I – A consagração da independência dos magistrados judiciais, no exercício da sua função judicante, é feita com a expressa salvaguarda do seu dever de acatamento das decisões que, em via de recurso, sejam proferidas por Tribunais superiores [art. 4º, nº 1, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, art. 4º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, e art. 152º, nº 1, do n.C.P.Civil].
II – A violação do dever de acatamento de prévia decisão proferida por Tribunal superior, proferida em via de recurso e transitada em julgado, constitui uma nulidade insuprível da decisão que assim venha a ser proferida, nomeadamente por o objeto de renovada pronúncia do Tribunal inferior constituir questão de que o mesmo não podia tomar conhecimento [arts. 613º, nº 3 e 615º, nº 2, al. d), 2ª parte, ambos do n.C.P.Civil].
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1] *
1 - RELATÓRIO
No âmbito de autos de Processo de Promoção e Proteção instaurados a favor dos menores AA, nascida a ../../2008, e BB, nascido a ../../2014, o progenitor de ambos, CC, no dia 13 de Março de 2024, requereu em relação à menor AA, com base nos factos indiciariamente provados e nos fundamentos aduzidos, que se determinasse a aplicação da medida cautelar de apoio junto do pai pelo período máximo de 6 meses com revisão obrigatória no prazo de 3 meses, nos termos 37º-1 e 3 e 35º-1/a da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.
O Tribunal de 1ª instância indeferiu o requerido por entender que «[naquele] momento, não est[avam] verificados os requisitos de que a lei faz depender a aplicação de uma medida de promoção e proteção cautelar».
Inconformado com tal decisão, o dito progenitor CC recorrente dela interpôs recurso de apelação com subida em separado no dia 13 de Maio de 2024, tendo o Tribunal da Relação decidido, por acórdão proferido no dia 8 de Outubro de 2024, «(…) anular a decisão proferida na 1.ª instância, a fim de ser suprida a omissão de resposta aos concretos pontos da matéria de facto acima referida (os aludidos pontos do requerimento de fl.s 217 v.º a 225 v.º) e subsequentes termos».
*
Confrontada com uma tal decisão, e para o que ora releva, a Exma. Juiz de 1ª instância, no dia 30 de Dezembro de 2024, decidiu não acatar o julgado, mais concretamente proferindo despacho com a seguinte linha de argumentação:
«(…)
Cumpre pois neste momento a este Tribunal apreciar se ainda faz sentido suprir a aludida omissão de resposta aos concretos pontos da matéria de facto.
Vejamos.
A decisão de 14.04.2024 pronunciou-se sobre a aplicação ou não a título cautelar de uma medida de promoção e proteção à jovem AA enquanto se terminavam as diligências em curso no âmbito da instrução do processo de promoção e proteção.
Entretanto essas diligências terminaram e foi proferido despacho de arquivamento do processo de promoção e proteção a 20.10.2024 – refª 96364994-; despacho foi interposto recurso.
Coloca-se a questão de qual o efeito útil de ser proferida uma nova decisão que se pronuncie sobre a necessidade ou não da aplicação de uma medida de promoção e proteção cautelar, quando já existe uma decisão “definitiva”?
Entende-se que nenhum efeito terá a prolação de nova decisão sobre tal questão.
Aliás, tal é suscetível de conduzir à prática de atos processuais inúteis.
Ora, a lei adjetiva civil, aplicável por remissão aos processos de promoção e proteção – proíbe a prática de atos processuais inúteis, referindo que “não é lícito realizar no processo atos inúteis” - art.º 130º do Código de Processo Civil -.
Sendo proibida a prática de atos que não sejam úteis para a realização da função processual, entende-se que, neste momento, é inútil a prolação de nova decisão sobre a aplicação ou não à jovem AA de medida de promoção e proteção a título cautelar.
Por último, relembrar que no processo principal de alteração das responsabilidades parentais foi proferida decisão a alterar provisoriamente o regime das responsabilidades parentais da jovem em 04.12.2024.
Notifique.
