CONTRA-ORDENAÇÃO
CUIDADOS DE SAÚDE
CULPA
MEDIDA DA COIMA
Sumário

SUMÁRIO (da responsabilidade do Relator)
1. Pratica a contraordenação prevista e punida nos termos dos artigos 12.º, alínea b) e 61.º, alínea b), subalínea ii), ambos dos Estatutos da ERS, na modalidade de rejeição infundada da prestação de cuidados de saúde, o serviço da arguida, englobado na rede do SNS, que não realiza um exame eco doppler arterial e venoso ao membro inferior direito do utente, com o pretexto de que apenas realizaria o eco doppler se fosse prescrito para ambos os membros inferiores.
2. Exigir-se, através de serviços meramente administrativos da arguida, uma nova prescrição para a realização de exame aos dois membros do mesmo utente, contrariando, assim, a prescrição originária, prescrição esta emitida, inclusive, por um médico que acompanhava um doente numa situação notoriamente sensível, é verdadeiramente incompreensível e manifestamente censurável.
3. Neste contexto, o recurso é julgado improcedente e é mantida a sentença recorrida.

Texto Integral

Acordam na Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO

Recorrente/arguida: Cedima Centro de Imagiologia Médica, S.A. (doravante, Cedima)
Recorrida/Entidade Supervisora: Entidade Reguladora da Saúde (doravante, ERS)

1. A arguida interpôs recurso de impugnação judicial da decisão da ERS, que a condenou numa coima no valor de 2.500,00 €, por violação das regras relativas ao acesso aos cuidados de saúde, por via da adoção de práticas de rejeição infundada de utentes, em estabelecimento prestador de cuidados de saúde com convenção/acordo com o SNS, na forma tentada, o que, nos termos das disposições conjugadas da alínea b) do artigo 12.º, da subalínea ii) da alínea b) do n.º 2 e do nº 5 do artigo 61.º, todas dos Estatutos da ERS, aprovados pelo Decreto-Lei n. 126/2014, de 22 de Agosto, constitui contraordenação.
2. Em 06-02-2025, foi proferida sentença (doravante, sentença recorrida) pelo TCRS, com o seguinte dispositivo:
Face ao exposto e pelos fundamentos expendidos, julgo totalmente improcedente a impugnação judicial deduzida pela Recorrente CEDIMA CENTRO 1370 DE IMAGIOLOGIA MÉDICA, S.A., contra a decisão da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) e, em consequência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 67.º dos Estatutos da ERS, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de Agosto, decido alterar a decisão impugnada, absolvendo a Recorrente da prática da contra-ordenação de que vinha acusada, na sua forma tentada, mas condenando-a pela prática da mesma infracção de que vinha acusada, consubstanciada na violação das regras relativas ao acesso aos cuidados de saúde, por via da adopção de práticas de rejeição infundada de utentes, em estabelecimento prestador de cuidados de saúde com convenção/acordo com o SNS, o que constitui uma contra-ordenação, prevista a punida nos termos das disposições conjugadas da alínea b) do artigo 12.º, da subalínea ii) da alínea b) do n.º 2 do artigo 61.º, todas dos Estatutos da ERS, aprovados pelo Decreto-Lei n. 126/2014, de 22 de Agosto, na sua forma consumada, na coima que mantenho no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).”.
3. Inconformada com a decisão judicial dela recorreu a Cedima para o presente tribunal da relação.
4. A Recorrente teceu as seguintes
conclusões e pedido (reprodução integral)
I. O presente recurso tem como objeto a sentença proferida nestes autos, em 6 de fevereiro de 2025, com a qual a Recorrente não se conforma e que deve ser revogada.
II. O Tribunal a quo andou mal ao manter a decisão da ERS, no referido processo contraordenacional, ao manter a verificação do tipo legal de infração e ao manter a imputação de conduta dolosa à Recorrente.
III. No caso dos autos discute-se a existência de um procedimento baseado em critérios clínicos e adotado pela Recorrente e se o mesmo pode configurar uma situação de recusa infundada de utentes.
IV. O Tribunal a quo reconheceu, suportado pela prova testemunhal, que a realização do exame de eco doppler de forma bilateral assentava em literatura médica e pratica hospital.
