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CONTRA-ORDENAÇÃO
COMPETÊNCIA
JUROS
Sumário
Sumário (elaborado pelo relator): O tribunal da concorrência, regulação e supervisão é competente em razão a matéria para conhecer de um pedido de pagamento de juros respeitantes a quantia resultante de coima paga em excesso.
Texto Integral
Acordam os Juízes que compõem esta Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO.
A EDP – GESTÃO DA PRODUÇÃO DE ENERGIA, S.A. (por diante também apenas “EDP”), interpõe recurso do despacho judicial proferido em 06.02.2025 que julgou o tribunal materialmente competente para apreciar o pedido de pagamento de juros formulado pela Requerente.
Pediu, em concreto, que:
“NESTES TERMOS E OUTROS MAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, A ORA RECORRENTE RESPEITOSAMENTE REQUER:
a) seja revogado o despacho recorrido e reconhecida a competência material do TCRS para apreciar o pedido de juros;
b) seja desde já determinado o pagamento dos juros legalmente devidos à EDP Produção, por referência ao valor de € 8.000.000 (oito milhões de euros) indevidamente cobrados, contabilizados por referência ao período entre 21.10.2021 e 17.01.2025, à taxa legal aplicável, no valor total de € 1.038.027,40 (um milhão e trinta e oito mil euros e vinte e sete euros e quarente cêntimos), fazendo subtrair esse montante ao valor de € 40.000.000 que continua depositado nos autos à ordem do TCRS;
c) seja, simultaneamente, determinado o pagamento de juros sobre juros daquele valor de € 1.038.027,40 (um milhão e trinta e oito mil euros e vinte e sete euros e quarente cêntimos), à taxa legal aplicável, por referência ao período entre 17.01.2025 e a data do seu pagamento, fazendo subtrair esse montante ao valor de € 40.000.000 que continua depositado nos autos à ordem do TCRS;
d) caso subsistam dúvidas sobre a questão da competência material, seja submetido o pedido de consulta prejudicial, nos termos do capítulo III. do presente Recurso e do seu Anexo I;
e) caso subsistam dúvidas sobre o direito a juros da EDP Produção no caso vertente, que seja promovido o reenvio prejudicial, nos termos descritos no capítulo V. do presente recurso.”
A recorrente apresentou as seguintes conclusões:
1. O presente Recurso é interposto contra o despacho do TCRS de 06.02.2024, que decidiu não apreciar o pedido de pagamento de juros formulado pela EDP Produção, com fundamento na sua incompetência material.
A COMPETÊNCIA MATERIAL DO TCRS
§ 2. Erradamente, o TCRS afirma a sua incompetência material por apelo aos seguintes argumentos:
(vii) ausência de regulação no direito interno sobre o procedimento de pagamento de juros (cfr. §60);
(viii) a circunstância de não ser o Tribunal o devedor dos juros requeridos (cfr. § 61);
(ix) o facto de não estar depositada à ordem dos autos qualquer quantia que caiba ao Tribunal decidir (cfr. § 62);
(x) a inexistência de norma de competência habilitante no artigo 112.º da Lei
n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário, “LOSJ”) (cfr. §§ 64 e ss.);
(xi) não resultar do artigo 7.º do Código de Processo Penal, nem do artigo 6.º, n.º 1, do Código de Processo Civil um mandamento habilitante à sua competência material (cfr. §§ 71-72);
(xii) existência de meios alternativos de reclamação do crédito perante as entidades públicas ou o Estado (cfr. § 75 e ss.).
§ 3. Em primeiro lugar, não é verdade que inexista regulação sobre o procedimento a seguir para a decisão e a efetivação do pagamento dos juros.
§ 4. Essa regulação resulta do Direito da União Europeia, concretamente do artigo 266.º do TFUE, tal como vem sendo aplicado pelo TGUE e TJUE, sendo que essa disposição do TFUE goza de aplicabilidade direta na ordem nacional, ex vi artigo 8.º, n.º 4, da Constituição.
§ 5. Não existe, no direito nacional, qualquer disposição legal que obste à aplicação direta e integral do disposto no artigo 266.º do TFUE, na interpretação do mesmo que vem sendo veiculada pelo Tribunais da União — tal aplicação é, aliás, imposta pelo princípio do primado do Direito da União e pelo princípio da interpretação conforme.
§ 6. Não há dúvidas, nem isso é posto em crise no despacho recorrido, que o Direito da União prevê o direito das entidades visadas a serem compensadas pela coima paga que venha a ser, posteriormente, total ou parcialmente anulada no contexto de processo por infração ao direito da concorrência, incluindo em processos tramitados ao nível das ordens jurídicas nacionais, e mesmo por referência a pagamentos realizados a título provisório. Isso mesmo resulta entre outros, dos seguintes Acórdãos: Acórdão do TGUE de 10.10.2011 (ECLI:EU:T:2001:249) (caso CORUS); Acórdão do TGUE de 12.02.2019 (ECLI:EU:T:2019:81) (caso PRINTEOS, SA); Acórdão do TGUE de 19.01.2022 (ECLI:EU:T:2022:15) (caso DEUTSCHE TELEKOM AG); Acórdão do TJUE de 20.01.2021 (ECLI:EU:C:2021:39) (caso PRINTEOS, SA); Acórdão do TJUE de 28.04.2022 (ECLI:EU:C:2022:306) (caso GRÄFENDORFER GEFLÜGEL E OUTROS); Acórdão do TJUE de 11.06.2024 (ECLI:EU:C:2024:488) (caso DEUTSCHE TELEKOM AG).
