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REEXAME DOS PRESSUPOSTOS DA PRISÃO PREVENTIVA
REBUS SIC STANTIBUS
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
Sumário
– Interpretação do artigo 213.º do Código de Processo Penal quanto ao reexame da prisão preventiva, destacando-se a sua natureza confirmatória e vinculada à cláusula rebus sic stantibus, exigindo-se apenas a verificação da subsistência dos pressupostos de facto e de direito anteriormente valorados, e não uma reapreciação ex novo da medida de coacção. – Delimitação do dever de fundamentação das decisões judiciais no contexto do reexame das medidas de coacção, nos termos do artigo 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, sendo suficiente uma fundamentação sucinta, clara e contextualizada, com remissão para decisões anteriores desde que acessíveis às partes. – Inexistência de nulidade do despacho de manutenção da prisão preventiva quando este contém remissão expressa à decisão originária, indica ausência de alteração dos pressupostos e referencia os normativos legais aplicáveis, não se exigindo uma fundamentação exaustiva ou repetitiva. – Apreciação dos princípios da legalidade, necessidade e proporcionalidade na aplicação e manutenção da medida de prisão preventiva, sendo reafirmado o seu carácter excepcional e subsidiário face às demais medidas de coacção previstas nos artigos 191.º a 201.º do Código de Processo Penal. – Impossibilidade de recurso da decisão de reexame como meio de rediscussão dos fundamentos da decisão inicial de aplicação da prisão preventiva, salvo em caso de alegação e demonstração de alteração superveniente das circunstâncias justificativas da medida.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. RELATÓRIO
1.1. No processo nº 457/23.1PALSB o arguido/recorrente AA encontra-se sujeito às medidas coactivas de proibição de contactar pessoalmente ou por qualquer meio com as ofendidas e prisão preventiva, pela existência de fortes indícios da prática da prática reiterada de factos integradores de:
a. um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, perpetrado na pessoa de BB, sua esposa e mãe dos seus filhos;
b. um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alíneas a) e b) do Código Penal, perpetrado na pessoa de CC, sua enteada e com quem manteve uma relação de namoro.
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1.2. O estatuto coactivo do arguido foi legalmente revisto ao longo do processado, sendo que a apreciação revisória de 6.01.2025 não obteve concordância do arguido, conforme interposição de recurso de tal despacho.
Da motivação do respectivo recurso extraiu-se as seguintes conclusões: (transcrição) (…) 1º) O Tribunal recorrido não fundamenta minimamente, a razão da manutenção da prisão preventiva, conforme se verifica e se alcança do despacho recorrido. 2º) Na verdade, não é suficiente e bastante dizer que os pressupostos do facto e de direito se encontram inalterados, para termos sem mais, a manutenção da prisão preventiva. 3º) De facto, a fundamentação legal é simplesmente inexistente, tal como a de facto, o que configura a nulidade do despacho recorrido, o que para todos os efeitos tidos por legais se vem arguir. 4º) A fundamentação da manutenção da prisão preventiva é obrigatória por lei, o que, no entanto, não aconteceu no caso em apreço, pois, não se alcança do despacho recorrido quais os pressupostos que se encontram inalterados para manter a medida de coação mais gravosa. 5º) Assim, face ao exposto deve ser declarado nulo o despacho recorrido e, por conseguinte, ser o arguido liberto e ser-lhe aplicada e mantida a medida de coação de termo de identidade e residência. 6º) Na verdade, as regras processuais são para ser aplicadas, e deste modo, o Tribunal recorrido ao não fundamentar o quer que fosse para manter a prisão preventiva do arguido violou claramente o Art.º 213.º n.º 2 do Código de Processo Penal, e consequentemente o despacho recorrido deve ser declarado nulo, com as consequências legais, que é a libertação imediata do arguido. 7º) A violação nos presentes autos do Art.º 213.º n.º 2 do Código de Processo Penal é uma ilegalidade e uma inconstitucionalidade, por errada aplicação e interpretação desta norma jurídica. 