I. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência assume-se como uma espécie de recurso normativo, por contraposição com o denominado recurso hierárquico, onde se visa a determinação do sentido de uma norma, com força quase obrigatória, geral e abstrata, em benefício dos valores da certeza e da segurança jurídica, unificando, por essa forma, a interpretação e o sentido de um preceito legal ou dimensão normativa que os tribunais de recurso consideravam de modo divergente.
II. Apresentando-se como invocativo, em caso de em impugnação da matéria de facto, ser obrigatório questionar a motivação do julgador em primeira instância – Acórdão recorrido - e caber ao recorrente invocar e analisar as provas que no seu entendimento conduzem a uma outra solução de facto, e sequentemente de direito -Acórdão fundamento -, não se descortina como se pode considerar justificada a existência de oposição.
III. Estando em causa quadros de impugnação da matéria de facto, afirmar-se no Acórdão recorrido que não basta estar demonstrada a mera possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal, sendo necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo tribunal recorrido e, por sua vez, no Acórdão fundamento dizer-se que não basta que o recorrente pretenda fazer uma "revisão" da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção "era possível", sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõem uma outra convicção, é claro que inexiste qualquer oposição de julgados.
I. Relatório
1. O arguido AA (doravante Recorrente), não se conformando com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de outubro de 2024, transitado em julgado a 24 de outubro de 20241, Acórdão recorrido, do mesmo veio interpor recurso extraordinário para FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 437º e seguintes do CPPenal, invocando como Acórdão fundamento o prolatado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no Processo nº 446/19.0T9CTB.C1, em 22 de fevereiro de 2023, cuja data de trânsito se desconhece2, e publicado em www.dgsi.pt.
2. Em suporte desta pretensão o Recorrente, em singelo articulado sem quaisquer conclusões, apresenta o seguinte: (transcrição)
- Refere o sumário deste aresto:
“I- A utilização do verbo impor no art.412º nº2 al.b) do Cód.Processo Penal não se basta com o recorrente demonstrar a mera possibilidade de existir uma solução, em termos de matéria de facto, alternativa à fixada pelo tribunal, baseando-se em meios probatórios que elenca.
II- Necessário se mostra que o recorrente, com base nesses elementos probatórios, os discuta face aos restantes e demonstre que o raciocínio lógico e conviccional do Tribunal a quo se mostra sem suporte, na análise global a realizar da prova, enunciando concretamente as razões para tal.
III- Exige-se que o recorrente – à semelhança do que a lei impõe ao juiz – fundamente a imperiosa existência de erro de julgamento, desmontando e refutando a argumentação expendida pelo julgador.
IV - Se o recorrente nunca refere qual a motivação do Tribunal a quo ou a tenta desmontar, fazendo tábua rasa da convicção que este, de forma exaustiva e categórica, enuncia enquanto sustentáculo dos factos provados e não provados, não cumpre o ónus de impugnação especificada.”
- Este aresto está em contradição com o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 446/19.0T9CTB.C1, que sumaria: “I - O único limite que o princípio da livre apreciação da prova impõe à discricionariedade de apreciação da prova oral por parte do julgador resulta das regras da experiência comum e da lógica supostas pela ordem jurídica.
II - A livre apreciação da prova oral é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância, porque é a 1ª instância que vê e ouve o arguido e testemunhas, que aprecia os seus gestos, hesitações, espontaneidade ou a falta dela, em suma, os seus comportamentos não verbais, é a 1ª instância que formula as perguntas que entende pertinentes, que encaminha o interrogatório e/ou a inquirição da forma que considera ser a mais conveniente, tudo faculdades de que o tribunal da relação não pode lançar mão e que impõem severas limitações à reapreciação da prova.”
III - É ao tribunal “ad quem”que cabe percepcionar se as provas indicadas pelo recorrente impõem decisão diversa ou se conduzem a uma dúvida insanável a ser resolvida com a convocação do princípio“in dubio pro reo”., do qual se protesta juntar certidão para efeitos deste recurso extraordinário.
Em resumo e porque se entende existir contradição de julgados: depreende-se do aresto proferido nos presentes autos que existe a obrigatoriedade de, no recurso que impugne a matéria de facto, “atacar” a motivação do julgador do tribunal de 1.ª instância ao invés do que se depreende do aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 446/19.0T9CTB.C1 em que se limita o “poder” do recorrente à invocação e análise das provas que podem, na ótica do recorrente conferir uma outra solução de facto e consequentemente de direito.
3. O Digno Mº Pº, junto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa respondendo, vem defender: (transcrição)
1º - AA vem interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.
2º - Indica como Acórdão recorrido o prolatado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 08 de outubro de 2024, no processo n.º 324/17.8IDSTB.L1 e como Acórdão fundamento o proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no processo n.º 446/19.0T9CTB.C1, sem identificação da data, do trânsito em julgado e onde se encontra publicado.
3º - Acresce que apesar de ter protestado juntar certidão do Acórdão fundamento, até à data, não o fez.
4º - Da Referência: ....36 observa-se que o Acórdão recorrido transitou em julgado em 24/10/2024.
5º - Forçoso é, pois, concluir que o recurso interposto, quanto à sua admissibilidade, suscita objeção.
6º -Com efeito, afigura-se-nos não estarem reunidos todos os pressupostos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, em face do preceituado no Art.438º n.º 2 do C. P. Penal.
7º - A competência para apreciar/decidir da admissibilidade, tempestividade, legitimidade e espécie do presente recurso cabe ao Supremo Tribunal de Justiça.
4. Não foi junta a certidão do Acórdão fundamento, nem demonstrada a data do seu trânsito em julgado, sendo que devidamente notificado o Recorrente para a tal proceder, não o fez no prazo fixado, nem posteriormente.
5. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu douto Parecer, pronunciando-se a respeito da verificação dos pressupostos formais e substanciais definidos nos artigos 437º e 438º do CPPenal para prosseguimento da pretensão em causa, enuncia:
(…)
O recorrente foi condenado no processo comum 324/17.8IDSTB pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103.º, n.º 1, alínea a), e 104.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 5 de junho), na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 2 (dois) anos sob condição de pagamento ao Estado, no mesmo prazo, da quantia de (euro) 2.000 (dois mil).
Tem, por isso, legitimidade e interesse em recorrer.