§ 7. Esta Jurisprudência define o modo de operacionalização deste direito a juros, explicando que a compensação sob a forma de juros tem de ser calculada tomando como referência inicial a data da realização do pagamento provisório da coima e como termo final a data do reembolso do montante da coima que foi anulado.
§ 8. Decorre também do Direito da União, por um lado, que as autoridades nacionais,
incluindo os seus tribunais, também têm de garantir e efetivar este direito a juros, e, por outro lado, dúvidas não há ao abrigo do Direito da União que o mesmo Tribunal que julga a infração ao direito da concorrência é também competente para arbitrar os juros devidos pela anulação parcial ou total desse coima.
§ 9. Importa sublinhar que, neste processo, tanto a Autoridade da Concorrência como os Tribunais nacionais aplicaram e sancionaram a EDP Produção por infração
ao disposto no artigo 102.º do TFUE – competência sancionatória e jurisdicional que lhes é atribuída pelo Regulamento n.º 1/2003 (ou seja, e novamente, por irradiação do Direito da União).
§ 10. Muito se estranha que o mesmo TCRS que decidiu proceder à devolução do valor de € 8.000.000 (oito milhões de euros) ilegalmente cobrados à EDP Produção, se declare agora incompetente para arbitrar os juros daí resultantes: é que, seguindo a (i)lógica a quo, também não existe regulação no âmbito do direito nacional para processar a devolução de coimas total ou parcialmente anuladas (nem o TCRS invocou qualquer base legal nesse sentido), sendo tal expediente sempre enquadrado no âmbito dos gerais poderes judiciais de conformação e modelação da execução da decisão.
§ 11. Em segundo lugar, não tem sentido o argumento a quo sobre não ser o TCRS o “devedor” dos juros.
§ 12. Há aqui uma errada confusão entre competência material e qualidade de devedor: a qualidade de devedor não é critério atributivo de competência material dos Tribunais.
§ 13. De resto, e novamente, o TCRS não viu qualquer obstáculo à devolução do valor de € 8.000.000 (oito milhões de euros) ilegalmente cobrados à EDP Produção — embora também não fosse o TCRS devedor desse valor.
§ 14. Em terceiro lugar, não colhe a tese a quo de que o TCRS não pode decidir sobre o pedido de juros por não estar depositada à ordem dos autos qualquer quantia.
§ 15. A eventual ausência de qualquer depósito à ordem dos autos naturalmente não
impede um Tribunal de determinar o pagamento de qualquer quantia que seja (como aqui é) legalmente devida.
§ 16. Neste caso concreto, há efetivamente quantias depositados à ordem dos autos, concretamente os € 40.00.000 (quarenta milhões de euros) remanescentes do pagamento realizado pela EDP Produção em 20.10.2021 (conforme confirmado em comunicação escrita do IGFEJ datada de 30.12.2024 (referência CITIUS 90255)).
§ 17. Em quarto lugar, o despacho recorrido aplica erradamente o artigo 112.º da LOSJ, que efetivamente prevê a sua competência material para a apreciação do pedido da EDP Produção.
§ 18. Desde logo, o TCRS era (e é) competente por estar em causa uma questão relacionada com a execução da decisão condenatória proferida nestes autos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, concretamente a parte referente à diminuição da coima aplicada (cfr. artigo 112.º, n.º 1, da LOSJ).
§ 19. O enquadramento do direito a juros como uma vicissitude de execução da decisão foi já afirmado pelo TJUE (Acórdão do TJUE de 11.06.2024 (ECLI:EU:C:2024:488) no caso DEUTSCHE TELEKOM AG).
§ 20. Ademais, a mesma competência do TCRS decorre ainda do n.º 3 do mesmo artigo 112.º da LOSJ, na parte em que se habilita a competência daquele Tribunal para apreciar pedidos indemnizatórios que se fundamentam em infrações ao direito da concorrência.
§ 21. A natureza indemnizatória do direito a juros foi já várias vezes afirmada pelo TGUE e TJUE (por exemplo, no Acórdão de 20.01.2021 (ECLI:EU:C:2021:39), no âmbito do aludido caso PRINTEOS, SA).
§ 22. Mesmo que assim não se entendesse, a competência para apreciar o pedido de juros estaria sempre abrangida pela norma de competência subsidiária que resulta do n.º 5 do artigo 112.º da LOSJ, que alude à competência do TCRS para decidir sobre “os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões”.
§ 23. A norma que resulta da interpretação, isolada ou conjunta, do artigo 112.º, n.os 1, 3 e 5 da LOSJ, no sentido de que o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão não é materialmente competente para apreciar e decidir pedidos de pagamento de juros devidos pela anulação parcial de coima aplicada em processo por infração ao direito da concorrência é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º, 20.º, n.º 4, 32.º, n.os 9 e 10, 203.º da CRP, inconstitucionalidade que se invoca para todos os efeitos legais.
§ 24. Em quinto lugar, ainda que se quisesse fugir à LOSJ (no que não se concede), a competência do TCRS sempre seria uma consequência natural da projeção do princípio da suficiência (artigo 7.º do Código de Processo Penal, subsidiariamente aplicável) e do princípio e dever de adequação processual (artigo 6.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável).