8º) Por outro lado, o Arguido-Recorrente entende que a medida aplicada e mantida da prisão preventiva é excessiva, inadequada e desproporcional face aos elementos que o Arguido teve acesso, ao seu registo criminal, à sua conduta no primeiro interrogatório, devendo a mesma ser substituída pela medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica - art.º 201.º do Código de Processo Penal, que passará pela permanência em habitação com vigilância eletrónica. 9º) E se assim se entender, com proibições e imposições de injunções - Art.º 200.º do Código de Processo Penal. 10º) Deste modo, entende o Arguido que a manutenção da prisão preventiva, não se justifica no presente momento, quando existe outra medida de coação que acautela os requisitos gerais, previstos no art.º 204.º do Código de Processo Penal, que é a medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica - art.º 201.º, conjugado com o Art.º 200.º todos do Código de Processo Penal. 11º) O Douto Despacho do qual se recorre, não vai para além dos requisitos gerais, previstos na alínea c) do art.º 204.º do Código de Processo Penal, e não especifica esses mesmos requisitos gerais, na aplicabilidade da prisão preventiva. 12º) Ademais, o Tribunal Recorrido deveria entre a aplicação da medida da prisão preventiva, e a medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, dar primazia a esta última medida de coação, ou então justificar de facto e de Direito da aplicação da mais gravosa, em detrimento daquela medida, o que não o fez. 13º) Deveria por lei, ou pelo princípio da legalidade, dar primazia à medida de coação obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica cfr. Art.º 193.º n.º 3 do Código de Processo Penal - no entanto, o Tribunal Recorrido não justificou minimamente a não aplicabilidade desta última medida de coação, e tendo dado primazia à mais gravosa e injusta em concreto. 14º) - Ora lace a esta decisão, o Tribunal Recorrido violou claramente o princípio legal e constitucional do princípio da legalidade, cfr.s Art.ºs 191.º do Cód. Proc. Penal e 29.º da Constituição da República Portuguesa, o que aqui se vem arguir a legalidade e constitucionalidade. (…)
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1.3. O MP na 1ª Instância não respondeu ao recurso.
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1.4. Neste Tribunal, a Srª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer nos seguintes termos: (transcrição) (…) O arguido AA interpõe recurso do despacho proferido no dia 6 de Janeiro de 2025 que, em sede de reapreciação dos pressupostos de aplicação da medida de prisão preventiva, decretou a manutenção da medida de coação de prisão preventiva aplicada ao recorrente. Em suma, o recorrente invoca a violação dos artsº. 213º nº. 2 e 191º do CPP, alegando que o despacho em referência é nulo por falta de fundamentação, suscitando a violação do princípio da legalidade e pugnando pela sua revogação com consequente libertação do recorrente ou sua sujeição à medida de coação prevista no artº. 201º do CPP. (…) Cremos ser manifesto não assistir razão ao recorrente. Com efeito: Analisado o despacho sob recurso, do mesmo ressalta que: a) não só foi ponderada a até então mais recente evolução dos autos (sendo certo que, entretanto, foi proferido acórdão condenatório e de novo reapreciada a aplicação da medida de prisão preventiva); b) como se operou a remissão para a anterior fundamentação na apreciação dos pressupostos que determinaram a aplicação e manutenção da medida de prisão preventiva, o que se extrai cristalinamente da afirmação “ nada mais ocorre que possa alterar os pressupostos de facto e de direito que fundamentaram a decisão de manter o arguido sujeito às medidas de coacção em vigor, na prevalência da máxima rebus sic stantibus (…)”. Acresce verificar-se que, globalmente, os argumentos ora aduzidos pelo recorrente são similares aos invocados no anterior recurso apresentado nos presentes autos, e que foi decidido nos seguintes termos: “(…) Tentando, no entanto, dar algum arrumo áquilo que poderia ter motivado a qualificação atribuída, com alguma aproximação