RECURSO PER SALTUM
HOMICÍDIO QUALIFICADO
PROFANAÇÃO DE CADÁVER
AGREGADO FAMILIAR
REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS
ILICITUDE
CULPA GRAVE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
CÚMULO JURÍDICO
Sumário


Sendo muito elevado o grau de ilicitude dos factos, sendo muito elevada a medida da culpa da arguida, e revelando a mesma traços de uma personalidade, ainda em formação, deficientemente estruturada, muito violenta, com dificuldade de controlo de emoções e impulsos e com baixa tolerância à frustração, o que confere relevo às exigências de prevenção especial, a aplicação da atenuação especial da pena prevista no art. 4º do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, em vez de estimular a sua ressocialização, pode levar a que a pena se mostre incapaz de a fazer interiorizar o desvalor da conduta praticada e deste modo, frustrar o fim por ela visado, pelo que, de tal atenuação não deve beneficiar.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., o Ministério Público requereu o julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, da arguida AA, com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, c), e) e j), do C. Penal, e de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo art. 254º, nº 1, a), do mesmo código.

Por acórdão de 19 de Novembro de 2024, foi a arguida condenada, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 72º, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, e), do C. Penal e 4º do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, na pena de 12 anos de prisão, pela prática de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelos arts. 72º, 73º e 254º, nº 1, a), do C. Penal e 4º do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, na pena de 9 meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 12 anos e 3 meses de prisão.

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Inconformado com a decisão, recorre o Digno Magistrado do Ministério Público para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido nos autos referidos em epígrafe, no qual, além do mais, o Tribunal recorrido decidiu julgar a acusação pública procedente e provada e, consequentemente, além do mais, condenar a arguida AA pela prática em autoria material e concurso efectivo de (1) um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 72.º, 73.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 al. e) do Código Penal (e aplicando regime especial para jovens, ao abrigo do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 401/82 de 23-09), na pena parcelar de 12 (doze) anos de prisão; (2) um crime de profanação de cadáver, previsto e punível pelo artigo 254.º, n.º 1 al. a) do Código Penal (aplicando regime especial para jovens, ao abrigo do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 401/82 de 23-09), na pena parcelar de 9 (nove) meses de prisão – e, em cúmulo jurídico, na pena única de 12 (doze) anos e 3 (três) meses de prisão.

2. Não pode o Ministério Público conformar-se com o decidido pelo Tribunal a quo no que respeita às consequências jurídicas dos crimes praticados pelo arguida – incidindo a nossa discordância, sobretudo, (a) na decisão de aplicar a atenuação especial, prevista no artigo 4.º do regime especial para jovens (com os consequentes reflexos nas molduras abstractas das penas correspondentes a cada um dos crimes pelos quais a arguida foi condenada); e, em segunda linha, (b) no abstracto cenário de se manter a decisão de aplicar o referido regime, também na dosimetria de cada uma das penas de prisão – parcelares e única – irrogadas à arguida (insuficientes e desadequadas às exigências de prevenção, geral e especial, que no caso se fazem sentir).

3. O instituto de atenuação de pena, previsto no n.º 4 do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23-09, corresponde a um dos “casos expressamente previstos na lei”, a que alude o n.º 1 do artigo 72.º do CP, sendo que a atenuação especial ao abrigo deste regime especial – sendo de conhecimento oficioso, um poder-dever vinculado que o julgador tem de usar quando verificados os seus pressupostos, fundamento a sua decisão – não é de aplicação necessária e obrigatória, nem opera de forma automática, sendo de apreciar casuisticamente, perante as circunstâncias concretas do caso e do arguido (v.g. personalidade do jovem, conduta anterior e posterior ao crime, motivos determinantes do crime, bem como condição pessoal, familiar e socioprofissional) .

4. A atenuação especial da pena, ao abrigo do artigo 4.º do Decreto-lei 401/82, só pode ocorrer quando (1) o tribunal tiver concluído que há razões sérias para crer que a atenuação especial trará vantagens para a reinserção social do jovem delinquente e, simultaneamente, (2) se considerar a atenuação compatível com as exigências de prevenção geral (exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e garantia de protecção de bens jurídicos).

5. Aplicando estes parâmetros legais e jurisprudenciais ao caso em apreço (e dando aqui por reproduzidos os factos consignados como provados no acórdão recorrido), é para nós evidente que não estão reunidos os pressupostos para aplicação, à arguida, da atenuação de pena, decorrente do regime especial para jovens:

a) desde logo, por sermos de parecer que os fundamentos invocados para afirmar tal crença (na existência de razões sérias para acreditar que haverá a referida vantagem, na reinserção social da arguida) não têm essa virtualidade ou se fundam em factos que não estão devidamente estabilizados em termos de perspectivas de futuro (v.g. ser arguida primária; a sua “jovem idade”; estar “estabilizada” e “afastada de ambiente familiar disfuncional em que vivia”, que não são mais do que uma decorrência da sua reclusão e acompanhamento psicológico; a “favorável interacção com as colegas no estabelecimento prisional” e “inexistência de sanções disciplinares” mais não são que do que o comportamento esperado a qualquer recluso; ou ainda “o facto de os familiares próximos a visitarem no EP”); e, depois, porque, ainda que tal crença pudesse ter fundamentos mais sólidos

b) um tal juízo sempre colidiria (pela imagem global e concretos contornos do caso em apreço) com as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e garantia de protecção de bens jurídicos; Isto porque a defesa da sociedade no seu conjunto não é compatível com a ideia de atenuar especialmente a pena de alguém que, apesar de jovem, matou a irmã com quem sempre viveu (facto provado a.16), que desempenhava um papel de supervisão parental (facto provado a.3 e a.33), na incapacidade do pai e ausência da mãe; o que fez nos moldes constantes dos factos provados, por pelo fútil motivo de uma discussão por causa de um telemóvel (facto provado a.7), desferindo-lhe 30 facadas no corpo (facto provado a.8); corpo esse que escondeu debaixo da cama do quarto durante 3 dias (facto provado a.10); quarto onde se manteve a dormir, com o cadáver da irmã sob a cama; que viria a enterrar em solo arenoso, depois de o arrastar pelo chão durante cerca de 300 metros (facto provado a.11); sendo que nunca pediu ajuda, nunca admitiu espontaneamente os factos; pelo contrário, logo no mesmo dia, apoderou-se do telemóvel da irmã (que desligou para não ser localizado) e inventou toda uma história (de que a irmã teria abandonado a casa, para ir ao encontro de um namorado em Lisboa - facto provado a.15), que manteve durante cerca de um mês (com o único propósito de esconder os seus crimes) até as provas biológicas existentes em casa (apesar de ter tentado limpar os vestígios, cfr. facto provado a. 12) revelarem o cenário que tentou esconder.

6. Não devia o Tribunal recorrido ter decidido aplicar a atenuação de pena decorrente do regime especial para jovens, por não ser possível compaginar a imagem global dos factos praticados pela arguida com a necessária culpa mitigada que deve ancorar a solução de atenuação, em geral, e, no que se reporta à situação dos jovens, com a existência de razões sérias que possam projectar um futuro conforme ao direito, com a completa subalternização da consideração daqueles parâmetros (cf., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18-02-2009, Proc. n.º 100/09 - 3.ª, e de 12-03-2009, Proc. n.º 3773/08 - 5.ª, acessível in www.dgsi.pt) – pelo que pugnamos pela revogação desta decisão do Tribunal Colectivo, a fim de as penas (parcelares e única) concretamente a aplicar à arguida sejam encontradas dentro das molduras abstractas, estatuídas para os crimes de homicídio qualificado (prisão de 12 a 25 anos) e de profanação de cadáver (in casu, após afastamento da pena de multa, de prisão de 1 mês a 2 anos).

7. Tal como o Tribunal recorrido, também cremos ser de classificar como elevadas as exigências de prevenção geral (face ao alarme social provocado e a necessidade de reafirmar a validade das normas violadas), tal como as necessidades de prevenção especial (atentas as circunstâncias do crime e a personalidade evidenciada no seu cometimento, melhor densificada nos relatórios periciais, psicológico e à personalidade); como muito elevada é a ilicitude; como grave a violação dos bens jurídicos protegidos (mormente a vida); como graves as consequências (com perda da vida da sua irmã) e culpa da arguida; sublinhando que a arguida agiu com dolo directo (a forma mais grave de culpa) e intenso; sem deixar de sublinhar o comportamento da arguida, posterior aos crimes (nunca admitindo espontaneamente os factos, antes alimentando uma história que inventou, para ocultar os crimes que praticou e cujos vestígios tentou fazer desaparecer); sopesando somente, contra tais circunstâncias, o facto de a arguida ter confessado os factos (após confrontada com prova biológica), não ter antecedentes criminais (o que não o impediu de praticar os graves crimes por que foi condenada), a par do contexto social, familiar e profissional do arguido também sopesados no acórdão recorrido.