V. Concluindo, no entanto, que ainda assim existiu rejeição infundada do utente por parte da Recorrente.
VI. Não assiste qualquer razão ao Tribunal a quo, radicando a referida decisão numa errada aplicação do direito e de uma errada interpretação das normas jurídicas em causa, designadamente da alínea b) do artigo 12.º e a 2.ª parte da subalínea ii) da alínea b) do n.º 2 do artigo 61.º todas do Estatuto da ERS.
VII. A Recorrente não violou qualquer norma legal que qualifique a recusa de cuidados de saúde como infundada.
VIII. A Recorrente tinha instituído internamente um procedimento que determinava a realização bilateral do exame, portanto, a realização de eco doppler (arterial e venoso) aos dois membros inferiores dos utentes, independentemente do que fosse efetivamente prescrito pelos médicos assistentes dos utentes.
IX. O referido procedimento assentava em razões de ordem médica.
X. O utente A … acabou por realizou os exames prescritos, isto é, o eco doppler arterial e venoso aos dois membros inferiores.
XI. A Recorrente, numa ótica de melhoria dos seus próprios procedimentos, no seguimento do processo de inquérito ERS/…/2021e da Deliberação Final emitida pela ERS, alterou o procedimento em matéria de abordagem imagiológica dos membros inferiores.
XII. Do explanado nesta alegação e nestas conclusões, conclui-se que a Recorrente não praticou qualquer infração contraordenacional, na medida em que não praticou qualquer facto ilícito e censurável que preencha o tipo legal.
XIII. A Recorrente dá e sempre deu integral acesso aos seus serviços aos utentes beneficiários do SNS no âmbito das convenções celebradas.
XIV. A existência de um procedimento interno que prevê a necessidade de o exame eco doppler aos membros inferiores ser realizado de forma bilateral não pode ser entendida como a verificação de um ato de recusa de acesso de utentes aos serviços de saúde prestados pela Recorrente.
XV. O elemento subjetivo que compõe a contraordenação, não se encontra, no caso, preenchido, o que afasta a aplicação de qualquer coima.
XVI. Pelo exposto, a Recorrente não violou o disposto nos artigos 12.º, alínea b) e 61.º, n.º 2, alínea b), subalínea ii) dos Estatutos da ERS, não podendo a Recorrente ser sancionada ao abrigo de tais normativos legais, por errada aplicação do direito.
XVII. Ao decidir como decidiu, a Decisão recorrida violou, por não aplicação ou por aplicação e interpretação erradas, as normas constantes dos artigos 12.º, alínea b) e 61.º, n.º 2, alínea b), subalínea ii) dos Estatutos da ERS, artigos 1.º, 2.º e n.º 1 do 8.º do RGCO e o artigo 32.º n.ºs 1 e 10 da CRP.

DO PEDIDO:
Nestes termos e nos melhores do Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, e consequentemente, ser a sentença recorrida revogada e substituída por decisão que julgue a impugnação procedente, determinando a absolvição da Recorrente da infração em que foi condenada, bem como anulada a Deliberação decisória proferida no âmbito do Processo de Inquérito n.º ERS/…/2021, de 18 de abril de 2022.
Subsidiariamente, e caso assim não se entenda, deve considerar-se que a Recorrente agiu com simples negligência, leve e desculpável, devendo o valor da coima ser reduzido a € 750,00, dada a reduzida gravidade dos factos e total ausência de consequências para o utente A ….
*
5. A Recorrida, regulamente notificada para o efeito, não respondeu ao recurso.
*
6. O Ministério Público junto do TCRS respondeu ao recurso, sustentando que o recurso deve ser julgado improcedente.
*
7. O Ministério Público junto deste tribunal subscreveu a posição expressa pelo Exm.º Magistrado do Ministério Público junto do TCRS.
*
II. QUESTÕES
8. O presente recurso segue a tramitação prevista no Código do Processo Penal, com as especialidades previstas no artigo 74.º, n.º 4, do Regime Geral das Contraordenações.
9. No âmbito de processos de contraordenação, em recursos interpostos de decisões do tribunal de primeira instância, o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito, como estatui o n.º 1, do art.º 75.º, do Regime Geral das Contraordenações.
10. Podem, ainda, ser conhecidos os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código do Processo Penal e nulidades conforme previsto no n.º 3 deste preceito[1].
11. Por outro lado, importa também não esquecer, e constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores, que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação de recurso (artigo 412.º, n° 1, do Código de Processo Penal), sem prejuízo da apreciação das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito.