à legislação vigente, impõe-se considerar que as nulidades estão sujeitas ao princípio da tipicidade, conforme consta do artigo 118º/1, do CPP. Ora, apenas à ausência de cumprimento do disposto no artigo 194º/6 do CPP a lei comina a sanção de nulidade. Este artigo, no entanto, refere-se expressa e unicamente à aplicação das medidas de coacção. Em causa no despacho recorrido, não está a aplicação da medida de coacção, mas a manutenção dessa mesma medida, pelo que o despacho não se encontra sujeito ao regime disposto no artigo 194º/6 do CPP. Temos, portanto, que não há fundamento legal para considerar que o despacho recorrido tenha incorrido em qualquer nulidade. Mas há mais: A fundamentação de um qualquer despacho visa a sua compreensão, intra e extra processual. E o despacho recorrido não vale por si. Ele surge no seguimento de todo um procedimento relativo à aplicação da medida de coacção, revista de três em três meses, que se iniciou com o despacho que a aplicou, proferido em sede de primeiro interrogatório de detido, e que teve continuidade sempre, óbvia e necessariamente por reporte para esse mesmo despacho. A fundamentação de um qualquer despacho visa a sua compreensão intra e extra processual. No caso, tratando-se de despachos em dependência, a compreensão intra processual está garantida pelo conhecimento que os sujeitos processuais têm do conteúdo dos despachos - de que o recorrido é meramente sequencial. Ora, quer o primeiro despacho que fixou a medida de coacção quer os seguintes que a tal matéria de reportam, foram notificados ao arguido, que bem os compreendeu. Não constando dos autos a superveniência de qualquer fundamento para a falta de compreensão do despacho recorrido, funciona a presunção, não elidida, de que a função visada com o dever de fundamentação foi alcançada. A fundamentação deste tipo de despacho apenas se sujeita ao regime geral, contido no artigo 97º/5, do CPP, pelo que, sendo perfeitamente perceptível o conteúdo do despacho não se verifica qualquer incumprimento de dever legal. Aliás, esta é a solução unanimemente defendida na jurisprudência. Por todos, vejam-se os acórdãos do TRC de 24-02-1999 ou do TRE de 29-01-2013 publicados na DGSI. No caso, a fundamentação foi concisa, mas clara e adequada ao fim visado. Ainda que apreciada por terceiro, não interveniente no processo, é obrigatória a sua concatenação com a fundamentação relativa à aplicação da medida de coacção, assim se logrando o perfeito entendimento do decidido, antes e agora. A par da questão da nulidade, o arguido invoca inconstitucionalidade, nas conclusões de recurso. As conclusões de um recurso só o serão se reflectirem, resumidamente, as questões contidas no corpo do mesmo (artigo 412º/1, do CPP). Não ocorrendo essa circunstância, não pode a questão ser apreciada, como também o não seria na medida em que se desconhece que segmento normativo entende o arguido que viola a Lei Fundamental e quais os preceitos violados e os fundamentos pelos quais ocorre semelhante infracção. (…) Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida nos seus precisos termos. (…)”. Revertendo aos autos, patentemente, idênticos se revelam os fundamentos para se concluir pela improcedência do presente recurso. Solução que afinal encontra eco, não só nesse acórdão proferido no apenso A dos presentes autos, como na jurisprudência expressa no acórdão da Relação de Lisboa de 23-11-2022 (processo 104/22.9PAVCD-A.P1), cujo sumário se cita: “I - A decisão que impõe a prisão preventiva, apesar de não ser definitiva, é intocável e imodificável enquanto não se verificar uma alteração, em termos atenuativos, das circunstâncias que a fundamentaram, ou seja, enquanto subsistirem inalterados os pressupostos da sua aplicação (está, pois, sujeita à condição rebus sic stantibus); o juiz não pode, sem alteração dos dados, “repensar” o despacho anterior ou, simplesmente, revogá-lo. II - Satisfaz as exigências de fundamentação, o despacho que, reexaminando os pressupostos da prisão preventiva, se limita a declarar que não se mostram alteradas as circunstâncias de facto e de direito que determinaram a aplicação daquela medida de coação; seria inútil exigir que nesses casos o juiz copiasse o despacho para o qual remete, o qual é do conhecimento dos interessados. III - Enquanto a falta de fundamentação da sentença, bem como a falta de fundamentação da decisão que aplica medida de coação diversa do termo de identidade e residência constituem nulidade (art.