Resultando da certidão extraída do recurso penal 324/17.8IDSTB.L1 que o acórdão recorrido transitou em julgado em 24 de outubro de 2024, o recurso podia ser interposto até 25 de novembro de 2024 (segunda-feira), ou, mediante o pagamento de multa (artigo 107.º-A, do Código de Processo Penal, e 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil), até 28 de novembro de 2024 (quinta-feira).
Como o recorrente efetuou o pagamento da multa devida pela prática do ato no 3.º dia útil subsequente ao termo do prazo, o recurso, apresentado em 28 de novembro de 2024, é tempestivo.
Muito embora não tenha apresentado certidão do acórdão fundamento nem indicado a respetiva data e local da publicação, conseguimos apurar que o mesmo foi proferido em 22 de fevereiro de 2023, foi relatado pelo Sr. desembargador Luís Ramos e encontra-se publicado na base de dados jurídico-documentais da DGSI (www.dgsi.pt), sendo de crer, em atenção à sua data, que tenha transitado em julgado em momento anterior ao acórdão recorrido.
Encontram-se, assim, integralmente verificados os pressupostos formais de admissão do recurso.
(…)
Pressupostos substanciais.
(…) Extrai-se do acórdão recorrido que:
- O arguido interpôs recurso da sentença condenatória e, além do mais, impugnou alguns dos factos provados e não provados ao abrigo do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal;
- O Tribunal da Relação de Lisboa julgou o recurso improcedente, considerando, nesta parte, que:
«O erro de julgamento, consagrado no artigo 412.º n.º 3 do Cód. de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, ampliando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do Cód. de Processo Penal – isto é, nesta situação o recurso quer reapreciar concretos segmentos de prova produzida em primeira instância, havendo assim que a reproduzir tale quale em segunda instância, por forma a apreciar da verificação da específica deficiência suscitada.
Notar-se-á, não obstante, que nos casos de tal impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, mas antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, e sempre na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E é exactamente por o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituir um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, os aludidos erros que o recorrente deverá expressamente indicar, que se impõe a este o ónus de proceder a uma especificação sob três vertentes, conforme estabelecido no art. 412.º n.º 3 do Cód. de Processo Penal, onde se impõe que, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados,
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida,
c) as provas que devem ser renovadas.
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das "concretas provas" só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas "provas" impõem decisão diversa da recorrida.
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens [das gravações] em que se funda a impugnação [não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos], pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes [n.º 4 e 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal].
Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008, a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que se debruçando sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do nº 3, do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal] [sublinhado nosso].
Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
Em suma, para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente de especificar, nas conclusões, quais os pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, quais as provas [específicas] que impõem decisão diversa da recorrida, demonstrando-o, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as [se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados] ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos [quando na ata da audiência de julgamento se faz essa referência – o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens].
Importa, portanto, não só proceder à individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova susceptível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorrectamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do CPP, a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida -, a demonstração desta imposição compete também ao recorrente [sublinhado nosso] (Acórdão do TRL, desta 5.ª Secção, datado de 16-11-2021, Processo n.º 1229/17.8PAALM.L1-5).
In casu, entende o recorrente que o tribunal a quo não deveria ter dado como provado os factos vertidos em 4, 5, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 22, 23, 24, 25, 26, 27 da factualidade provada, argumentando, nos seguintes termos:
Quanto ao facto 4:
Dos depoimentos das testemunhas cujas passagens se transcrevem e vão identificados, não poderia o Tribunal “a quo” decidir como decidiu. Nenhuma das testemunhas aludiu a que era o recorrente quem providenciava, tratava, arranjava, cuidava, compunha a documentação para ser submetida à contabilidade. Não se trata de uma mera discordância da decisão recorrida, trata-se da análise do que foram os depoimentos das testemunhas, em que todos eles e nas passagens concretas que se transcrevem já de seguida destacam e referem que havia um serviço de pré-contabilidade elaborado pela testemunha BB, que declarou receber a documentação da testemunha CC e da testemunha DD. Mais declarou que emitiu faturas de vendas de viaturas, conjuntamente com a testemunha CC e que muitas das faturas de compra de veículos adquiridos na EU eram-lhe entregues pela testemunha DD, nomeadamente as do fornecedor (testemunha não ouvida) EE.
Quanto ao facto 5:
Este facto provado não se pode manter nestes termos, porque o recorrente não dispunha dos documentos relativos a compras, nem os conhecia, nem dispunha das faturas das compras de viaturas, nem entregava ao contabilista da sociedade esses documentos (nem esses, nem nenhuns outros). Este facto com esta redação não tem sustentação probatória. Na senda do já foi referido e alegado, o recorrente não teve qualquer intervenção em qualquer manuseamento, tratamento ou entrega de qualquer documentação, seja à contabilidade, seja à despachante, seja a qualquer organismo público ou privado e neste sentido seguem as passagens concretas dos depoimentos das testemunhas ouvidas em julgamento já que da prova documental nada resulta que demonstre que o recorrente teve intervenção; não um email enviado pelo recorrente a quem quer que seja, nem um email de alguém para o recorrente. Nada se extrai da prova documental que tenha como remetente ou destinatário o recorrente.
Quanto ao facto 9
O facto provado 9 esta incorretamente julgado / decidido porque não resulta da prova documental que o recorrente tivesse recebida da parte do fornecedor EE qualquer fatura ou qualquer outra documentação. Não resultou igualmente da prova testemunhal produzida em julgamento que o recorrente recebido faturas, documentos, tivesse participado no tratamento de faturas ou outros documentos que estivessem inseridos na contabilidade da sociedade co-arguida ou que estivessem inseridos nas alfandegas para legalização de viaturas adquiridas pela sociedade co-arguida. As testemunhas ouvidas não concretizaram que o recorrente tivesse tido intervenção em qualquer ato ou facto que se relacionasse com faturas ou outros documentos de aquisição das viaturas do fornecedor EE.
As testemunhas concretizaram que havia pré-contabilidade realizada pela testemunha BB, que quem lhe entregava documentação e faturas era a testemunha DD, ainda que quem lhe entregava faturas e outra documentação era a testemunha CC, assim como a testemunha FF o referiu e que raramente via o recorrente, sendo ainda que a testemunha GG também referiu que quem lhe fazia chegar a documentação da sociedade co-arguida era a testemunha BB e que não conhece o recorrente pessoalmente, só de nome, sendo ainda que a testemunha HH asseverou que o recorrente não tratava de documentação, nem de faturas ou de contabilidade e que esse departamento era da testemunha BB e da testemunha CC.
