do STJ de 05-03-2025, Proc. 8805/19.2T9LSB.L1.S1., em sede de um recurso com objecto análogo ao dos presentes autos, nada obsta ao uso da chamada prova indirecta, circunstancial ou por presunção em sede de processo penal.
14. A mesma conclusão opera quanto à prova do elemento subjectivo ou dolo, que tal como decorre do acórdão recorrido, “(…) a intenção que preside a uma ação deduz-se sempre dos atos de natureza objetiva exteriorizados e por apelo às regras da experiência comum e ao normal acontecer”.
15. Face aos factos provados nos n.ºs 3 a 8,com as alíneas aditadas pela Relação, e não tendo sido provadas quaisquer circunstâncias que pudessem afastar o dolo do Arguido, que assim deve ser dado como provado, considerando a sua actuação como gerente de facto da sociedade alegadamente furtada e na participação do alegado furto às autoridades e à Assistente (Facto Provado 3), bem como todos os indícios que permitem concluir que o “assaltante” tinha previamente na sua posse ou estava informado sobre factos que pertencem à esfera de acção do Arguido, que “tratava de tudo inerente à vida comercial da empresa” e que estava na posse das chaves da carrinha – Factos n.ºs 3 e 4 – como é o facto do “assaltante” saber a localização dessas chaves e da carrinha estacionada na via pública, bem como o código do alarme para o acionar só no final ao abandonar o local.
16. Não se vislumbra, assim, e não resulta do texto do acórdão recorrido, por si ou quando conjugado com as regras da experiência comum, qualquer erro na apreciação da prova ou dos vícios previstos no art.º 410º, n.º2 do CPP, que seriam sindicáveis em sede de revista, ou no afastamento do principio in dúbio pro reo, precisamente porque, face aos meios de prova que integram os autos, em particular aqueles em que a Relação sustenta o percurso lógico, conjugado com as regras da experiencia comum, em que sustenta a fundamentação sobre a matéria de facto, nenhuma dúvida insuperável ocorre quanto à verificação dos factos que julgou provados e não provados.
17. O próprio Arguido, nas suas alegações, não alega o que quer que seja que, de forma concreta, avaliando os meios de prova de forma crítica e conjugada, cumprindo com as regras probatórias que invoca, em particular do art.º 127º do CPP, possa justificar a persistência da dúvida razoável e assim prejudicar a certeza sobre a factualidade aditada nos pontos 8-A a 8-E pela Relação, sustentada nos factos que retirou dos meios de prova que integram a fundamentação da sua convicção:
c) Não prejudica o juízo de certeza formado pela Relação, sustentado nas regras da experiência comum, a partir da impossibilidade de se acondicionar os 1250 artigos nas 9 caixas e no tempo/circunstancias que objectivamente se visionam nas imagens;
d) Não prejudica o juízo de certeza formado pela Relação, sustentado nas regras da experiência comum, sobre a simulação do furto, a partir do facto de o alarme ser accionado só quando o “assaltante” abandona as instalações e nunca antes;
18. É o Arguido que, de forma subjectiva, insiste na dúvida razoável, sustentado apenas na fundamentação da sentença que não é objecto do presente recurso e sem pôr em crise o raciocínio lógico que a Relação percorreu para alterar a factualidade provada e não provada daquela decisão.
19. Consequentemente, não resultando do texto da decisão recorrida qualquer um dos vícios previstos no art.º 410º do CPP, por si só ou quando conjugado com as regras da experiência comum, como decorre do art.º 127º do mesmo diploma, o acórdão da Relação deve ser mantido na íntegra, porquanto os factos que integram a sua fundamentação afastam qualquer dúvida, mesmo razoável, sobre a prática pelo Arguido dos crimes em que foi condenado, assim se devendo manter, também, a procedência do PIC deduzido pela Assistente.
Nestes termos e nos melhores de Direito aplicáveis, sempre com o douto suprimento de V. Exas, o recurso de revista interposto pelo Arguido deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se o Acórdão Recorrido da relação do Porto, assim se garantindo que seja feita no caso dos autos JUSTIÇA!
*
Neste Supremo Tribunal de Justiça o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se:
6. Da leitura do acórdão recorrido resulta claramente que nenhuma dúvida se colocou ao Tribunal a quo na fixação da matéria de facto
Ora, sendo um corolário do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, contemplado no art. 32º nº 2 da Constituição da República, o princípio in dubio pro reo pressupõe que uma dúvida quanto aos factos ocorridos se mantenha insanável, depois de esgotado todo o iter probatório e feito o exame crítico de todas as provas.
Só então o Tribunal a quo estaria obrigado a resolver a dúvida à luz princípio aqui em causa, considerando os factos duvidosos como não provados e solucionando a questão em favor do arguido.
Inexistindo, no caso em apreço, dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à condenação do arguido, fica afastado o recurso ao princípio do in dubio pro reo.
Como ensina Figueiredo Dias, este princípio “vale só, evidentemente, em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão-de-direito: aqui a única solução correcta residirá em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto.”1
Acresce que, tratando-se de um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP.
Com efeito, “De acordo com o disposto no artigo 434.º do CPP, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo da possibilidade de este Tribunal conhecer oficiosamente dos vícios referidos no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código. A discussão relativa à matéria de facto e ao modo como as instâncias decidiram quanto aos factos e sobre a valoração da prova produzida, feita pelo recorrente, está, como este Supremo Tribunal vem afirmando, excluída dos seus poderes de cognição, não podendo, pois, constituir objecto do recurso.”2
Assim, e porque o Tribunal da Relação do Porto fundamentou devidamente os factos que deu como assentes, tendo reapreciado a prova produzida em julgamento de acordo com as regras legais aplicáveis, num adequado exercício dos seus poderes de revisão e dentro do quadro cognitivo fixado no artigo 127º, do C. P. Penal, sendo possível perceber sem esforço qual o fio lógico que levou à decisão de condenação do arguido, ora recorrente, não merece, o acórdão recorrido, as críticas que lhe tece o recorrente.
7. Face ao exposto e examinados os fundamentos do recurso, sufragamos integralmente a resposta ao recurso apresentada pelo Senhor Procurador Geral Adjunto, que aqui damos por reproduzida e, em conformidade, emitimos parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente mantendo-se a decisão recorrida.
Não foi apresentada resposta ao Parecer.