ºs 374,º n.º 2, 379.º, nº 1, al. a), e 194.º, n.º 6, do Código de Processo Penal), a falta de fundamentação do despacho que procede ao reexame da prisão preventiva constitui mera irregularidade, a qual, se não for tempestivamente arguida, deverá considerar-se sanada (art.º 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). IV - Não se tratando essa questão de conhecimento oficioso, o seu conhecimento não compete ao tribunal de recurso se ela não tiver sido, previamente, suscitada no tribunal de primeira instância, pois os recursos têm por objeto a decisão recorrida e não a questão por ela julgada; são remédios jurídicos e, como tal, destinam-se a reexaminar decisões proferidas pelas instâncias inferiores, verificando a sua adequação e legalidade quanto às questões concretamente suscitadas, e não a decidir questões novas, que não tenham sido colocadas perante aquelas. V – Para o efeito do reexame dos pressupostos da prisão preventiva, a audição do arguido (e do ...) e a elaboração de relatório social (sob prévio requerimento e/ou consentimento do arguido) só deverá ocorrer se no desenrolar do processo tiver havido alterações significativas aos pressupostos que determinaram a aplicação inicial da medida de coação, já que tais atos seriam totalmente inúteis nas situações em que se mantém todo o circunstancialismo anteriormente analisado e decidido, nada mais havendo a acrescentar ao já devidamente considerado e ponderado. Em consonância com todo o exposto, emitimos assim parecer no sentido da manutenção da decisão recorrida, pugnando pela improcedência do recurso. (…)
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1.5. Cumprido o art.º 417º, nº 2, do CPP não houve resposta.
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1.6. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II – OBJETO DO RECURSO
2.1. De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, já que são nelas que sintetizam as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação. In casu, atentas as conclusões, o recorrente invoca as seguintes matérias:
a. A nulidade do despacho recorrido, por violação do dever de fundamentação, nos termos dos artigos 97.º, n.º 5, e 213.º, n.º 2, ambos do CPP;
b. A violação dos princípios da legalidade, necessidade e proporcionalidade, consagrados nos artigos 191.º e 193.º, n.º 3, do CPP, e 29.º da Constituição da República Portuguesa;
c. A omissão de ponderação da medida de coacção prevista no artigo 201.º do CPP – obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica – enquanto alternativa menos gravosa.
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III - A DECISÃO RECORRIDA
3.1. O despacho recorrido tem o seguinte teor: (transcrição) (…) Do reexame do estatuto processual do arguido. Considerando a proximidade da data limite para reexame do estatuto coactivo do arguido, por imperativo de oportunidade, passa a proceder-se em conformidade. O arguido AA foi detido em ... de ... de 2024, pelas 10h50, e, submetido a primeiro interrogatório judicial, o qual decorreu entre a mesma data pelas 16:35 e o dia ... de ... de 2024, pelas 11h00 (tendo findado pelas 13:08), ficou sujeito ao seguinte estatuto coactivo: - TIR - Proibição de contactar pessoalmente ou por qualquer meio com as ofendidas. - Prisão preventiva - tudo cfr. artºs 191º, 192º, 193º,194.º, 195.º,196º, 198.º, 200.º als. e) e 202º nº 1 al a) e 204.º al.s b) e c), todos do Código de Processo Penal e ainda nos termos dos art.ºs 31.º e 35.