(…)»
*
Inconformado com este despacho, dele interpôs recurso o dito progenitor, CC, o qual finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
«1. Pronunciando-se sobre o requerimento apresentado em juízo no dia 13 de Março de 2024, no qual veio o recorrente requerer, com base nos factos indiciariamente provados e nos fundamentos aduzidos, que se determinasse a aplicação da medida cautelar de apoio junto do pai pelo período máximo de 6 meses com revisão obrigatória no prazo de 3 meses, nos termos 37º-1 e 3 e 35º-1/a da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, o Tribunal a quo veio indeferir o requerido por entender que “[naquele] momento, não est[avam] verificados os requisitos de que a lei faz depender a aplicação de uma medida de promoção e proteção cautelar”.
2. Inconformado com tal decisão, veio o recorrente dela interpor recurso de apelação com subida em separado no dia 13 de Maio de 2024, tendo o Venerando Tribunal da Relação decidido, pelo douto acórdão proferido no dia 8 de Outubro de 2024, “anular a decisão proferida na 1.ª instância, a fim de ser suprida a omissão de resposta aos concretos pontos da matéria de facto acima referida (os aludidos pontos do requerimento de fl.s 217 v.º a 225 v.º) e subsequentes termos”.
3. Pelo despacho recorrido proferido no dia 30 de Dezembro de 2024, o Tribunal a quo tomou duas decisões: a primeira: a de não acatar o julgado em causa, e a segunda, admitir o recurso interposto pelo recorrente relativamente ao despacho que determinou o arquivamento do processo de promoção e protecção.
4. Considerando o disposto no artigo 654º-1, 2 e 3 do Código de Processo Civil por remissão do artigo 124º-1 da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo relativamente à suscitada questão do efeito do recurso interposto do despacho de arquivamento, o presente recurso restringe-se ao primeiro segmento decisório mencionado relativamente ao não acatamento pelo Tribunal a quo da decisão recursória proferida pelo Venerando Tribunal da Relação.
5. De acordo com o princípio da hierarquia judicial, os tribunais inferiores estão sujeitos ao dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso pelos tribunais superiores, o que decorre expressamente do disposto nos artigos 4º-1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais, do artigo 4º-1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário e do artigo 152º-1 do Código de Processo Civil.
6. Assim, o incumprimento pelo Tribunal a quo do determinado pelo Venerando Tribunal da Relação constitui uma nulidade insuprível, devendo a decisão recorrida ser revogada e, por conseguinte, ser ordenado superiormente pela via recursória o cumprimento do decidido.
7. Não obstante o dever de acatamento de decisão recursória, no despacho recorrido, após questionar-se se lhe “cumpr[ia] pois [naquele] momento (…) apreciar se ainda faz[ia] sentido suprir a aludida omissão de resposta aos concretos pontos da matéria de facto” e ainda “de qual o efeito útil de ser proferida uma nova decisão que se pronuncie sobre a necessidade ou não da aplicação de uma medida de promoção e proteção cautelar, quando já existe uma decisão “definitiva””, o Tribunal a quo respondeu às suas próprias indagações que “nenhum efeito terá a prolação de nova decisão sobre tal questão”, e que “tal é suscetível de conduzir à prática de atos processuais inúteis”, relembrando que “no processo principal de alteração das responsabilidades parentais foi proferida decisão a alterar provisoriamente o regime das responsabilidades parentais da jovem em 04.12.2024”.
8. Em primeiro lugar, face ao dever de acatamento da decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação, não cabia ao Tribunal a quo apreciar se ainda fazia ou não sentido suprir a sua omissão anterior, superiormente censurada, senão cumprir o que a Lei lhe impunha: acatar a decisão do Tribunal Superior.
9. Aliás, se o entendimento do Tribunal a quo virar prática judiciaria, os recursos tornam-se eles sim inúteis, incentivando uma tramitação morosa ainda que em processos de natureza urgente, tal como o Tribunal a quo tem imprimido nos autos e seus apensos para que a Justiça nunca seja efectivamente administrada e os direitos e interesses dos menores acabem por não ser salvaguardados.
10. Em segundo lugar, não obstante o arquivamento determinado pelo Tribunal a quo, repare-se, posterior à decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação no âmbito do Apenso D, o seu cumprimento nunca poderia ser considerado inútil desde logo porque de acordo com o disposto no artigo 111º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, o processo de promoção e protecção pode ser reaberto se ocorrerem factos que justifique a aplicação de medida de promoção e protecção.