§ 25. Nem se diga que o princípio da suficiência e o dever de adequação processual não teriam o alcance de permitir a afirmação desta competência material por eventual contradição com norma de competência em sentido distinto: por um lado, porque não vigora qualquer norma de competência em sentido contrário; por outro lado, porque resulta do Direito da União Europeia que a questão dos juros deverá ser tratada no mesmo processo (e no mesmo tribunal) onde a redução da coima foi decidida
§ 26. Em sexto lugar, o sugerido direcionamento do pedido de juros para um procedimento de intimação direta de entidades públicas ou para um processo judicial autónomo teria como consequência afastar o pedido de juros do processo no qual se verificou a sua causa de pedir.
§ 27. Sendo certo que forçar a tramitação do pedido de juros num procedimento autónomo, ou perante Tribunal ou autoridade distinta, configuraria sempre uma desaplicação do Direito da União, geradora, aliás, de desigualdades entre cidadãos de Estados-Membros.
§ 28. Em consequência do que vai exposto, errou o Tribunal a quo ao declarar a sua incompetência material para apreciar o pedido de juros formulado pela EDP Produção.
SUBSIDIARIAMENTE: PEDIDO DE CONSULTA PREJUDICIAL PARA RESOLUÇÃO DA QUESTÃO DA COMPETÊNCIA
§ 29. Na eventualidade de subsistirem quaisquer dúvidas quanto à jurisdição competente para julgar o presente incidente, entende a Recorrente que deverá submeter-se, em pedido de consulta prejudicial, essa questão ao Tribunal de Conflitos, abrigo do disposto no artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 91/2019.
§ 30. Verificam-se os pressupostos de que depende a aludida consulta, uma vez que está pendente incidente e recurso, foram já suscitadas fundadas dúvidas sobre a competência judicial (aliás, dúvidas que resultam também da própria decisão recorrida), e o processo não assume natureza urgente.
O DIREITO A JUROS COMO DECORRÊNCIA DA VIOLAÇÃO DO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
§ 31. Verificada que está a competência material do TCRS, confirma-se, por maioria
de razão, igualmente a competência deste Venerando Tribunal da Relação para apreciar, nestes autos, o pedido de juros formulado pela EDP Produção. Na ótica da aqui Recorrente, estão, pois, reunidas todas as condições para que este Alto Tribunal possa, desde já, tomar essa decisão de fundo, em homenagem ao princípio da economia processual, e tendo também em vista evitar o agravamento do valor dos juros em dívida.
§ 32. Como decorre do Direito da União Europeia (artigos 266.º e 340.º do TFUE), e vem sendo reconhecido pelo TGUE e o TJUE, a anulação total ou parcial de coimas aplicadas no âmbito de processos por infração ao direito da concorrência impõe o correspondente reembolso das entidades visadas e, bem assim, a sua compensação sob a forma de juros.
§ 33. Isso mesmo resulta entre outros, dos seguintes Acórdãos: Acórdão do TGUE de 10.10.2011 (ECLI:EU:T:2001:249) (caso CORUS); Acórdão do TGUE de 12.02.2019 (ECLI:EU:T:2019:81) (caso PRINTEOS, SA); Acórdão do TGUE de 19.01.2022 (ECLI:EU:T:2022:15) (caso DEUTSCHE TELEKOM AG); Acórdão do TJUE de 20.01.2021 (ECLI:EU:C:2021:39) (caso PRINTEOS, SA); Acórdão do TJUE de 28.04.2022 (ECLI:EU:C:2022:306) (caso GRÄFENDORFER GEFLÜGEL E OUTROS); Acórdão do TJUE de 11.06.2024 (ECLI:EU:C:2024:488) (caso DEUTSCHE TELEKOM AG).
§ 34. Igualmente estabilizada está a aplicabilidade deste direito nos casos em que o pagamento da coima foi realizado a título provisório, enquanto condição para obter o controlo jurisdicional da decisão administrativa, como sucedeu in casu.
§ 35. Nos Acórdãos do TJUE PRINTEOS, SA e DEUTSCHE TELEKOM AG, por exemplo, a decisão de indemnizar através do pagamento de juros ocorreu no contexto de processos em que as coimas (entretanto parcial ou totalmente anuladas) haviam sido pagas a título provisório, como condição legal da interposição de recursos judiciais (como sucedeu com a EDP Produção).
§ 36. É também pacífico que, estando em causa a aplicação de disposições legais de Direito da União Europeia, concretamente de normas inscritas no TFUE, as mesmas vigoram de forma direta e plena nos ordenamentos jurídicos nacionais. Destarte, o direito a juros é também aplicável a procedimentos por infração ao direito da concorrência tramitados pelos Estados-Membros.
§ 37. Isso é confirmado no despacho a quo e foi afirmado em vários Acórdãos, por exemplo, Acórdão do TJUE de 11.06.2024 (ECLI:EU:C:2024:488) (caso DEUTSCHE TELEKOM AG).
§ 38. Estabilizada a vigência deste direito, importa referir que está também clarificada legalmente a regra sobre a contagem do prazo desses juros, pois que é entendimento do TJUE que o TFUE habilita ao recebimento de juros tomando como referência inicial a data da realização do pagamento provisório da coima e como termo final a data do reembolso do montante da coima que foi anulado (assim, de forma lapidar, o Acórdão do TJUE de 20.01.2021 (ECLI:EU:C:2021:39) (caso PRINTEOS, SA) e o Acórdão do TJUE de 11.06.2024 (ECLI:EU:C:2024:488) (caso DEUTSCHE TELEKOM AG)).