Quanto ao facto 10:
Não resulta da prova documental ou testemunhal que o recorrente tivesse decidido que as vendas em Portugal de viaturas adquiridas na UE passavam a liquidar IVA sobre a margem e não sobre o valor total líquido da venda. Não há qualquer instrução do recorrente nesse sentido. O recorrente em 2015 e 2016 manteve-se afastado da sociedade co-arguida, por motivos de saúde familiares e por motivos profissionais relativos ao setor imobiliário. A documentação, instruções para a contabilidade, processo de legalização de viaturas era tratado entre as testemunhas BB, CC, DD, FF e GG, com a intervenção esporádica das testemunhas II e HH. É óbvio que o recorrente fazia os negócios das compras e vendas de viaturas, ainda assim nem todos, e é óbvio que o recorrente era o homem de referência no comércio (vendas) da sociedade co-arguida, conforme refere a testemunha HH, mas já não é óbvio que resulte ter sido o recorrente a decidir o regime de IVA concreta de cada venda em Portugal, por referência a cada compra num país da UE, nomeadamente das compras realizadas ao fornecedor EE.
A prova testemunhal aponta para o sentido de que essa decisão não foi do recorrente; terá sido de alguém que organizava a documentação de legalização dessas viaturas, mas não aponta para o recorrente.
Quanto aos factos 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 22:
Os factos provados 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 22 não foram corretamente decididos, isto porque deveriam ter sido dados como não provados quanto à intervenção do recorrente (…) resulta da prova testemunhal que o recorrente nenhuma intervenção teve quanto à organização, tratamento e até entrega da documentação à contabilidade, resultando ainda da prova nada ter tido o recorrente a ver com emissões de faturas de vendas das viaturas alienadas pela sociedade co-arguida. (…) O recorrente não participou por isso na emissão das faturas das vendas mencionadas nos factos provados 12, 13, 14, 15, 16 e 17, nem existe prova de que tivesse dado quaisquer ordens para que as faturas e as vendas tivessem procedido da forma ali mencionada ou descrita. (…) Não existe qualquer prova, nem foi evidenciada qualquer certeza, indício sequer de que tivesse sido o recorrente a proceder ou mandar ou instruir alguém para proceder à alteração do digito de controlo 900 ou 999 para 2000 nas faturas do fornecedor EE e tal a ter sucedido, resulta da prova que terá sido numa das entidade externas à sociedade co-arguida, isto por existirem várias versões, por vezes 3 versões da mesma fatura sendo certo que pelas testemunhas inspetores tributários JJ e KK foi dito, de forma clara, que a sociedade co-arguida nenhuma vantagem teria nisso, nem fiscal, nem outra! (…) Em momento que nunca se conseguiu apurar e estas mencionadas testemunhas falam e esclarecem isso, quem procedeu à adulteração das faturas do fornecedor EE, mas da prova resulta, de forma clara que a sociedade co-arguida não seria beneficiária desse esquema, nomeadamente do facto de existirem, por vezes, ter versões diferentes da mesma fatura, motivo pelo qual a redação dos factos provados 13 e 14 não se pode manter. (…) O documento fatura em ficheiro “excel” mencionado no facto provado 14 não foi encontrado na posse do recorrente, mas sim na posse das testemunhas BB e II e não foram localizados envios por correio eletrónico para o recorrente. (…) o) Não resulta da prova que o recorrente tenha participado ou sequer conhecido um qualquer esquema relacionado com os factos descritos nos factos provados 15, 16 e 17 e concretamente com a emissão das faturas ali referidas ou dos documentos ali referidos. A prova aponta no sentido de que o recorrente não participou nesses factos e no sentido do que o recorrente defende.
Quanto aos factos provados 23, 24, 25, 26 e 27:
O computo da prova testemunhal aponta para uma clara não participação do recorrente nos factos provados supra impugnados neste recurso e para uma clara verificação dos factos alegados na contestação.
Será suficiente para condenar o recorrente, a testemunha HH ter dito em julgamento que o recorrente era a pessoa de nome e renome na sociedade co-arguida e o ponto de referência nessa sociedade? Será suficiente que a testemunha HH tenha dito em julgamento que o fornecedor EE se deslocava frequentemente à sociedade co-arguida e que falaria ou que falava / contataria com o recorrente? Não seria normal que se ocorressem negócios de compras e vendas de veículos o recorrente falasse com o fornecedor EE? E daqui pode-se extrair a conclusão de que o recorrente era quem fazia as faturas de compra desse fornecedor? E pode-se extrair que ao negociar com esse fornecedor, tinha de saber de que forma essas faturas de compra eram tratadas, preenchidas, elaboradas? Salvo o devido respeito, parece ao recorrente que não! E parece que não, simplesmente pelo que disseram as testemunhas e cujas passagens concretas se transcrevem para se perceber que o recorrente não teve qualquer intervenção no tratamento de qualquer documentação e que nesses anos de 2015 e 2016, apesar de ser uma referência na sociedade co-arguida, manteve-se afastado e a trabalhar à distância.
Quanto à contestação:
Todos os factos dados como não provados referentes à contestação não foram corretamente decididos. O computo da prova testemunhal aponta para uma clara não participação do recorrente nos factos provados supra impugnados neste recurso e para uma clara verificação dos factos alegados na contestação.
As testemunhas ouvidas todas elas referem que o recorrente era gerente e um excelente comerciante / vendedor de automóveis, mas não referem que foi o recorrente quem tratou de documentação, de legalizações, de contabilidade ou de qualquer aspeto ou matéria referente ao tratamento de faturas de compra de viaturas.
Termina com:
"Por todos ver os depoimentos das testemunhas que infra se transcrevem e que sustentam o que o recorrente defende:", onde transcreve ao longo de 29 páginas, segmentos dos depoimentos de 8 testemunhas.
Ora, analisadas as conclusões do recurso facilmente se constata que o recorrente não cumpriu o ónus de impugnação especificada, em obediência ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal, não satisfazendo as conclusões apresentadas, a exigência da tríplice especificação legalmente imposta, nos casos de impugnação ampla.
E, por outro lado, uma leitura atenta da motivação, torna evidente que também esta não consente tal especificação, onde o recorrente inclui transcrição de TODA a prova testemunhal ouvida em audiência de jul-gamento ao longo de 387 páginas.