II – FUNDAMENTAÇÃO
É jurisprudência constante e pacífica que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
O recurso é admissível, face ao disposto nos art.s 400º nº 1 al. e) e 432º do Código de Processo Penal e visa exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 434º do Código de Processo Penal).
*
A ordem lógica de conhecimento das questões é diferente da seguida pela Recorrente As questões serão decididas pela seguinte ordem:
1. Violação do princípio in dubio pro reo e da livre apreciação da prova;
2. Erro notório na apreciação da prova;
3. Subsunção jurídica.
***
Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada e não provada, após as alterações introduzidas pelo Tribunal da Relação do Porto:
A. Discutida a causa resultou provado que:
1. Na data de 10.5.2020 a sociedade Y..., Lda., NIPC .......63, com sede na rua de ..., era arrendatária de um armazém/estabelecimento denominado “B...” onde desenvolvia o comércio por grosso e a retalho de motociclos, de suas peças e acessórios. Manutenção e reparação de motociclos, de suas peças e acessórios. Comércio por grosso e a retalho de vestuário, acessórios e calçado,
2. Tal sociedade havia sido constituída em 27.11.2018 sendo seu único sócio e gerente DD o qual, em 18.10.2019, transmitiu a quota a EE e renunciou à gerência que a partir dessa data passou a estar registada a favor deste último. 3º
3. Sucede, porém, que quem sempre geriu de facto a sociedade foi o arguido AA que nessa qualidade comprava os artigos, os vendia e tratava de tudo inerente à vida comercial da empresa, sendo que quando era necessária a assinatura de EE este fazia-o sempre a pedido do seu pai que não o esclarecia a que as mesmas se destinavam, sendo o arguido quem movimentava em exclusivo a conta bancária da empresa, nunca EE foi portador de qualquer cartão de acesso à mesma.
4. No dia 10.5.2020, cerca das 22:38, o arguido AA comunicou ao Posto da GNR/... que o sobredito armazém/estabelecimento havia sido assaltado e do seu interior haviam sido subtraídos inúmeros artigos e ainda uma chave de uma viatura de matricula ..-..-SH, marca Volkswagen, modelo LT, ligeiro de mercadorias de cor branca, propriedade da empresa "H..., Lda.", que foi usada para furtar a referida viatura que se encontrava na mesma ocasião estacionada no exterior do armazém, sendo que a aludida chave estava já na posse de AA faltando apenas a formalização da transmissão da respetiva propriedade. da viatura, sendo a mesma vendida ao arguido o que motivou que na ocasião aí se tenha deslocado uma patrulha da GNR/..., constituída pelos guardas FF e GG, que tomou conta da ocorrência, bem como o NAT-Núcleo de Apoio Técnico da GNR/....
5. No dia 20.5.2020, por ordem de seu pai, EE deslocou-se ao Posto da GNR/..., onde entregou a relação descriminada pelo seu progenitor dos bens subtraídos, em número de 1.250 e no valor global de 66.327,68€.
6. Os sobreditos 1250 artigos dados como furtados subdividem-se nas seguintes categorias e quantidades:
• acessórios diversos : 124;
• bicicleta : 1;
• amortecedores :2;
• botas: 26;
• calças: 144;
• camisolas: 137;
• capacetes : 36;
• casacos 37;
• componentes diversos: 51;
• estruturas de motociclo: 3;
• fatos : 6;
• guarda-chuva: 2;
• luvas : 138;
• malas :1;
• manetes: 9;
• óculos 75;
• protecções: 61;
• travões: 2;
• t-shirts: 167;
7. Também por ordem de seu pai em 27.5.20 EE participou à seguradora Fidelidade Companhia de Seguros, SA, o assalto em apreço tendo em vista o ressarcimento dos sobreditos prejuízos patrimoniais no âmbito do contrato de seguro celebrado e coberto pela apólice nº ME......99, remetendo também a sobredita relação descriminada dos bens subtraídos.
8. O sobredito veículo matricula ..-..-SH, marca Volkswagen, modelo LT, foi encontrado no dia 11.5.2020 estacionada na Av ..., com os vidros abertos e documentação espalhada no seu interior.
8-A. Sucede, porém, que o sobredito furto não ocorreu.
8-B. O arguido agiu de forma voluntária e consciente, bem sabendo que os factos constantes da participação de sinistro que, através do seu filho, apresentou à Fidelidade Companhia de Seguros, SA Companhia de Seguros Fidelidade eram falsos por não terem ocorrido.
8-C. Pretendia dessa forma ardilosa e enganosa o arguido obter da sobredita seguradora um benefício que sabia ilegítimo mediante a entrega de quantia monetária correspondente ao valor dos sobreditos artigos e desse modo causava prejuízo à Fidelidade Companhia de Seguros, SA, pagamento esse que só não se verificou por motivos alheios à vontade do arguido.
8-D. O arguido agiu também voluntária e conscientemente bem sabendo, quando referiu aos militares da GNR de ... que desconhecido(s) havia(m) assaltado e furtado do interior do armazém/estabelecimento da Y..., Lda. os artigos supra descritos, que tal ilícito penal não havia ocorrido.
8-E. Mais sabia o arguido que as sobreditas condutas eram proibidas e punidas por lei.
9. A assistente solicitou uma averiguação aos factos denunciados pelo arguido à sociedade “GEP – Gestão de Peritagem, S.A.”, tendo pago por esse serviço o valor de € 1.353,30.
10. O arguido, em fevereiro de 2021, adquiriu ao seu filho a quota deste na sociedade segurada da assistente, tornando-se seu único sócio e gerente.
11. Aquela sociedade intentou uma ação, que corre os seus termos no Juízo central cível de ... – J..., com o nº 696/22.2..., reclamando à assistente, e ao abrigo da apólice3 supra identificada, o pagamento da quantia de € 66.327,68, referente aos bens supra elencados, assim como dos prejuízos ainda não liquidados, a título de lucros cessantes, por a sociedade ter ficado deles privada, no exercício da sua atividade.
12. Com a referida ação a assistente já suportou as seguintes despesas:
a. Taxa de justiça paga com a contestação: € 816,00;
b. Guia7encargos de perícia: € 1.500,00;
c. Guia/reforço de encargos com perícia: € 1749,00;
d. Honorários de mandatário: € 647,53.
13. O arguido não tem antecedentes criminais.
14. O arguido é auxiliar de armazém.
Elimina-se a matéria de facto não provada
O acórdão recorrido ponderou e concretizou o seguinte para alterar a matéria de facto:
(…)
Em face da alegação recursória, vejamos agora se as razões da discordância da assistente em relação ao sentido da decisão recorrida quanto à matéria de facto impugnada, por (re)interpretação da prova produzida, documental e testemunhal, impõem decisão diversa.