§ 39. Na sequência de despacho judicial deste Tribunal, a EDP Produção procedeu ao pagamento integral da coima, pela (então alegada) prática de infração à LdC e ao TFUE, no valor de € 48.000.000 (quarenta e oito milhões de euros), no dia 20.10.2021.
§ 40. O pagamento foi realizado a título provisório, nos termos do artigo 84.º, n.os 4 e 5, da LdC então em vigor.
§ 41. Através de Acórdão proferido em 25.09.2023, sob referência CITIUS n.º 20515236, o Tribunal da Relação de Lisboa determinou a redução da coima aplicada para € 40.000.000 (quarenta milhões de euros).
§ 42. A anulação parcial da coima anteriormente aplicada fez nascer os já recenseados direitos ao reembolso e a juros.
§ 43. São devidos juros de mora contados desde o dia seguinte à data do pagamento provisório (21.10.2021) até à data do pagamento dos devidos reembolso e compensação.
§ 44. Em 17.01.2025, o IGFEJ, em execução de despacho judicial do TCRS, ordenou a transferência do valor de reembolso € 8.000.000 (oito milhões de euros) para a conta bancária da EDP Produção; no entanto, não foram pagos os valores de juros correspondentes.
§ 45. Portanto, são devidos juros de € 8.000.000 (oito milhões de euros) desde 21.10.2021 até 17.01.2025.
§ 46. Mais: como, nessa data de 17.01.2025, não foram pagos os juros que eram então já devidos à EDP Produção, acrescem agora àquele montante também os juros resultantes do não pagamento desses juros.
§ 47. É pacífico no Direito da União Europeia o direito a estes juros sobre juros, aplicável nas situações – como a do caso vertente – em que é apenas reembolsado o valor indevidamente cobrado, mas não os juros daí resultantes, é também pacífica a sua aplicabilidade no âmbito de processo por infração ao direito da concorrência (cfr. Acórdão do TGUE de 10.10.2011 (ECLI:EU:T:2001:249) (caso CORUS); e Acórdão do TJUE de 20.01.2021 (ECLI:EU:C:2021:39) (caso PRINTEOS, SA)).
§ 48. Consequentemente, os juros devidos e agora em causa devem ser pagos à taxa de juros legal vigente de 4%, nos seguintes termos:
a. Quanto aos juros devidos de € 8.000.000 (oito milhões de euros), os mesmos têm de ser contabilizados por referência ao período entre 21.10.2021 e 17.01.2025, perfazendo, assim, um valor total de € 1.038.027,40 (um milhão trinta e oito mil e vinte e sete euros e quarente cêntimos);
b. Quanto aos juros devidos deste € 1.038.027,40, os mesmos têm de ser contabilizados entre 17.01.2025 e data do seu pagamento, também à aludida taxa legal de 4%.
E ainda:
§ 49. O Tribunal recorrido, anuindo ao direito a juros, elenca, ainda assim, duas supostas “dificuldades” no que respeita à projeção deste direito no caso vertente. A primeira, referente a uma sua dúvida sobre se, na teoria, o direito a juros é uma decorrência automática da anulação ou redução judicial da coima no quadro de uma violação ao artigo 102.º do TFUE – ou se esse direito só existe quando a anulação ou redução da coima é ancorada numa violação do Direito da União. A segunda, referente a uma sua outra dúvida sobre se, no caso concreto, os fundamentos da redução da coima aplicada à EDP Produção se consubstanciam, ou não, numa violação do Direito da União.
§ 50. A primeira “dificuldade” enunciada pelo Tribunal a quo é fácil de ultrapassar: o TCRS não compreendeu corretamente qual é a génese do direito aos juros, na medida em que erradamente supõe que esse direito pode ser afastado consoante a concreta fundamentação que norteou a decisão de anulação, total ou parcial, da coima.
§ 51. Mas o direito a juros decorre, ao invés, do facto de se ter forçado uma visada a fazer um pagamento indevido no contexto do exercício de poderes sancionatórios direta ou indiretamente executivos de regras europeias (cfr. Acórdão do TJUE de 28.04.2022 (ECLI:EU:C:2022:306) (caso GRÄFENDORFER GEFLÜGEL E OUTROS)).
§ 52. Uma leitura teleológica do regime do direito a juros confirma este mesmo entendimento, uma vez que – como repetidas vezes afirmado pelo TJUE – este direito a juros visa indemnizar “a privação do gozo de um crédito e a incentivar o devedor a cumprir, o mais brevemente possível, a sua obrigação de pagar esse crédito”, bem como servir de “incentivo para a instituição em causa prestar especial
atenção quando da adoção dessas decisões, que podem implicar para o particular a obrigação de pagar imediatamente quantias consideráveis”.
§ 53. Assim compreendida a finalidade deste regime, fácil é perceber que o direito aos juros, visando induzir cautela e máxima certeza em quem aplica coimas, é, efetivamente, um direito que emerge como uma consequência do exercício a priori de competências sancionatórias no âmbito de infrações ao direito da concorrência.
§ 54. Por assim ser, improcede a “dificuldade” teórica apontada no despacho a quo.
Mais a mais, porque dúvidas não há, in casu, que a EDP Produção foi condenada tendo por base um processo que foi instaurado, tramitado e decidido por referência a uma suposta infração ao artigo 102.º do TFUE, e ao abrigo do exercício de competências, por parte da Autoridade da Concorrência e dos tribunais nacionais, que provêm do Direito da União Europeia, concretamente dos artigos 4.º e 5.º do Regulamento 1/2003.