Na verdade, o recorrente indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, e a enunciação dos elementos probatórios que no seu entender apontam no entendimento por si propugnado, mas não explica porque é que as mesmas impõem decisão diversa da recorrida, o que é bem diferente, ou seja, nunca referindo ou explicitando o motivo porque tal impõe uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal, não sendo bastante chavões como o "Tribunal não poderia ter decidido como decidiu", "ou o facto x está incorrectamente julgado".
Efectivamente, não basta afirmar sumariamente que A ou B disse isto ou aquilo, que não corresponde ao que foi dado como provado; necessário se mostra que o recorrente, com base nesses elementos probatórios, os discuta face aos restantes e demonstre que o raciocínio lógico e conviccional do tribunal a quo se mostra sem suporte, na análise global a realizar da prova, enunciando concretamente as razões para tal.
Na verdade, exige-se que o recorrente – à semelhança do que a lei impõe ao juiz – fundamente a imperiosa existência de erro de julgamento, desmontando e refutando a argumentação expendida pelo julgador.
Tendo em conta a utilização do verbo impor (cfr. art.º 412.º, n.º 2, al. b), do CPP), não basta estar demonstrada a mera possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal, o que, aliás, é comum verificar-se, sendo necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo tribunal recorrido (cfr. acórdão da RP, de 05-06-2024, proc. n.º 466/21.5PAVNG.P1).
Por outro lado, muito menos indicou as concretas passagens em que fundamenta a sua impugnação, pois que globalmente remete para passagens de depoimentos de oito testemunhas ao longo quase 30 páginas, não retirando de tais passagens porque é que a convicção do Tribunal é incorrecta e deveria ser aquela outra, tão só afirmações genéricas que aquela é que era a prova que o tribunal a quo deveria ter tido em conta.
Atente-se que os mesmos trechos são utilizados para todos os artigos impugnados, com a disparidade que os mesmos revelam, não sendo assim compreensível quais as concretas passagens que impõem decisão diversa relativamente a quais factos provados.
E mais, reproduz segmentos do depoimento de quatro testemunhas (II, BB, DD e HH) que o Tribunal a quo expressamente desvalorizou na sua motivação sem que o recorrente sustente o motivo pelo qual tais depoimentos deverão agora ser valorados distintamente.
E veja-se como em relação aos documentos que chama à colação, refere-os de forma genérica e vaga, ao elencar as provas que impunham decisão diversa: relatório de inspeção junto aos autos a fls. 546 a 554; correio eletrónico apreendido, junto aos autos, constante do anexo I do inquérito 2257/18.1...; relatório de inspeção junto aos autos a fls. 1925 a 1963; parecer junto a fls. 1304 a 1324 dos autos 2257/18.1...; fls. 380 do apenso I., não se descortinando qual o valor que o mesmo atribui aos mesmos, ou de onde se retira que a convicção do Tribunal não se mostra correcta.
Todo este circunstancialismo inviabiliza a reapreciação da matéria de facto pela via da impugnação ampla.
In casu, o que o recorrente verdadeiramente pretende é contrapor a sua posição à prova que foi produzida em audiência de julgamento, é fazer vingar a sua própria leitura da referida prova, nem se insurgindo contra a forma como o Tribunal a quo apreciou a prova (para além de questões retóricas no ponto aa) das conclusões), mas tão só insurgindo-se contra o facto de o Tribunal ter considerado assente os factos como o fez.
No fundo, limita-se a relatar a divergência entre a sua convicção pessoal sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, mas sem nunca os contrapor ou escalpelizar.
Aliás, atente-se que o recorrente nunca refere qual a motivação do Tribunal a quo ou a tenta desmontar, fazendo tábua rasa da convicção que este, de forma exaustiva e categórica, enuncia enquanto sustentáculo dos factos provados e não provados.
Saliente-se que a censura quanto à forma como ocorreu a convicção do tribunal não pode assentar, simplisticamente, no ataque da fase final de tal convicção, antes havendo que residir na violação de passos para a formação da mesma, sob pena de inadequada interpretação do disposto naquele artigo 127.º do Código de Processo Penal, não obstante a liberdade de apreciação esteja limitada por critérios de legalidade, da lógica, da experiência, dos conhecimentos científicos e, assim, configurando uma liberdade de acordo com um dever.
Por seu lado, segundo o acórdão do STJ de 27-05-2010, proc. 11/04.7GCABT.C1.S1, "sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova."
Só assim não será, quando as provas produzidas impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, o que sucederá, sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respetiva transcrição constata-se que a dita testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto), ou quando o tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, enfim, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência, ou, ainda, quando a apreciação se revela ilógica, arbitrária e violadora do favor rei (vd. Ac. RC de 06/03/2024, proc. 77/21.5GAPMS.C1).
In casu, o caminho trilhado pelo tribunal a quo apresenta-se lógico e inteligível, de acordo com os critérios legais de admissibilidade e de apreciação das provas, sendo exaustivo na análise dos elementos probatórios que lhe foram apresentados.
Como resulta claramente da motivação da matéria de facto supra transcrita, o tribunal a quo deu, res-petivamente, como provados e não provados os factos, explicando, de forma razoável, lógica, racional e plausí-vel, porque assim o fez. No caso, explicou porque considerou os factos em apreço como provados e não prova-dos, respetivamente, e, designadamente, de que forma valorou a prova, não se descortinando a existência de qualquer interpretação ilegal, designadamente, qualquer interpretação inconstitucional do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, que impusesse a este Tribunal apreciar.
O Tribunal a quo deixou claro que a decisão sobre a matéria de facto, designadamente nos pontos impugnados pelo recorrente, assentou na ponderação dos elementos de prova que, à luz das regras da experiência comum, designadamente nas provas documentais, testemunhais, bem como em presunções naturais6, as quais elencou e analisou e do mesmo modo procedeu relativamente aos factos não provados.
Impõe-se, pois, concluir que a decisão recorrida não se encontra ferida de qualquer erro de julgamento, nos termos do art. 412.º, n.º 3 do CPP, não tendo sequer incorrido em qualquer um dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma legal (que, como se sabe, são de conhecimento oficioso), não se descortinando, na decisão recorrida, qualquer erro de apreciação ou de raciocínio, qualquer asserção contrária às regras da experiência comum ou qualquer juízo ilógico, arbitrário ou contraditório.»
3.3.2. Emerge, por sua vez, do acórdão fundamento que:
- A arguida AA, condenada na 1.ª instância pela prática de um crime de maus-tratos previsto e punido pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra e impugnou a matéria de facto dada como provada, concluindo que:
«1. Salvo erro e o devido respeito, a sentença recorrida enferma de erro de julgamento, porquanto fez errada apreciação da prova efectivamente produzida e errada interpretação e aplicação das normas de direito substantivo.
