RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ACORDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
REJEIÇÃO PARCIAL
RECLAMAÇÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
INCONSTITUCIONALIDADE
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I. Uma das questões submetidas pelo arguido ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça foi a do excessivo quantitativo da indemnização fixada por danos não patrimoniais, decorrentes da prática do crime de homicídio, questão sobre a qual, verificada a existência de dupla conforme – confirmação da decisão da 1ª instância pela relação, sem voto de vencido e com fundamentação substancialmente idêntica –, foi decidido, como é entendimento pacífico deste Supremo Tribunal, ser aplicável ao pedido de indemnização civil, face ao disposto no art. 400º, nº 3, do C. Processo Penal, ex vi art. 4º, do mesmo código, o disposto no art. 671º, nº 3, do C. Processo Civil.
II. Não tendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecido desta questão por ser a mesma irrecorrível, a existência desta razão legal impeditiva, afasta a verificação de nulidade por omissão de pronúncia.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

Por acórdão de 14 de Maio de 2024, proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real – Juízo Central Criminal de ..., foi o arguido AA, com os demais sinais nos autos, condenado, pela prática de um crime de homicídio agravado, p. e p. pelos arts. 14º, nº 1 e 131º do C. Penal e 86º, nº 3 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 14 anos de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, c) e d) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 250 dias de multa à taxa diária de € 6, perfazendo a multa global de € 1500, e no pagamento às assistentes e demandantes civis BB e CC, da quantia de € 2290 por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa de 4%, desde a data da notificação do pedido e até integral pagamento, e no pagamento da quantia de € 92500 por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa de 4%, desde a data da decisão e até integral pagamento.

Inconformados, recorreram o arguido e o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 24 de Setembro de 2024, julgou ambos os recursos improcedentes.

Novamente inconformado, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 27 de Fevereiro de 2025, rejeitou parcialmente o recurso na parte relativa ao pedido de indemnização civil, por inadmissibilidade legal, e julgou-o improcedente na parte restante.

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Por requerimento de 12 de Março de 2025, veio o arguido AA invocar a nulidade do acórdão de 27 de Fevereiro de 2025, nos termos que se transcrevem:

“(…).

1. O douto acórdão decidiu “rejeitar, parcialmente, o recurso, na parte relativa ao pedido de indemnização cível, por inadmissibilidade legal”, tendo rejeitado a apreciação do recurso, por ter julgado que a decisão não é recorrível nessa parte, por entender ter havido um duplo grau de jurisdição.

2. Salvo o devido respeito, que é muito, o recorrente considera essencial a apreciação do recurso submetido a este Tribunal, dado que influi muito na sua vida, pois considera que o valor da indemnização é demasiado elevado, e que seria mais ajustado fixar a quantia ali peticionada.

3. O recorrente discorda da decisão do douto despacho que decidiu rejeitar a apreciação do recurso, por entender que, salvo o devido respeito, a decisão é recorrível nos termos do disposto nos artigos 399.º, 400.º e 432.º do CPP, e que carecem de ser apreciadas as questões que levantou nesse recurso relativamente à decisão do pedido e indemnização cível.

E que, salvo melhor opinião, é inaplicável in casu o disposto no art.º671.º, n.º3 do CPC.

4. O recorrente não está sozinho neste entendimento, pois o Tribunal da Relação de Guimarães entendeu nesse mesmo sentido na decisão fundamentada de 31/10/2024, que referiu expressamente “decisão susceptível de recurso ordinário” (sem descurar que a sua decisão não seja vinculativa), admitiu esse recurso.

Provavelmente porque também julgou ser inaplicável in casu penal a limitação do art.º671.º, n.º3 do CPC.

5. O próprio douto despacho do Sr. Relator datado de 24/02/2025 aceitou esse recurso, não o tendo rejeitado, tendo referido:

Não existem circunstâncias que obstem ao conhecimento do recurso. Mantém-se o efeito atribuído”.

6. O arguido Recorrente entende que a norma contida no art. 400.º, n.º 1, al. f), conjugado com o art. 432.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP, sem se considerar aplicável o art. 671.º, n.º 3, do CPC, ex vi art. 4.º do CPP, dado que a lei processual penal não define o que é confirmar a decisão da 1.ª instância ou da Relação, sendo recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça.