º, da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro. O estatuto coactivo do arguido foi legalmente revisto ao longo do processado, remontando a última apreciação revisória a 21 de Outubro de 2024, aquando do recebimento da acusação nesta Instância. No presente, considerando a conclusão do inquérito com acusação deduzida, a que acrescem dois pedidos de indemnização civil deduzidos pelas alegadas ofendidas (putativas assistente), o decurso integral do prazo para requerer a abertura de instrução (não requerida), face aos termos em que os autos se apresentam e à decisão prolatada pelo Tribunal da Relação de Lisboa ora comunicada (com reporte ao despacho revisório de estatuto coactivo de ... de ... de 2024) , nada mais ocorre que possa alterar os pressupostos de facto e de direito que fundamentaram a decisão de manter o arguido sujeito às medidas de coacção em vigor, na prevalência da máxima rebus sic stantibus, razão pela qual não se afigura necessário ouvir o mesmo. O prazo máximo da prisão preventiva ainda não decorreu – artigo 215.º n.ºs 1 alínea c), e 2, do Código de Processo Penal. Termos em que que o arguido AA continuará a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito às medidas de coacção em vigor – TIR - Proibição de contactar pessoalmente ou por qualquer meio com as ofendidas - Prisão preventiva – artigos 1.º, alínea j), 191.º a 196.º, 198.º, 200.º, n.º 1, alínea d), 201.º, 202.º, n.º 1, alínea a), 204.º, alíneas b) e c), e 213.º n.º 1 alínea b), todos do Código de Processo Penal e artigos 31.º e 25.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro. Notifique, dê conhecimento ao EP. + Prazo máximo da prisão preventiva (sem que tenha havido condenação em 1.ª instância): 19 de Julho de 2025 – artigo 215.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do Código de Processo Penal. Prazo limite da próxima revisão: 06 de Abril de 2025. (…)
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IV – FUNDAMENTAÇÃO
4.1. DECIDINDO
4.1.1. Nulidade por falta de fundamentação
A prisão preventiva é a medida de coacção mais grave, apenas admissível a título excepcional e subsidiário, em situações onde se verificam cumulativamente os requisitos do artigo 202.º e os perigos do artigo 204.º do Código de Processo Penal (CPP). A sua aplicação está estreitamente vinculada ao respeito pelos princípios constitucionais do Estado de Direito, da legalidade, da proporcionalidade, da subsidiariedade da restrição de direitos fundamentais e do controlo jurisdicional das medidas restritivas da liberdade.
Neste contexto, o artigo 213.º do CPP prevê o reexame periódico da prisão preventiva, impondo ao juiz o dever oficioso de reapreciar, de três em três meses, os pressupostos que fundamentaram a medida. Trata-se, na terminologia técnico-jurídica, de um despacho de verificação e controlo, e não de um novo juízo de mérito sobre os mesmos factos já apreciados na decisão originária, neste caso a proferida aquando da realização do interrogatório judicial.
Assim, podemos dizer que tal despacho assume as seguintes características:
i. É uma garantia de salvaguarda da liberdade pessoal;
ii. Visa impedir que a prisão preventiva se prolongue para além do estritamente necessário;
iii. Não é meio de reaplicar ou reconfirmar a medida, mas de confirmar que os seus pressupostos se mantêm válidos e actuais.
Contudo, algumas vozes críticas pretendem acusar este mecanismo de um ritualismo inócuo, afirmando que se trata de um automatismo processual sem efeito real.
Vejamos, mais em detalhe:
O reexame periódico não pode ser analisado fora da moldura constitucional que rege as restrições à liberdade pessoal. A Constituição da República Portuguesa (CRP), nos seus artigos 27.º e 28.º, estabelece que:
“Todos têm direito à liberdade e à segurança.” (art.º 27.º, n.º 1);
“A prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.” (art.º 28.º, n.º 2).
Estes preceitos exigem que toda e qualquer privação de liberdade tenha:
i. Previsão legal expressa;
ii. Finalidade legítima e necessária;
iii. Controlo judicial contínuo e efectivo.
É precisamente neste último vector que se inscreve o reexame trimestral da prisão preventiva: assegurar que a medida de coacção mais gravosa não perdura para além do admissível, sendo necessário que um juiz, de forma independente, verifique se subsistem ou não as circunstâncias que legitimam a privação cautelar da liberdade.
O reexame trimestral não se trata, pois, de um mero dever formal, mas de uma imposição constitucional de que toda privação de liberdade esteja sujeita a controlo judicial regular, substancial e objectivo.