O modus operandi do suposto furto ocorrido a 10.05.2020 nas instalações ao tempo da sociedade Y..., Lda. visualiza-se nas imagens de videovigilância constantes nos autos em suporte de DVD e Pen (cfr. ainda o relatório tático de Inspeção Judiciária de fls 59 e 60 e o teor do depoimento do militar da GNR HH, que confirmou a autenticidade daquelas imagens de videovigilância).
Da sua visualização verifica-se que a introdução naquele espaço foi efetuada por uma pessoa, sem grande evidência de estroncamento da porta (cfr. as fotos do local, tiradas pelo NIC e constantes de fls 88 e ss.), tendo a mesma transportado 9 caixas para o interior de uma carrinha – estacionada na rua e à data utilizada pelo gerente de facto da sociedade unipessoal referenciada (o ora arguido) -, caixas essas acondicionadas na parte destinada à carga, tendo demorado, ao todo, nessas nove deslocações, 4 minutos e 50 segundos (2 min. e 3 seg. na 1.ª carga; 49 seg. na 2.ª carga; 11 seg. na 3.ª carga; 19 seg. na 4.ª carga, 20 seg. da 5.ª carga, 16 seg. na 6.ª e 7.ª cargas e 18 seg. nas 8.ª e 9.ª cargas).
Isto significa que o assaltante, em face da brevidade da sua ação, apenas levou consigo artefactos já acondicionados em caixa, pois não teria tempo de colocar todos os itens naquelas 9 caixas.
De resto, ainda transportou uma 10.ª caixa, que, por razões misteriosas, voltou a colocar no interior das instalações da Y..., Lda..
Sucede que também supostamente faltaram artefactos nos expositores (conforme visível nas fotos do local), pelo que o assaltante teria de acondicioná-los – e bem acondicionados – naquelas 9 caixas que se visionam, o que não é compatível com o tempo global da sua ação.
Ademais, o suposto autor do furto teria de saber a concreta localização das chaves da carrinha, as quais eram guardadas no interior das instalações pelo arguido e, ao que tudo indica, tal indivíduo já teria o fito de a utilizar quanto para ali se dirigiu. Mais uma vez, a isso inculca a brevidade da sua ação, incompatível com o facto de procurar as chaves da carrinha e artefactos em gavetas e mobiliário, acondicioná-los em caixas e transportar as mesmas para a viatura, numa ação que não ultrapassou sequer os 5 minutos.
Ademais, não parece credível que o assaltante, para maior rapidez na sua ação, tenha atirado as caixas ou qualquer artefacto do mezanino, pois dessa forma poderia danificar parte dos bens alegadamente furtados (pois nem todos os artefactos são artigos de vestuário e seriam suscetíveis de danificação ou destruição se lançados, conforme especulado na sentença recorrida. Não parece ser assim argumento que possa colher para justificar uma dúvida razoável).
A esta incongruência sucede-se uma outra – é que resulta para nós inequívoco que os artefactos furtados não poderiam caber todos naquelas 9 caixas.
De facto, se boa parte do material poderia ser acondicionado naquelas 9 caixas (num total de 1250 itens), outro há em que tal não se afigura verosímil, como é o caso das 3 estruturas de motociclo, uma bicicleta de criança e os 36 capacetes e muito menos verosímil se nos afigura se considerarmos a globalidade de todo o demais material supostamente furtado.
Acresce que, em face de alguns dos artefactos em causa, não se vê como poderiam alguns dos mesmos serem transportados sem um esforço muito mais assinalável em relação ao que se visiona nas imagens.
Em suma, em face do modus operandi que se visiona naquelas imagens de videovigilância, o assaltante não poderia ter furtado todos aqueles artefactos naqueles quase 5 minutos de ação, acondicionados apenas naquelas 9 caixas e tendo em conta a forma como o fez.
Mas estas incongruências – em relação ao que consta da participação – poderiam levar-nos apenas à conclusão de que o arguido aproveitou um real furto para incluir na lista de bens furtados artefactos que na verdade não foram subtraídos pelo assaltante.
Todavia, aquelas instalações estavam protegidas por alarme, que só foi acionado quando o assaltante abandonou o local (cfr. o relatório da GEP, de onde consta a informação prestada pela Securitas – o alarme foi acionado às 22h36m e o arguido foi avisado às 22h38m), o que nos leva à conclusão última de que estamos perante uma simulação de furto, pois, se assim não fosse, o alarme teria disparado logo aquando da 1.ª intrusão, ou, se tivesse sido desativado com sucesso pelo assaltante ab initio, ficaria por explicar o motivo pelo qual foi acionado justamente quando ele abandonou o local.
Tal apenas se compreende se, na verdade, o furto tivesse sido uma simulação e com o desiderato constante da acusação, pois só dessa forma assim se compreenderia aquela surpreendente ação, pois nenhum real assaltante acionaria o alarme à sua saída do local, como nos parece manifesto.
Além disso, é também sintomático que tal indivíduo, despois de ter acionado o alarme, arrependeu-se de levar consigo a 10.ª caixa, que devolveu ao interior daquelas instalações, tendo-se assim precipitado na saída do local, em atitude contrastante com a calma que antes tinha patenteado no desenvolvimento da sua ação.
Acresce que «Embora seja admissível a existência de apenas um indício, desde que veemente e categórico, na ausência de “prova direta” a prova sobre factos deverá, por regra, alcançar-se através da ponderação conjunta de elementos probatórios que permitam excluir qualquer outra explicação lógica e plausível. Os factos indiciadores devem ser plurais, independentes, contemporâneos do facto a provar, concordantes, conjugando-se entre si e conduzindo a inferências convergentes», sendo certo que na «análise crítica global devem ser tidos em conta quer os indícios da inocência, quer os que enfraquecem a conclusão de responsabilização criminal extraída do indício positivo» (citação parcial do sumário do acórdão do TRG, com texto integral em www.dgsi,pt, processo n.º 443/12.7JABRG.G1).
Ademais, conforme foi expresso no ac. do STJ de 26.09.2012, processo n.º 101/11.0PAVNO.S1, com texto integral em www.dgsi.pt , «A presunção é , assim , uma conclusão de um raciocínio, que induz o facto desconhecido a partir de um facto conhecido, o indício, suposta uma adequada relação de causalidade, surtindo o facto indiciado como resultante de uma comparação entre o facto indiciário e uma lei ou regra da experiência comum, ou seja de acordo com o que é usual acontecer, “ id quod plerumque accidit “ .
