I - Nos termos decorrentes do art.º 20.º do CIRE, a declaração de insolvência pode ser requerida por qualquer credor, desde que se verifique algum dos “factos-índice” elencados em tal normativo.
II - Incumbe ao credor alegar e provar factos suscetíveis de integrar qualquer um daqueles factos-índice e ao devedor, ilidir esta presunção, alegando e demonstrando a sua solvência.
III - O período temporal entre o divórcio e a partilha efetiva trata-se de uma situação transitória em que cada um dos ex-cônjuges tem apenas direito a uma fração ideal sobre o conjunto dos bens a partilhar.
IV – Nos presentes autos, estando ainda pendente processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal, não é possível – tal como a Requerente alega – concluir que já é credora sobre o Requerido, ex-cônjuge, com base em meras operações aritméticas.
Comarca: [Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis (J2); Comarca de Aveiro]
Juíza Desembargadora Relatora: Lina Castro Baptista
Juiz Desembargador Adjunto: Alberto Paiva Taveira
Juíza Desembargadora Adjunta: Márcia Portela
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - RELATÓRIO
AA, residente na Travessa ..., ..., ..., Oliveira de Azeméis, veio requerer a declaração de insolvência de BB, residente na Rua ..., n.º ..., 1.º esquerdo, S. João da Madeira.
Alega, em resumo, que casou com o Requerido em 07/09/1991, no regime de comunhão de adquiridos, tendo o respetivo casamento sido dissolvido, por divórcio, em 28/10/2003.
Declara que, por altura do divórcio, as partes assinaram um documento intitulado de «Contrato Promessa de partilha para separação de meações», bem como que, em 12/05/2004, celebraram uma escritura pública referente à partilha de bens imóveis, veículos e quotas societárias.
Afirma que, após a assinatura dos aludidos documentos, se apercebeu de que no aludido contrato promessa não figuravam várias aplicações financeiras de que o casal era titular no Banco 1..., S.A., tendo acordado ambos em procederem à divisão desses valores, ficando ela com as ações tituladas pela conta de títulos n.º ... e n.º ..., no valor total de €192.843,17 e o Requerido com todas as demais carteiras de ações associadas à aludida conta, no valor total de €105.408,22.
Expõe que, não obstante o acordo alcançado, o Requerido intentou contra si, em 22/12/15, uma ação judicial – Proc. n.º 4051/15.2T8VFR – que correu termos na Comarca de Aveiro, Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 2, a solicitar a sua condenação no pagamento de €192.843,17 referente às aludidas ações, acrescidos de €69.951,88 de juros de mora.
Diz que nesta ação o Tribunal remeteu as partes para o processo de inventário, processo que intentou no Cartório notarial de S. João da Madeira e que corre termos sob o n.º ....
Mais alega que, entretanto, logrou descobrir que existiam várias ações, fundos de investimento e seguros de poupança, tudo no valor total de €817.589,68, associados à conta n.º ..., dos quais o Requerido, livremente e sem o seu conhecimento, dispôs.
Face à aludida situação, diz ter intentado ação declarativa contra o aqui Requerido, no sentido de lhe ser reconhecido o seu direito a metade dos valores financeiros dos quais este se tinha apossado e disposto sem o seu consentimento, a qual deu origem ao Proc. n.º 2286/22.0T8VFR, que corre termos no Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 3.
Bem como que, no âmbito do aludido processo, foi proferida, em 12/04/2024, sentença que julgou totalmente improcedente o pedido reconvencional deduzido pelo aqui Requerido e que o condenou a restituir ao património conjugal o valor de €105.408,22 e a quantia que se vier a apurar proveniente do resgaste/venda das ações e dos seguros do ramo vida poupança/unit linked associados à conta n.º ... do Banco 1..., os quais, à data do divórcio, ascendiam a € 817.589,68.
Mais alega que, na pendência da aludida ação, o aqui Requerido dissipou todo o património que lhe restava.