§ 55. Em todo o caso, e abordando agora a segunda “dificuldade” apontada a quo, sempre se acrescente que, mesmo na errada tese do despacho recorrido, ainda assim haveria que reconhecer o direito aos juros da EDP Produção, pois que que o montante de coima que lhe foi indevidamente cobrado, à uma, resulta da aplicação errada de normas com raiz imediata ou mediata no Direto da União Europeia, e, às duas, foi parcialmente anulada por este Tribunal da Relação de Lisboa com fundamento na violação de regimes que são, também eles, de jaez europeia.
§ 56. A EDP Produção foi condenada pela alegada prática de uma infração ao disposto no artigo 102.º do TFUE, tendo sido punida uma coima prevista nos artigos 68.º, n.º 1, alínea b), 69.º da Lei da Concorrência.
§ 57. Essa condenação ocorreu ao exercício de competências previstas no artigo 5.º do Regulamento n.º 1/2003, que estabelece o princípio das competências partilhadas entre a Comissão e as autoridades da concorrência nacionais, e admite que a AdC e os Tribunais nacionais possam aplicar o artigo 102.º do TFUE, incluindo para impor coimas, sanções pecuniárias compulsórias ou qualquer outra sanção.
§ 58. Logo, dúvidas não há que, in casu, foi a violação de normas de Direito da União
Europeia (de forma imediata e, no que concerne às disposições da LdC, de forma mediata) que levaram à anulação parcial da coima.
§ 59. Decisivamente neste sentido, note-se que no Acórdão do TJUE de 28.04.2022 (ECLI:EU:C:2022:306) (caso GRÄFENDORFER GEFLÜGEL E OUTROS), acima citado, foi já afirmado (concretamente no seu § 53) que o direito a juros também se aplica a casos como o da EDP Produção, em que a autoridade da concorrência nacional impõe indevidamente o pagamento de uma coima com base em disposições processuais de direito interno.
§ 60. Mais: os critérios que orientaram a coima aplicada à EDP Produção foram aqueles inscritos nas Linhas de Orientação da AdC, que especificamente referem que se destinam a orientar as coimas aplicáveis por infrações ao TFUE e que seguem, para esse fim, o disposto nas ientações da Comissão Europeia para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.º 2, alínea a), do artigo 23.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003 (cfr. § 6 das Linhas de Orientação).
§ 61. Ao que se soma o facto de, no seu Acórdão, a Tribunal da Relação de Lisboa ter invocado também o disposto o artigo 88.º da Lei da Concorrência, cuja aplicação é necessariamente feita à luz da jurisprudência do TJUE.
§ 62. Por tudo isto, dúvidas não restam de que a coima foi parcialmente anulada por este Tribunal da Relação de Lisboa com fundamento na violação de normas com raiz imediata e mediata no Direto da União Europeia, ainda que tal correspondência decisória nem seja, como se viu, legalmente exigida para fazer emergir o direito a juros.”
Admitido o recurso, a AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA ("AdC"), apresentou “resposta à motivação do recurso”, não tendo formulado conclusões, mas pedindo que “(…) deverá ser negado provimento ao recurso e, em consequência, ser mantido o Despacho Recorrido.”
Também o Ministério Público apresentou resposta ao recurso, tendo produzido a extensa “síntese conclusiva” a qual pode ser resumida no seguinte:
. O requerido pagamento de juros convoca a discussão em torno da responsabilidade civil extracontratual do Estado Português;
. Todos os pedidos recursivos da Recorrente EDP, entre os quais se incluem o pedido de reenvio prejudicial ao TJUE, e o de consulta prejudicial ao Tribunal de Conflitos nos termos do disposto no artigo 15.º/1 da Lei 91/2019, e, o de o Venerando TRL se substituir ao TCRS, ordenando o pagamento dos juros peticionados, para não agravar o respectivo montante, e, ainda, o de pagamento de juros sobre juros são, claramente, ilegais, confrontam o Tribunal com vícios de inconstitucionalidade e não têm apoio no direito e na jurisprudência da EU;
. A jurisdição plena do TCRS não é exclusiva do setor da concorrência antes é um princípio consolidado no direito das contraordenações nacional;
. Não existe vazio na ordem jurídica nacional relativamente ao pagamento de juros decorrente da violação de normas dos Tratados na atividade jurisdicional, tendo a ordem nacional rececionado o princípio previsto no artigo 340.º do TFUE no regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado da Lei 67/2007;
. No direito da UE, não existe um princípio de pagamento automático de juros;
. A Lei 67/2007 não prevê para a responsabilidade civil extracontratual do Estado a repetição do indevido com o pagamento automático de juros e o artigo 266.º do TFUE respeita unicamente à execução de concretas decisões do TJUE;
. O TCRS não tem competência material para condenar o Estado ao pagamento de juros;
. Do teor dos artigos 340.º e 266.º do TFUE não decorre a competência material do TCRS para no âmbito de um recurso de impugnação judicial jus concorrencial determinar o pagamento automático ou condenar o Estado ao pagamento ao visado de juros moratórios ou compensatórios que viu a sua sanção reduzida em sede de recurso de sentença e já havia pago antecipada e provisoriamente toda a coima;
. A competência interna dos tribunais nacionais, a sua repartição na ordem jurídica interna é exclusivamente uma questão de direito processual interno sem qualquer impacto na aplicação do direito da EU;