A natureza do reexame não é a de uma nova decisão autónoma. O despacho de reexame não equivale nem pode equivaler à reaplicação da medida de coacção. A decisão que aplicou a prisão preventiva é um despacho jurisdicional fundamentado, baseado em factos, prova e elementos constantes dos autos. Quando o juiz procede ao reexame, não está a reavaliar a imputação, a prova ou o mérito da fixação da medida de coacção, mas apenas a verificar se:
i. O tempo decorrido e a evolução do processo alteraram de modo relevante os pressupostos da medida;
ii. Factos supervenientes impõem a substituição, atenuação ou revogação da medida;
iii. O arguido mantém ou não o risco processual que justificou a sua prisão preventiva inicial.
É por isso que a cláusula rebus sic stantibus se aplica plenamente ao reexame trimestral: mantendo-se as circunstâncias, mantém-se a medida; só se alteradas estas é que a decisão deve ser revista em substância.
Não cabe, pois, ao juiz proceder, de três em três meses, à nova discussão exaustiva dos perigos, dos factos ou da imputação, sob pena de:
i. Esvaziar a eficácia preclusiva do despacho originário;
ii. Desestabilizar a estrutura do processo;
iii. Promover a incerteza jurídica e o risco de arbitrariedade sob a capa de garantismo.
Em muitos recursos interpostos sobre esta temática, é amiúde argumentado que o reexame da medida de coacção de prisão preventiva, conforme regulada no artigo 213.º do CPP, não passa de um acto ritualizado, desprovido de eficácia substancial.
Os pontos chaves de tais argumentações são:
i. As decisões de reexame são proferidas de forma padronizada e repetitiva;
ii. Os juízes limitam-se a reproduzir fórmulas genéricas;
iii. Não há impacto prático na situação jurídica do arguido.
Ora, estas posições apesar de apontarem para problemas reais de aplicação judicial, incorrem num erro de natureza: confundem a má aplicação da norma com defeito normativo do próprio instituto. O facto de se utilizarem expressões estandardizadas ou de não fundamentarem adequadamente os despachos de reexame não invalida a natureza garantística do reexame periódico, tal como decorre do seu enquadramento legal e constitucional.
Em suma, o reexame trimestral da medida de coacção de prisão preventiva é uma imposição jurídica e constitucional e não é uma opção. Quando correctamente aplicada, ela permite:
i. Evitar o prolongamento infundado da prisão preventiva;
ii. Detectar alterações relevantes na posição processual do arguido (ex. decurso de prazos, alterações de comportamento, novos elementos probatórios);
iii. Substituir ou revogar medidas de coacção desajustadas ao momento processual.
Como já sublinhado, o reexame não implica a rediscussão do mérito da medida aplicada, mas sim a confirmação da sua actualidade. O juiz deve verificar se:
i. Se mantém o perigo processual concretamente identificado;
ii. O processo avançou para uma nova fase (ex. pronúncia, julgamento, sentença);
iii. Decorreram prazos máximos de prisão preventiva;
iv. O comportamento processual do arguido sofreu alterações.
Esta verificação, ainda que sumária, tem valor jurídico próprio: permite actualizar a decisão anterior à luz da realidade processual em curso. O despacho que procede à reapreciação, quando fundamentado em tais elementos, é eficaz e justifica-se plenamente como acto jurisdicional autónomo. In casu, o arguido/recorrente defende que o despacho sob censura padece de nulidade por falta de fundamentação.
Nos termos do artigo 97.º, n.º 5 do CPP, os despachos judiciais devem ser sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. O artigo 118.º, n.º 1 do mesmo diploma estatui que os actos judiciais praticados com inobservância das formalidades legais são nulos quando a lei expressamente o previr.
O despacho de reexame da prisão preventiva configura, em si mesmo, um acto jurisdicional autónomo com conteúdo decisório (ainda que confirmatório), e está, por isso, submetido ao dever de fundamentação nos termos do artigo 97.º, n.º 5 do CPP.
A fundamentação exigida não precisa ser exaustiva.
Contudo, deve conter:
i. Indicação de que decorreu o prazo legal do artigo 213.º, n.º 1 do CPP;
ii. Referência expressa à inexistência de alterações dos pressupostos de facto ou de direito;
iii. Remissão para o despacho inicial que fundamentou a prisão preventiva;
iv. Indicação da norma aplicável que suporta a manutenção da medida (arts. 202.º, 204.º e 213.º CPP).