11. Assim pronunciando-se sobre os factos não apreciados, os quais conforme vincou o Venerando Tribunal da Relação, “uma vez que importam/respeitam ao objecto dos autos e a demonstrarem-se, não poderão, (…), deixar de se considerar como relevantes para a decisão a proferir, dada a sua gravidade, objectivamente apreciados”, e dando-os como provados, o Tribunal a quo não teria outra alternativa senão determinar a reabertura do processo de promoção e protecção e, subsequentemente, a aplicação de uma medida cautelar de promoção e protecção.
12. Por outro lado, tão-pouco o acatamento da decisão recursória se afiguraria inútil uma vez que o despacho de arquivamento do qual foi interposto recurso padece do mesmo vício de completa omissão de resposta em sede de julgamento da matéria de facto, a qual acarreta da mesma forma a anulação da decisão proferida.
13. Pelo contrário, o acatamento da decisão recursória sempre seria útil e relevante para evitar mais uma demora processual e evitaria que as decisões proferidas pelo Venerando Tribunal da Relação resvalem para o abismo da ineficácia em consequência da tramitação anómala efectivada pelo Tribunal a quo e das reiteradas ilegalidades por ele cometidas tanto nos autos principais como nos respectivos apensos.
14. Ademais, não obstante o recorrente ter suscitado a necessária fixação de efeito suspensivo ao recurso interposto relativamente ao despacho de arquivamento nos termos do artigo e 124º-2 da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, o Tribunal a quo tão-pouco se pronunciou nessa questão.
15. Mas ainda que o Tribunal a quo não o tenha feito, sempre o Venerando Tribunal da Relação poderá atribuir efeito suspensivo ao recurso interposto do despacho de arquivamento, nos termos do disposto no artigo 654º-1, 2 e 3 do Código de Processo Civil por remissão do artigo 124º-1 da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, fazendo com que o acatamento da decisão recursória mantenha a sua utilidade na sua plenitude.
16. E por fim, face à relembrança do Tribunal a quo quanto à prolação de decisão provisória nos autos principais, a mesma não impede a sua alteração em consequência do acatamento da decisão recursória, antes pelo contrário, uma vez que a factualidade não apreciada sendo dada como provada implica necessariamente uma alteração da decisão provisoria em sentido oposto e de acordo com o pedido formulado pelo recorrente.
17. E também não se diga que se mostra inútil o suprimento da omissão de resposta aos concretos pontos da matéria de facto conforme determinado pelo Venerando Tribunal da Relação face à aventada inadmissibilidade da valoração probatória em sede de apreciação da mesma matéria de facto no âmbito da referida decisão provisória proferida nos autos principais, uma vez que ali se constatou liminarmente que para fundamentar a sua decisão o Tribunal a quo reproduziu na sua essencialidade e quase na integra um acórdão anterior proferido por um Tribunal Superior, e concretamente o acórdão proferido no dia 15 de Abril de 2021 pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do Processo 705/18.0T8CSC-A.L1-2, sem o citar ou sequer dele fazendo referência, copiando parte do seu teor e colando-o no texto da decisão em crise, apropriando-se assim ilegitimamente da intelectualidade alheia como se sua fosse, fazendo seus os fundamentos aí versados, sem qualquer referência ou menção de que os estava a adoptar como razão decisória, trazendo como se fossem seus os respectivos argumentos.
18. Aliás, a este propósito e de acordo com o que se constatou supervenientemente, necessário se torna o Tribunal Superior ter ciência que no âmbito da decisão recorrida no âmbito do Apenso D, que o Tribunal a quo já nela havia recortado partes de julgados anteriores sem os citar, adoptando a mesma estratégia para efeitos de fundamentação, nomeadamente, o acórdão proferido no dia 27 de Abril de 2017 pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do Processo 268/12.0TBMGL.C2, o acórdão proferido no dia 23 de Março de 2021 pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do Processo 4397/18.8T8PBL.C1, e o acórdão proferido no dia 15 de Janeiro de 2019, pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do Processo 827/15.9T8CBR-D.C1.