. A lei portuguesa não consagra o pagamento automático de juros e de juros sobre juros, tal como no Direito da UE também não vigora esse princípio de pagamento automático, oficioso, de juros, tal como resulta do disposto no artigo 340.º do TFUE e está vertido no Acórdão Gräfendorfer do TJUE de 28/4/2022 citado nos pontos 80 e 81 do douto despacho recorrido;
. O TJUE não tem competência para delimitar a competência dos Tribunais internos dos Estados-Membros, ou, para desaforar procedimentos processuais internos;
. O pedido de reenvio proposto pela Recorrente está enunciado em termos de submeter ao TJUE a questão como se o pagamento de juros fosse automático, não dependente de violação de norma dos tratados, assim completamente alheio e dissonante do previsto no artigo 340.º/2 do próprio TFUE, e do artigo 41.º/3 da CDFUE;
. Se fosse alargada a competência material do TCRS ou mesmo do TRL de modo a ser determinado o pagamento de juros, estar-se-ia a violar o princípio do juiz natural/legal consagrado entre outros nos artigos 47.º da CDFUE, 6.º/1 da CEDH e 32.º/9 da CRP, enquanto corolário do princípio constitucional da independência dos tribunais – artigo 203.º da CRP – já posto que inexiste norma legal que consagre previamente a competência do TCRS para condenar o Estado ao pagamento de juros.;
. O TCRS não é competente para executar a eventual decisão do TJUE, o pedido de reenvio prejudicial é inútil e ilegal, e está prejudicado pelo vício de incompetência absoluta do TCRS, tendo o TCRS julgado o meio processual usado impróprio, viu-se impossibilitado legalmente de dar cumprimento ao artigo 33.º/1 do CPP, enviando o processo ao tribunal competente, ou de convolar o processado nos termos do artigo 193.º do CPC.”
Termina pedindo:
“(…) o recurso pós sentença de EDP deverá ser julgado manifestamente improcedente, por se mostrar sem qualquer base legal e jurisprudencial, seja de direito nacional, seja de direito da UE, incorrendo em manifestos vícios de inconstitucionalidade e propondo evidentes implausíveis soluções de direito, o mesmo acontecendo com o pedido de reenvio prejudicial e o pedido de consulta prejudicial ao Tribunal de Conflitos que deverão ser indeferidos, devendo manter-se o douto despacho recorrido.
VEXAS, farão como sempre JUSTIÇA *
Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, apôs o seu visto.
Foram colhidos os Vistos.
***
II. Fundamentação de Facto.
Com interesse para a boa decisão da causa, os factos são os que constam do relatório.
III. Fundamentação Jurídica.
O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. os artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2 e 410º, n.º 2, als. a), b) e c) do Código de Processo Penal).
Assim, há apenas 1 (uma) questão a decidir que é a de saber se o tribunal a quo errou ao declarar-se materialmente incompetente para conhecer do pedido de pagamento de juros formulado pela ora recorrente.
Sendo a decisão em recurso tão só a da já referida declaração de incompetência material, está para além do objeto deste recurso qualquer questão relativa ao direito aos juros, seu montante e entidade encarregue do seu pagamento. Tais matérias não respeitam à determinação da competência do órgão recorrido, mas ao mérito do recurso, após pressuposta, ou declarada, competência para proferir decisão.
Significa o exposto que apenas é objeto deste recurso o pedido formulado em “a)” do requerimento de recurso. Isto é: “ seja revogado o despacho recorrido e reconhecida a competência material do TCRS para apreciar o pedido de juros”.
Não se apreciando os restantes pedidos.
Vejamos Errou o tribunal a quo ao declarar-se materialmente incompetente para conhecer do pedido de pagamento de juros formulado pela ora recorrente?
O pedido formulado, como consta da decisão em recurso, era o seguinte:
“(…) seja determinado o pagamento de juros relativo ao pagamento provisório por si efetuado e, entretanto, anulado, de € 8.000.000 (oito milhões de euros), à taxa de juros legal vigente de 4% contados desde o dia 21.10.2021, conforme disposto no artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 3/2010, de 27 de abril, no artigo 806.º, n.º 2, do Código Civil, e na Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.
Tal como consta da decisão em recurso, a ora recorrente, “Sustenta o seu pedido no requerimento com a ref.ª 85691, pontos 1 a 28.”
Sem prejuízo do devido respeito por outra opinião, entendemos que assiste razão à recorrente.
Pese embora a extensa e laboriosa fundamentação do tribunal a quo, entendemos que existem fundamentos legais que impõem a solução contrária aquela que aí foi proferida.
Como já referimos, não está em causa, agora, apurar se a recorrente tem direito aos concretos juros que reclama; ou quem deve proceder à sua entrega caso se entendam devidos. O que está em discussão é, unicamente, renova-se, apurar se o TRCS é materialmente competente para apreciar este pedido, tal como ele foi formulado pela recorrente. Tudo o mais é questão de mérito, pressuposta a competência material.
Perante este pressuposto, cremos que se afigura no mínimo estranho que o tribunal a quo, que se afirma, a final, incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido, tenha apreciado, extensamente e com excelente fundamentação, a questão, já de mérito, respeitante ao direito da recorrente aos juros (pág.s 3 a 19).
A páginas 19 e seguintes o tribunal a quo indica as razões pelas quais entende não ter competência material para conhecer do pedido formulado.