Concretiza que, em 24/03/2023, o Requerido vendeu à sua irmã e cunhado, pelo preço de € 144.000,00, a fração autónoma que constituía e continua a constituir a sua residência em Portugal, cujo valor de mercado, dadas as suas dimensões, localização, terraço e qualidade de materiais que foram escolhidos pelo próprio casal na altura da compra, nunca será inferior a €200.000,00.
Também que, em 14/07/2023, o Requerido vendeu a “A..., Lda.”, pelo preço total de €148.000,00, duas frações autónomas localizadas no centro do concelho de S. João da Madeira, uma pelo valor de €85.000,00 que valia nunca menos de €150.000,00 e uma pelo valor de €63.000,00 que valia nunca menos de €120.000,00.
Advoga que, com tais negócios jurídicos simulados, o Requerido a prejudicou, frustrando por completo a satisfação do seu crédito.
Remata afirmando que o Requerido não é detentor de qualquer património e, por isso, é manifesta a sua impossibilidade de cumprir o seu crédito.
Conclui pedindo que a presente ação seja julgada provada e procedente e, por via da mesma, se declare a insolvência do Requerido, com todas as consequências legais.
Mais requer que, uma vez declarada a insolvência, seja notificado o senhor Administrador da Insolvência para proceder, nos termos da lei, à resolução dos negócios jurídicos supra identificados.
Citado, o Requerido veio deduzir oposição, excecionando a incompetência internacional do Tribunal.
Contrapõe que, contrariamente ao alegado no requerimento inicial, nada deve à Requerente.
Afirma que, na sequência da decisão judicial invocada, deve, para conferência, compensação e partilha, os € 105.408,22, mas apenas ao “património coletivo, autónomo e separado” do seu dissolvido casal com a requerente, e cuja partilha adicional é objeto do processo de inventário referido. Bem como que a Requerente, por seu lado, deve ao mesmo património, também para conferência, compensação e partilha, a referida quantia de € 192.843,17.
Defende que as duas referidas importâncias são dívidas de ambos e cada um dos cônjuges ao património comum do dissolvido casal de Requerente e Requerido, e como tal foram consideradas pela referida sentença judicial, que, nessa parte, já transitou em julgado.
Mais contrapõe que, no exercício do seu livre direito de viver no local por que optou, transferiu os recursos que tinha aqui e os que aqui foi realizando através da venda progressiva do seu património, e investiu-os onde e como melhor entendeu, como lhe pareceu mais rentável e de gestão mais fácil e menos dispendiosa.
Declara ter sido no exercício desse seu direito que alienou os últimos bens que possuía no nosso País, designadamente os referidos no requerimento inicial.
Suscita que a Requerente litiga de má fé.
Remata pedindo que o pedido formulado pela Requerente seja liminarmente rejeitado, ordenando-se o arquivamento do processo. Ou, se assim se não entender, pede que este tribunal ser declarado internacionalmente incompetente. Ou, se ainda assim se não entender, pede que a Requerente seja declarada parte ilegítima, com as consequências legais, sempre e em qualquer caso, sendo o pedido julgado improcedente e ele do mesmo absolvido, com todas as consequências legais
Notificada para o efeito, a Requerente veio contestar a matéria de facto invocada para efeito de dedução das exceções da oposição.
Proferiu-se despacho saneador, no âmbito do qual se julgaram improcedentes as exceções de incompetência internacional do tribunal e de ilegitimidade ativa da Requerente e se fixou o objeto do litígio e os Temas da Prova.
Realizou-se audiência de julgamento e proferiu-se sentença em que – entre o mais – se refere que “Subsumindo-nos ao caso concreto, temos que BB e AA se divorciaram e procederam à partilha de parte dos bens comuns, nos termos que constam do contrato promessa de partilha e da escritura pública de partilha referidos na factualidade dada como assente.
Do contrato-promessa nem sequer consta o valor atribuído aos bens a partilhar.