Temos, então, que a prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença estiverem completamente demonstrados, por prova direta (requisito de ordem material), os indícios, que devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar, e sendo vários, devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência, que deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado e respeitar a lógica da vida e da experiência. Neste sentido, cfr. Ac. deste STJ, de 11.7.2007, P. º n.º 1416/07 -3.ª Sec. e os Acs. do Tribunal Supremo de Espanha (onde se faz largo uso da prova indiciária, sobretudo no âmbito do tráfico de estupefacientes e branqueamento de capitais, como no direito romano) n.ºs 557/2006 , de 22/5/2006 e 392 /2006 , de 6.4.2006 ; cfr. , ainda , Prova indiciária e as novas formas de criminalidade, estudo da autoria do EXm.º Cons.º Santos Cabral , apresentado em intervenção no Centro de Formação Jurídica e Judiciária de Macau, em 30 de Novembro de 2011, acessível inwww.stj.pt.»
Aqui chegados, dada a confluência no mesmo sentido dos apontados indícios e em face das regras da experiência comum (na aceção que já vimos), pode-se concluir sem margem para qualquer dúvida (e muito menos razoável) que a decisão tomada pela 1.ª instância não se nos afigura defensável, a pretexto do princípio in dubio pro reo, por não concatenar devidamente todos os indícios que convergem para a versão da acusação, de forma que nos parece inequívoca, inexistindo assim qualquer motivo para qualquer dúvida.
Por fim, há ainda que ter presente que a intenção que preside a uma ação deduz-se sempre dos atos de natureza objetiva exteriorizados e por apelo às regras da experiência comum e ao normal acontecer.
***
1. Violação do princípio in dubio pro reo e da livre apreciação da prova
Como salienta o Recorrente, citando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.3.2009, no proc. n 07P1769, “A apreciação pelo STJ da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção”.
Ora, o que aconteceu in casu foi que o acórdão recorrido, partindo dos mesmos meios probatórios procedeu a uma análise diferente da efectuada em 1ª instância e concluiu, sem margem para dúvida, pela imputação dos factos ao ora Recorrente.
E, ao contrário do que o Recorrente pretende, assinala os erros evidentes na apreciação dos elementos probatórios pela 1ª instância e fundamenta a alteração de forma que não só é clara e objectiva, como também é convincente, demonstrando à saciedade as razões lógicas pelas quais os factos se passaram da forma exposta, à medida que aponta os erros de raciocínio da decisão de 1ª instância que levaram à sua insubsistência.
Resulta da simples leitura da decisão recorrida que esta demonstra claramente os fundamentos da imputação dos factos ao arguido: a impossibilidade prática de em 4 minutos e 50 segundos (tempo do evento visionado) acondicionar em 9 caixas aqueles 1250 artigos e transportá-los para a carrinha, cuja chave também se encontrava no interior das instalações; a impossibilidade prática de acondicionar aqueles 1250 artigos naquelas caixas, incluindo 3 estruturas de motociclo, uma bicicleta de criança e os 36 capacetes, 26 botas, 144 calças, 137 camisolas, 6 fatos e 167 t-shirts: 167; o accionamento do alarme apenas quando o assaltante abandonou o local, e o subsequente arrependimento de levar consigo a 10.ª caixa, que devolveu ao interior daquelas instalações, tendo-se assim precipitado na saída do local, em atitude contrastante com a calma que antes tinha patenteado no desenvolvimento da sua acção.
Toda esta prova indirecta permitiu ao Tribunal da Relação concluir, como concluiu, pela prática dos crimes pelo Recorrente.
Recordemos que “se cada prova, de acordo com as regras da experiência, deve ser apreciada na sua individualidade, importa ter presente que a prova final resulta da apreciação conjunta, de acordo com as regras da experiência, de todas as provas produzidas. Ou seja, não raras vezes, um depoimento analisado singularmente mostra um pedaço da realidade incompleto, quiçá ininteligível. Porém, um outro depoimento também incompleto, singularmente analisado, agora apreciado em conjunto com o outro, de acordo com as regras da experiência, evidencia uma complementaridade que torna as coisas nítidas. Outras vezes, um documento isoladamente não prova nada, mas na discussão franca da causa é iluminado por um depoimento que desfaz a sua aparente inutilidade.
Ora se as provas credíveis se ajudam umas às outras – mutuamente se fortalecendo nesta comunicação – a prova resultado, por força deste factor de comunicação, é necessariamente maior de que a mera junção daquelas provas”3.
Assim, argumenta o Recorrente que o tribunal a quo, por respeito ao princípio in dubio pro reo, face à fragilidade da prova não podia condenar, devendo absolver o Recorrente.
Quanto à apreciação da prova, apesar da minuciosa regulamentação das provas, continua a vigorar o princípio fundamental de que na decisão da “questão de facto”, a decisão do tribunal assenta na livre convicção do julgador, ainda que devidamente fundamentada, devendo aparecer como conclusão lógica e aceitável à luz dos critérios do art. 127º do Código de Processo Penal.
Por isso, a invocação da violação desse princípio não pode servir para o recorrente sindicar a livre apreciação da prova, realizada pelo tribunal recorrido. Neste sentido, a apreciação da prova deve ser fundamentada nas “regras da experiência” e na “livre convicção” do juiz, por decorrência directa do art. 127º do Código de Processo Penal. Por isso e porque o art. 374º nº 2 do Código de Processo Penal exige o “exame crítico das provas” é que, ao contrário do que parece alegar o Recorrente, o tribunal deve fundamentar a decisão em operações intelectuais que permitam explicar a razão das opções e da convicção do julgador, a sua lógica e raciocínio4. Para além das aludidas operações intelectuais o tribunal deve respeitar as normas processuais relativas à prova, segundo o aludido princípio geral da livre apreciação mas respeitando as proibições de prova (art.s 125º e 126º do Código de Processo Penal) as nulidades de prova, as regras de valoração de alguns tipos de prova como a testemunhal (art.s 129º e 130º do Código de Processo Penal) pericial (art. 163º do Código de Processo Penal) e a documental (167º a 169º do Código de Processo Penal).
Ora, como se viu, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto assenta em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova, pelo que não se mostra violado o princípio da livre apreciação da prova.