(…)
5. De acordo com a prova efectivamente produzida, os factos dados como provados em 8), 9), 10), 11), 12), 14), 15), 16), 17), 18), 19), 20) devem ser dados como não provados.
6. Pois, por um lado, a arguida negou a prática de tais factos.
(…)
9. A única testemunha que diz que viu a arguida AA dar beliscões e apertar as orelhas e o nariz de (...) foi a testemunha BB.
10. (…) os factos imputados à arguida e pelos quais foi condenada, não correspondem à verdade.
11. Nenhuma outra testemunha ouvida em tribunal declarou que tenha visto a arguida a dar beliscões ou apertar as orelhas, nariz, braços ou pernas (…)
(…)
78. (…) os factos dados como provados em 13), 14), 15), 16), 17), 18), 19; 20) dos factos provados, deveriam ter sido dados como não provados, atendendo quer à prova efectivamente produzida, quer atendendo ao princípio in dubio pro reo»
- O Tribunal da Relação de Coimbra julgou o recurso improcedente com os seguintes fundamentos:
«Uma vez que os recursos visam a correcção de erros cometidos nas decisões judiciais, a alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, determina que a impugnação da matéria de facto se faça através da especificação das provas concretas que imponham decisão diversa da recorrida, ou seja, determina que o recorrente indique as provas que não foram apreciadas ou foram mal apreciadas pelo tribunal a quo e que no seu entendimento imponham uma decisão distinta da proferida.
Note-se que a lei refere provas que imponham e não provas que permitam decisão diferente da recorrida, o que quer dizer que nos "casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção" (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Fevereiro de 2005, in www.dgsi.pt).
Ou como se diz no acórdão da Relação de Évora de 5 de Junho de 2018, "para que possa operar-se a modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso não basta que o recorrente pretenda fazer uma revisão da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõem uma outra convicção".
Por outro lado, determina o artigo 127.º do Código de Processo Penal, que "salvo quando a lei dispuser de forma diferente, a prova é apreciada segunda as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".
No caso dos autos estamos plenamente no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, o qual, relativamente à prova referenciada pelo recorrente, vale sem quaisquer limitações.
Este princípio impõe como único limite à discricionariedade do julgador, as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. A livre apreciação da prova é ainda indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, págs. 566, "a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal". Temos assim que o que o recorrente pode pedir ao tribunal superior, não é um segundo julgamento, mas sim o exame da legalidade da decisão sobre a matéria de facto. Por isso, e como acima já se deixou dito, o recorrente tem de apontar o defeito da mesma e apresentar a prova que demonstra o erro que invoca. No entanto, o reexame pelo tribunal "ad quem" tem que ter em consideração que foi a 1.ª instância viu e ouviu o arguido e as testemunhas, que apreciou os seus gestos, as suas hesitações, a sua espontaneidade ou a falta dela, em suma, os seus comportamentos não verbais. Mais: foi a 1.ª instância (juiz, procurador e advogados) que formulou as perguntas que entendeu pertinentes e que encaminhou o interrogatório e/ou a inquirição da forma que considerou ser a mais conveniente, tudo faculdades a que o tribunal da relação não pode lançar mão, o que impõe severas limitações à reapreciação da prova. Parafraseando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Julho de 2003, diremos que sem outros instrumentos que não sejam as gravações da prova produzida em audiência, não se configura fácil formar uma convicção diferente e mais alicerçada do que aquela que é fornecida pela imediação de um julgamento oral, onde, para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam. Sobrepor um juízo distanciado desta proximidade a um juízo colhido directamente e ao vivo apenas poderá ocorrer quando for inequívoco o erro do tribunal "a quo", pois caso contrário, poder-se-ia estar a comprometer a pureza do princípio e abalar as regras de um julgamento sereno e fundamentado, ou como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Julho de 2020, relatado pelo Sr. Conselheiro Jorge Dias, "o tribunal da Relação pode alterar a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto, mas só quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente se os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, impuserem uma conclusão diferente." Por isso, tem este tribunal "ad quem" de se ater aos elementos que lhe são trazidos pelo recorrente para concluir pelo cometimento de qualquer ilegalidade na decisão recorrida, porque só poderá ser alterado o ali decidido se, como se explicou, a prova indicada impuser decisão diversa da proferida, sendo certo que … é ao tribunal "ad quem" que cabe percepcionar se, na sua íntima sensibilidade, as provas impunham tal decisão diversa ou se conduziriam uma dúvida insanável a ser resolvida com a convocação do princípio "in dubio pro reo". No caso em apreço não é detectável qualquer erro do tribunal "a quo" na apreciação da prova e estamos claramente perante uma convicção própria do arguido, carregada de subjectividade. … ao longo da fundamentação da matéria de facto, o tribunal "a quo" vai demonstrando a existência inúmeras incongruências, quer dentro de cada depoimento, quer entre depoimentos, explica a sua detecção com grande pormenor socorrendo-se das mais elementares regras da experiência comum e aponta a insustentabilidade de algumas das afirmações da arguida e das testemunhas que indica, bem como a memória selectiva de algumas destas, para concluir que após a produção e apreciação exaustiva de todos os meios de prova que teve à disposição, os factos ocorreram como ficaram descritos na matéria de facto dada como provada. (…) Em suma, a recorrente não apontou e muito menos demonstrou o erro do tribunal a quo, ou seja, incumpriu em absoluto o segmento da alínea b), do n.º 3, do art.º 412.º que determina que as provas só podem ser consideradas se alicerçarem e impuserem decisão diversa da recorrida. Nesta conformidade, há que concluir que não merece qualquer censura a factualidade dada por não provada na sentença, pelo que se considera a mesma definitivamente a fixada»
3.4. Comparando os dois acórdãos facilmente se constata que inexiste qualquer oposição de julgados.
Em ambos os arguidos foram condenados na 1.ª instância e impugnaram a matéria de facto à sombra do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e em ambos o Tribunal da Relação julgou os recursos improcedentes por entender que as provas indicadas não impunham convicção diferente da alcançada pelo tribunal a quo.
Não houve a menor divergência interpretativa do artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal. Os dois acórdãos coincidem no entendimento de que o recorrente deve demonstrar que as provas que invoca conduzem inevitavelmente à solução que sustenta não lhe bastando opor a sua convicção à do tribunal e de que a reavaliação da matéria de facto pelo tribunal ad quem está sujeita a limitações decorrentes da ausência da oralidade e da imediação no julgamento do recurso.