Em síntese, os fundamentos de tal decisão, tal como identificados pela recorrente, são os seguintes:
. Ausência de regulação no direito interno sobre o procedimento de pagamento de juros;
. O Tribunal não é o devedor dos juros requeridos;
. Não está depositada à ordem dos autos qualquer quantia que caiba ao Tribunal decidir;
. Inexistência de norma de competência habilitante no artigo 112.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário, “LOSJ”);
. A competência não resulta nem do artigo 7.º do Código de Processo Penal, nem do artigo 6.º, n.º 1, do Código de Processo Civil;
. Existem meios alternativos de reclamação do crédito perante as entidades públicas ou o Estado.
A competência do TCRS, mostra-se prevista no artigo 112.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto:
1 - Compete ao tribunal da concorrência, regulação e supervisão conhecer das questões relativas a recurso, revisão e execução das decisões, despachos e demais medidas em processo de contraordenação legalmente suscetíveis de impugnação:
a) Da Autoridade da Concorrência (AdC);
(…)
2 - Compete ainda ao tribunal da concorrência, regulação e supervisão conhecer das questões relativas a recurso, revisão e execução:
a) Das decisões da AdC proferidas em procedimentos administrativos a que se refere o regime jurídico da concorrência, bem como da decisão ministerial prevista no artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 10/2003, de 18 de janeiro;
b) Das demais decisões da AdC que admitam recurso, nos termos previstos no regime jurídico da concorrência.
3 - Compete ao tribunal julgar ações de indemnização cuja causa de pedir se fundamente exclusivamente em infrações ao direito da concorrência, ações destinadas ao exercício do direito de regresso entre coinfratores, bem como pedidos de acesso a meios de prova relativos a tais ações, nos termos previstos na Lei n.º 23/2018, de 5 de junho.
4 - Compete ainda ao tribunal julgar todas as demais ações civis cuja causa de pedir se fundamente exclusivamente em infrações ao direito da concorrência previstas nos artigos 9.º, 11.º e 12.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, em normas correspondentes de outros Estados-Membros e/ou nos artigos 101.º e102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia bem como pedidos de acesso a meios de prova relativos a tais ações, nos termos previstos na Lei n.º 23/2018, de 5 de junho.
5 - As competências referidas nos números anteriores abrangem os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.
Impõe-se adiantar, desde já, que, tal como a decisão em recurso reconhece, a jurisprudência do TJUE é pacífica quanto à necessidade do direito interno prever mecanismos que não tornem excessivamente difícil ou praticamente impossível o exercício do direito ao pagamento de juros garantido pelo direito da União.
A decisão em recurso, com pleno propósito, afirma que:
“28. O Tribunal de Justiça esclareceu ainda que a declaração deste direito tanto a um reembolso como ao pagamento de juros ao administrado decorrente da violação do direito da União e ao abrigo do referido princípio geral não é da competência exclusiva do juiz da União, que é o único competente para anular um ato da União ou para declarar a sua invalidade, mas também pode ser efetuada “por um órgão jurisdicional nacional, quer este seja chamado a retirar as consequências de uma prévia declaração de ilegalidade ou de invalidade do juiz da União”, “quer a declarar que um ato adotado por uma autoridade nacional está inquinado por errada aplicação do direito da União”. Sublinha, a este propósito, que “o artigo 19.º TUE confia a responsabilidade de assegurar a plena aplicação do direito da União em todos os Estados-Membros e a proteção judicial que os administrados retiram desse direito não apenas ao próprio juiz da União, mas também aos órgãos jurisdicionais nacionais, que têm assim por missão, em colaboração com o referido juiz,assegurar o respeito do direito na interpretação e na aplicação dos Tratados” - Acórdão do Tribunal de Justiça de 28.04.2022, proferido nos processos apensos C-415/20, C-419/20 e C-427/20, Gräfendorfer Geflügel e Outros7, § 66 e 67.
29. No que respeita ao modo e termos de efetivação destes direitos reiterou o Tribunal que, conforme resulta de jurisprudência constante, na falta de legislação da União, compete à ordem jurídica interna de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos em caso de reembolso de montantes cobrados em violação do direito da União. Todavia, essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, exigência cujo respeito implica, nomeadamente, que não sejam estruturadas de modo a tornar excessivamente difícil ou praticamente impossível o exercício do direito ao pagamento de juros garantido pelo direito da União” - Acórdão do Tribunal de Justiça de 28.04.2022, proferido nos processos apensos C-415/20, C-419/20 e C-427/20, Gräfendorfer Geflügel e Outros8, § 74. “
(são nossos os sublinhados)
Será, pois, no contexto desta jurisprudência que a questão, da competência material, será apreciada. Sendo que, ressalvado o devido respeito, ao remeter a recorrente para a vontade do “devedor”, para um procedimento ou uma jurisdição que não identifica, com a finalidade de obter os juros pedidos, a decisão em recurso não está a dar o melhor cumprimento à jurisprudência referida:
“76. Caberá, então, ao Estado (ou Adc) decidir se há ou não fundamento para pagar. Por sua vez, caberá à Autora decidir se quer ou não acionar o eventual devedor por via judicial. E ao aludirmos a via judicial não estamos a afirmar que se trate de uma ação de responsabilidade civil extracontratual do Estado, ao abrigo da Lei n.º 67/2007. Neste plano, concordamos com a Requerente no sentido de que o direito que pretende exercer não se inclui nesse regime.
77. Contudo, tratar-se-á de qualquer modo duma ação judicial de condenação do Estado (ou AdC), por via da qual o Tribunal (qualquer que seja o Tribunal competente) irá aferir da existência do seu direito (que face às dificuldades que enunciámos não tem ou pode não ter a automaticidade que a Requerente lhe atribui) e, no final e em caso de procedência, condenar o Estado (ou AdC)”.