8. Considerando todos os aspectos supra elencados, cremos que a moldura de prevenção se situa entre um patamar mínimo de 18 anos de prisão e um patamar máximo de 22 anos de prisão para o crime de homicídio qualificado, fixando-se, eventualmente, na medida óptima (porque adequada à culpa da arguida) de 20 anos de prisão; e, quando ao crime de profanação de cadáver, numa moldura de prevenção que se situará entre um patamar mínimo de 9 meses de prisão e um patamar máximo de 1 ano e 6 meses de prisão, fixando-se, eventualmente, na medida óptima (porque adequada à culpa da arguida) de 1 ano e 3 meses de prisão.

9. Nesta decorrência, estando-se perante concurso de infracções, impõe-se a determinação de uma pena única, de acordo com os critérios plasmados no artigo 77.º, do Código Penal, sendo que o cúmulo material, in casu – considerando a personalidade da arguida, evidenciada pelos crimes por si praticados e pelo comportamento posterior aos factos; bem como o elevado desvalor da sua acção (atenta a intensa culpa da arguida; o elevado desvalor das suas condutas; a elevada ilicitude dos factos; as prementes exigências de prevenção geral e especial, e os demais aspectos supra referenciados) – o Ministério Público é de parecer que será justo, proporcional e adequado aplicar à arguida, em cúmulo jurídico, uma pena única que seja encontrada na moldura de prevenção – que se situa entre um patamar mínimo de 20 anos de prisão e um patamar máximo de 21 anos e 3 meses de prisão – eventualmente, 20 anos e 10 meses de prisão.

10. Subsidiariamente, considerando abstractamente o cenário de improcedência da nossa respeitante à (não) aplicação do regime especial para jovens, para sublinhar o seguinte:

ainda que as penas (parcelares e única) a aplicar à arguida tivessem de ser encontradas dentro das molduras abstractas decorrentes da aplicação do referido regime, não podemos deixar de alegar a nossa discordância quanto à dosimetria de cada uma das penas de prisão – parcelares e única – irrogadas à arguida, porque cremos que se revelam insuficientes e desadequadas às exigências de prevenção, geral e especial, que no caso se fazem sentir.

11. No cenário previsto em 10., dando aqui por reproduzidos os fundamentos de facto e de direito, supra expendidos – e considerando tais molduras abstractas atenuadas (entre 2 anos, 4 meses e 4 dias e 16 anos e 8 meses para o crime de homicídio qualificado; e entre 1 mês e 1 ano e 4 meses de prisão para o crime de profanação de cadáver), cremos que a moldura de prevenção se situa entre um patamar mínimo de 15 anos de prisão e um patamar máximo de 16 anos de prisão para o crime de homicídio qualificado, fixando-se, eventualmente, na medida óptima (porque adequada à culpa da arguida) de 15 anos e 9 meses de prisão; e, quando ao crime de profanação de cadáver, numa moldura de prevenção que se situará entre um patamar mínimo de 9 meses de prisão e um patamar máximo de 1 ano e 4 meses de prisão, fixando-se, eventualmente, na medida óptima (porque adequada à culpa da arguida) de 1 ano de prisão – e, em cúmulo jurídico, numa pena única de 16 anos de prisão.

12. Foram violadas todas as normas legais supra citadas, e invocadas na motivação de recurso, mormente o artigo 4.º do Regime Especial para Jovens, bem como os artigos 40.º, 71.º, 72.º, 73.º, 77.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 al. e) e 254.º, n.º 1 al. a) do Código Penal.

V. Ex.as, porém, decidirão como for de JUSTIÇA.

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O recurso foi admitido por despacho de 27 de Dezembro de 2024.

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Não houve resposta ao recurso.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu douto parecer, acompanhando a argumentação da motivação do recurso do Ministério Público, realçando que, não só não se verifica a existência de sérias razões para crer que da atenuação especial da pena resultam vantagens para a reinserção social da arguida, como a aplicação, no caso, do regime penal para jovens atenta contra as exigências de prevenção geral, de protecção dos bens jurídicos e da validade das normas, que não podem ser ignoradas, daqui decorrendo a impossibilidade da manutenção das penas, parcelares e única, fixadas pela 1ª instância, que devem ser agravadas, sendo o crime de homicídio qualificado punido com a pena de 20 anos de prisão, sendo o crime de profanação de cadáver punido com a pena de 1 ano e 3 meses de prisão, e sendo a pena única fixada em 20 anos e 10 meses de prisão, e concluiu pela procedência do recurso.

A arguida respondeu ao parecer, alegando não assistir razão ao recorrente pois o acórdão recorrido fez acertada qualificação jurídica dos factos provados e encontrou a medida da pena adequada à realidade que aqueles demonstram, pelo que deve ser mantido, pois nele não se detecta vício relevante ou erro jurídico que cumpra reparar, devendo o recurso ser considerado manifestamente improcedente, sendo certo que os factos provados evidenciam o abandono das instituições e do Estado em proteger as crianças e jovens em perigo, e a triste realidade em que vivia, numa casa que partilhava com um pai alcoólico, com a irmã e com cães, sem regras de higiene, sem água, com € 20 por mês e sem que o pai lhe permitisse fazer as refeições em casa, sendo a escola o local onde se sentia segura, mas onde era posta de lado pelo cheiro e falta de higiene, e concluiu pelo não provimento do recurso.

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Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência.

Cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Factos provados

A matéria de facto provada proveniente da 1ª instância é a seguinte:

“(…).

a.1) A arguida AA, nascida em ........2007, tinha 16 anos de idade em agosto de 2023, era estudante do ensino secundário, e vivia com o pai, BB e sua irmã CC, de 19 anos, numa casa sita em ..., no Caminho da ...

a.2) O pai apresentava dependência de álcool, a irmã CC sofria de nanismo (media 1.22m de altura) e estava desempregada, e viviam todos da reforma do pai.

a.3) A habitação era constituída por um espaço único de sala e cozinha, uma casa de banho, e dois quartos, um ocupado pelo pai e o outro destinado a ambas as irmãs.

a.4) A CC assumia uma posição de supervisão sobre a AA.

a.5) Cerca de uma semana antes do dia 15/08/2023, por via da atuação da CC, o pai tirou o telemóvel à arguida AA.

a.6) No dia 15 de agosto de 2023, cerca das 14 horas, apenas se encontravam as duas irmãs na residência.

a.7) Então, iniciaram uma discussão motivada pelo facto de a AA ter ficado sem telemóvel.

a.8) No decurso da discussão, na sala da residência, a arguida AA, munindo-se de um objeto corto-perfurante (uma faca), desferiu 30 golpes profundos na zona torácica e abdominal da irmã CC, o que provocou que sangrasse abundantemente, atingindo o sangue as paredes e o chão da habitação em diversos locais.

a.8-a) Tais golpes provocaram na CC as seguintes lesões, examinadas e descritas no relatório de autópsia:

- No hábito externo: presença de cerca de trinta soluções de continuidade lineares com bordos regulares e coaptáveis, uma extremidade angulosa e outra arredondada, com comprimento máximo de 2,5cm e mínimo de 1cm cada, com orientações diversas (umas longitudinais, outras horizontais e outras oblíquas) dispersas pela face posterior da região dorso-lombar, ocupando uma área aproximadamente retangular com cerca de 25cm de comprimento por 23cm de largura;

- Exteriorização de ansas intestinais por uma das soluções de continuidade interessando a parede lateral esquerda do abdómen.

- No coração: solução de continuidade ao nível da parede lateral do ventrículo esquerdo, com bordos regulares, com cerca de 1cm de comprimento com os bordos coaptados, atingindo toda a camada muscular até ao ventrículo.

- Na pleura parietal e cavidade pleural esquerda: Soluções de continuidade baixas, em relação com as soluções de continuidade descritas no pulmão esquerdo a nível interno e com a parede posterior da região dorso-lombar no hábito externo.

- No pulmão esquerdo e pleura visceral: três soluções de continuidade com bordos aparentemente lineares e coaptáveis, com cerca de 1cm de comprimento cada.

- No diafragma: múltiplas soluções de continuidade (algumas transfixivas, outras superficiais) quer a nível da cúpula hepática quer a nível da região do pulmão esquerdo, as transfixivas encontram-se diretamente em relação com as soluções de continuidade descritas no pulmão esquerdo e no fígado.

-Nas paredes do Abdómen: múltiplas soluções de continuidade em relação com as descritas no hábito externo.

-No fígado: solução de continuidade na face posterior, com cerca de 1cm de comprimento e 0.5cm de profundidade.

-Nos intestinos: parte de ansas intestinais exteriorizadas por uma solução de continuidade na face lateral esquerda do abdómen.

- No rim esquerdo: presença de duas soluções de continuidade lineares e superficiais, com cerca de 1cm de comprimento cada.