12. De notar, por último, que os referidos preceitos do Código do Processo Penal, quando necessário, devem ser “devidamente adaptados” ao processo contraordenacional (artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações).
13. Nestes termos, e perante as conclusões de recurso, cumpre ao presente tribunal responder às seguintes questões:
i. A arguida praticou a contraordenação, prevista e punida nos termos dos artigos 12.º, alínea b) e 61.º, alínea b), subalínea ii), ambos dos Estatutos da ERS?
ii. A Recorrente agiu com simples negligência, leve e desculpável, devendo o valor da coima ser reduzido a € 750,00, dada a reduzida gravidade dos factos e total ausência de consequências para o utente A …?
*
III. FUNDAMENTAÇÃO
DA MATÉRIA DE FACTO
14. A decisão recorrida fixou a factualidade conforme seguidamente transcrito.
a) Factos provados
1) A Recorrente CEDIMA – Centro de Imagiologia Médica, S.A. tem sede na Rua 31 de Janeiro, n.º 12, A/B, 2500-118 Caldas da Rainha e está inscrita no SRER da ERS, sob o n.º 15228, desde 12 de dezembro de 2006, enquanto entidade responsável por estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde na tipologia de “unidades de radiologia”, para a realização de meios complementares de diagnóstico;
2) Na mesma morada da sede social da Recorrente funciona um dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde por ela explorados, o qual se encontra registado, no SRER da ERS, sob o n.º … 75 e é titular da licença de funcionamento n.º …/2014, para a tipologia de “unidades de radiologia”;
3) O diretor clínico do predito estabelecimento de saúde é B …, médico portador da cédula profissional n.º … 73 da Ordem dos Médicos;
4) O estabelecimento prestador de cuidados de saúde em análise é detentor de convenção com o SNS, de âmbito nacional, na valência de radiologia –concretamente, para ecografias (exceto obstétricas e partes moles), eco doppler, mamografia, ecocardiograma transtorácico bidimensional;
5) No ano de 2020, a CEDIMA apresentou um total de rendimentos de € 1.286.392,09, um volume de negócios de € 1.229.426,53 e um lucro tributável de € 177.015,89;
6) No que se refere à prática sancionatória da ERS, não são conhecidos antecedentes contraordenacionais da CEDIMA;
- Do procedimento interno da Recorrente quanto à realização de eco dopplers (arterial e/ou venoso) aos membros inferiores:
7) A Recorrente tinha procedimentos internamente implementados em matéria de realização de meios complementares de diagnóstico de imagiologia, os quais radicavam no entendimento técnico do respetivo corpo clínico e eram estabelecidos pela Direção Clínica dos estabelecimentos de saúde, com conhecimento do órgão de Administração da CEDIMA;
8) Desde, pelo menos, Novembro de 2020 e até ao dia 26 de Abril de 2022 (este terminus na sequência da intervenção da ERS no âmbito do processo de inquérito n.º ERS/050/2021), concretamente em matéria de realização de eco doppler arterial e venoso a membros inferiores, o procedimento internamente adotado pela CEDIMA determinava a realização bilateral do exame, portanto, a realização de eco doppler (arterial e venoso) aos dois membros inferiores dos utentes, independentemente do que fosse efetivamente prescrito pelos médicos assistentes dos utentes;
9) Por deliberação do Conselho de Administração da ERS, adotada em reunião de 18 de abril de 2022, no âmbito do processo de inquérito n.º ERS/050/2021, foi emitida a seguinte ordem à CEDIMA:
“[…]
(i) Cessar imediatamente a aplicação do procedimento interno em matéria de abordagem imagiológica dos membros inferiores, concretamente, a exigência a utentes beneficiários do SNS de realização simultânea de eco doppler venoso e arterial a ambos os membros;
(ii) Dar cumprimento imediato à ordem imitida, bem como dar conhecimento à ERS, no prazo máximo de 5 (cinco) dias úteis após a notificação da deliberação final, das medidas e/ou procedimentos por si adotados para cumprimento do determinado nos pontos anteriores.” – Cfr. documento n.º 1 junto com o Auto de Notícia, a fls. 2 a 22 dos autos;
10) Na mesma reunião do Conselho de Administração da ERS, foi também aprovada a emissão da seguinte instrução à Entidade visada:
“[…]
(i) Garantir o direito de acesso dos utentes à prestação de cuidados de saúde sempre que este tenha na sua génese um contrato de convenção celebrado com o SNS;
(ii) Respeitar os termos dos contratos de convenção que tenha celebrado com o SNS;
(iii) Respeitar os direitos e interesses legítimos dos utentes, no âmbito da realização de exames imagiológicos, em especial o direito de acesso a todo e qualquer exame prescrito inicialmente pelo médico assistente;
(iv) Cumprir as determinações conjuntas da DGS e OM, em matéria de práticas imagiológicas dos membros inferiores, designadamente as normas de orientação clínica (NOC) n.º 30/2011 e a n.º 34/2011, ou qualquer outra norma que venha a ser aprovada sobre a mesma temática;
Dar cumprimento imediato à instrução emitida, bem como dar conhecimento à ERS, no prazo máximo de 30 (trinta) dias após a notificação da deliberação final das medidas e/ou procedimentos por si adotados para o efeito.” – Cfr. documento n.º 1 junto com o Auto de Notícia, a fls. 2 a 22 dos autos
11) Em 26 de Abril de 2022, foi emitida a seguinte uma comunicação interna (n.º DC/002) pelo Diretor Clínico Nacional da CEDIMA:
No que diz respeito aos pedidos de exames de Eco Doppler dos membros inferiores, a tabela da ARS [Administração Regional de Saúde] prevê o pedido de exames de forma individualizada a cada membro.