19. E na interposição do presente recurso, também se constatou, embora ainda não se tenha feito um levantamento exaustivo pela escassez de tempo para o efeito, que o Tribunal a quo continuou a copiar sem engenho os fundamentos de outros julgados apresentando-os na sua virtualidade como originais para sustentar as suas decisões, reproduzindo para fundamentar o despacho de arquivamento, nomeadamente, o Acórdão proferido no dia 27 de Maio de 2021 pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto no âmbito do Processo 449/10.0TMMTS-E.P1, e o Acórdão proferido no dia 23 de Março de 2021 proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do Processo 4397/18.8T8PBL.C1.
20. Enfim, já não bastava a desconsideração pela vida de dois menores, a inércia na salvaguarda do seu superior interesse, os danos irreversíveis provocados pela indiferença judicial, a tramitação anómala dos autos na sua globalidade, as ilegalidades cometidas e constatadas em sede recursória pelo Venerando Tribunal da Relação, os copianços de anteriores julgados apresentando-os na sua virtualidade como originais para sustentar decisões, que se chegou ao cumulo de não acatar uma decisão proferida por um Tribunal Superior.
21. E perante tal constatação, apenas resta ao recorrente ainda acreditar na Justiça com a consciência que tudo fez para proteger os seus filhos, não obstante estar ciente que o tempo passa e que a procedência deste quinto recurso nunca será susceptível de reparar os estragos emocionais e sociais causados pela primeira instância.
22. Por conseguinte, violou o Tribunal a quo o artigo 6º-1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, os artigos 20º-1, 4 e 5, e 202º-1 e 2 da Constituição da República, os artigos 152º-1, 613º-3 e 615º/d do Código de Processo Civil, , o artigo 4º-1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, e o artigo 4º-1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
(…)
Termos em que, nos melhores de Direito, e sempre com o mui douto suprimento desse Venerando Tribunal ad quem, deverá o presente recurso merecer provimento, e em consequência, conforme o alegado:
- Ser declarada a nulidade insuprível do despacho recorrido por violação do dever de acatamento de decisão recursória, devendo ser revogado e ser ordenado superiormente o cumprimento do decidido pelo Venerando Tribunal da Relação;
Fazendo-se desta forma a já acostumada Justiça.»
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Foram apresentadas contra-alegações pelo Exmo. Magistrado do MºPº, as quais foram rematadas com as seguintes conclusões:
«1 – uma nova decisão sobre a aplicação de uma medida cautelar quando já foi proferida uma decisão final, não tem efeito útil, pois sempre se conclui que atualmente, de acordo com a decisão final proferida no processo de promoção e proteção, que foi de arquivamento, a jovem AA não se encontra numa situação de perigo atual.
2 – tal decisão final foi objeto de recurso, cabendo ao Venerando Tribunal da Relação de Coimbra se pronunciar quanto ás questões levantadas pelo recorrente relativamente a esta decisão final, ou seja, se a jovem AA está ou não numa situação de perigo atual a exigir a aplicação de uma medida de promoção e proteção.
3 - a aplicação de uma medida cautelar é provisória, temporária e meramente cautelar e é aplicada unicamente para afastar uma situação atual e iminente e enquanto não se aplica a medida definitiva, ou seja, apenas resolve transitoriamente uma questão que se pretende que seja reconhecida posteriormente na decisão final, pelo que, quando já foi proferida a decisão final, como é o caso, a decisão provisória deixa de ter utilidade.
4 - as questões levantadas pelo aqui recorrente, após a decisão proferida quanto à eventual aplicação de uma medida cautelar, são novamente mencionadas nos recursos pendentes e vão ser novamente decididas pelo Venerando Tribunal da Relação, não sendo de todo conveniente a duplicação de decisões sobre a mesma matéria que podem gerar confusão e contradições entre si e não servem de todo o interesse superior do ... e da AA, arrastando os processos ao longo do tempo.
5 – pelo exposto, concluímos que não se vislumbra qualquer utilidade, nesta fase processual, na prolação de uma nova decisão sobre se é ou não de aplicar à jovem AA uma medida de promoção e proteção a título cautelar, uma vez que já foi proferida uma decisão final que é objeto também ela de recurso.
pelo que, o recurso não merece provimento, desse modo se fazendo
JUSTIÇA»
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Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:
- nulidade insuprível do não acatamento pelo tribunal inferior da decisão proferida em via de recurso pelo tribunal superior.