Na escritura de partilha não constam todos os bens a partilhar, aí constando apenas os imóveis, as quotas, o veículo automóvel e o passivo.
Temos, ainda, demonstrado que BB tem a restituir ao património conjugal, para efeitos de conferência, compensação das massas patrimoniais e partilha, os seguintes montantes:
a) o montante de € 105.408,22, proveniente dos títulos que transferiu e dispôs associados às contas n.ºs ... e ... do Banco 1.../Banco 2...;
b) o montante por si obtido com o resgate/venda das ações, das obrigações, dos valores mobiliários, dos fundos de investimento e dos seguros do ramo vida de poupança/unit linked associados à conta n.º ... do Banco 1.../Banco 2....
Provou-se que:
- o resgate dos seguros do ramo vida/poupança unit linked associados à conta n.º ... do Banco 1.../Banco 2... ascendeu a € 385.906,14;
- a venda/resgate das ações, obrigações, valores mobiliários e fundos de investimento associados à conta n.º ..., do Banco 1.../Banco 2... ascendeu a € 719.723,38.
No âmbito do Proc. 2286/22.0T8VFR já se mostra definitivamente decidido que BB tem a restituir ao património conjugal, para efeitos de conferência, compensação das massas patrimoniais e partilha, a quantia que obteve através da venda/resgate das ações, obrigações, valores mobiliários e fundos de investimento associados à conta n.º ..., do Banco 1.../Banco 2..., considerando que o recurso pendente apenas diz respeito ao valor obtido com o resgate dos seguros do ramo vida/poupança unit linked.
Por seu lado, AA tem a restituir ao património conjugal, para efeitos de conferência, compensação das massas patrimoniais e partilha, o montante de € 192.843,17, proveniente dos títulos que transferiu e dispôs associados às contas n.ºs ... e ... do Banco 1.../Banco 2....
Dos factos dados como provados não nos é possível concluir, com a certeza exigível, se foi ou não respeitada a supra-referida regra da metade aquando da divisão dos bens pertencentes ao casal, o que nos impossibilita de concluir se a requerente AA terá direito a receber a quantia correspondente a metade da soma das quantias referidas em 10., 11., 17. e 18., descontada da quantia por si já recebida (a referida em 10.) ou qualquer outra.
Para se determinar se, de facto, a requerida AA tem um crédito sobre o requerido BB e qual o seu montante será necessário aferir do real valor de todos os demais bens recebidos por cada um deles.
E essa prova não foi feita nestes autos.
Em suma, não tendo a requerente conseguido demonstrar ser credora do requerido, mais não restará que absolver o requerido do pedido.”
O decisório da sentença é do seguinte teor: “Pelo exposto, decide-se julgar a presente ação improcedente, absolvendo o requerido BB do peticionado.
Mais se decide não condenar a requerente AA como litigante de má-fé.”
Inconformada com esta decisão, a Requerente veio recorrer, rematando com as seguintes
CONCLUSÕES:
1. O objeto do presente recurso radica numa única questão: apreciar e decidir se a Recorrente é credora do Recorrido.
2. A recorrente sustenta a sua posição de credora na sentença proferida no âmbito do Proc. n.º 2286/22.0T8VFR, que corre termos no Juízo Central Cível de Santa Maria da feira – Juiz 3, cuja cópia integral foi junta aos presentes autos.
3. A aludida decisão considerou:
- O contrato promessa de partilha celebrado pelas partes logo após o divórcio (de forma até bastante exaustiva, fazendo referência aos bens no mesmo incluídos) – cf. ponto 7 da respetiva fundamentação fática;
- A escritura de partilha realizada pelo ex casal e os bens na mesma incluídos – cf. pontos 8 e 9 da fundamentação fática da sentença;
- O valor de €192.843.17 de que a Recorrente dispôs referente às aplicações que levantou da conta n.º ... e n.º ...... do Banco 1.../Banco 2... – cf. ponto 10 da fundamentação fática da sentença;
- O valor de €105.408,22 que o Requerido transferiu para si, igualmente, de títulos dessas contas - cf. pontos 11 da fundamentação fática da sentença;
- O resgaste/venda feito pelo aqui Recorrido das ações, das obrigações, dos valores mobiliários, dos fundos de investimento e dos seguros do ramo vida de poupança/unit linked associados à conta n.º ..., o qual fez seu o correspondente produto, que, em concreto, não foi possível apurar, mas cujo valor de mercado à data do divórcio ascendia ao total de €817.589,68 – cf. pontos 12 a 22 da fundamentação fática dessa sentença.