Nestas circunstâncias não deve ser feita qualquer diligência administrativa ou médica a exigir ou solicitar prescrição para o membro contralateral quando o pedido se aplica apenas a um dos membros.
A eventual sugestão no relatório para estudo do membro contralateral, quando clinicamente fundamentada, permanece, obviamente, ao critério do médico executante do exame.”
12) Tal comunicação interna foi transmitida, via correio eletrónico, a todos os profissionais de saúde que colaboravam com a CEDIMA;
- De situação concreta apurada:
13) Em determinado dia do ano de 2020, não concretamente apurado mas tendencialmente próximo do dia 12 de novembro de 2020, o médico da UCSP das Caldas da Rainha, Dr. C …, emitiu em nome do utente A … requisição médica para a realização de eco doppler arterial e venoso ao membro inferior direito, através do SNS, com carácter urgente;
14) O utente visado apresentava uma úlcera exuberante que estava a ser tratada pelo serviço de enfermagem da UCSP das Caldas da Rainha;
15) Nesse seguimento, o utente A … dirigiu-se aos serviços administrativos da CEDIMA para marcar o exame que lhe tinha sido prescrito, tendo-lhe sido informado pelos mesmos serviços administrativos que o corpo clínico da CEDIMA só realizava o estudo eco doppler se este fosse bilateral, isto é, se abrangesse os dois membros inferiores, pelo que teria de obter requisição médica para o membro inferior esquerdo, se ali quisesse efetivamente realizar o estudo, através do SNS;
16) O estudo eco doppler ficou agendado para o dia 13 de novembro de 2020;
17) Motivado pela informação que lhe havia sido prestada pela CEDIMA, no dia 12 de novembro de 2020, o utente dirigiu-se novamente à UCSP das Caldas da Rainha, para obter uma nova requisição, tendo exposto a situação ao médico assistente C …;
18) Neste contexto, e atenta a urgência do caso clínico, o médico C … emitiu a segunda requisição médica em nome do utente, desta feita, para realização de eco doppler ao membro inferior esquerdo;
19) No dia 13 de novembro de 2020, no estabelecimento prestador de cuidados de saúde explorado pela CEDIMA, sito na Rua 31 de Janeiro n.º 12, A/B, 2500-118 Caldas da Rainha, o utente A … realizou os exames prescritos, portanto, eco doppler do sector arterial e do sector venoso, aos dois membros inferiores;
20) Os exames realizados foram financiados pelo SNS, tendo a CEDIMA convenção para o efeito, celebrada com a ARS LVT;
21) O utente A … estava isento do pagamento de taxas moderadoras, pelo que não pagou qualquer quantia pelos exames realizados;
- Outros factos com relevo para a boa decisão da causa:
22) A tabela de preços de meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT) aprovada pela Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. (ACSS), mais concretamente na parte relativa aos exames de radiologia (área M – radiologia), prevê códigos e preços distintos para o estudo doppler do sector arterial dos membros inferiores (código de convencionado 717.0 e preço de 22,47 EUR) e para o estudo doppler do sector venoso dos membros inferiores (código de convencionado 718.8 e preço 23,15 EUR), indicando expressamente que o estudo previsto é referente a “cada membro”, ou seja, assenta numa lógica de unilateralidade:



23) Pela realização do estudo eco doppler, arterial e venoso, do membro inferior esquerdo do utente A …, a sociedade CEDIMA auferiu do SNS o valor de € 45,62, sendo € 22,47 do eco doppler do sector arterial do membro inferior esquerdo e € 23,15 do eco doppler do sector venoso do mesmo membro;
24) A Recorrente CEDIMA detém convenção com o SNS para a prestação de cuidados de saúde na valência de radiologia há vários anos;
25) Tendo, para o efeito, celebrado contrato-tipo com entidade representante do SNS, a cujo clausulado se mantém vinculada, contrato esse que se encontra junto aos autos a fls. 222 a 234 dos autos e que aqui se tem por integralmente reproduzido, por uma questão de economia processual;
26) Esse contrato-tipo de convenção para a prestação de cuidados convencionados com o SNS, na área de radiologia, prevê, na sua cláusula 12.ª, que os prestadores de cuidados de saúde estão obrigados a: “[…] prestar aos utentes as melhores condições de atendimento e a não estabelecer qualquer tipo de discriminação em função seu estatuto”;