*
Relativamente ao funcionamento do princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo cumpre acentuar que o tribunal não se socorreu do princípio in dubio pro reo que apenas significa que perante factos incertos, a dúvida favorece os arguidos, porque não teve quaisquer dúvidas na valoração da prova e, ficou seguro do juízo de censura do arguido.
No caso vertente, tal princípio só teria sido violado “se da prova produzida e documentada resultasse que, ao condenar os arguidos com base em tal prova, o juiz tivesse contrariado as regras da experiência comum ou atropelasse a lógica intrínseca dos fenómenos da vida, caso em que, ao contrário do decidido, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor dos arguidos”5.
Ora, se a fundamentação não viola o princípio da legalidade das provas e da livre apreciação da prova, estribando-se em provas legalmente válidas e valorando-as de forma racional, lógica, objectiva, e de harmonia com a experiência comum, não pode concluir-se que a mesma prova gera factos incertos, que implique dúvida razoável que afaste a valoração efectuada pelo tribunal para que deva alterar-se a decisão de facto recorrida, sendo por conseguinte, lícita e válida a decisão de facto.
Como vimos, no caso dos autos a livre apreciação da prova não conduziu à subsistência de qualquer dúvida razoável sobre a existência do facto e do seu autor. Por isso, não há lugar a invocar aqui o princípio do in dubio pro reo.
Note-se que também não é violada a presunção da inocência, nos termos invocados pelo Recorrente, porquanto, ao contrário do que alega, o acórdão recorrido não partiu do pressuposto de que o arguido só poderia ser absolvido se demonstrasse, de forma inequívoca, que não praticou os factos. Esse raciocínio inverteria completamente a lógica do processo penal, mas não existem quaisquer elementos no sentido de que o tribunal tenha procedido com esse pressuposto errado. Bem pelo contrário, procedeu à análise crítica convincente da prova , demonstrando claramente a base da sua convicção alicerçada na livre apreciação da prova.
Com a devida vénia transcreve-se aqui parte do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.1.086, que desenvolvidamente explica porque é que em casos como o dos autos não ocorre a violação do aludido princípio:
“De todo o modo, não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art. 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio «in dubio pro reo» exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida [ainda que «indirecta»], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu - «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O “in dubio pro reo”, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (cfr. Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997).
Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, p 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, p. 13). E, por isso, é que, «nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade ( «A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação ( Suscitando, a propósito, “uma firme certeza do julgador”, sem que concomitantemente “subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”), não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem).
Ademais, «são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125.º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto conhecido»: art. 349.º do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contrarie o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (art. 127.º do CPP). Não estaria por isso vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extracção – por presunção judicial – de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido».
A este propósito, convém de resto recordar que «verificar cada um dos enunciados factuais pertinentes para a apreciação e decisão da causa é o que se chama a prova, o processo probatório» e que «para levar a cabo essa tarefa, o tribunal está munido de uma racionalidade própria, em parte comum só a ela e que apelidaremos de razoável». E isso porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável ("a doubt for which reasons can be given”)». Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).
Daí que, nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade ( Repete-se: «A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, «uma firme certeza do julgador», sem que concomitantemente «subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto»), não haja - seguramente - lugar à intervenção dessa «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que, fundada na presunção de inocência, é o "in dubio pro reo" (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência [aqui ausente] de uma firme certeza do julgador»)”.
Consequentemente, não se mostram violados os princípios da livre apreciação da prova, da presunção de inocência e in dubio pro reo.
2. Erro notório na apreciação da prova
O Recorrente sustenta a existência de violação do art. 410º nº 2 al. c) do Código de Processo Penal na circunstância do Tribunal da Relação ter alterado a decisão absolutória sem indicar novos elementos probatórios ou razões jurídicas concretas para justificar essa reversão, adiantando que o erro é evidente, pois a simples leitura do acórdão recorrido não permite compreender como foi afastada a dúvida anteriormente reconhecida.
*
Estabelece o art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
Decorre da própria letra da lei que o vício deve resultar “do texto de decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal). Assim, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento7.
Ocorre o vício previsto na alínea c), do nº 2 do art. 410º quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente8. Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido9.
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No caso dos autos, da leitura do texto do acórdão, por si só ou conjugada com as regras da experiência e o senso comum, não resulta o invocado erro.
Como já se deixou claro, da análise atenta do acórdão recorrido não resulta qualquer evidência do erro invocado.
O que se observa é que, invocando o vício do art. 410º nº 2 al. c) do Código de Processo Penal, o Recorrente se limita a procurar substituir a convicção do julgador pela sua própria percepção e posição sobre o que se deveria ter sido considerado assente.
Em síntese, a decisão da matéria de facto provada, aparece fundamentada em elementos probatórios bastantes, permitindo a correcta formação de um juízo fundamentador da decisão de direito, não ocorrendo qualquer vício de raciocínio na apreciação das provas. Dito de outro modo, da análise da decisão recorrida resulta uma apreciação livre da prova, “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”10, não se vislumbrando qualquer ilogicidade na convicção do tribunal a quo nem qualquer violação das regras da experiência: Os factos provados não conflituam entre si, nem com a motivação e com a decisão e são bastantes para fundamentar a qualificação jurídica dos factos e a decisão e a motivação aparece na sequência lógica da factualidade provada e não provada, clarificando e esclarecendo a convicção do tribunal de acordo com as regras da experiência.
3. Subsunção jurídica
O Recorrente, em relação aos três crimes pelos quais foi condenado (simulação de crime, falsificação de documento e burla qualificada na forma tentada) lembra o que a sentença de 1ª instância decidiu e clama que o acórdão recorrido não demonstrou o contrário. Com esse raciocínio, sustenta que no crime de simulação de crime, o acórdão recorrido não demonstrou objectivamente como afastou a dúvida sobre a intenção do arguido, presumindo o dolo sem prova clara; no crime de falsificação de documento errou ao considerar que a participação do sinistro configura um documento juridicamente relevante, sem demonstrar que possuía força probatória suficiente para induzir terceiros em erro e não demonstrou que o arguido agiu com dolo direto, essencial para a caracterização do crime de falsificação de documento, acabando por inverter o ónus da prova, ao presumir a intenção fraudulenta sem base factual suficiente; quanto ao crime de burla qualificada na forma tentada, afirma que no acórdão não ficou demonstrada a existência de atos de execução, sendo juridicamente impossível qualificar a conduta como uma “tentativa acabada”.