4. Face à aludida fundamentação, resulta, sem margem para dúvidas, que no acerto de contas a fazer entre o dissolvido casal, a aqui Recorrente é credora em larga medida do aqui Recorrido.
5. De forma que, no dispositivo da aludida decisão, o tribunal determina tal acerto, ficando o mesmo dependente, apenas, da liquidação do montante proveniente do resgaste das ações, das obrigações, dos valores mobiliários, dos fundos de investimento e dos seguros do ramo vida de poupança unit/linked associados à conta n.º ... do Banco 1....
6. Tal liquidação veio a ser feita em sede de instrução da presente ação de insolvência.
7. Com efeito, notificada no presente processo a competente instituição bancária, veio esta esclarecer que “a venda /resgaste das ações, obrigações, valores mobiliários e fundos e investimento associados à conta n.º ..., do Banco 1.../Banco 2... ascendeu a €719.723,38. – cf. ponto 18 da fundamentação de facto da sentença recorrida.
8. Quanto aos seguros do ramo vida/poupança unit linked associados à conta n.º ..., veio a competente instituição bancária esclarecer que o seu resgaste ascendeu a €385.906, 14. - cfr. ponto 17 da fundamentação de facto da sentença recorrida.
9. A decisão judicial proferida no âmbito do Proc. n.º 2286/22.0T8VFR foi objeto de recurso de apelação, o qual não colheu provimento e encontra-se pendente de recurso de revista excecional, cingindo-se, o mesmo, todavia, aos seguros do ramo vida/unit linked.
10. Ou seja, com exceção dessa parte referente aos seguros poupança do ramo vida, a aludida decisão já transitou em julgado.
11. Ora, salvo devido respeito, as considerações feitas pelo Tribunal recorrido sobre a violação da regra da metade referente à divisão dos bens de casal ofendem a autoridade do caso julgado da sentença proferida no Proc. n.º 2286/22.0T8VFR.
12. De facto, todos os factos pertinentes a tal apreciação foram levados ao conhecimento daquele outro tribunal, sendo certo que, existia até um pedido subsidiário formulado pela Autora relacionado com a violação da regra da metade para o caso deste entender que não bastaria, para acautelar os interesses das partes, proceder-se à conferência/acerto das contas referentes aos valores em causa.
13. Sucede que, esse Tribunal apreciou o contrato promessa celebrado entre as partes, a escritura de partilha feita pelas partes e os valores levantados por cada uma delas após o divórcio e concluiu e determinou que a solução jurídica da questão passaria pelo acerto de contas a realizar entre os ex cônjuges, conforme claramente resulta do dispositivo da sua sentença.
14. “O caso julgado material produz os seus efeitos por duas vias: pode impor-se, na sua vertente negativa, por via da exceção de caso julgado no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada em julgado e pode impor-se, na sua vertente positiva, por via da autoridade do caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas.”
15. “O caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objeto da segunda, mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objeto da ação respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objeto da primeira decisão).”
16. In casu, não restam dúvidas face á sentença proferida no Proc. n.º 2286/22.0T8VFR, que o Tribunal determinou a realização de uma conferência de contas entre os ex cônjuges e que, por via de tal acerto, o Recorrido sempre será devedor da Recorrente da quantia de, pelo menos, €316.145,18 (não levando em conta os seguros de poupança vida, por ainda e encontrarem em recurso), correspondente à diferença entre as quantias pertencentes ao ex casal (€192.843,17 + €105.408,22 + €719.723,38) a dividir por dois, que corresponderá à sua meação desses bens, subtraído do valor por si já recebido (€192.843,17).