27) Mais prevê, no n.º 1 da cláusula 17.ª, que os prestadores não podem recusar o atendimento dos utentes, salvo se “a) os exames radiológicos não sejam requisitados de harmonia com o previsto nas cláusulas 13.ª e 14.ª; b) os exames radiológicos, estudos ou tratamentos requisitados não puderem ser realizados por insuficiência de meios técnicos; c) o utente se apresentar em condições que desaconselhem a realização dos exames e demais tratamentos requisitados; d) as nomenclaturas utilizadas pelo médico requisitante ou a sua ilegibilidade possam levantar dúvidas quanto ao tipo de exame; e) o encerramento da clínica ou consultório não permita a conclusão dos actos requisitados até à data do encerramento”;
28) Acresce que poderá ainda ser recusado o atendimento, segundo o mesmo contrato-tipo, no n.º 2 da cláusula 17.ª , se se verificarem as seguintes circunstâncias: “a) quando o impresso normalizado da requisição não se encontrar correta e completamente preenchido, ou não estiver autenticado pelo Centro de Saúde que o emitiu; b) quando a apresentação do utente se verificar fora do prazo fixado […]; c) quando as requisições contiverem correções, rasuras, aposições ou quaisquer outras modificações que possam pôr em dúvida a sua autenticidade, salvo se as mesmas se encontrarem ressalvadas pelo médica que as subscreveu; d) quando o utente recusar ou não puder provar a sua identidade; e) quando o utente 327 pelo seu comportamento incorrecto se torne indesejável”;
29) A Cedima, enquanto entidade que explora estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde, convencionada com o SNS, tinha e tem capacidade para conhecer o direito constitucional dos utentes à proteção da saúde, realizado através de um serviço nacional de saúde (SNS) universal, geral e tendencialmente gratuito, bem como os termos do contrato de convenção que ela própria outorgou;
30) Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que actuava de forma proibida por lei, que conhecia, ao implementar um procedimento interno que impunha a realização bilateral do exame eco doppler, independentemente do teor da prescrição do médico assistente do SNS, procedimento esse que era apto a provocar situações de rejeição/recusa de utentes do SNS, quando estes não se fizessem acompanhar de prescrição médica para o exame aos dois membros inferiores, nem tivessem forma de a conseguir obter, assim se conformando com o resultado da sua conduta.[2]
31) Apesar de devidamente notificada, a Recorrente não juntou nos autos, nesta fase judicial, documento que atestasse a sua situação económica actual;
31.-A Não são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais da Recorrente, no que se refere à actuação sancionatória da ERS;
31.-B A Recorrente não evidencia qualquer arrependimento em relação à factualidade em causa nos autos;

- Da Impugnação
32) O Eco Doppler arterial e venoso dos membros inferiores é um exame específico para estudo dos vasos arteriais ou venosos dos membros inferiores, requisitado no âmbito de múltiplas patologias, nomeadamente na suspeita de doença arterial aterosclerótica dos membros inferiores, no estudo de varizes dos membros inferiores ou na suspeita de trombose venosa das veias superficiais ou profundas dos membros inferiores, sendo o último caso o mais grave em termos de quadro clínico e eventuais complicações;
33) O procedimento implementado a que alude o n.º 8 (e que se concretizou na situação vertida nos n.ºs 13 e ss.) teve por base um critério médico provindo do corpo clínico da Recorrente, que considerava ser clinicamente mais adequado a realização de modo bilateral e comparativo dos exames, na medida em que, assim, era possível, no exame arterial, comparar fluxos arteriais entre os dois membros e no exame venoso, avaliar a anatomia venosa e das varizes de ambos os membros inferiores ou, no caso de suspeita de trombose venosa, avaliar a permeabilidade venosa, e na medida em que o doente vascular tem, habitualmente, patologia bilateral e o sistema venoso é muito variável de indivíduo para indivíduo, considerando que o estudo unilateral pode ser inconclusivo ou contra-indicado;
34) O procedimento implementado a que alude o n.º 8 era aplicado a todos os utentes da Cedima e não apenas aos utentes do SNS.