O acórdão recorrido analisa com profundida cada um dos crimes:
i) Do crime de simulação de crime:
Estatui o art.º 366.º, n.º 1, do Código Penal, que «Quem, sem o imputar a pessoa determinada, denunciar crime ou fizer criar suspeita da sua prática à autoridade competente, sabendo que ele não se verificou, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.»
A punição deste tipo de condutas visa prevenir diligências injustificáveis e inúteis dos órgãos de investigação e do mesmo passo o enfraquecimento das suas capacidades funcionais.
O bem jurídico protegido insere-se assim no âmbito da tutela da realização da justiça, na dimensão da sua eficácia funcional ou de preservação de todo o potencial de perseguição criminal, evitando a sua dispersão por investigações sem fundamento (neste sentido, cfr. Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, pág. 562, Coimbra Editora, 2001).
O tipo objetivo supõe a denúncia de um crime inexistente à autoridade competente ou fazer criar a suspeita da sua prática, sem que o agente o impute a pessoa determinada.
É indiferente que à comunicação às autoridades de um crime (inexistente) se siga um resultado ou uma atividade, sendo por isso um crime de perigo abstrato (de todo o modo, no caso dos autos seguiu-se uma atividade policial de investigação).
Independentemente da existência ou não de diligências de investigação, a simulação terá de ser idónea a que as autoridades iniciem essas diligências (como foi o caso dos autos).
Já o tipo subjetivo supõe o dolo, sendo que o autor do crime tem de saber que o crime participado não ocorreu e que a sua denúncia é simulada (elemento intelectual do dolo).
Por outro lado, dispõe o art.º 26.º do Código Penal que «É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.»
Em suma, é punível como autor do crime o autor mediato (atua por intermédio de outrem), imediato (atua por si mesmo) e o instigador (que determina outrem à prática do facto, neste caso, desde que haja começo de execução, isto é, tentativa).
No caso dos autos, demonstrou-se que, na verdade, não ocorreu o crime de furto denunciado às autoridades pelo arguido, bem sabendo este que tal crime não tinha ocorrido, atuando mesmo com dolo direto (isto é, com representação de um facto que preenche um tipo de crime e com a intenção de o realizar – cfr. o n.º 1 do art.º 14.º do Código Penal), pelo que constituiu-se como autor imediato, na forma consumada, de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo art.º 366.º, n.º 1, do Código Penal.
*
ii) Do crime de falsificação de documento:
Dispõe o art.º 255.º, al. a), do Código Penal, para efeito do disposto no capítulo II, referente aos crimes de falsificação, o seguinte: «Documento - a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.»
De acordo com esta noção, já não integra o tipo qualquer falsificação de uma declaração, mas apenas aquela que é idónea a provar um facto juridicamente relevante (Helena Moniz, in Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial, Tomo II, pág. 666, Coimbra Editora 1999), sendo certo que a noção de “documento” reporta-se à declaração (enquanto representação de um pensamento humano idóneo a provar um facto juridicamente relevante) e não ao material que a corporiza.
«Documento é pois a declaração de um pensamento humano que deverá estar corporizada num objecto que possa constituir meio de prova» (Helena Moniz, ob. cit., pág. 667).
Ora, face à definição de documento ínsita no art.º 255.º, al. a), do Código Penal, dúvidas não há de que a participação do sinistro à assistente se inclui na noção de documento para efeitos penais.
Essencial é que a declaração seja juridicamente relevante (neste caso a participação de um sinistro - furto).
Tenha-se ainda presente que o autor do crime pode ser mediato se determinar outrem à prática do facto, ainda que este não esteja ciente que a declaração corporizada em documento por si redigido seja falsa.
É o caso de alguém que faz a participação verbal de um sinistro que na verdade não ocorreu ao mediador de seguros, o qual por sua vez a corporiza num documento que envia à respetiva companhia de seguros.
Por outro lado, dispõe o art.º 256.º, n.º 1, do Código Penal, o seguinte:
«1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a. Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b. Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
c. Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;
d. Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
e. Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou
f. Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.»
O crime de falsificação de documento encontra-se inserido sistematicamente no título relativo aos crimes contra a vida em sociedade, sendo considerado um tipo de crime «a meio caminho entre os crimes contra os bens coletivos e os crimes patrimoniais» (neste sentido, Professor Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, página 675, Coimbra Editora, 1999).
Ademais, a incriminação deste tipo de condutas (falsificação material ou intelectual/ideológica, detenção ou uso de documentos falsificados) visa a proteção da credibilidade e da segurança do tráfico jurídico (relacionada com os documentos), protegendo-se a verdade intrínseca do documento enquanto tal, dada a sua função de perpetuação da declaração humana e de garantia.
Dito de outro modo, o bem jurídico protegido com o tipo legal de crime em causa é a verdade intrínseca do documento enquanto tal, a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental, na sua dupla função de perpetuação que todo o documento tem em relação a uma declaração humana, e de garantia de não desvirtuação das palavras/declarações que são materializadas e corporizadas num certo escrito.
O objeto da ação é o documento, com o sentido supra enunciado, sendo várias as modalidades da conduta que se afiguram suscetíveis de subsunção ao tipo de ilícito em análise.
Refira-se também que o crime de falsificação de documento é um crime cuja finalidade consiste em induzir alguém em erro. Podemos afirmar que «erro é tudo aquilo que leva a considerar algo como diferente da realidade, existindo uma desconformidade entre a realidade e aquilo que verdadeiramente se conhece» (assim, Helena Moniz, Anotação ao Assento n.º 8/2000, do Supremo Tribunal de Justiça, RPCC, Ano 10, Fascículo 3º, Julho-Setembro de 2000, página 464).
No caso dos autos trata-se da indução em erro da assistente quanto à ocorrência de um crime de furto e da inerente subtração de vários artefactos.
Tratando-se, como se trata, de um crime de perigo abstrato (logo, de consumação antecipada, pois que se basta com a consumação formal), com o mero ato de falsificação (segundo qualquer uma das condutas típicas), consuma-se a prática deste crime.