Além disso, entende que é inconstitucional a interpretação de norma que enunciou contida no art. 671.º, n.º 3, do CPC, ex vi art. 4.º do CPP (uma vez que a lei processual penal não define o que é confirmar a decisão da 1.ª instância), quando interpretada no sentido de que sejam irrecorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça as decisões de mérito das Relações, proferidas em recurso.

7. Salvo o devido respeito, o recorrente entende que o douto acórdão viola o disposto naqueles dispositivos legais e nega o seu direito a ver o mérito das questões serem efetivamente apreciadas pelo Tribunal - que são essenciais, e com repercussões graves para o recorrente a nível patrimonial, e cometeu uma nulidade, que é insanável, por omissão de pronúncia, que aqui se invoca a deve ser declarada, revogando-se a decisão, e devendo ser apreciadas essas questões que integram o objeto do recurso, porquanto, no seu modesto entender, não existem circunstâncias que obstem ao conhecimento do recurso.

8. Assim, no modesto entendimento do recorrente, o recurso interposto deve ser aceite, por legalmente admissível, e apreciado.

Nestes termos, e nos melhores de direito aplicáveis, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá ser julgada procedente a nulidade arguida, além de a interpretação adotada ser institucionalizar, uma vez que se constata não se ter o Tribunal pronunciado sobre questão que deveria ter apreciado por lhe ter sido submetida no âmbito das conclusões

30.º a 33.º.

Consequentemente deve ser dado sem efeito o acórdão proferido e substituído por outro onde a nulidade acima arguida seja suprida no sentido de o Tribunal apreciar a questão suscitada pelo recorrente.

Contudo, V. (s) Exa. (s) decidindo, farão a esperada JUSTIÇA.

(…)”.

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Assegurado o contraditório, não houve respostas.

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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

Da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia

1. O arguido suscita, na reclamação apresentada, a nulidade do acórdão reclamado, por omissão de pronúncia, dizendo, para tanto, e em síntese, ser seu entendimento que a decisão da Relação é recorrível, nos termos do dispostos nos arts. 399º, 400º e 432º do C. Processo Penal, não sendo aplicável ao caso o disposto no art. 671º, nº 3 do C. Processo Civil, pois a lei processual penal não define o que seja confirmar a decisão da 1ª instância ou da Relação, sendo inconstitucional a norma aplicada resultante da interpretação dos arts. 4º do C. Processo Penal e 671º, nº 3 do C. Processo Civil, no sentido de que sejam irrecorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça as decisões de mérito das Relações, proferidas em recurso, tendo o acórdão reclamado, ao não apreciar uma concreta questão que lhe foi submetida e que é, para si [arguido] essencial, cometido uma nulidade que é insanável, por omissão de pronúncia.

Vejamos.

Dispõe a alínea c) do nº 1 do art. 379º do C. Processo Penal que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

Contam-se, nestes questões, as de conhecimento oficioso e as que foram submetidas à apreciação do juiz pelos sujeitos processuais, desde que sobre elas não esteja legalmente impedido de emitir pronúncia.

É pacificamente aceite que por questão se deve entender o problema concreto, de facto ou de direito, a decidir, e não também, os motivos, os argumentos, as doutrinas e os pontos de vista invocados pelos sujeitos processuais, em abono das respectivas pretensões, pelo que, quanto a estes, não se coloca nunca a possibilidade de o tribunal omitir pronúncia (Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1182, Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo IV, 2022, Almedina, pág. 801 e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Setembro de 2023, processo nº 257/13.7TCLSB.L1.S1 e de 17 de Maio de 2023, processo nº 140/06.2JFLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt).

Note-se, ainda, que nos termos do nº 4 do art. 425º do C. Processo Penal, é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos arts. 379º e 380º do mesmo código.

Dito isto.

2. Com ressalva do respeito devido por diversa opinião, que é muito, o acórdão deste Supremo Tribunal de 27 de Fevereiro de 2025, ora reclamado, não enferma de nulidade por omissão de pronúncia, com os fundamentos invocados pelo recorrente.

Explicando.

É certo que uma das questões por si submetidas ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça foi a do excessivo quantitativo da indemnização fixada por danos não patrimoniais, decorrentes da prática do crime de homicídio.