A decisão em recurso foi precedida, como os autos indicam, por algumas diligências por parte do tribunal.
Determinou-se a notificação da AdC e do MP para se pronunciarem sobre o pedido, designadamente, de reenvio prejudicial e o “IGFEJ para esclarecer, no prazo de dez dias, se o montante pago pela EDP a título de coima no valor de € 48.000.000,00 esteve imobilizado, sem qualquer utilização à ordem dos presentes, ou se tendo sido utilizado, qual a utilização que foi efetuada e ao abrigo de que regime legal”.
Todos estes atos processuais pressupõem a competência material do tribunal, pelo que, cremos, pelo menos em determinada ocasião o TCRS teve dúvidas quanto à sua competência material para apreciar o requerido.
Voltando à questão em apreciação, é entendimento deste tribunal que a competência material do TCRS resulta do disposto no artigo 112.º, ns. 1, al. a) e 5, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.
A apreciação desta questão não pode, entendemos, abstrair-se das razões que lhe deram causa. A decisão em recurso afirma-o expressamente e não há litígio quanto a tal circunstância: o pedido de pagamento de juros resulta da impugnação judicial parcialmente bem sucedida por parte da recorrente da decisão condenatória da AdC, confirmada pelo TCRS, junto deste tribunal da Relação.
Os juros pedidos, melhor, a apreciação da matéria referente aos juros pedidos, não pode abstrair-se do que, segundo a recorrente, lhe dá causa: 8.000.000,00 Euros, resultantes da diferença de 48.000.000,00 Euros por si entregues no cumprimento de um ónus e uma faculdade decorrente da impugnação judicial de uma decisão da AdC que a havia condenado nessa coima e a decisão do Tribunal da Relação que reduziu essa condenação para o montante de 40.000.000,00 Euros.
Ou seja, não estamos a apreciar a condenação de qualquer entidade no pagamento de juros, por uma qualquer causa invocada. O que está em causa, no pedido concretamente formulado ao TCRS, é a devolução dos juros respeitantes à privação temporária de capital resultante da diferença entre a condenação decidida pela AdC (e do TCRS) e da Relação.
Importa precisar que o pedido formulado respeita a juros compensatórios, ou seja aqueles que se destinam a compensar uma privação temporária do capital que o requerente não deveria ter suportado, distinguindo-se dos juros moratórios ou compulsórios. Sendo, portanto, ressalvado o devido respeito, despropositado apelar a regimes de responsabilização extracontratual.
Os juros pedidos respeitam a capital determinado, expressamente identificado.
E, como a decisão em recurso, refere (e não há litígio quanto a tais factos), “Já foi determinada a restituição à Requerente da diferença entre o montante pago e o montante devido pretendendo a mesma ser reembolsada de juros de mora desde o momento do pagamento dos € 48.000.000,00 e a devolução dos € 8.000.000,00” (pág. 3, ponto 10).
Perante estes factos, cremos que a questão em apreciação e identificada pelo tribunal a quo como referente à “diferença entre o montante pago e o montante devido” é da competência do TCRS, por força da conjugação do disposto no referido 112.º, ns. 1, al. a) e 5, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, ao determinar que o TCRS é competente para executar as suas decisões. Entendendo-se por decisões todas aquelas que incidam sobre questões que devam ser apreciadas no âmbito da competência, designadamente, referida em 1, al. a).
No caso, o tribunal a quo até já determinou a devolução em singelo da diferença do montante das coimas (referência citius 481196).
É, cremos, isento de dúvida que a execução de uma decisão condenatória parcial implica a devolução da parte da coima paga em excesso, como tribunal a quo também entendeu.
Saber se a coima deve ser devolvida em singelo ou com juros é já questão de mérito, e não de competência material, atenta a natureza dos juros.
Como é, também, já questão de mérito o apuramento do responsável pelo pagamento. Sendo, contudo, irrelevante, para efeitos de aferição da competência material do TCRS, se existem dificuldades estatutárias ou organizacionais do Estado, ou da AdC. O recorrente é, tem de ser, alheio a essas vicissitudes que apenas respeitam ao “devedor”.
É irrelevante, para efeitos da competência do TCRS, que a coima (parte dela) esteja (ou não), ou tivesse estado (ou não), depositada à ordem do tribunal. A verificação da competência material em causa não obriga o tribunal a devolver ou entregar qualquer quantia, mas, unicamente, a determinar essa devolução ou entrega, como de resto, sucedeu com os 8.000.000,00 Euros, pagos em excesso.
Entendemos, pois, que a decisão não pode manter-se devendo ser substituída por outra que afirme a competência material do TCRS de conhecer o pedido formulado.
Todas as outras questões, designadamente a respeitante ao pedido reenvio prejudicial, mostram-se prejudicadas pelo que não há que as conhecer.
Não são devidas custas pela recorrente atento o vencimento, ainda que parcial (art. 513.º, n. 1, do CPP, aqui aplicável).
IV. Decisão.
Em face do exposto, acordamos em dar parcial provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido e julgar competente em razão a matéria o tribunal da concorrência, regulação e supervisão. Em consequência, o despacho recorrido deve ser substituído por outro que aprecie o pedido de pagamento de juros formulado pela recorrente EDP – GESTÃO DA PRODUÇÃO DE ENERGIA, S.A..
Sem custas.