Quanto às modalidades do tipo objetivo, em face do tipo legal desenhado na norma citada, em síntese, podemos concluir que são as seguintes:
a. Fabricação ex novo do documento ou contrafação do documento [al. a) do n.º 1];
b. Modificação a posteriori de um documento já existente ou falsificação material [al. b) do n.º 1];
c. A integração no documento da assinatura de outra pessoa ou fraude na identificação [al. c) do n.º 1];
d. A declaração de um facto falso juridicamente relevante11 ou falsificação ideológica, mas que não se confunde com a simulação [al. d) do n.º 1];
e. A integração no documento de uma declaração distinta daquela que foi prestada [al. d) do n.º 1];
f. Circulação do documento falso por pessoa distinta do autor da fabricação ou falsificação [als. e) e f) do n.º 1].
Ademais, o agente tem de agir de forma livre, consciente, deliberada e voluntária, ciente do carácter proibido da sua conduta, com a intenção de obter para si um benefício ilegítimo ou de causar um prejuízo a outrem (não necessariamente patrimonial), ou ainda de preparar, facilitar ou encobrir outro crime, com representação do facto e com a intenção de o realizar (elementos intelectual e volitivo do dolo), atuando assim com dolo direto (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do Código Penal).
O crime em causa é assim intencional, isto é, o agente necessita de atuar com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou então de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.
Tenha-se também presente que não se integram apenas no âmbito deste tipo legal as condutas do agente que apenas visem a obtenção de um benefício patrimonial ou a provocação de um prejuízo patrimonial. É que benefício ilegítimo constitui toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se obtenha através do ato de falsificação ou do ato de utilização do documento falsificado, tanto mais que não constitui objeto da proteção da incriminação o património, mas apenas a segurança e credibilidade do tráfego jurídico, em especial no que respeita aos meios de prova e, em particular, a prova documental (cfr., neste sentido, Helena Moniz, in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte especial, Tomo II, págs 684 e 685, 1999, Coimbra Editora).
Neste caso, tendo-se inserido facto falso e juridicamente relevante na participação efetuada à assistente em documento genuíno, o benefício alcançado seria o de receber a inerente indemnização no âmbito do contrato de seguro referido nos autos.
Com relevo para o caso dos autos, tenha-se ainda presente que «A falsificação ideológica é punível quer a integração do facto falso juridicamente relevante no documento regular seja feita pelo próprio declarante quer por terceiro, com base no ato do declarante, gerando a aparência perante terceiros de uma realidade (um facto) diferente da existente e, deste modo, pondo em causa a credibilidade do documento. Por isso, é irrelevante saber se o declarante ou o recetor da declaração têm competência, respetivamente, para proferir e receber a declaração, como também não releva a circunstância de a declaração ter valor para, por si só, demonstrar o facto juridicamente relevante declarado. Atenta a sua natureza de crime de perigo abstrato, o que releva na incriminação da falsificação ideológica é que a declaração possa causar uma alteração no mundo do Direito, com base numa declaração que atesta ou certifica um facto que não corresponde à verdade» (Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª ed. atualizada, pág. 256, anotação 10, Univ. Católica Editora, 2021).
Aliás, na primitiva comissão revisora do Código Penal discutiu-se se a falsificação intelectual [então prevista na al. b)] deveria manter-se (no sentido da eliminação, pronunciaram-se os Professores Costa Andrade e Figueiredo Dias), prevalecendo todavia a opinião do então PGR, Cunha Rodrigues, na manutenção daquela alínea (cfr. a Acta n.º 26, de 03.04.1990).
É justamente o caso dos autos.
Por conseguinte, o arguido constituiu-se como autor material e na forma consumada de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. d), do Código Penal.
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iii) Do crime de burla:
Dispõe o art.º 217.º, n.º 1, do Código Penal, que «Quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.»
Trata-se de um crime perpetrado contra o património, de execução ou de forma vinculada (já que o processo de execução é um dos elementos típicos), com a participação da pessoa burlada, exigindo-se que a conduta do agente seja dolosa e com uma intenção específica (que é a de obter, para si ou para outrem, um enriquecimento ilegítimo) e desde que a conduta do burlado, determinada pela atuação astuciosa do sujeito ativo, lhe cause a si ou a outrem um prejuízo patrimonial, o que se compreende, atendendo a que se trata de um crime de resultado e que a incriminação de tais condutas visa proteger o património como bem jurídico.
O tipo subjetivo de ilícito, por sua vez, exige o dolo em alguma das suas modalidades 8cfr. o art.º 14.º do Código Penal).
O dolo é o conhecimento e a vontade de realizar o tipo de ilícito, sendo certo que a representação do facto constitui o seu elemento intelectual (que segundo a teoria da representação compreende os elementos essenciais do crime, tais como a conduta por ação ou por omissão – por ex., o evento e o nexo causal nos crimes de resultado) e os seus elementos normativos; já a intenção da sua realização constitui o chamado elemento volitivo, que compreende, segundo a teoria da vontade, a resolução ou a decisão de agir, sendo certo que, no caso dos autos, ocorreu o dolo direto - cfr. art.º 14.º, n.º 1, do Código Penal.
Por seu turno, dispõe o art.º 218.º, do mesmo diploma legal, na parte que nos interessa, o seguinte:
«1 – Quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 – A pena é a de prisão de dois a oito anos se:
a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;
[…].»
Com referência ao n.º 1, o valor será elevado se exceder as 50 UC, avaliadas no momento da prática do facto, por força do disposto no art.º 202.º, al. a), do Código Penal, isto é, tomando como referência que à data dos factos a UC já se cifrava em €102, o prejuízo patrimonial da assistente teria de exceder €5.100,00.
Com referência ao n.º 2, al. a), o valor será consideravelmente elevado se exceder as 200 UC, avaliadas no momento da prática do facto, por força do disposto no art.º 202.º, al. b), do Código Penal, isto é, €20.400,00.
Note-se ainda que a determinação do prejuízo patrimonial deve fazer-se com recurso à teoria da diferença, comparando-se a situação patrimonial da vítima antes e depois do ato de disposição efetuado, numa conceção económico-jurídica.
O prejuízo patrimonial é assim o saldo negativo entre o valor do património antes e depois da deslocação patrimonial provocada pelo erro (a diminuição patrimonial, encarada como um todo, ocorrerá se, na sequência dessa deslocação patrimonial, aquele se mostrar diminuído por perda de direitos, coisas ou valores; assunção de obrigações; realização de prestações sem contrapartida; assunção de riscos, entre outros).
É pois, em suma, uma diminuição dos ativos ou o aumento dos passivos (cfr. M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal, Parte Geral e Especial, pág. 923, 2014, Almedina), mas que não deve prescindir de uma componente limitadora de natureza axiológico-jurídica, traduzida na conformidade da situação de facto com o direito, globalmente considerado (neste sentido, cfr. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 281, Coimbra Editora, 1999).