- Vértebras e medula: presença de esquírolas ósseas a nível do corpo de L3, com visualização de feixes da medula cortados a nível de L3, de tonalidade acastanhados, baços.

a.9) Tais lesões tóraco-abdominais extensas, examinadas e descritas no relatório de autópsia, foram causa direta e necessária da morte da CC, que decorreu no seguimento das agressões descritas.

a.10) Com a CC morta no chão, a arguida arrastou o corpo desta para o seu quarto e escondeu-o debaixo da cama durante três dias.

a.11) Passados esses três dias, a arguida enrolou o corpo da irmã num lençol, fazendo uma trouxa, e transportou-o para um terreno arenoso sito nas traseiras da habitação, onde fez um buraco com o auxílio de uma pá, e o enterrou.

a.12) A arguida limpou os vestígios de sangue que ficaram nas paredes e no chão da casa.

a.13) Por indicação da arguida, o corpo da CC foi posteriormente encontrado pela Polícia Judiciária.

a.14) A arguida apoderou-se do telemóvel da irmã morta, colocou o seu cartão e passou-o a usar como sendo seu.

a.15) Quando a família deu conta do desaparecimento da CC, a arguida AA, com vista a afastar eventuais suspeitas sobre si, inventou que a irmã se teria ausentado de ... para ir ter com um antigo namorado.

a.16) A arguida e a CC são irmãs e sempre viveram juntas.

a.17) A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente.

a.18) Com a sua atuação, munindo-se de objeto corto-perfurante e desferindo com ele os 30 golpes no intento de tirar a vida à CC, o que conseguiu, a arguida agiu consciente das características do objeto.

a.19) A arguida sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

a.20) A arguida bem sabia, e não podia ignorar, que não lhe era permitido por lei enterrar o corpo da irmã no terreno nas traseiras da casa.

a.21) A arguida atuou com o intuito de ocultar o cadáver da irmã, o que conseguiu, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

a.22) A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo ilícitas as suas condutas.

[Mais se provou:]

a.23) A arguida não apresenta qualquer défice cognitivo, nem padece de qualquer doença psiquiátrica, de acordo com os critérios das classificações em uso.

a.24) A arguida apresenta uma organização de personalidade tipo borderline (estado limite), potenciada pelo contexto familiar onde cresceu, no qual vivenciou um conjunto de dinâmicas relacionais abusivas, negligentes e abandónicas, não tendo disposto de processos de vinculação organizadores nem suficientes para que pudesse desenvolver recursos e mecanismos para regular as suas emoções e os seus impulsos.

a.25) Tais fragilidades foram-se adensando com um percurso escolar, também traumático, e que não lhe permitiu compensar as suas carências afetivas de base, não tendo desenvolvido capacidade de contenção ou de gestão da sua frustração.

a.26) Devido à sua dependência emocional, o telemóvel tornou-se para a arguida uma forma de encontrar um meio de satisfação e de ligação.

a.27) A arguida apresenta dificuldades nos seus processos de socialização e de ressonância emocional, com dificuldades ao nível da elaboração das suas emoções e na gestão da sua frustração.

a.28) Correu termos no Juízo de Família e Menores das ... – Juiz ..., o processo de promoção e protecção nº 288/22.6..., relativo à arguida AA e à CC. Tal processo teve início com a sinalização da PSP de ... à CPCJ de ..., na sequência de uma agressão do progenitor à ora arguida AA, à porta da Escola Secundária de ..., que esta frequentava, no dia 11/05/2023.

a.29) Na sequência dessa ocorrência de 11/05/2023 foi chamada ao local a PSP, que elaborou o auto de notícia, o qual deu origem ao processo de inquérito nº 322/23.2... do DIAP de ..., que foi arquivado por despacho do MºPº datado de 19/07/2023.

[Mais se provou, ainda:]

a.30) À data da prática dos factos, a arguida residia com o progenitor, de 58 anos, reformado por invalidez, e a sua irmã, CC numa habitação arrendada pelo pai da arguida há vários anos, com fracas condições de higiene e conforto, cuja renda é de cerca de 255 € mensais.

a.31) A reforma do progenitor da arguida cifrava-se em cerca de 458 € mensais, a que acresciam abonos sociais relativos à arguida e à CC, de valor não apurado.

a.32) AA e a irmã eram visitadas pela progenitora, que residia autonomamente desde que abandonou o lar, há cerca de 6/7 anos.

a.33) A supervisão parental da arguida era sobretudo assumida por CC, dado que o pai se mostrava pouco capaz. Este sofre de problemas de abuso de bebidas alcoólicas e sequelas na locomoção e oralidade, decorrentes de Acidentes Vasculares Cerebrais.

a.34) AA integrou o sistema de educação infantil aos 3 anos de idade e progrediu sem qualquer retenção até ao 10º ano de escolaridade, que frequentava à data da prisão, na Escola Secundária de ..., no Curso Profissional Técnico de Ação Educativa.

a.35) No 1º ciclo, a arguida evidenciou problemas de aprendizagem, que se agravaram no 3º ciclo, tendo sido sinalizada à Equipa Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva. Foi depois orientada para um percurso escolar alternativo, onde se encontrava quando foi presa.

a.36) No âmbito da sinalização pelo contexto escolar, AA foi durante vários anos acompanhada em consulta de psicologia.

a.37) No que diz respeito aos relacionamentos sociais, a arguida não tem amigos, apenas colegas de escola e outros conhecidos da rede social Instagram, com quem estabelecia contactos por essa via. Todavia, nenhum deles eram seus confidentes nem conheciam aspetos da sua vida pessoal e familiar.

a.38) AA vivenciou situações de exclusão na escola, por parte dos colegas, em virtude do seu vestuário desatualizado, e de falta de cuidados de higiene.

a.39) Em casa, a arguida sentia-se solitária, dado os comportamentos de abuso de álcool do progenitor e a supervisão pouco compreensiva por parte da irmã CC e da mãe.

a.40) A arguida não revela preocupação com a atual situação jurídico-penal e aguarda uma eventual condenação. Compreende e aceite a necessidade da intervenção judicial.

a.41) No Estabelecimento Prisional, AA tem apresentado um comportamento ajustado, não registando qualquer infração disciplinar. Tem sido acompanhada pelos serviços clínicos do Estabelecimento Prisional, aparentando um quadro estabilizado.

a.42) No Estabelecimento Prisional, a arguida prosseguiu a escolaridade e sente-se gratificada com a dinâmica das aulas no Estabelecimento Prisional, com os professores, destacando o relacionamento com as outras reclusas, que identifica como uma ligação empática e acolhedora, ao contrário das anteriores colegas de escola.

a.43) Recebe visitas dos familiares (mãe, pai e tios maternos) o que é percecionado por todos como fator dinâmico de aceitação e de reconciliação.

a.44) Ao invés da vida pessoal e sociofamiliar em meio livre, a vida prisional é classificada por AA como positiva e gratificante, de tal modo que a mesma está mais extrovertida, faladora e confiante.

a.45) Nas suas condições de vida pessoal e social, identifica-se uma trajetória de cuidados parentais interrompidos e de negligência, a par de dinâmicas intrafamiliares conflituais e violentas, que terão prejudicado a construção do sentido de segurança básica por parte da arguida.

a.46) Do CRC da arguida nada consta.

(…).

B) Factos não provados

A matéria de facto não provada proveniente da 1ª instância, é a seguinte:

“(…).

i) A CC tentava reprimir os contatos sexuais e amorosos via internet da irmã;

ii) Cerca de uma semana antes, por via da atuação da CC, o pai tinha destruído o telemóvel da AA;

iii) A CC encontrava-se no interior do quarto a trocar mensagens de cariz sexual via WhatsApp com DD;

iv) A AA entrou no quarto e apercebeu-se do que está a fazer a irmã;

v) A faca tivesse uma lâmina de cerca 1,5cm de largura;

vi) A CC fugiu da irmã percorrendo a sala e o quarto do pai, com esta sempre no seu encalce;

vii) A arguida tenha transportado o cadáver da CC com a ajuda de um carrinho de mão;

viii) A arguida persistiu na intenção de tirar a vida à irmã e, não obstante a vítima tentar fugir, a arguida perseguiu-a pela casa;

ix) A arguida se tenha aproveitado do nanismo da irmã, que a tornava mais vulnerável;

x) A arguida vivia com € 20 por mês;

xi) A arguida tinha problemas de nutrição à data da detenção, somente fazendo refeições na escola;

xii) A arguida tenha agido para se defender de agressões com um pé-de-cabra por parte da sua irmã CC.

“(…).

C) Fundamentação quanto à aplicação do Regime Penal Especial para Jovens

“(…).

Da aplicação do regime especial para jovens delinquentes:

Os factos em apreço nos autos foram praticados em 15/08/2023 e 18/08/2023.