b) Factos não provados
Não se considerou provado que:
1) Era aceite pela comunidade técnica ou científica que o Eco Doppler arterial e venoso dos membros inferiores apenas deveria ser realizado de modo bilateral e comparativo e nunca apenas a um único membro inferior isolado.
**
Consigna-se que a demais matéria quer constante da acusação, quer alegada pela Recorrente que não se compreendeu nem na matéria dada como provada nem na não provada se reporta a matéria considerada pelo tribunal como irrelevante para a boa decisão da causa, matéria de direito, de cariz meramente conclusivo ou meras remissões para meios de prova que não relevam para efeitos de subsunção dos factos ao direito.
*
DO MÉRITO DO RECURSO
i. A arguida praticou a contraordenação, prevista e punida nos termos dos artigos 12.º, alínea b) e 61.º, alínea b), subalínea ii), ambos dos Estatutos da ERS?
15. Nesta sede, alega a Recorrente, em essência, que:
X. [o] utente A … acabou por realizou os exames prescritos, isto é, o eco doppler arterial e venoso aos dois membros inferiores.

XIV. A existência de um procedimento interno que prevê a necessidade de o exame eco doppler aos membros inferiores ser realizado de forma bilateral não pode ser entendida como a verificação de um ato de recusa de acesso de utentes aos serviços de saúde prestados pela Recorrente.
XV. O elemento subjetivo que compõe a contraordenação, não se encontra, no caso, preenchido, o que afasta a aplicação de qualquer coima.”.
16. Por seu turno, o Ministério Público, sustentando a improcedência do recurso, salienta aqui o seguinte:
5. Os factos provados em 15. descrevem uma situação de rejeição da realização de exame ecodoppler arterial e venoso ao membro inferior direito do utente Sr. A … (v. facto 13.), ocorrida no mês de novembro de 2020, pelos serviços administrativos de estabelecimento de saúde da arguida. Rejeição que implicou para o utente nova ida ao médico, Dr. C … da UCSP das Caldas da Rainha, e que significou a desconsideração da requisição inicial prescrita por este clínico. Só mediante a “obediência” deste último à exigência feita por aqueles serviços administrativos (factos 17. e 18.) é que a arguida aceitou realizar o exame, o qual incidiu não sobre o membro inferior direito, como prescrito inicialmente, mas sobre os dois membros inferiores (facto 19.).
6. A rejeição do utente não teve outro fundamento que não o protocolo estabelecido internamente pela arguida, o qual a arguida sobrepunha à prescrição feita pelo médico (facto 8).
7. Os factos provados na sentença integram a contraordenação pp pelo artigo 61º, nº 2, b), ii), do DL 126/2014, de 22/08, a qual foi cometida na forma consumada, como concluiu a sentença (v. linhas 1025-1034 e 1065-1072, pp 42 e 44).”.
Apreciação deste tribunal
17. Sob a epígrafe “Garantia de acesso aos cuidados de saúde”, o artigo 12.º, alínea b), dos Estatutos da ERS dispõe:
Para efeitos do disposto na alínea b) do artigo 10.º incumbe à ERS:

b) Prevenir e punir as práticas de rejeição e discriminação infundadas de utentes nos serviços e estabelecimentos do SNS, nos estabelecimentos publicamente financiados, bem como nos estabelecimentos contratados para a prestação de cuidados no âmbito de sistemas ou subsistemas públicos de saúde ou equiparados
;”.