A omissão destes elementos essenciais afecta o conteúdo mínimo de validade do acto decisório e é passível de gerar nulidade.
Quando é que ocorre a nulidade do despacho de reexame da prisão preventiva ocorre?
i. O juiz não menciona a data da última revisão nem do despacho original;
ii. O despacho se limita a dizer “mantém-se a medida” sem qualquer remissão ou justificação mínima;
iii. O juiz omite a análise, ainda que breve, da eventual existência de factos supervenientes;
Nestes casos, considera-se que houve omissão da função jurisdicional mínima exigida pela Constituição e pelo CPP, o que vicia o acto e torna a medida de coacção mantida sem base legal válida. In casu, o despacho sob censura contem:
i. A expressão: “… nada mais ocorre que possa alterar os pressupostos de facto e de direito que fundamentaram a decisão de manter o arguido sujeito às medidas de coacção em vigor...”;
ii. Remete expressamente para o despacho anterior;
iii. Indica que o reexame se fez nos termos do artigo 213.º do CPP;
iv. Declara que os prazos legais de prisão preventiva se mantêm em curso.
Esta motivação, embora concisa, é clara, específica e individualizada ao arguido em questão. Declara que não ocorreu alteração das circunstâncias – o que corresponde ao escopo do reexame – e remete para os fundamentos válidos já constantes da decisão inicial. A ausência de inovação fática ou jurídica justifica uma fundamentação de reafirmação e não de substituição.
A reapreciação de uma medida de coacção, à luz do princípio rebus sic stantibus, não impõe nova fundamentação plena, bastando a menção à manutenção dos pressupostos e a inexistência de alterações relevantes.
Assim, o despacho em questão:
i. Cumpre o dever de fundamentação exigido pelo artigo 97.º, n.º 5 do CPP;
ii. Está em conformidade com a Constituição da República Portuguesa;
iii. Não enferma de qualquer nulidade, uma vez que permite ao recorrente compreender a razão da manutenção da medida e, se assim entender, impugná-la, que foi o que fez com a presente peça recursória.
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4.1.2. Da alegada desproporcionalidade da prisão preventiva
Como supra-referido:
i. A prisão preventiva constitui a medida de coacção de natureza mais gravosa prevista no ordenamento jurídico-processual penal português, sendo aplicável apenas em situações estritamente delimitadas pelo princípio da legalidade (artigo 27.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa) e da proporcionalidade (artigo 18.º da CRP).
ii. Nos termos do artigo 202.º do Código de Processo Penal (CPP), a prisão preventiva apenas pode ser aplicada se se mostrarem preenchidos cumulativamente os pressupostos legais e se nenhuma das restantes medidas de coacção for adequada e suficiente para acautelar os perigos concretamente identificados no artigo 204.º do CPP.
iii. Reconhecendo o legislador o carácter excepcional e subsidiário da prisão preventiva, impôs a revisão periódica da mesma – nos termos do artigo 213.º do CPP – através do denominado despacho de reexame da medida de coacção, a proferir obrigatoriamente de três em três meses.
É no seio deste quadro que emerge o princípio ou cláusula conhecida, e já acima aludida, como rebus sic stantibus.
O artigo 213.º do CPP consagra expressamente um dever legal do juiz de proceder, oficiosamente, ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva no prazo de três meses, sendo tal despacho imprescindível para verificar a sua manutenção ou eventual substituição.
Todavia, essa reapreciação não se confunde, nem pode confundir-se, com uma nova aplicação da medida, nem sequer com um juízo autónomo e desvinculado das razões anteriormente invocadas. A própria letra da lei – e, sobretudo, a sua ratio – impõe que esse reexame se faça à luz das circunstâncias processuais existentes no momento da reapreciação, não como momento de revisão "em branco", mas como verificação da subsistência ou alteração das razões que fundamentaram a medida inicial.