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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade que interessa ao conhecimento do presente recurso é, para além da que consta do precedente relatório, a seguinte:
- foi proferido despacho de arquivamento dos autos de Processo de Promoção e Proteção, a 20/10/2024, mas o progenitor CC, aqui recorrente, também já dela interpôs recurso;
- nos autos principais de Alteração da RERP também já foi proferida decisão judicial, a 04/12/2024, a alterar provisoriamente a RERP relativamente à jovem AA, ficando a guarda da mesma atribuída à progenitora, tendo o progenitor CC, aqui recorrente, apresentado também recurso de tal decisão, no qual em 25.02.2025, já foi proferida acórdão por este TRC, dando-lhe procedência, mais concretamente no sentido de «(…) anular a decisão recorrida, devendo a 1ª instância proferir nova decisão em que especifique os factos provados e não provados e os elementos probatórios que os sustentam».
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4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Que dizer da arguida nulidade insuprível do não acatamento pelo tribunal inferior da decisão proferida em via de recurso pelo tribunal superior?
O progenitor/recorrente qualifica o ocorrido como constituindo uma “nulidade insuprível”.
Sendo que, em nosso entender, a solução do presente recurso reside matricialmente na adesão ou não a tal qualificação – precisamente porque em caso de resposta afirmativa, a resposta será praticamente incontornável.
Feito este liminar considerando, perscrutemos a questão.
Em pendentes autos de promoção e proteção em que o progenitor requereu em relação à menor AA a aplicação da medida cautelar de apoio junto do pai, a decisão do Tribunal de 1ª instância foi no sentido de indeferir o requerido por entender que «[naquele] momento, não est[avam] verificados os requisitos de que a lei faz depender a aplicação de uma medida de promoção e proteção cautelar».
Inconformado com tal decisão, dela interpôs o progenitor recurso, o qual mereceu provimento neste TRC, pelo acórdão proferido no dia 8 de Outubro de 2024, ao «anular a decisão proferida na 1.ª instância, a fim de ser suprida a omissão de resposta aos concretos pontos da matéria de facto acima referida (os aludidos pontos do requerimento de fl.s 217 v.º a 225 v.º) e subsequentes termos».
Acontece que, baixados os autos à 1ª instância, por despacho do dia 30 de Dezembro de 2024, a Exma. Juíza de 1ª instância decidiu não acatar o julgado, fundamentada, em síntese, em que já tinha sido proferido despacho de “arquivamento” do processo de promoção e proteção, donde, por já haver uma decisão “definitiva”, nenhum efeito teria a prolação de nova decisão sobre tal questão (invocando-se o art. 130º do n.C.P.Civil, segundo o qual “não é lícito realizar no processo atos inúteis”).
Que dizer sob o ponto de vista estritamente processual?
Desde logo, que o acórdão deste TRC de 8 de Outubro de 2024, transitado em julgado, merecia incontornável obediência.
Dispondo-se no art. 152º, nº 1, do n.C.P.Civil que «[o]s juízes têm o dever de administrar justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes e cumprindo, nos termos da lei, as decisões dos tribunais superiores», cabia à Exma. Juíza do Tribunal de 1ª instância ter proferido decisão de suprimento da omissão de resposta aos pontos de facto da anterior decisão, em conformidade com o decidido pelo dito Tribunal da Relação de Coimbra.
Isso mesmo decorre do estatuído no art. 4º, nº 1, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais), segundo o qual «Os magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores». [com destaque da nossa autoria]
No mesmo sentido se preceitua no art. 4º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário – “LOSJ”) que «Os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores». [com destaque da nossa autoria]
Acrescendo que no 42º, nº 1 desta citada LOSJ, se preceitua também que «os tribunais judiciais encontram-se hierarquizados para efeito de recurso das suas decisões».
Assim sendo, pode-se concluir que a consagração da independência dos magistrados judiciais, no exercício da sua função jurisdicional, tem como limite o dever de acatamento das decisões que, em via de recurso, sejam proferidas por tribunais superiores.
Não tendo operado esse acatamento, não pode deixar de se concluir que a decisão recorrida configura incumprimento do dever de respeito de decisão de tribunal superior previsto no art. 152º, nº 1, do n.C.P.Civil e, configurando incumprimento deste dever de respeito, é nulo, devendo ser proferido, pelo tribunal recorrido, nova decisão que seja conforme.