17. Ou seja, a qualidade de credora da Recorrente relativamente ao Recorrido já vinha definida e determinada da decisão judicial proferida no Proc. 2286/22.0T8VFR, pelo que a douta sentença recorrida violou a autoridade de caso julgado da aludida decisão.
18. Pelo exposto e salvo o devido respeito, a recorrente considera que a sentença recorrida não está conforme aos princípios gerais do direito e violou o disposto no artigo 619 do Código do Processo Civil.
O Requerido veio apresentar contra-alegações, pedindo que o recurso seja improcedente, confirmando-se a sentença recorrida, terminando com as seguintes
CONCLUSÕES:
A. À luz da douta sentença recorrida, o cerne do presente recurso está restrito à única questão de saber se a recorrente é ou não titular de um direito de crédito sobre o seu ex-marido, ora recorrido, nos termos e para os efeitos do art.º 20º do CIRE.
B. O raciocínio da recorrente continua viciado, desde princípio do presente processo, por um evidente erro base de análise jurídica: ela confunde um seu hipotético direito de crédito directamente sobre o seu ex-marido com a (sua) meação ou a contitularidade do direito ao património comum colectivo do seu dissolvido casamento com aquele seu ex-marido, património esse a que pertencem os bens e valores já apurados ou a apurar na acção a que se refere o Facto 5.
C. A Mma Juiz, na sua douta sentença, chegou à conclusão de que a A., ora recorrente, não conseguiu “demonstrar ser credora do requerido” (seu ex-marido), a partir da análise da questão da validade dos documentos anteriormente assinados entre ambas as partes – o contrato- promessa de partilha e a escritura de partilha – à luz da regra da metade estabelecida no art. 1730º do CC e da jurisprudência que tem vindo a formar-se sobre a análise daquela norma.
D. Mas, mesmo que tivesse entendido que a regra da metade não teria sido cumprida e ou que se tivesse “aferido do real valor de todos os demais bens recebidos por cada um deles”, ainda assim não poderia nunca a Mma Juiz concluir que a Autora, ora recorrente, era detentora de um direito de crédito sobre o seu ex-marido, ora recorrido, justamente porque os bens em que ela, recorrente, quer basear o seu (suposto) crédito, seriam e são bens comuns do património comum colectivo do dissolvido casal dela e do recorrido, ainda não partilhados e a partilhar apenas através do processo de inventário a que se referem os Factos 2, 3 e 4.
E. Pelas razões e pelo entendimento da doutrina e da jurisprudência que se expuseram a págs 3/5 das anteriores alegações, após a dissolução do vínculo conjugal pelo divórcio a que se refere o Facto 1, o anterior património comum (a que pertenceriam os bens e valores que foram objecto da acção judicial a que se refere o Facto 5) converteu-se em como comunhão de tipo germânico ou comunhão de mão comum, podendo, então, qualquer dos consortes dispor da sua quota ideal ou requerer a divisão da massa patrimonial através da partilha, mas não sendo nem podendo considerar-se dono de qualquer dos bens ou direitos que passaram a pertencer àquela massa.
F. Após o divórcio, a situação do património comum do dissolvido casal passou a ser uma situação semelhante à sucessão mortis causa, ou seja, a uma herança, que, antes da partilha a operar através do processo de inventário a que se referem os Factos 2, 3 e 4, constitui uma universitas juris, um património autónomo, com conteúdo próprio, nos termos da qual os direitos dos ex-cônjuges (e, assim, da A./recorrente) recaem sobre o conjunto da massa daquele património comum, e cada um dos dois apenas tem direito a uma parte ideal de tal património (a meação) e não a bens certos e determinados.