Assim, além do mais, é em função do acrescido desvalor do resultado que o crime de burla será qualificado e punido mais severamente.
No caso dos autos, o crime ficou-se pelo estádio da tentativa na medida em que a tomadora do seguro nada recebeu da seguradora por razões alheias à vontade do arguido.
Trata-se, ainda assim, de uma tentativa acabada, pois o arguido fez tudo o que estava delineado no plano criminoso (isto é, praticou todos os atos de execução previstos em tal plano), mas, ainda assim, não alcançou o seu desiderato por razões alheias à sua vontade (ao invés, na tentativa inacabada, o autor do crime não executou tudo o que estava planeado por razões alheias à sua vontade).
O facto de a tentativa ser acabada releva em sede de determinação concreta da pena, em face do maior desvalor da ação que lhe está subjacente, pois o iter criminis foi levado mais longe.
Tendo então em conta estas considerações e a matéria de facto provada, concluímos que o arguido AA perpetrou, em autoria material e na forma tentada, um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artgs 217.º, n.ºs 1 e 2, e 218.º, n.º 2, al. a), ambos do Código Penal, com referência aos artgs 22.º, n.ºs 1 e 2, al. a), 23.º, n.º 2, e 202.º, al. b), todos do mesmo diploma legal.
Na análise que se impõe tem de se partir dos factos provados, tal como ficaram assentes no acórdão recorrido, sem regressos a questões probatórias, ao contrário do procedimento do Recorrente.
Assim, face à factualidade provada, não se pode questionar o dolo directo no crime de simulação de crime porquanto ficou provado (facto 8-D) que “o arguido agiu também voluntária e conscientemente bem sabendo, quando referiu aos militares da GNR de Penafiel que desconhecido(s) havia(m) assaltado e furtado do interior do armazém/estabelecimento da Y..., Lda. os artigos supra descritos, que tal ilícito penal não havia ocorrido”.
Demonstrou-se, assim, que não ocorreu o crime de furto denunciado às autoridades pelo arguido, bem sabendo este que tal crime não tinha ocorrido, actuando com dolo direto (isto é, com representação de um facto que preenche um tipo de crime e com a intenção de o realizar – cfr. o nº 1 do art. 14º do Código Penal), pelo que constituiu-se como autor imediato, na forma consumada, de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo art. 366º nº 1 do Código Penal.
Também não merece aceitação a tese de que, relativamente ao crime de falsificação, a simples comunicação de um sinistro à seguradora não tem, por si só, força probatória plena, pois a seguradora tem o dever de verificar os factos denunciados antes de conceder qualquer indemnização, não sendo possível presumir automaticamente a intenção fraudulenta do arguido, bem como é insustentada a afirmação de que não se demonstrou que o arguido agiu com dolo directo.
Ora, como ficou assente, (facto provado 8-B) o arguido agiu de forma voluntária e consciente, bem sabendo que os factos constantes da participação de sinistro que, através do seu filho, apresentou à Fidelidade Companhia de Seguros, SA Companhia de Seguros Fidelidade eram falsos por não terem ocorrido, pelo que está evidenciada a actuação com dolo directo.
Por outro lado, não é necessário que um documento tenha força probatória plena para ser alvo de falsificação. Como salienta o acórdão recorrido citando Paulo Pinto de Albuquerque «… não releva a circunstância de a declaração ter valor para, por si só, demonstrar o facto juridicamente relevante declarado. Atenta a sua natureza de crime de perigo abstrato, o que releva na incriminação da falsificação ideológica é que a declaração possa causar uma alteração no mundo do Direito, com base numa declaração que atesta ou certifica um facto que não corresponde à verdade».
Quanto ao crime de burla qualificada na forma tentada, o Recorrente sustenta que o acórdão recorrido não demonstrou a existência de actos de execução, sendo juridicamente impossível qualificar a conduta como uma “tentativa acabada”, referindo ainda que é necessário que haja um começo de execução do crime, não bastando a intenção do arguido ou a realização de meros atos preparatórios.
Da factualidade provada resulta que o arguido procedeu a todos os actos para fazer crer que tinha havido um furto e, na sequência participou à Seguradora esse furto com o propósito de obter o valor dos artigos supostamente furtados. Ora, por referência ao disposto no art. 22º do Código Penal estes são actos típicos do crime de burla, idóneos a produzir o resultado típico.
Por isso, como sustenta o acórdão recorrido, estamos perante uma situação em que o crime se ficou pelo estádio da tentativa na medida em que a tomadora do seguro nada recebeu da seguradora por razões alheias à vontade do arguido, porém, é uma tentativa acabada, porquanto o arguido fez tudo o que estava delineado no plano criminoso (isto é, praticou todos os atos de execução previstos em tal plano), mas, ainda assim, não alcançou o seu desiderato por razões alheias à sua vontade. Distintamente, na tentativa inacabada, o autor do crime não executa tudo o que estava planeado, por razões alheias à sua vontade.
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, mantendo na íntegra a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente, fixando-se em 6 UC a taxa de justiça devida.
Lisboa, 14-05-2025
Jorge Raposo (relator)
António Manso
Antero Luís
_____________________________________________
1. Figueiredo Dias Direito Processual Penal pag 149 e seg.
2. Ac STJ de 21.10.2020, relator Manuel Matos. Texto integral disponível em: https://jurisprudencia.pt/acordao/ 197547/
3. Sérgio Poças, Da sentença penal – fundamentação de facto, em Julgar nº 3, pg. 38
4. O exame crítico consiste na enumeração das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica exterior ao processo com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.3.05, proc. 05P662, em www.dgsi.pt).
5. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.2.98, na CJ 1998, T. 1, pg. 199.
6. No proc. 07P4198, em www.dgsi.pt.
7. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pg. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pg. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., pg.s 77 e ss; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.2.2021, proc. 34/11.0TAAGH.L1.S1.
8. Germano Marques da Silva, ob. cit., pg. 341 e ss. e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.10.96, proc. 045267.
9. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.3.2016, proc. 81/12.4GCBNV.L1.S1.
10. Prof. Cavaleiro Ferreira, em Curso de Processo Penal, 1986, 1° vol., pg. 211.
11. Um facto é juridicamente relevante quando cria, modifica ou extingue uma relação jurídica ou, numa palavra, é suscetível de produzir uma alteração no mundo do Direito.