De referir que a violação de um tal dever de acatamento de prévia decisão proferida por Tribunal superior, proferida em via de recurso e transitada em julgado, constitui uma nulidade “insuprível” da decisão que assim foi proferida, nomeadamente por o objeto de renovada pronúncia do Tribunal inferior constituir questão de que o mesmo não podia tomar conhecimento [cf. arts. 613º, nº 3 e 615º, nº 1, al. d), 2ª parte, ambos do mesmo n.C.P.Civil].[2]
Dito isto, cremos que está encontrada a resposta para a nossa pergunta preliminar: correspondendo ao vício ocorrido a sanção de nulidade, e sendo a mesma insuprível, não existe qualquer possibilidade de validação ou sanação do ato (leia-se, da decisão recorrida), antes se impõe a anulação da decisão em causa.
Ademais, nem sequer era materialmente correta a justificação apresentada para se ter aduzido que não existia qualquer utilidade, na fase processual dos autos, na prolação de uma nova decisão – isto por referência à proibição da realização de atos inúteis em processo, mais concretamente atento o princípio da economia processual, consagrado no art. 130º do n.C.P.Civil.
Com efeito, neste normativo, com a epígrafe de “Princípio da limitação dos atos”, preceitua-se que «[N]ão é lícito realizar no processo atos inúteis.»
Ocorre que no Processo de Promoção e Proteção instaurado a favor dos menores filhos do ora Recorrente, designadamente da menor AA, apesar de já ter sido proferida decisão (final) de arquivamento, essa decisão ainda não transitou em julgado atento o recurso que dela foi interposto.
Ora se assim é, a prolação da decisão conforme determinado pelo acórdão do TRC de 8 de Outubro de 2024 aqui diretamente em causa, pode ainda vir a ser jurídica e materialmente relevante – não só em sede da apreciação e decisão sobre a medida “cautelar” nele em causa, mas também da própria decisão (final) de arquivamento (em recurso), a cuja isolada ou conjugada apreciação haverá que proceder.
O que idem se diga quanto ao argumento subsidiário que consta da decisão recorrida, a saber, que no processo principal de alteração das responsabilidades parentais foi proferida decisão a alterar provisoriamente o regime das responsabilidades parentais da jovem em 04.12.2024 – pois que sendo também esta uma decisão da qual foi interposto recurso pelo mesmo progenitor aqui recorrente, esse processo tem desfecho incerto a esta data, na medida em que tendo já sido proferido acórdão por este TRC, foi dada procedência ao recurso, mais concretamente no sentido de «(…) anular a decisão recorrida, devendo a 1ª instância proferir nova decisão em que especifique os factos provados e não provados e os elementos probatórios que os sustentam».
O que tudo serve para dizer que se nos afigura evidente que a decisão recorrida, datada de 30 de Dezembro de 2024, não pode subsistir, por nulidade insuprível/insanável, ao não ter observado a decisão deste TRC de 8 de Outubro de 2024, a qual deve ser integralmente cumprida.
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, procede o recurso.
*
5 – SÍNTESE CONCLUSIVA (…).
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6 - DISPOSITIVO
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação interposta pelo progenitor CC e, em consequência, declara-se a nulidade da decisão recorrida, datada de 30 de Dezembro de 2024.
As custas serão devidas pela parte condenada a final.
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Luís Filipe Cravo
João Moreira do Carmo
Fonte Ramos
[1] Relator: Des. Luís Cravo
1º Adjunto: Des. João Moreira do Carmo
2º Adjunto: Des. Fonte Ramos
[2] Cf., neste sentido, o acórdão do TRE de 31.05.2012, proferido no proc. nº 855/11.3TBLLE-E1; o acórdão do TRG de 30.06.2022, proferido no proc. nº 3236/13.0TJVNF.G1; os acórdãos do TRP de 11.07.2006 (proferido no proc. n.º 0623350) e de 11.11.2024 (proferido no proc. nº 4024/22.9T8VFR-B.P1); o acórdão do TRL de 08.10.2020, proferido no proc. nº 95274/18.9YIPRT.L2-6; os acórdãos do STJ de 28.10.1997 (proferido no proc. nº 98A233) e de 07.12.2023 (proferido no proc. nº 2126/15.7T8AVR.P1.S2); todos acessíveis em www.dgsi.pt.