G. As quantias ou valores já fixados e as que porventura venham ainda a ser fixadas na referida acção judicial (a que se refere o Facto 5), ingressarão não na esfera jurídico-patrimonial da requerente, mas no património comum do dissolvido casal que foi constituído pela requerente e pelo requerido, com a natureza de património coletivo, de tal modo que só após a partilha que vier a ser realizada pelo referido processo de inventário cada uma das partes virá a saber o que pertence.
H. Até lá, ou seja, até à partilha, o direito da recorrente incide (aliás no regime de contitularidade com o ex-marido) sobre aquele património autónomo e comum, de natureza colectiva, e não sobre o requerido.
I. Não existe contradição entre o já decidido, até ao presente, na referida acção (e os respectivos fundamentos), e a decisão tomada pela douta sentença ora recorrida ou a respectiva fundamentação: seja quanto à regra da metade ou quanto ao alegado direito de crédito da recorrente sobre o recorrido, direito que, como se viu, também não existe nos termos e segundo os fundamentos das decisões de ambas as instâncias já proferidas naquela outra acção, conforme factos 5, 6 e 7 da sentença objecto do presente recurso.
J. Não ocorre, por isso, a violação da autoridade do caso julgado invocada pela recorrente.
K. Uma vez demonstrando, como anteriormente ficou, que a recorrente não detém um direito de crédito sobre o requerente, nos termos e para os efeitos dos arts. 20º e 25º do CIRE, demonstrado está também que não se mostra verificado, em relação a ela, o requisito previsto na al. b) do nº 1 daquele art.º 20º, pela simples razão de que o recorrido não estava nem está ainda – e não o estará até à partilha em vista pelo processo a que se refere o Facto 2, constituído na obrigação de pagar qualquer quantia pecuniária à requerente e, mesmo após a partilha, poderá, em resultado da mesma, vir ou não a ficar a dever à ex-mulher, aqui recorrente.
L. Por outro lado, além de não existir o “crédito sobre o ora recorrido”, a recorrente também não alegou (muito menos provou) qualquer dos outros pressupostos ou “factos-índice” previstos naquele nº 1 do art. 20º, cujo ónus lhe competia, pelo que, ainda que lhe fosse reconhecido um eventual direito de crédito, isso não era suficiente para, in casu, a acção de insolvência do recorrido poder proceder.
M. O presente recurso insere-se na estratégia da recorrente de pressionar, por todos os meios, o recorrido, a pagar-lhe o que ela entende, mas a que só virá a ter direito, se vier, após a partilha a realizar através do processo de inventário a que se refere o Facto 2.
Foi proferido despacho a admitir o recurso como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[1], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
A questão a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, é a de apurar da existência de uma situação de insolvência do Requerido.
Foram os seguintes os factos considerados provados na decisão recorrida:
1) BB e AA casaram entre si em 07 de setembro de 1991, no regime de comunhão de adquiridos, tendo, todavia, o respetivo casamento cessado em 28 de outubro de 2003, por decisão decretada no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento que correu termos na Conservatória do Registo Civil de S. João da Madeira e transitada nessa mesma data.
2) AA assume a qualidade de cabeça de casal no processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal dissolvido que corre termos, sob o n.º ..., no Cartório Notarial de S. João da Madeira, da Dra. CC.
3) No âmbito do aludido processo de inventário, BB deduziu reclamação à relação de bens, à qual AA respondeu.
4) Em decisão ao aludido incidente, determinou a Ex. Senhora Notária: “Face ao supra exposto decide-se, ao abrigo do disposto no art. 16º do RJPI, determinar a suspensão do presente processo de inventário, remetendo as partes para os meios comuns para apuramento da existência de bens comuns não partilhados e apreciação da nulidade do contrato promessa de partilhas e separação de meações outorgado pelas partes.”.