Isso resulta muito claro dos seguintes trechos:
Do acórdão recorrido
«a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que se debruçando sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, (…) sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do nº 3, do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal] [sublinhado nosso].
Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.»
«Importa, portanto, não só proceder à individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova susceptível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorrectamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do CPP, a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida –, a demonstração desta imposição compete também ao recorrente».
«não basta afirmar sumariamente que A ou B disse isto ou aquilo, que não corresponde ao que foi dado como provado; necessário se mostra que o recorrente, com base nesses elementos probatórios, os discuta face aos restantes e demonstre que o raciocínio lógico e conviccional do tribunal a quo se mostra sem suporte, na análise global a realizar da prova, enunciando concretamente as razões para tal»
«Tendo em conta a utilização do verbo impor (cfr. art.º 412.º, n.º 2, al. b), do CPP), não basta estar demonstrada a mera possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal, o que, aliás, é comum verificar-se, sendo necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo tribunal recorrido».
«a censura quanto à forma como ocorreu a convicção do tribunal não pode assentar, simplisticamente, no ataque da fase final de tal convicção, antes havendo que residir na violação de passos para a formação da mesma, sob pena de inadequada interpretação do disposto naquele artigo 127.º do Código de Processo Penal, não obstante a liberdade de apreciação esteja limitada por critérios de legalidade, da lógica, da experiência, dos conhecimentos científicos e, assim, configurando uma liberdade de acordo com um dever».
«“sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”
Do acórdão fundamento
«a lei refere provas que imponham e não provas que permitam decisão diferente da recorrida, o que quer dizer que nos "casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção"»
«"para que possa operar-se a modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso não basta que o recorrente pretenda fazer uma "revisão" da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção "era possível", sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõem uma outra convicção"».
«A livre apreciação da prova é ainda indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis (…), "a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal". «o reexame pelo tribunal "ad quem" tem que ter em consideração que foi a 1.ª instância viu e ouviu o arguido e as testemunhas, que apreciou os seus gestos, as suas hesitações, a sua espontaneidade ou a falta dela, em suma, os seus comportamentos não verbais. Mais: foi a 1.ª instância (juiz, procurador e advogados) que formulou as perguntas que entendeu pertinentes e que encaminhou o interrogatório e/ou a inquirição da forma que considerou ser a mais conveniente, tudo faculdades a que o tribunal da relação não pode lançar mão, o que impõe severas limitações à reapreciação da prova» «sem outros instrumentos que não sejam as gravações da prova produzida em audiência, não se configura fácil formar uma convicção diferente e mais alicerçada do que aquela que é fornecida pela imediação de um julgamento oral, onde, para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam. Sobrepor um juízo distanciado desta proximidade a um juízo colhido directamente e ao vivo apenas poderá ocorrer quando for inequívoco o erro do tribunal "a quo"» «"o tribunal da Relação pode alterar a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto, mas só quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente se os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, impuserem uma conclusão diferente"»
Em suma, as decisões em confronto, assentando em pressupostos factuais equivalentes, apresentam total consonância quanto à interpretação e aplicação da norma do artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal (ou de qualquer outra). Por manifesta falha do requisito material da oposição de julgados o recurso deve, por isso, ser rejeitado (artigo 441.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código de Processo Penal).
6. Não foi apresentada qualquer resposta ao Parecer do Digno Mº Pº.
7. Efetuado o exame preliminar, o processo foi aos vistos e remetido à conferência, nos termos dos nºs 3 e 4 do artigo 440º do Código de Processo Penal, cumprindo agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao que se pensa, assume-se como uma espécie de recurso normativo, por contraposição com o denominado recurso hierárquico, onde se visa a determinação do sentido de uma norma, com força quase obrigatória, geral e abstrata, em benefício dos valores da certeza e da segurança jurídica, unificando, por essa forma, a interpretação e o sentido de um preceito legal ou dimensão normativa que os tribunais de recurso consideravam de modo divergente.
Nesse desiderato, este meio reativo, envergando a dimensão de anulação do caso julgado, contrariamente aos recursos ordinários que se destinam a impedir a formação do trânsito das decisões3, é um recurso excecional, com tramitação especial e autónoma, tendo como objetivo primordial a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando o conflito / contraponto, originado por duas decisões em oposição respeitantes à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação4.
Com efeito, (…) (a) uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito5.
A sua disciplina decorre da normação inserta nos artigos 437º e seguintes do CPPenal, sendo que num primeiro momento se impõe a verificação das exigências expressas nos artigos 437º6 e 438º7 do referido compêndio legal.
E, seguindo os ditos normativos, tem sido entendimento deste STJ que a interposição do recurso para fixação de jurisprudência, depende da verificação de pressupostos formais e materiais.
No que concerne aos primeiros, vislumbram-se: i. a legitimidade do recorrente (sendo esta restrita ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis) e interesse em agir, no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (já que tal recurso é obrigatório para o Ministério Público); ii. a identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, com justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito; iii. o trânsito em julgado de ambas as decisões e iv. a tempestividade (a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito da decisão proferida em último lugar).
Por seu turno, emergem como exigências de ordem material / substancial: i. a existência de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre dois acórdãos das Relações, ou entre um acórdão da Relação e um do Supremo Tribunal de Justiça; ii. a verificação de identidade de legislação a coberto da qual foram proferidas as decisões; iii. A oposição referente à própria decisão e não aos fundamentos; iv. as decisões em oposição serem expressas e v. a identidade de situações de facto.
Cotejando estas premissas, olhe-se, então, ao caso dos autos.
*
Da verificação dos pressupostos formais no caso concreto
O Recorrente tem legitimidade e interesse em agir – foi condenado no processo 324/17.8IDSTB pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 103º, nº1, alínea a) e 104º, nº 2, alíneas a) e b) do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei nº 15/2001, de 5 de junho), na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos sob condição do pagamento ao Estado, no mesmo período, da quantia de dois mil euros - tal como transparece do disposto no artigo 437º, nº 5 do CPPenal, estando assim verificada esta exigência de forma.
Nos termos do fixado no artigo 438º, nº 1, do diploma que se vem citando, este recurso deve ser interposto no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado do Acórdão recorrido, sendo que o aresto em sindicância foi proferido em 8 de outubro de 2024, transitou em julgado a 24 de outubro de 2024, tendo sido o presente recurso interposto em 28 de novembro de 2024.