A arguida AA nasceu em .../.../2027, pelo que à data da prática dos factos tinha menos de 21 anos – concretamente, tinha apenas 16 anos de idade.

De acordo com o disposto no artigo 9.º do Código Penal «aos maiores de 16 anos e menores de 21 são aplicáveis normas fixadas em legislação especial».

Essas normas constam do Decreto-Lei n.º 401/82 de 23/09, que institui o regime aplicável em matéria penal aos jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos e que, além do mais, prevê no seu artigo 4.º, para os casos em que for aplicável pena de prisão, a atenuação especial da pena, nos termos regulados no Código Penal, quando o juiz «tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado».

Esta atenuação especial não se funda nem exige «uma diminuição acentuada da ilicitude e da culpa do agente», nem contra ela pode invocar-se «a gravidade do crime praticado e/ou a defesa da sociedade e/ou a prevenção da criminalidade» pois a lei não exige – para que possa operar – a «demonstração» (mas a simples «crença» de «sérias razões») de que «da atenuação resultem vantagens para a [sua] reinserção social».

De resto, a atenuação especial da pena a favor do jovem delinquente não pressupõe, em relação ao comportamento futuro, um «bom prognóstico», mas simplesmente um «sério» prognóstico de que dela possam resultar «vantagens» (quaisquer que elas sejam, pois que todas elas, poucas ou muitas, serão benvindas) para uma (melhor) reinserção social do jovem condenado ( neste sentido cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/2/2003, Proc. n.º 149/03 – 5ª secção, disponível em www.st.pt.).

A aplicação do regime penal relativo a jovens entre os 16 e os 21 anos – regime-regra de sancionamento penal aplicável a esta categoria etária – não constitui uma faculdade do juiz, mas antes um poder-dever vinculado que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos.

Na verdade, está hoje perfeitamente adquirida na jurisprudência a ideia de que o poder de atenuar especialmente a pena aos jovens delinquentes é um verdadeiro poder-dever, isto é, perante a idade entre 16 e 21 anos do arguido, o Tribunal não pode deixar de investigar se se verificam aquelas sérias razões e, se tal acontecer, não pode deixar de atenuar especialmente a pena.

A aplicação do regime, que consiste na atenuação especial da pena quando seja aplicável pena de prisão, depende, pois, do juízo que possa (deva) ser formulado relativamente às condições do jovem arguido, e que deve ser positivo quando as diversas varáveis ia considerar (idade, situação familiar, educacional, vivências pregressas, antecedentes de formação pessoal, traços essenciais de personalidade em formação) que permitam uma prognose favorável, ou melhor, que não impeçam uma prognose favorável ao arguido. Neste sentido cfr. Ac. do V.TRG de 03.04.2017, proc. 897/14.7JABRG.G, Desemb. Fernando Chaves, in www.dgsi.pt.

No caso dos autos, considerando que a arguida não tem averbada no seu certificado de registo criminal qualquer condenação, e considerando, sobretudo, que a mesma se encontra actualmente mais estabilizada, até emocionalmente, e afastada do ambiente familiar disfuncional em que vivia, consideram os juízes que integram este Tribunal Colectivo que, não obstante a gravidade da conduta da arguida, e o elevado grau de ilicitude e elevado grau de culpa, atenta a jovem idade e favoráveis circunstâncias pessoais da arguida (relatadas no relatório social e na avaliação e corroboradas pelas testemunhas de defesa, e que resultaram provadas – o seu empenho na sua formação escolar, a favorável interacção com as colegas no EP, a inexistência de sanções disciplinares; o facto de os familiares próximos a visitarem no EP ) , é lícita e viável a formulação de um juízo de prognose favorável à arguida, no sentido de existirem sérias razões para crer que da atenuação especial da pena de prisão a aplicar à arguida resultam vantagens para a reinserção social da mesma.

Termos em que acordam os juízes que integram este Tribunal Colectivo em aplicar à arguida AA o regime especial para jovens delinquentes, com a consequente atenuação especial da pena de prisão, por efeito do disposto no artº 4º do Dec. Lei n.º 401/82.

Consequentemente, por efeito do disposto nas disposições conjugadas dos artºs. 4º do Dec. Lei n.º 401/82, e 72º e 73º do Cod. Penal, as molduras penais abstractas dos respectivos tipos de ilícito passam a ser de:

- Quanto ao homicídio qualificado: de 2 anos 4 meses e 4 dias de prisão até 16 anos e 8 meses de prisão.

-Quanto ao crime de profanação de cadáver: de 1 mês de prisão até 1 ano e 4 meses de prisão.

(…)”.

D) Fundamentação quanto à determinação da medida concreta das penas

“(…).

Em sede de determinação da medida concreta da pena a aplicar, há que lançar mão dos critérios dosimétricos constantes do artº 71º do Cod. Penal, tendo como limite mínimo da moldura penal a aplicar as exigências de prevenção geral que o caso requer, como limite máximo a culpa da arguida, e encontrando-se a respectiva pena concreta a aplicar dentro da moldura penal assim estabelecida, de acordo com as exigências de prevenção especial.

A ilicitude da conduta é elevada, sendo igualmente elevada a censura social que os factos merecem, mas mais mitigada a perigosidade do agente voltar a delinquir, conforme resulta do teor do relatório de perícia psicológica realizada nos autos.

São ainda de ponderar as elevadas razões de prevenção geral, pois que os crimes de homicídio são dos crimes que causam mais alarme e intranquilidade no tecido social, com repulsa e indignação na comunidade.

Por outro lado, a primo-delinquência da arguida, e o facto de se encontrar emocionalmente mais estável, empenhada na sua formação escolar, e em estabelecer um projecto de vida conforme ao Direito, quando restituída à liberdade e, bem assim, a circunstância de a mesma reconhecer a necessidade da intervenção penal e consequente sujeição a pena de prisão, são circunstancialismos a ponderar em favor da arguida, permitindo a formulação de um juízo de prognose favorável à mesma, no que se reporta à prevenção de futuras delinquências.

Na aplicação da pena em concreto, o fim primordial reside na prevenção geral, ou seja, que a pena deve ser encontrada de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime, no caso concreto, indo de encontro às expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada.

- Neste sentido cfr. Ac. STJ de 13/07/2005, relatado por Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt, onde se refere: “a exigências de prevenção têm uma finalidade primordial, e a medida de prevenção deve ser essencialmente determinada pela projecção da ilicitude dos factos” ).

Reportando-nos em concreto ao caso em apreço nos autos, temos que:

- o grau de culpa manifestado pelas condutas da arguida é elevado;

- são elevadas as exigências de prevenção geral (face ao alarme social provocado);

- são elevadas as exigências de prevenção especial, não obstante a inexistência de antecedentes criminais da arguida, atento o contexto concreto em que ocorreram os factos;

- a ilicitude das condutas da arguida é elevada,

- a intensidade das condutas criminosas da arguida;

- a gravidade dos bens jurídicos violados;

- o dolo foi directo e intenso;

- as consequências das condutas da arguida foram de gravidade máxima;

- a primo-delinquência da arguida.

Tudo ponderado, afigura-se-nos adequado aos factos e à personalidade do agente a aplicação à arguida das seguintes penas parcelares:

- Quanto ao crime de homicídio qualificado, na forma consumada: na pena de 12 anos de prisão;

- Quanto ao crime de profanação de cadáver: na pena de 9 meses de prisão.

Operando o respectivo cúmulo jurídico das duas penas parcelares (artº 77º do CP), atentos os factos e a personalidade da arguida (quadro de personalidade “border line; todavia, actualmente com maior estabilidade emocional, o que leva a julgar que a tendência/grau de risco para repetir comportamentos desajustados e de perigosidade é consideravelmente mais reduzido ), condenam a arguida na pena única de 12 anos e 3 meses de prisão.

(…)”.

*

*

*

Âmbito do recurso

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.

Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.

Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo Digno Magistrado do Ministério Público recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são, por ordem de precedência lógica:

- A de não dever a arguida beneficiar do regime penal especial para jovens, previsto no Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, e suas consequências ao nível da medida concreta das penas, parcelares e única;

- [em caso de resposta negativa à questão anterior] A de estarem incorrectamente fixadas as penas parcelares e única [devendo ser agravadas, o homicídio qualificado para 15 anos e 9 meses de prisão, a profanação de cadáver para 1 ano de prisão, e a pena única para 16 anos de prisão].