5) Na sequência do aludido despacho, AA intentou ação declarativa comum, que corre termos sob o Proc. 2286/22.0T8VFR, e, em consequência, foi aí decidido que:
- BB tem a restituir ao património conjugal, para efeitos de conferência, compensação das massas patrimoniais e partilha, os seguintes montantes:
a) o montante de € 105.408,22, proveniente dos títulos que transferiu e dispôs associados às contas n.ºs ... e ... do Banco 1.../Banco 2...;
b) o montante que se vier a liquidar, proveniente do resgate/venda das ações, das obrigações, dos valores mobiliários, dos fundos de investimento e dos seguros do ramo vida de poupança/unit linked associados à conta n.º ... do Banco 1.../Banco 2...;
- AA tem a restituir ao património conjugal, para efeitos de conferência, compensação das massas patrimoniais e partilha, o montante de € 192.843,17, proveniente dos títulos que transferiu e dispôs associados às contas n.ºs ... e ... do Banco 1.../Banco 2..., dando-se por reproduzido o demais teor da sentença junta sob Doc. n.º 1 com a petição inicial.
6) BB interpôs recurso da sentença referida em 5), tendo sido proferido acórdão, pelo Tribunal da Relação do Porto, que manteve a decisão proferida pela 1ª instância., alterando apenas os pontos 13 e 14. da matéria de facto provada, dando-se por reproduzido o demais teor do acórdão junto com a refª 17221482.
7) BB interpôs recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, cingindo-se o recurso apresentado ao valor relativo aos seguros do ramo vida/poupança unit linked associados à conta n.º ... do Banco 1.../Banco 2..., mormente a saber-se se tais seguros devem ser considerados bens comuns do casal ou bens próprios do beneficiário, o qual ainda se encontra pendente, dando-se por reproduzido o demais teor das alegações juntas com a refª 17221482.
8) Por altura do divórcio, AA e BB assinaram um documento titulado de “Contrato Promessa de partilha para separação de meações”, datado de 27 de Outubro de 2003, junto sob Doc. n.º 1 com a contestação, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
9) Mediante escritura pública outorgada em 12 de maio de 2004, no Cartório Notarial de São João da Madeira, denominada de “Partilha”, junto sob Doc. n.º 2 com a contestação, cujo teor se dá aqui por reproduzido, AA e BB procederam à partilha dos bens e passivo aí indicados.
10) Entre 02/11/2006 e 30/11/2006, AA transferiu para uma conta exclusivamente sua, os títulos das contas n.ºs ... e ... do Banco 1.../Banco 2..., tituladas por AA e BB, no valor global de € 192.843,17.
11) E BB transferiu para si títulos dessas contas no valor global de € 105.408,22.
12) Só após o divórcio AA veio a ter conhecimento que existiam carteiras de títulos associadas à conta n.º ... e ....
13) À data do divórcio, existiam ações, obrigações, valores mobiliários e fundos de investimento associados à conta n.º ..., do Banco 1.../Banco 2..., com o valor de mercado total que, nessa data, ascendia, a € 445.107,72.
14) À data do divórcio, existiam seguros do ramo vida de poupança/unit linked (Novo Plano – Reforma B... Vida, Renda Segura, Renda Crescente 2002, Nova Poupança, Investimento Mais, Rendimentos Crescente e Renda +) associados à conta n.º ..., do Banco 1.../Banco 2..., com o valor seguro total que, nessa data, ascendia, a € 372.481,96 €.
15) À data do divórcio, o valor seguro dos referidos seguros do ramo vida poupança/unit linked ascendia a € 372.481,96.
16) Após o divórcio, BB procedeu ao resgate/venda das acções, das obrigações, dos valores mobiliários, dos fundos de investimento e dos seguros do ramo vida de poupança/unit linked associados à conta n.º ..., fazendo seu o correspondente produto.
17) O resgate dos seguros do ramo vida/poupança unit linked associados à conta n.º ... do Banco 1.../Banco 2... ascendeu a € 385.906,14.
18) A venda/resgate das ações, obrigações, valores mobiliários e fundos de investimento associados à conta n.º ..., do Banco 1.../Banco 2... ascendeu a € 719.723,38.