Para efeitos da arguida nulidade por omissão de pronúncia do acórdão reclamado, a dita questão seria uma sobre a qual o tribunal deveria pronunciar-se, salvo existindo razão legal impeditiva de sobre ela se pronunciar. E foi, precisamente, por se entender que existe razão legal que não permite a pronúncia do tribunal ad quem, que tal questão não foi conhecida.

Com efeito, tendo sido constatada a existência de dupla conforme (confirmação da decisão da 1ª instância pela relação, sem voto de vencido e com fundamentação substancialmente idêntica), seguiu-se o entendimento pacífico, na doutrina e neste Supremo Tribunal – de que se deu nota no acórdão reclamado – segundo o qual, face ao disposto no nº 3 do art. 400º do C. Processo Penal (redacção da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto), são aplicáveis, ex vi, art. 4º do C. Processo Penal, os casos de inadmissibilidade de recurso previstos no art. 671º do C. Processo Civil, ao pedido de indemnização civil deduzido no processo penal (Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1255, António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo V, 2024, Almedina, págs. 82-83, e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Novembro de 2024, processo nº 64/17.8JALRA.C2.S1, de 4 de Julho de 2024, processo nº 432/20.8JAVRL.G1.S1 e de 9 de Maio de 2024, processo nº 161/22.8PAENT.E1.S1 e de 12 de Novembro de 2020, processo nº 163/18.9GACDV.C1.S2, todos in www.dgsi.pt).

Sem prejuízo de assistir ao arguido o direito de discordar do entendimento sufragado pelo tribunal, é evidente que tal não significa a existência de qualquer nulidade e, menos ainda, da nulidade por omissão de pronúncia. Na verdade, entendido que foi, face ao disposto no art. 400º, nº 3 do C. Processo Penal, ex vi, art. 4 do mesmo código, ser aplicável ao pedido de indemnização civil deduzido no processo penal, o disposto no art. 671º, nº 3 do C. Processo Civil, e constatado que foi que se verifica, in casu, a dupla conforme prevista nesta última disposição, ocorre uma razão legal impeditiva para o tribunal de recurso, do conhecimento da questão que lhe foi submetido – a irrecorribilidade da decisão do tribunal a quo quanto a esta questão –, o que basta para afastar a existência da afirmada nulidade do acórdão reclamado.

3. Como dissemos, alega ainda o arguido que a norma aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça, extraída da interpretação do art. 4º do C. Processo Penal e 671º, nº 3 do C. Processo Civil, no sentido de que sejam irrecorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça as decisões de mérito das Relações, proferidas em recurso, é inconstitucional.

Contudo, não indica que norma ou princípio constitucional foi violado com a imputada interpretação.

Por outro lado, é evidente que a norma que o arguido diz ter sido extraída da interpretação feita dos dois referidos artigos pelo tribunal ad quem e por este, no caso, aplicada, não o foi, pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Em todo o caso, o direito ao recurso, constitucionalmente garantido pelo art. 32º, nº 1 da Lei Fundamental, significa, brevitatis causa, que as garantias de defesa em processo penal impõem a existência de um duplo grau de jurisdição, no sentido de ser a causa reapreciada por um tribunal superior, quer quanto à matéria de direito, quer quanto à matéria de facto (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, pág. 516).

Nos autos, a decisão da 1ª instância foi reapreciada e integralmente confirmada, sem voto de vencido, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, estando, pois, verificado, o duplo grau de jurisdição.

Assim, na pressuposição de que a inconstitucionalidade invocada possa ter por fundamento a violação do art. 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, concluímos, sem necessidade de maiores considerações, pela sua não verificação.

4. Em suma, não enferma o acórdão reclamado de nulidade por omissão de pronúncia, como pretende o arguido, nem da inconstitucionalidade invocada.

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em julgar totalmente improcedente a reclamação do arguido AA, tendo por objecto o acórdão deste Supremo Tribunal de 27 de Fevereiro de 2025.

Custas pelo arguido, fixando-a a taxa de justiça em 3 UCS (art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Lisboa, 15 de Maio de 2025

Vasques Osório (Relator)

José Piedade (1º Adjunto)

Jorge Bravo (2º Adjunto)