*

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Da indevida aplicação do regime penal especial para jovens, previsto no Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro

1. Alega o Digno Magistrado do Ministério Público recorrente – conclusões 3 a 9 – que a atenuação especial da pena prevista no art. 4º do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, um dos casos expressamente previstos na lei, a que alude o nº 1 do art. 72º do C. Penal, sendo um poder-dever de conhecimento oficioso, não é, no entanto, de aplicação necessária e obrigatória, nem opera automaticamente, antes tendo que ser apreciada em função das concretas circunstâncias do caso, v.g., a personalidade do agente, a sua conduta anterior e posterior à prática do crime, os motivos determinantes da conduta e as suas condições pessoais, só a ela podendo haver lugar se o tribunal concluir que da sua aplicação resultarão vantagens para a reinserção social do jovem delinquente e a ela se não opuserem as exigências mínimas de prevenção geral, pelo que, não tendo os factores invocados no acórdão recorrido – ser a arguida primária, jovem, encontrar-se estabilizada, afastada do ambiente familiar disfuncional, estar acompanhada psicologicamente, ter bom relacionamento e comportamento na instituição prisional e ter vistas da família próxima – aptidão para suportar a crença nas vantagens para a ressocialização da arguida, e porque, em qualquer caso, este juízo favorável sempre colidiria com as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento e garantia da protecção dos bens jurídicos, face aos factos provados preenchedores do tipo dos crimes cometidos, não devendo, por isso, ter a arguida beneficiado da atenuação especial da pena decorrente da sua condição de jovem, antes se impondo a aplicação da pena de 20 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado, da pena de 1 ano e 3 meses de prisão pela prática do crime de profanação de cadáver, e da pena única de 20 anos e 10 meses de prisão.

Idêntica posição foi sufragada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, junto deste Supremo Tribunal, no parecer emitido.

Posição oposta foi defendida pela arguida, que não respondeu ao recurso, na resposta que apresentou ao parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, pugnando pela bondade das penas aplicadas no acórdão recorrido, realçando que os factos típicos provados são o reflexo do abandono a que foi votada pelas instituições estatais de apoio às crianças e jovens em perigo, e à situação de miséria social e humana em que vivia.

Vejamos, então, a quem assiste razão.

2. A imputabilidade, entendida como a capacidade de culpa jurídico-penal, só é atribuível a quem perfez já uma determinada idade e não enferma de anomalia psíquica grave, sendo possuidor do grau mínimo de capacidade de autodeterminação.

No ordenamento jurídico português, este grau mínimo, no que à idade respeita, e como se dispõe no art. 19º do C. Penal, está fixado nos 16 anos. Portanto, só os cidadãos maiores de 16 anos são penalmente imputáveis.

Para além disso, ciente de que os jovens no limiar da imputabilidade ainda não atingiram a plenitude psicológica, intelectual e ética, o legislador estabeleceu no art. 9º do C. Penal, com a epígrafe «Disposições especiais para jovens» que [a]os maiores de 16 anos e menores de 21 anos são aplicáveis normas fixadas em legislação especial, integrando-se nesta legislação especial o Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro que, prevendo o Regime penal especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, define, um regime específico, ao nível das consequências jurídicas do crime, que tem em conta as especiais necessidades de (re)socialização suscitadas pelos jovens delinquentes (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, pág. 600).

Pode ler-se no seu Preâmbulo:

«4. O princípio geral imanente em todo o texto legal é o da maior flexibilidade na aplicação das medidas de correcção que vem permitir que a um jovem imputável até ao 21 anos possa ser aplicada tão-só uma medida correctiva. Trata-se, em suma, de instituir um direito mais reeducador do que sancionador, sem esquecer que a reinserção social, para ser conseguida, não poderá descurar os interesses fundamentais da comunidade, e de exigir, sempre que a pena prevista seja a de prisão, que esta possa ser especialmente atenuada, nos termos gerais, se para tanto concorrerem sérias razões no sentido de que, assim, se se facilitará aquela reinserção.

(…).

7. As medidas propostas não afastam a aplicação – como ultima ratio – da pena de prisão aos imputáveis maiores de 16 anos, quando isso se torne necessário, para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade, e esse será o caso de a pena aplicada ser a de prisão superior a dois anos.».

Estabelece o art. 1º do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, com a epígrafe, «Âmbito de aplicação»:

1 – O presente diploma aplica-se a jovens que tenham cometido um facto qualificado como crime.

2 – É considerado jovem para efeitos deste diploma o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido 21 anos.

3 – O disposto no presente diploma não é aplicável a jovens penalmente inimputáveis em virtude de anomalia psíquica.

Por seu turno, dispõe o seu art. 4º, com a epígrafe, «Da atenuação especial relativa a jovens» [porventura, a norma mais importante de todo o regime]:

Se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73º e 74º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.

Note-se que a remissão para os arts. 73º e 74º do C. Penal, se refere à redacção originária deste código, devendo considerar-se feita para os arts. 72º e 73º do mesmo código, na redacção actual.

Tendo presente que o regime penal especial para jovens tem por fundamento a aceitação da especificidade da delinquência dos jovens adultos e seu reflexo na aplicação de penas de prisão a jovens condenados, e sendo esta a situação dos autos, onde a arguida, jovem de 16 anos na data dos factos [hoje, com 18 anos acabados de perfazer], praticou em autoria material e concurso efectivo, um crime de homicídio qualificado, sancionado pela 1ª instância com a pena especialmente atenuada, de 12 anos de prisão, e um crime de profanação de cadáver, sancionado pela mesma instância com a pena especialmente atenuada de 9 meses de prisão, tendo sido condenada na pena única de 12 anos e 3 meses de prisão, cumpre atentar nos pressupostos de que depende a aplicação do regime previsto no art. 4º do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro.

3. O primeiro pressuposto, previsto no art. 1º, nº 2 do referido diploma legal, consiste em o agente, à data da prática do crime, ter completado 16 anos e não ter ainda atingido os 21 anos.

Esta condição não suscita qualquer dificuldade de comprovação, por se tratar de um dado de facto objectivo, a idade de um cidadão.

O segundo pressuposto consiste na existência de razões sérias para o juiz acreditar que da atenuação especial da pena de prisão resultam vantagens para a reinserção social do jovem condenado. E é precisamente com a comprovação deste segundo pressuposto que surgem as primeiras dificuldades, a requererem algum esforço de explicação.

A existência de um regime penal especial para jovens não significa que o mesmo tenha de ser aplicado, sempre que o agente do crime é um jovem.

Significa apenas que o tribunal, perante um crime punível com prisão, cometido por um jovem com idade entre 16 e 21 anos, tem a obrigação de ponderar, à luz dos critérios enunciados, se deverá ou não atenuar especialmente a pena, tendo, evidentemente, de fundamentar a sua decisão (Maria da Conceição Ferreira da Cunha, As Reacções Criminais no Direito Português, 2ª edição, 2024, UCP Editora, pág. 420 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Setembro de 2022, processo nº 178/20.7PALGS.S1, in www.dgsi.pt).

O juízo de censura a exercer sobre um jovem que pratica um crime deve ser, em regra, menos exigente do que o que deve ser exercido sobre agente não jovem, do mesmo crime, em idênticas circunstâncias. Isto porque o jovem delinquente tem ainda a personalidade em formação e por isso, tendencialmente, mais impulsiva, irreflectida e susceptível da influência de terceiros, do que a personalidade plenamente formada de um delinquente adulto.

Por outro lado, a capacidade de um jovem delinquente se ressocializar é, em regra, superior à de um delinquente adulto, ideia que, aliás, ressuma da letra do art. 4º do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, quando estabelece como condição da atenuação especial nele prevista, que da sua aplicação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado, deste modo colocando o acento tónico na prevenção especial de ressocialização.

A aplicação da atenuação especial não é, pois, automática, devendo antes suportar-se numa menor censurabilidade determinada por uma menor maturidade, a ser comprovada em concreto, estando dependente de um juízo que tome em consideração a culpa menos grave do agente e/ou as exigências de prevenção (sobretudo de prevenção especial) como a lei pretende sublinhar no referido art. 4º, que no caso se façam sentir (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 600-601).

Atenta a letra do art. 4º do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, e sendo para nós inquestionável que o regime penal especial para jovens aí previsto deve aplicar-se sempre que se verifiquem os referidos pressupostos – agente com mais de 16 anos e sem ter completado 21 anos na data da prática dos factos e existência de sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a sua reinserção social – deve a atenuação especial da pena, em que se objectiva tal regime especial, ser decretada em decisão judicial, de cuja fundamentação conste a existência, para o juiz, de razões sérias para, tendo em conta as concretas circunstâncias do caso, a personalidade do agente e as perspectivas da sua evolução, acreditar que da atenuação especial da pena resultam vantagens para a ressocialização do jovem condenado, sem prejuízo de à aplicação da atenuação se oporem as exigências de prevenção geral, sob a forma de exigência mínima e irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Novembro de 2021, processo nº 147/18.7PALGS.S1, de 13 de Janeiro de 2021, processo nº 733/17.2JAPRT.G2.S1, de 27 de Maio de 2020, processo nº 55/19.4PDCSC.L1.S1 e de 18 de Junho de 2014, processo nº 578/12.6JABRG.G1.S1, in www.dgsi.pt).