18. Mais resulta do disposto no artigo 61.º, alínea b), subalínea ii) do mesmo diploma:
“2 - Constitui contraordenação, punível com coima de (euro) 1000 a (euro) 3740,98 ou de (euro) 1500 a (euro) 44 891,81, consoante o infrator seja pessoa singular ou coletiva:

b) A violação das regras relativas ao acesso aos cuidados de saúde:

ii) A violação de regras estabelecidas em lei ou regulamentação e que visem garantir e conformar o acesso dos utentes aos cuidados de saúde, bem como práticas de rejeição ou discriminação infundadas, em estabelecimentos públicos, publicamente financiados, ou contratados para a prestação de cuidados no âmbito de sistemas e subsistemas públicos de saúde ou equiparados, nos termos do disposto nas alíneas a) e b) do artigo 12.º;”.
19. A sentença recorrida, após enquadrar os factos no âmbito do SNS e do direito à saúde e respetiva tutela constitucional, enquadramento este que é aqui incontroverso, salientou os seguintes aspetos essenciais do caso concreto:
“… segundo a lei, não existe qualquer disposição normativa que legitime a actuação da Recorrente de recusar a realização do exame eco doppler a um único membro inferior do utente, a pretexto de que seria mais adequado a realização de um exame a ambos os membros inferiores.
A Recorrente estriba-se nas normas legais de cariz deontológico que conferem independência e autonomia técnica aos médicos, alegando que o seu corpo médico considerou que era clinicamente mais adequado a realização de um exame a ambos os membros. Porém, com elevado respeito por entendimento contrário, todas as normas e princípios que são invocados pela Recorrente que se aplicam aos médicos não têm aplicação no vertente caso ou não implicam as consequências que a Recorrente entende que implicam, mas antes consequências absolutamente inversas.
Primeiro, o utente em causa nos autos não chegou a ser observado por nenhum médico, quando se dirigiu ao estabelecimento da Recorrente para realizar o exame a um dos membros inferiores. Por isso, é falacioso afirmar que está em causa uma opinião clinica fundada. Não. O que está em causa é um procedimento interno da Recorrente, por isso com carácter abstracto, que não pôde ter em conta a condição pessoal e clinica especifica do utente em causa, procedimento esse que foi informado por uma administrativa da Recorrente, que não pode, obviamente, praticar actos médicos e emitir opiniões clínicas.
Segundo. Ao ser transmitido por uma administrativa da Recorrente a recusa de um exame que havia sido prescrito por um médico, é a Recorrente que está a violar os princípios e normas deontológicas que esgrimiu como bandeira para actuar como actuou, violando a autonomia técnica e independência do médico que realizou a prescrição em causa.
Terceiro. A prescrição em causa não se identifica como leviana. Ela foi realizada por um médico, com competência, por isso, para o efeito, que analisou o caso concreto do utente e emitiu uma opinião técnica de que apenas seria necessário o exame a um único membro inferior. (…)
Quarto. Apesar das instruções internas que circulavam na Recorrente terem por base um critério médico provindo do corpo clínico da Recorrente, que considerava ser clinicamente mais adequado a realização de modo bilateral e comparativo dos exames, certo é que, reforçamos, o exame não foi pedido de forma imponderada. (…)
Ora, o que efectivamente decorre da CRP e da lei ordinária e que tem aplicação no vertente caso é que a Recorrente não poderia pura e simplesmente fazer depender a realização de um exame médico a um membro inferior, tido por necessário por um médico, da realização do exame a ambos os membros, como o fez porque isso é, verdadeiramente, uma recusa. Por muito que se tente “jogar” com as palavras, quem afirma que não realiza um exame se não ocorrer determinada condição, efectivamente recusa a realização desse exame, ainda que ele venha a realizar-se por o utente ceder à condição que lhe foi imposta.
20. Após, a sentença recorrida analisou os factos inclusivamente à luz da al. b) do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 139/2013, de 9 de outubro (regime jurídico das convenções que tenham por objeto a realização de prestações de saúde aos utentes do Serviço Nacional de Saúde no âmbito da rede nacional de prestação de cuidados de saúde), segundo o qual constitui dever de as entidades convencionadas executar, exata e pontualmente, as prestações contratuais em cumprimento do convencionado.
21. Mais analisou o caso à luz do contrato-tipo descrito nos factos provados n.ºs 26 a 28, concluindo que a situação concreta em causa não se enquadrava em nenhuma das situações previstas para a recusa de atendimento.