Uma vez que o Recorrente efetuou o pagamento da multa devida pela prática do ato no terceiro dia útil após o termo do prazo regular, a apresentação recursiva na data atrás referida, mostra-se tempestiva.
De seu lado, e no que tange ao Acórdão fundamento, o que se conhece e se tem como garantido é que o mesmo foi proferido em 22 de fevereiro de 2023, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do Processo nº 446/19.0T9CTB.C1 e se encontra publicado8, desconhecendo-se a data do seu trânsito, sendo claro que o Recorrente nunca logrou juntar certidão do mesmo, falha esta que, desde logo, pode dificultar o sucesso do pretendido.
Face ao que é trazido e em termos imediatos, pensa-se que preenchida está a exigência de invocação de um único acórdão fundamento.
Está em causa, no entender do Recorrente, a contraditoriedade / oposição de dois Acórdãos de Tribunais Superiores – Tribunal da Relação de Lisboa (decisão recorrida) e Tribunal da Relação de Coimbra (decisão fundamento) e, nessa medida, considerando a contextualização apresentada no articulado recursório, em primeira análise, ressalvando o que atrás se disse sobre a certidão e certificação do trânsito em julgado do Acórdão fundamento, parece operar a condição do trânsito em julgado de dois Acórdãos contraditórios.
O Recorrente enunciando que há oposição entre o decidido nos dois pronunciamentos, na concretização do que invoca como idênticas situações de facto e na comparação das opostas decisões de direito – apenas se estribando nos sumários dos mesmos publicados em www.fgdsi.pt -, tudo resume considerando que do Acórdão recorrido (…) depreende-se (…) que existe a obrigatoriedade de, no recurso que impugne a matéria de facto, “atacar” a motivação do julgador do tribunal de 1.ª instância (…), ao passo que no Acórdão fundamento se considerou (…) “poder” do recorrente à invocação e análise das provas que podem, na ótica do recorrente conferir uma outra solução de facto e consequentemente de direito.
Ante este invocativo, que se apresenta algo confuso, despontam, igualmente, dificuldades quanto à possibilidade de se afirmar limpidamente, a verificação, in casu, do pressuposto da justificação da oposição.
Com efeito, não se descortina, como e em que medida, estando em causa a impugnação da matéria de facto, ser obrigatório questionar a motivação do julgador em primeira instância, é contrário / oposto a caber ao recorrente invocar e analisar as provas que no seu entendimento conduzem a uma outra solução de facto, e sequentemente de direito.
Em último, diga-se que ante estas vicissitudes de pouca clareza quanto à efetiva questão que se pretende colocar, suscitam-se, também, algumas reservas quanto a se poder concluir, com segurança, que não se conhece jurisprudência fixada pelo STJ quanto ao mote que vem trazido pelo Recorrente.
Por força desta enunciação, ao que se crê, não se pode concluir com mediana certeza estarem preenchidas todas as premissas formais de que depende a admissibilidade do recurso ordinário para fixação de jurisprudência.
Da verificação dos pressupostos materiais / substanciais no caso sub judice
Desde logo, reclama-se, como primeira exigência, o retrato de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre um acórdão da Relação que não admite recurso ordinário e que não tenha decidido contra jurisprudência fixada e outro anterior de tribunal da mesma hierarquia ou do Supremo Tribunal de Justiça.
Olhando à situação que se apresenta, parece cristalino que se está ante dois Acórdãos tirados por Tribunais Superiores – Tribunal da Relação de Lisboa e Tribunal da Relação de Coimbra – o primeiro em 2024 e o segundo em 2023.
Todavia, e visitando o instrumento recursivo do Recorrente, onde o mesmo se limita a reproduzir os sumários dos arestos em causa constantes da publicação em www.dgsi.pt, sem mais, e face à pouca clareza, já sublinhada, do que conclui, é completamente impossível aqui dizer que o Recorrente, no seu articulado recursivo, descreveu o que considera como a oposição existente entre os dois decididos e delimitou a visada uniformização.
Acresce que sendo exigível a verificação de identidade de legislação a coberto da qual foram proferidas as decisões em confronto, o Recorrente no seu articulado recursivo, não chega a referir que preceito ou preceitos legais estão em causa, para além da mera citação do artigo 412º, nº 2, alínea b) do CPPenal que consta do sumário do Acórdão recorrido.
Todavia, visitando os Acórdãos alegadamente em dissídio pode extrair-se que os mesmos foram proferidos no âmbito da mesma legislação, ou seja, durante o intervalo de tempo da sua prolação, cerca de um ano, não sobreveio qualquer modificação / alteração legislativa que interferisse, direta ou indiretamente, no que tange à fórmula legal constante do artigo 412º do CPPenal.
Importa, então, prosseguir e verificar a existência ou não do terceiro pressuposto adiantado - oposição referente à própria decisão e não aos fundamentos -, ou seja, se ante todos os elementos fornecidos pelos autos, transluz o desenho de asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos, consagrando soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, as quais ditaram soluções opostas na interpretação e aplicação das mesmas normas perante factos de contornos idênticos9.
Ora, aqui, e tal como detalhadamente o Digno Mº Pº junto deste Alto Tribunal o refere, o que inteiramente se subscreve, sucumbe rotundamente esta pretensão reativa.
Como se adiantou, o Recorrente sem circunscrever de modo entendível a essência do presente dissidio – limita-se a transcrever os sumários dos arestos supostamente discordantes - vem afirmar que o Acórdão recorrido proferido nos autos de que este recurso é apenso e o Acórdão fundamento, se reportam à mesma questão de direito pois (…) depreende-se do aresto proferido nos presentes autos que existe a obrigatoriedade de, no recurso que impugne a matéria de facto, “atacar” a motivação do julgador do tribunal de 1.ª instância ao invés do que se depreende do aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 446/19.0T9CTB.C1 em que se limita o “poder” do recorrente à invocação e análise das provas que podem, na ótica do recorrente conferir uma outra solução de facto e consequentemente de direito.
Um debruce, anda que ligeiro, sobre ambas as realidades retratadas em cada um dos arestos em enfrentamento, ao que se pensa, em pronto passo, conduzem a conclusão diversa da pugnada pelo Recorrente.