Em suma, a atenuação especial da pena deve ser aplicada, sempre que ocorram razões sérias para crer que dela resultam vantagens para a ressocialização do jovem condenado, e não existam nem devam sobrepor-se relevantes razões de prevenção geral. Ou, dito de outro modo, a atenuação especial da pena será aplicada sempre que não existam circunstâncias especiais que o desaconselhem, por o jovem revelar uma personalidade de difícil conformação com a ressocialização, ou quando a essa aplicação se não oponham inalienáveis exigências de prevenção geral.

Nota Maria da Conceição Ferreira da Cunha, a propósito, que [o] que se releva é a relação entre prevenção especial, prevenção geral, e tutela dos bens jurídicos, na medida em que, para se alcançar a ressocialização não se poderão deixar de ter em atenção os interesses fundamentais da sociedade; bastará recordar que a ressocialização do agente consiste exactamente em tentar que este agente passe a respeitar os valores fundamentais da sociedade (op. cit., pág. 422).

4. Conforme dito já, a existência, ou não, de razões sérias para acreditar que da aplicação da atenuação especial resultam vantagens para a ressocialização do jovem condenado, resultará da análise conjunta do circunstancialismo de facto provado relativo à prática do crime, das condições pessoais do agente, do seu percurso de vida e da sua personalidade. Vejamos.

a. A arguida tinha 16 anos de idade na data da prática dos crimes que determinaram a sua condenação, estando por isso verificado o primeiro pressuposto da aplicação do regime especial previsto no Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro.

Quanto ao segundo pressuposto, argumentou a 1ª instância, na parte relevante:

“(…).

A arguida AA nasceu em .../.../2027, pelo que à data da prática dos factos tinha menos de 21 anos – concretamente, tinha apenas 16 anos de idade.

De acordo com o disposto no artigo 9.º do Código Penal «aos maiores de 16 anos e menores de 21 são aplicáveis normas fixadas em legislação especial».

Essas normas constam do Decreto-Lei n.º 401/82 de 23/09, que institui o regime aplicável em matéria penal aos jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos e que, além do mais, prevê no seu artigo 4.º, para os casos em que for aplicável pena de prisão, a atenuação especial da pena, nos termos regulados no Código Penal, quando o juiz «tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado».

Esta atenuação especial não se funda nem exige «uma diminuição acentuada da ilicitude e da culpa do agente», nem contra ela pode invocar-se «a gravidade do crime praticado e/ou a defesa da sociedade e/ou a prevenção da criminalidade» pois a lei não exige – para que possa operar – a «demonstração» (mas a simples «crença» de «sérias razões») de que «da atenuação resultem vantagens para a [sua] reinserção social».

De resto, a atenuação especial da pena a favor do jovem delinquente não pressupõe, em relação ao comportamento futuro, um «bom prognóstico», mas simplesmente um «sério» prognóstico de que dela possam resultar «vantagens» (quaisquer que elas sejam, pois que todas elas, poucas ou muitas, serão benvindas) para uma (melhor) reinserção social do jovem condenado (neste sentido cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/2/2003, Proc. n.º 149/03 – 5ª secção, disponível em www.st.pt.).

A aplicação do regime penal relativo a jovens entre os 16 e os 21 anos – regime-regra de sancionamento penal aplicável a esta categoria etária – não constitui uma faculdade do juiz, mas antes um poder-dever vinculado que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos.

Na verdade, está hoje perfeitamente adquirida na jurisprudência a ideia de que o poder de atenuar especialmente a pena aos jovens delinquentes é um verdadeiro poder-dever, isto é, perante a idade entre 16 e 21 anos do arguido, o Tribunal não pode deixar de investigar se se verificam aquelas sérias razões e, se tal acontecer, não pode deixar de atenuar especialmente a pena.

A aplicação do regime, que consiste na atenuação especial da pena quando seja aplicável pena de prisão, depende, pois, do juízo que possa (deva) ser formulado relativamente às condições do jovem arguido, e que deve ser positivo quando as diversas varáveis ia considerar (idade, situação familiar, educacional, vivências pregressas, antecedentes de formação pessoal, traços essenciais de personalidade em formação) que permitam uma prognose favorável, ou melhor, que não impeçam uma prognose favorável ao arguido. Neste sentido cfr. Ac. do V.TRG de 03.04.2017, proc. 897/14.7JABRG.G, Desemb. Fernando Chaves, in www.dgsi.pt.

No caso dos autos, considerando que a arguida não tem averbada no seu certificado de registo criminal qualquer condenação, e considerando, sobretudo, que a mesma se encontra actualmente mais estabilizada, até emocionalmente, e afastada do ambiente familiar disfuncional em que vivia, consideram os juízes que integram este Tribunal Colectivo que, não obstante a gravidade da conduta da arguida, e o elevado grau de ilicitude e elevado grau de culpa, atenta a jovem idade e favoráveis circunstâncias pessoais da arguida (relatadas no relatório social e na avaliação e corroboradas pelas testemunhas de defesa, e que resultaram provadas – o seu empenho na sua formação escolar, a favorável interacção com as colegas no EP, a inexistência de sanções disciplinares; o facto de os familiares próximos a visitarem no EP) , é lícita e viável a formulação de um juízo de prognose favorável à arguida, no sentido de existirem sérias razões para crer que da atenuação especial da pena de prisão a aplicar à arguida resultam vantagens para a reinserção social da mesma.

Termos em que acordam os juízes que integram este Tribunal Colectivo em aplicar à arguida AA o regime especial para jovens delinquentes, com a consequente atenuação especial da pena de prisão, por efeito do disposto no artº 4º do Dec. Lei n.º 401/82.

(…)”.

Pois bem.

Temos, em síntese, que num contexto familiar desestruturado e económica e socialmente mente desfavorecido – a arguida vivia com o pai, alcoólico e com sequelas de acidentes vasculares cerebrais ao nível dicção e locomoção, e com a irmã CC, de 19 anos, desempregada e sofrendo de nanismo, numa casa de dois quartos, casa de banho e espaço único funcionando como cozinha e sala, subsistindo economicamente o agregado com a reforma do progenitor de cerca de € 458, e sendo a supervisão parental da arguida assumida pela irmã –, alguns dias antes de 15 de Agosto de 2023, devido à referida supervisão exercida pela CC sobre a arguida, o pai de ambas privou esta última do uso do seu telemóvel.

No dia 15 de Agosto de 2023, encontrando-se as duas irmãs, sós, na residência da família, iniciaram uma discussão causada pelo facto de a arguida ter ficado privada do uso do telemóvel, no decurso da qual, a arguida empunhou uma faca e com ela desferiu trinta profundos golpes na CC, atingindo-a no tórax e no abdómen, causando-lhe as lesões descritas no ponto a.8-a) dos factos provados do acórdão recorrido, com destaque para solução de continuidade [ruptura de um tecido corporal portanto, golpe, ferida, fractura] no coração, três soluções de continuidade na pleura e pulmão esquerdos, solução de continuidade no fígado, duas soluções de continuidade no rim esquerdo, e esquírolas ósseas ao nível da vertebra L3 com corte dos feixes da medula, lesões torácico-abdominais que foram causa directa e necessária da sua morte.

Com a CC já morta, no chão, a arguida arrastou o seu cadáver para o quarto de ambas e colocou- debaixo da cama, e procedeu à limpeza dos vestígios de sangue nas paredes e no chão da residência.

A arguida colocou o seu cartão no telemóvel da CC e passou a usá-lo como se fosse seu.

No dia 18 de Agosto de 2023, depois de embrulhar o cadáver da CC num lençol, fazendo uma trouxa, levou-o para um terreno situado nas traseiras da residência familiar, cavou um buraco com uma pá e aí o sepultou.

Face à constatação do desaparecimento da CC, por familiares, a arguida, para evitar que sobre si recaíssem suspeitas, inventou que a irmã se havia ausentado para ..., para se encontrar com um antigo namorado.

Por outro lado, a arguida não apresenta défice cognitivo nem padece de doença psiquiátrica, mas apresenta uma personalidade borderline, potenciada pelo contexto familiar onde cresceu, sujeita a dinâmicas relacionais abusivas e de abandono, com carências afectivas e sem processos de vinculação para desenvolver recursos de controlo das emoções e impulsos, fragilidades que aumentaram com um percurso escolar igualmente traumático, apresentando dependência emocional e dificuldades de socialização e não tendo desenvolvido capacidades de gestão e contenção da frustração.

Acresce que a arguida integrou o sistema educativo aos 3 anos de idade e progrediu, sem retenção, até ao 10º ano de escolaridade, que frequentava quando foi detida, tendo apresentado dificuldades de aprendizagem no 1º ciclo, que se agudizaram no 3º ciclo, tendo, no contexto escolar, sido acompanhada vários anos em consulta de psicologia, e sido orientada para um percurso profissional [Curso Profissional Técnico de Acção Educativa], tendo vivido na escola situações de exclusão por parte dos colegas, devido à sua forma de vestir e falta de higiene, não tendo amigos mas apenas colegas e conhecidos das redes sociais.