22. Foi, pois, neste contexto de uma fundamentação clara e exaustiva, que o tribunal a quo concluiu pela verificação da contraordenação descrita.
23. Tendo em conta a clareza das razões expostas e exaustividade das mesmas, este tribunal pouco tem a acrescentar àquela fundamentação. Da nossa parte, pois, em sintonia com o Ministério Público, apenas podemos concordar com a sentença recorrida.
24. É, para nós, manifesto que a arguida encetou uma prática de rejeição infundada da realização de exame eco doppler arterial e venoso ao membro inferior direito do utente Sr. A ….
25. Tal doente dirigiu-se aos serviços da arguida para marcar o exame que lhe tinha sido prescrito, tendo-lhe sido informado pelos serviços administrativos da arguida que o corpo clínico da CEDIMA só realizaria o estudo eco doppler se este fosse bilateral, isto é, se abrangesse os dois membros inferiores, pelo que teria de obter requisição médica para o membro inferior esquerdo, se ali quisesse efetivamente realizar o estudo, através do SNS.
26. Esta factualidade descreve, portanto, uma rejeição do doente. Pouco importa que ulteriormente a arguida tenha realizado eco doppler do sector arterial e do sector venoso, aos dois membros inferiores exames, de acordo com uma nova prescrição obtida pelo doente.
27. Note-se, aliás, que a primeira prescrição médica - a que aqui verdadeiramente importa -, foi emitida ao utente A …, com carácter urgente, apresentando o utente uma úlcera exuberante que estava a ser tratada pelo serviço de enfermagem da UCSP das Caldas da Rainha, sendo certo que foi um médico destes serviços que emitiu aquela prescrição.
28. Exigir-se, assim, através de serviços meramente administrativos da arguida, uma nova prescrição para a realização de exame aos dois membros do mesmo utente, contrariando, assim, a prescrição originária, prescrição esta emitida, inclusive, por um médico que acompanhava um doente numa situação notoriamente sensível, é verdadeiramente incompreensível e manifestamente censurável.
29. Nestes termos, o recurso deve ser julgado aqui improcedente.
ii. A Recorrente agiu com simples negligência, leve e desculpável, devendo o valor da coima ser reduzido a € 750,00, dada a reduzida gravidade dos factos e total ausência de consequências para o utente A …?
30. Quanto ao pedido subsidiário no sentido de considerar que a Recorrente agiu com simples negligência, leve e desculpável, devendo o valor da coima ser reduzido a € 750,00, dada a reduzida gravidade dos factos e total ausência de consequências para o utente A …, haverá a notar que das conclusões nada é alegado nesta sede.
31. Sempre se dirá, no entanto, que segundo o facto provado n.º 30, é manifesto que a arguida agiu de forma dolosa, pelo que não faz qualquer sentido ser punida apenas e tão-só a título negligente.
32. Conforme deixamos consignado supra, o presente tribunal apenas conhece de questões de Direito, com exceção das situações previstas no artigo 410.º, n.º 2, do Código do Processo Penal, que aqui manifestamente não se verificam.
33. Por último, conforme resulta do exposto na resposta à primeira questão, a culpa da recorrente é grave, pelo que não se vislumbram quaisquer razões para alterar a medida da coima fixada pelo tribunal a quo.
34. Nestes termos o recurso deve ser julgado integralmente improcedente.
*
IV.       DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar o presente recurso totalmente improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3,5 UC’s (artigos 93.º, n.º 3 e 94.º, n.º 3, do Regime Geral das Contraordenações).
**
Lisboa, 14-05-2025
Alexandre Au-Yong Oliveira
José Paulo Abrantes Registo
A.M. da Luz Cordeiro
_______________________________________________________
[1] Cf. Ac. STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2019, DR. n.º 124/2019, Série I de 2019-07-02.
[2] Este facto mostra-se alegado na decisão impugnada, na parte que diz respeito ao segmento “B) Determinação da medida das coimas”. Apesar de não ser a metodologia decisória mais correcta, certo é que tal não obsta a que o tribunal possa e deva considerar o que foi alegado a esse propósito na decisão da ERS, no seu todo – vide acórdão da Relação de Lisboa de 20.04.2021, processo n.º 316/20.0YUSTR.L1, consultável nos respectivos autos que correram termos neste TCRS.