É neste contexto que se inscreve o princípio da impossibilidade de reponderar ex novo a prisão preventiva, sem qualquer alteração superveniente: a cláusula rebus sic stantibus, que se revela determinante para delimitar o conteúdo e os limites do despacho de reexame. Last but not least, a expressão latina rebus sic stantibus, transposta para o plano processual penal, assume um significado técnico específico: o despacho de reapreciação da prisão preventiva apenas pode alterar o estatuto coactivo do arguido se tiverem ocorrido modificações relevantes, de facto ou de direito, que possam justificar a substituição ou revogação da medida aplicada.
É, pois, ilegítima qualquer abordagem que trate o reexame como nova oportunidade de reapreciar genericamente os perigos processuais, quando a realidade dos autos permaneceu inalterada.
Ou seja, e em coerência, o reexame da prisão preventiva não pode servir como meio de:
i. Suprir deficiências de fundamentação da decisão inicial;
ii. Introduzir novos fundamentos não constantes da decisão originária;
iii. "Refazer" a análise dos perigos processuais em abstracto, sem qualquer inovação fáctica ou jurídica.
Permitir tal amplitude seria equivalente a permitir ao juiz decidir sucessivamente o que já foi decidido, com manifesto prejuízo para a segurança jurídica e para a estabilidade da posição processual do arguido. In casu, o recurso interposto incide sobre o despacho judicial proferido no âmbito do reexame periódico da medida de coacção de prisão preventiva, nos termos do artigo 213.º, n.º 1, a) do Código de Processo Penal (CPP). Trata-se de uma decisão jurisdicional com natureza confirmatória, proferida na sequência da verificação oficiosa, por parte do juiz, dos pressupostos que justificam a manutenção da medida privativa de liberdade.
Ora, o despacho proferido ao abrigo do artigo 213.º do CPP não se destina a reapreciar ex novo a legalidade da medida de coacção previamente aplicada, mas sim a verificar se os fundamentos anteriormente invocados se mantêm válidos, à luz da realidade processual superveniente.
É que a decisão que impõe a prisão preventiva é intocável enquanto não se verificar alteração, em termos atenuativos, das circunstâncias que a fundamentaram. A reapreciação ao abrigo do art.º 213.º CPP tem natureza confirmatória e não reconstrutiva da decisão inicial.
i. O recorrente limita-se a retomar no recurso os argumentos:
ii. Alega falta de fundamentação do despacho de reapreciação;
iii. Defende que a prisão preventiva é desproporcional;
iv. Sustenta a suficiência da medida de obrigação de permanência na habitação.
Contudo, tais fundamentos:
i. Foram integralmente ponderados e valorados na decisão originária de aplicação da medida de prisão preventiva;
ii. Não são acompanhados da invocação de quaisquer elementos novos ou alterações supervenientes que tornem necessário novo juízo de mérito;
iii. Não colocam em crise os fundamentos concretos então identificados, designadamente o perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação da tranquilidade das vítimas (art.º 204.º, alíneas b) e c) do CPP).
Assim, não é admissível que o arguido reitere argumentos que já foram definitivamente apreciados, sem que alegue factos novos ou alteração objectiva das circunstâncias que possam justificar reapreciação. O objecto do recurso, por isso, quanto a estas questões e as demais invocadas são extemporâneas e legalmente improcedentes.
Efectivamente, não cabe ao arguido provocar, por via de recurso do despacho de reexame, uma reapreciação de mérito do despacho originário; para tal, existe a via do recurso directo da decisão inicial de aplicação da medida.
Pelo exposto, impõe-se a sua total improcedência, com a consequente manutenção da medida de coacção de prisão preventiva, nos termos e com os fundamentos supra expendidos.
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V- DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da 3ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e confirmar o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em 4 (quatro) Ucs..
Dê imediato conhecimento do teor deste acórdão ao tribunal “a quo”, com indicação de que se não mostra ainda transitado em julgado.
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Lisboa e Tribunal da Relação, 21-05-2025 Processado e revisto pelo relator (art.º 94º, nº 2 do CPP). Ortografia conforme pré-acordo
Alfredo Costa
Rosa Vasconcelos
Carlos Alexandre