Por fim, a arguida não revela preocupação com a sua actual situação, aceitando a necessidade de intervenção judicial e aguardando a condenação, tendo comportamento ajustado à instituição prisional e aí frequentando o ensino, com bom relacionamento com as outras reclusas, considerando a vida prisional que leva como positiva, e tem recebido visitas dos progenitores e de tios.

Aqui chegados.

Começamos por notar que a gravidade do ilícito típico praticado não pode, per se, fundamentar o afastamento da aplicação do regime penal especial para jovens, sob pena de o mesmo só poder ser aplicado à pequena e média criminalidade, quando é nas penas de prisão de maior dimensão que a atenuação especial pode alcançar melhores efeitos ressocializadores. Contudo, a gravidade do ilícito cometido não pode deixar de ser, conjuntamente com outros factores, ponderada, para se decidir pela aplicação, ou não, da atenuação especial.

A arguida, decorridos cerca de quatro meses sobre a aquisição da sua imputabilidade penal, cometeu um crime de homicídio qualificado e um crime de profanação de cadáver, tutelando o primeiro o bem vida humana, o mais importante dos direitos fundamentais, e o segundo o bem jurídico [imaterial] sentimento moral colectivo de respeito pelos defuntos, daqui resultando de forma inequívoca a enorme gravidade da conduta praticada.

Resulta da factualidade supra sintetizada que a arguida, num assomo de muito intensa e inabalável resolução homicida, desferiu trinta facadas no tórax e no abdómen da irmã CC, causando-lhe de forma inevitável, directa e necessariamente a morte, isto, no decurso de uma discussão por causa do uso de telemóvel. Para além da qualidade familiar da vítima, o modo de execução do crime, com o emprego de arma branca e extraordinário nível de violência, reflectido no número espantoso de golpes desferidos, revela uma evidente falta de capacidade da arguida para, no momento, controlar as suas emoções e impulsos, a que se seguiu um período de serena racionalidade, em que tudo fez para ocultar o homicídio praticado, num primeiro momento, escondendo o cadáver da irmã debaixo da cama do quarto de ambas e limpando os vestígios de sangue, seguramente, abundantes, que a sua conduta deixou na residência familiar, num segundo momento, e por razões que facilmente se intuem, enterrando o cadáver num terreno nas traseiras da residência, e num terceiro momento, inventando uma história para justificar o desaparecimento da vítima.

Tudo isto evidencia de forma flagrante, a absoluta indiferença da arguida perante os bens jurídicos por si violados.

É certo que a arguida não beneficiou de um ambiente familiar capaz de proporcionar, enquanto criança e, depois, adolescente, um desenvolvimento físico, psíquico, afectivo, emocional e ético, são, estruturado e equilibrado. E tão-pouco a escola logrou minorar este desequilíbrio, tendo, pelo contrário, contribuído para o isolamento social da arguida, que aí não fez amigos.

Por outro lado, não impressiona a circunstância de a arguida não ter antecedentes criminais, pois, conforme já dito, era criminalmente imputável há menos de quatro meses quando cometeu os crime que levaram à sua condenação nos autos.

Em meio prisional a arguida mantem comportamento adequado, estuda, convive com as demais reclusas, aceita a necessidade da intervenção judicial e considera a vida prisional positiva.

Numa outra perspectiva, podemos dizer que a arguida possui uma personalidade ainda em desenvolvimento, qualificada como borderline, cujo processo formativo tem sido deficiente, também devido às características do contexto familiar em que cresceu, e que se revela, pela globalidade da conduta praticada e do seu ainda curto percurso de vida, desvaliosa porque contrária ao direito, violenta, diríamos mesmo, muito violenta, com dificuldade no controlo de emoções e impulsos e com baixa tolerância à frustração.

Esta personalidade mostra-se, de alguma forma, adequada aos factos praticados, na medida em que, deles transparece a enorme indiferença da arguida para com os bens jurídicos violados.

Deste modo, sendo muito elevado o grau de ilicitude do facto, sendo muito elevada a medida da culpa da arguida e sendo relevantes as exigências de prevenção especial, o que implica a inevitável necessidade dum efeito intimidatório, dificilmente se pode compaginar tal circunstância com uma crença na natural vantagem para a ressocialização (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Junho de 2014, supra, identificado).

É que, perante os traços da revelada personalidade da arguida, a aplicação da atenuação especial, em vez de estimular a sua ressocialização, pode levar a que a pena especialmente atenuada se mostre incapaz de a fazer interiorizar o desvalor da conduta praticada e deste modo, frustrar o fim por ela visado, isto é, que venha a conduzir a sua vida futura de modo socialmente responsável.

Assim, pelas razões sobreditas, e contrariamente ao decidido pela 1ª instância, entendemos que não existem razões sérias para acreditar que da atenuação especial da pena resultam vantagens para a reinserção social da arguida, pelo que, não deve a mesma beneficiar do regime especial penal para jovens, previsto no art. 4º do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro.

Procede, pois, esta pretensão do Ministério Público.

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Das consequências da não aplicação da atenuação especial, na medida concreta das penas, parcelares e única

5. Face à decidida não aplicação da atenuação especial da pena aos crimes de homicídio qualificado e de profanação de cadáver, cumpre agora determinar a medida concreta das respectivas penas, com base na moldura penal abstracta de cada um.

O crime de homicídio qualificado é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos (art. 132º, nº 1, do C. Penal) e o crime de profanação de cadáver é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias (art. 246º, nº 1, do mesmo código).

A questão da escolha da pena, relativamente ao crime de profanação de cadáver, com opção pela pena de prisão, está definitivamente decidida, por não integrar o objecto do recurso.

Vejamos, então.

a. Resulta do disposto no art. 40º do C. Penal, com a epígrafe «Finalidades das penas e das medidas de segurança», que prevenção geral – protecção dos bens jurídicos – e prevenção especial – reintegração do agente na sociedade – constituem as finalidades da pena, através delas se reflectindo a necessidade comunitária da punição do caso concreto, enquanto a culpa, representando a responsabilidade individual do agente, constitui o fundamento ético daquela, sendo neste quadro que funciona o critério legal de determinação da medida concreta da pena, previsto no art. 71º do C. Penal.

Nos termos do disposto no nº 1 do referido art. 71º, a determinação da medida concreta da pena é feita, dentro dos limites definidos pela moldura penal abstracta aplicável, em função das exigências de prevenção e da culpa do agente, estabelecendo o seu nº 2 que, para este efeito, devem ser atendidas todas as circunstâncias que, não sendo típicas, militem contra e a seu favor, designadamente, as enunciadas nas diversas alíneas deste mesmo número.

Deste modo, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84).

Na aplicação deste critério legal, a medida concreta da pena resultará do grau de necessidade de tutela do bem jurídico (prevenção geral), sem que possa ser ultrapassada a medida da culpa, intervindo a prevenção especial de socialização entre o ponto mais elevado da necessidade de tutela do bem e o ponto mais baixo onde ainda é comunitariamente suportável essa tutela (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime,1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 227 e seguintes e 238 e seguintes, e Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, 1ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 43 e seguintes) ou, como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Julho de 2014 (processo nº 1081/11.7PAMGR.C1.S1, in www.dgsi.pt), a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização. Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues sustenta que, «[e]m primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.» (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, Nº 2, Abril-Junho, 2002, págs. 181-182).

A tarefa de determinação da medida concreta da pena não corresponde, como se vê, ao exercício de um poder discricionário do julgador e da sua arte de julgar, mas ao uso de um critério legal, constituindo a pena concreta o resultado de um procedimento juridicamente vinculado.

Em todo o caso, o controlo desta operação pela via do recurso, podendo incidir sobre a questão do limite ou da moldura da culpa e sobre a actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, já não pode ter por objecto, o quantum exacto da pena, salvo se se mostrarem violadas as regras da experiência ou se a medida concreta fixada se mostrar desproporcionada (Figueiredo Dias, op. cit., pág. 197).

Dito isto.

É muito elevado o grau de ilicitude do facto, relativamente ao crime de homicídio qualificado, quer pelo relacionamento familiar muito próximo entre arguida e vítima, quer pelo modo de execução, com o emprego de uma arma branca e desferimento de trinta golpes no tórax e no abdómen da vítima, grande parte deles potencialmente mortais. Já o grau de ilicitude do facto relativamente ao crime de profanação de cadáver é médio/alto, dado o móbil subjacente, a ocultação do homicídio praticado.

É muito elevada a intensidade do dolo homicida da arguida, revelador de uma intensíssima resolução criminosa, como resulta claramente do número de golpes desferidos na vítima, absolutamente incomum. É elevada a intensidade do dolo da arguida relativamente ao crime de profanação de cadáver.