No Acórdão recorrido, e na sequência de impugnação da matéria de facto levada a cabo no recurso interposto para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa – (…) a sentença recorrida enferma de erro de julgamento, porquanto fez errada apreciação da prova produzida e errada interpretação e aplicação das normas de direito substantivo (…) – e escalpelizando todos os momentos probatórios invocados pelo ali recorrente, foi entendido e defendido que (…) Tendo em conta a utilização do verbo impor (cfr. art.º 412.º, n.º 2, al. b), do CPP)10, não basta estar demonstrada a mera possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal (…) sendo necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo tribunal recorrido
De seu lado, o Acórdão fundamento, pronunciando-se, igualmente, sobre impugnação da matéria de facto dada como assente na 1ª instância, o que vem afirmar com imediata clarividência é (…) para que possa operar-se a modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso não basta que o recorrente pretenda fazer uma "revisão" da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção "era possível", sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõem uma outra convicção (…).
Em presença destas singelas notas, é por demais seguro, tal como lapidarmente o denuncia o Digno Mº Pº junto deste STJ, (…) as decisões em confronto, assentando em pressupostos factuais equivalentes, apresentam total consonância quanto à interpretação e aplicação da norma do artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal (ou de qualquer outra), não se vislumbrando assim qualquer nota / sinal de oposição entre as mesmas – talvez por isso o Recorrente omitiu por completo explicar / elucidar / descrever onde e como estava desenhada a dita oposição decisória.
Faceando todo este contexto, falhando os diversos pressupostos em ponderação e nos termos supra elencados, resta concluir que não se mostram verificados / clarificados os necessários requisitos para declarar a oposição de julgados, o que conduz à rejeição do presente recurso, nos termos do que plasma o artigo 441º, nº1 do CPPenal.
III – Dispositivo
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 3ª Secção (criminal) do Supremo Tribunal de Justiça, 3.ª Secção, em rejeitar o recurso interposto pelo Digno Mº Pº, ao abrigo do estatuído no artigo 441º, nº 1 do CPPenal.
Custas a cargo do Recorrente, fixando-se a Taxa de Justiça em 4 (quatro) UC – artigos 448º, 513º, nº 1 e 8º, por referência à Tabela III Anexa, do RCP.
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Notifique.
D.N.
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O Acórdão foi processado em computador e elaborado e revisto integralmente pelo Relator (artigo 94º, nº 2, do CPPenal), sendo assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.
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Lisboa, 14 de maio de 2025
Carlos de Campos Lobo (Relator)
Maria Margarida Ramos de Almeida (1ª Adjunta)
José Vaz Carreto (2º Adjunto)
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Nos termos do disposto no artigo 380º, nº 1, alínea b) do CPPenal, procede-se à retificação do Acórdão proferido ontem por este STJ Referência Citius …62.
Onde se lê:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 3ª Secção (criminal) do Supremo Tribunal de Justiça, 3.ª Secção, em rejeitar o recurso interposto pelo Digno Mº Pº, ao abrigo do estatuído no artigo 441º, nº 1 do CPPenal,
DEVE PASSAR A LER-SE:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 3ª Secção (criminal) do Supremo Tribunal de Justiça, 3.ª Secção, em rejeitar o recurso interposto pelo arguido AA, ao abrigo do estatuído no artigo 441º, nº 1 do CPPenal.
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Notifique.
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STJ, 15 de maio de 2025
Carlos de Campos Lobo (Relator)
Maria Margarida Ramos de Almeida (1ª Adjunta)
José Vaz Carreto (2º Adjunto)
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1. Referência Citius ......22.
2. O Requerente, pese embora para tal notificado, não juntou certidão do aresto que aponta, nem logrou indicar a data do seu trânsito.
3. Neste sentido, LEAL-HENRIQUES, Manuel, Anotação e Comentário ao Código de Processo Penal de Macau, Volume III (Artigos 362º a 499º), 2014, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, p. 368 – (…) os recursos ordinários intentam impedir a formação do caso julgado, enquanto que os recursos extraordinários projetam anular o caso julgado.
4. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 16/03/2022, proferido no Processo nº 5784/18.7T9LSB.L1-A.S1- (…) O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem carácter normativo, visando uniformizar critérios interpretativos que garantam a unidade do ordenamento jurídico penal ou processual penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei -, de 30/06/2021, proferido no Processo nº 698/11.4TAFAR.E1-A.S1 - (…) O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, de carácter normativo, destina-se a fixar critérios interpretativos uniformes com a finalidade de garantir a unidade do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei. -, de 30/10/2019, proferido no Processo nº 2701/11.9T3SNT.L1-A.S1 – (…) O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência constitui uma espécie de recurso classificado como «recurso normativo», por contraposição com o denominado «recurso hierárquico»; no recurso normativo, o objecto é constituído pela determinação do sentido de uma «norma», com força quase obrigatória e, de qualquer modo, geral e abstracta, a benefício directo dos valores da certeza e da segurança jurídica, unificando a interpretação e o sentido de uma norma ou dimensão normativa que os tribunais de recurso consideravam de modo divergente (…) é um recurso excepcional, com tramitação especial e autónoma, tendo como objectivo primordial a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação (…), todos disponíveis em www.-dgsi.pt.
Ainda, GAMA, António, LATAS, António, CORREIA, João Conde, LOPES, José Mouraz, TRIUNFANTE, Luís Lemos, SILVA DIAS; Maria do Carmo, MESQUITA, Paulo Dá, ALBERGARIA, Pedro Soares de e MILHEIRO, Tiago Caiado, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V – artigos 399º a 524º, 2024, Almedina, p. 410 – (…) criou-se um mecanismo para superar divergência interpretativas dos Tribunais Superiores reveladas em acórdãos proferidos, relativamente a questão de direito idêntica, no domínio da mesma legislação (…) no caso de soluções opostas, que seja uniformizada a jurisprudência, fixando-se um sentido interpretativo geral e abstrato (…) assim conferindo previsibilidade futura (…).
5. Acórdão do STJ nº 5/2006 do STJ, de 20/04/2006, publicado no DR nº 109, I-A Série, de 6/06/2006.
6. Artigo 437.º
Fundamento do recurso
1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.
2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.
5 - O recurso previsto nos n.os 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.
7. Artigo 438.º
Interposição e efeito
1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.
3 - O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.
8. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/6366a0172deff73c802589710041c3c4?OpenDocument&Highlight=0,446%2F19.0T9CTB.C1.
10. Leia-se aqui artigo 412º, nº 3, alínea b) do CPPenal e não 412º, nº2, alínea b) com por lapso a decisão refere.