A arguida, hoje uma jovem com 18 anos de idade, apresenta um processo de desenvolvimento e formação desequilibrado, tendo crescido em ambiente familiar e sócio-económico desfavorável, sem o apoio e afecto necessários por parte dos progenitores, já separados, sob a supervisão parental da vítima, três anos mais velha, e sem conseguir integrar-se socialmente no mesmo escolar, onde não fez amigos e foi rejeitada por colegas, pela sua condição social menos favorecida, e onde também apresentou dificuldades de aprendizagem, vindo a ter acompanhamento psicológico e a ser orientada para o ensino profissional.

A arguida não tem antecedentes criminais – e seria difícil que assim não fosse, atenta a sua idade na data da prática dos factos –, tem mantido comportamento adequado às regras da instituição prisional onde se encontra detida e a estudar, convive com as demais reclusas, aceita a necessidade do seu sancionamento pelos factos praticados e considera positiva a sua actual situação.

São evidentemente elevadas as exigências de prevenção geral no que ao crime de homicídio qualificado respeita, quer pelo bem jurídico que tutela, quer pela frequência do seu cometimento, quer pelo grande alarme social que este sempre provoca. E são medianas as exigências de prevenção geral no que ao crime de profanação de cadáver concerne.

São relevantes as exigências de prevenção especial, não obstante a inexistência de antecedentes criminais, considerando a personalidade border line da arguida, ainda em formação mas com deficiente desenvolvimento, pelas razões que, supra, se deixaram apontadas, personalidade esta desvaliosa, porque contrária ao direito, violenta, com défice de controlo de emoções e impulsos e com baixa tolerância à frustração, e que se mostra, de alguma forma, adequada aos factos praticados dada a indiferença revelada pela arguida para com os bens jurídicos que violou.

Os sinais ténues mas positivos, resultantes do seu comportamento prisional e da aceitação da sua actuação, são apenas isso e podem relevar a manterem-se em crescimento, para efeitos de execução da pena, mas não alteram, per se, os traços da personalidade da arguida.

Assim, consideradas as molduras penais abstractas aplicáveis ao crimes de homicídio qualificado e de profanação de cadáver, sendo muito elevada a ilicitude do factos relativamente ao primeiro crime e média, relativamente ao segundo, o mesmo acontecendo relativamente à intensidade do dolo quanto a cada um dos crimes, mas reconhecendo-se que a juventude da arguida e as condições adversas em que decorreu o seu processo de crescimento, com consequências a nível psíquico, intelectual, afectivo, ético e emocional, devem merecer forte valor atenuativo, considerando ainda as referidas exigência de prevenção, geral e especial, consideramos necessárias, adequadas, proporcionais e plenamente suportadas pela medida da culpa da arguida, a pena de 14 anos e 6 meses de prisão, para o crime de homicídio qualificado e a pena de 1 ano de prisão, para o crime de profanação de cadáver.

b. Fixadas que foram as penas parcelares, urge agora determinar a medida concreta da pena única a aplicar à arguida.

O critério especial de determinação da medida concreta da pena única encontra-se previsto no art. 77º, do C. Penal, com a epígrafe «Regras da punição do concurso», e que dispõe na 1ª parte do seu nº 1 que, [q]uando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena.

Pressuposto da aplicação deste critério é que o agente tenha praticado uma pluralidade de crimes constitutiva de um concurso efectivo – real ou ideal, homogéneo ou heterogéneo –, antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles, distinguindo este último aspecto os casos de concurso dos casos de reincidência. Verificado este pressuposto, o agente é condenado numa pena única.

A lei penal afastou o sistema da acumulação material de penas, e optou por um sistema de pena conjunta, resultante de um princípio de cúmulo jurídico (Figueiredo Dias, op. cit., pág. 283 e seguintes e Maria João Antunes, op. cit., pág. 56 e seguintes). Assim, estabelece o nº 2 do art. 77º do C. Penal que, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limites mínimos a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

A determinação da medida concreta da pena única a aplicar ao concurso de crimes impõe a observância de uma sequência de procedimentos.

Em primeiro lugar, há que, pelo somatório das penas parcelares, previamente determinadas, aplicadas aos crimes em concurso, fixar a moldura penal que lhe é aplicável, nos termos do art. 77º, nº 2, do C. Penal. Depois, e no que constitui a verdadeira operação de concretização da pena única, há que determinar a medida concreta da pena conjunta do concurso, dentro dos limites da respectiva moldura penal, em função dos critérios gerais da medida da pena – culpa e prevenção – fixados no art. 71º do C. Penal, e do critério especial previsto no art. 77º, nº 1, parte final, do mesmo código, nos termos do qual, na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Finalmente, e sendo disso caso, há que verificar a eventual substituição da pena única.

A ponderação conjunta dos factos e da personalidade do agente, pedra angular do critério especial de determinação da pena conjunta, recomenda algumas notas explicativas, ainda que breves.

O conjunto dos factos indicará a gravidade do ilícito global praticado – sendo particularmente relevante, para a sua fixação, a conexão existente entre os factos integrantes do concurso –, enquanto a avaliação da personalidade unitária do agente permitirá aferir se o conjunto dos factos integra uma tendência desvaliosa da personalidade ou se, pelo contrário, é apenas uma pluriocasionalidade que não tem origem na personalidade, sendo que, só no primeiro caso, o concurso de crimes deverá ter um efeito agravante. É igualmente importante, neste âmbito, a análise do efeito previsível da pena sobre a conduta futura do agente (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 290 e seguintes). Ou como defende Cristina Líbano Monteiro, o C. Penal rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente (A pena «unitária» do concurso de crimes, RPCC, Ano 16, Nº 1, 2006, pág. 162). Como se pode ler no acórdão deste Supremo Tribunal de 27 de Fevereiro de 2013 (processo nº 455/08.5GDPTM, in www.dgsi.pt), «[f]undamental na formação da pena do concurso é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse espaço de vida com a personalidade.».

Revertendo para o caso concreto, estando em concurso crimes punidos com penas de 14 anos e 6 meses de prisão e de 1 ano de prisão, atento o disposto no art. 77º, nº 2, do C. Penal, a moldura penal abstracta aplicável ao concurso de crimes é a de 14 anos e 6 meses a 15 anos e 6 meses de prisão.

Tendo presente que os factores enunciados no art. 71º do C. Penal, globalmente considerados, podem constituir guia para a concretização da medida da pena única, considerando o conjuntos dos factos, estamos perante dois crimes claramente conexionados, posto que praticados em ambiente familiar e constituído a profanação de cadáver crime-meio para ocultar o homicídio qualificado, que apontam para uma ilicitude global de grau muito elevado.

Por outro lado, no que à personalidade unitária da arguida concerne, damos por reproduzidos os traços já identificados, a fim de evitar desnecessárias repetições. Todavia, não obstante a personalidade desvaliosa, por contrária ao direito, da arguida, é seguro não podermos afirmar que estamos perante o início de uma carreira criminosa, que dela, personalidade, radica pelo que, não deve o concurso de crimes funcionar como factor agravante, na determinação da pena única.

Tudo ponderado, consideramos necessária, adequada, proporcional e plenamente suportada pela medida da culpa da arguida, a pena única de 14 anos e 9 meses de prisão.

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Da incorrecção da determinação da medida concreta das penas parcelares especialmente atenuadas, e seu reflexo na medida da pena única decretada pela 1ª instância

6. Esta questão foi formulada pelo Digno Magistrado do Ministério Público recorrente subsidiariamente, para a hipótese de improcedência da pretendida revogação da aplicação da atenuação especial das penas parcelares, prevista no art. 4º do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro.

Não se tendo verificado tal hipótese, uma vez que foi decidido no presente recurso, não dever a arguida beneficiar do regime penal especial para jovens, previsto no referido diploma legal, fica prejudicado o conhecimento desta questão.

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, decidem:

A) Revogar o acórdão recorrido, na parte em que aplicou à arguida AA o disposto no art. 4º, do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro e a condenou, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 72º, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, e), do C. Penal e 4º, do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, na pena de 12 (doze) anos de prisão, pela prática de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelos arts. 72º, 73º e 254º, nº 1, a), do C. Penal e 4º, do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, na pena de 9 (nove) meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 12 (doze) anos e 3 (três) meses de prisão.

B) Condenar a arguida AA, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, e), do C. Penal, na pena de 14 (catorze) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo art. 254º, nº 1, a), do C. Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 14 (catorze) anos e 9 (nove) meses de prisão.

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C) Confirmar, quanto ao mais, o acórdão recorrido.

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D) Recurso sem tributação, por não ser devida.

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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).

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Lisboa, 15 de Maio de 2025

Vasques Osório (Relator)

Jorge Jacob (1º Adjunto)

Ernesto Nascimento (2º Adjunto)