19) Através de documento particular autenticado junto sob Doc. n.º 2 com a petição inicial, datado de 24.03.2023, cujo teor se dá aqui por reproduzido, BB declarou vender a DD e EE, que declararam comprar, as frações autónomas aí identificadas pelo preço global de € 152.000,00.
20) Através de documento particular autenticado junto sob Doc. n.º 3 com a petição inicial, datado de 14.07.2023, cujo teor se dá aqui por reproduzido, BB declarou vender à sociedade A... Lda., que declarou comprar, as frações autónomas aí identificadas pelo preço global de € 148.000,00.
21) BB reside e exerce a sua atividade no Brasil há mais de 10 anos.
22) BB não é proprietário de quaisquer bens em Portugal.
Foram os seguintes os factos considerados não provados na decisão recorrida:
a) As frações referidas em 19) e 20) tinham um valor de mercado superior ao valor aí referido.
b) BB dissipou todo o seu património.
O mecanismo de insolvência judicial tem por propósito o de se obter a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores do insolvente, através da repartição dos seus bens ou da aprovação de um plano de insolvência.
Nos termos decorrentes do art.º 20.º do CIRE, a declaração de insolvência pode ser requerida por qualquer credor, desde que se verifique algum dos factos-índice elencados em tal normativo.
Como se sabe, está em situação de insolvência aquele que se encontra impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações.
Explica-se, de forma completa, no Acórdão de 26/02/2015 da Relação de Évora, tendo por Relator Mário Serrano[2], que "O conceito básico de insolvência é traduzido pela impossibilidade de cumprimento, pelo devedor, das suas obrigações, correspondendo os factos-índice ou presuntivos da insolvência a situações cuja ocorrência objetiva pode, nos termos da lei, fundamentar o pedido e que se prendem com a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações."
Como explica Catarina Serra[3], a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas constitui “(o) único pressuposto objetivo da declaração de insolvência (…), sendo os factos-índice meros fundamentos necessários mas não suficientes do requerimento de declaração de insolvência do devedor”.
Ou seja, os factos-índice correspondem apenas a situações típicas em que, tendencialmente, se verifica uma incapacidade do devedor cumprir a generalidade das suas obrigações.
No domínio deste quadro normativo, incumbe ao credor alegar e provar factos suscetíveis de integrar qualquer um daqueles factos-índice e ao devedor, nos termos do art.º 30.º, n.º 4 do CIRE, ilidir esta presunção, alegando e demonstrando a sua solvência.
A Recorrente intentou a presente acção especial de insolvência invocando ser credora do Requerido no montante de, pelo menos, € 316.145,18 e, por outro lado, que este dissipou todo o seu património, sendo manifesta a sua impossibilidade de cumprir o seu crédito.
O tribunal recorrido entendeu que a Requerente não fez prova da sua qualidade de credora e, consequentemente, julgou a presente ação improcedente.
No presente recurso, a Recorrente alega que a sua posição de credora decorre da sentença proferida no âmbito do Proc. n.º 2286/22.0T8VFR, que corre termos no Juízo Central Cível de Santa Maria da feira – Juiz 3, defendendo resultar da mesma, sem margem para dúvidas, que no acerto de contas a fazer entre o dissolvido casal, esta é credora em larga medida do aqui Recorrido.
Acrescenta que a decisão judicial proferida no âmbito do Proc. n.º 2286/22.0T8VFR foi objeto de recurso de apelação, o qual não colheu provimento e encontra-se pendente de recurso de revista excecional, cingindo-se, o mesmo, todavia, aos seguros do ramo vida/unit linked.
Sustenta complementarmente que as considerações feitas pelo tribunal recorrido sobre a violação da regra da metade referente à divisão dos bens de casal ofendem a autoridade do caso julgado da sentença proferida no Proc. n.º 2286/22.0T8VFR, já que esse tribunal apreciou o contrato promessa celebrado entre as partes, a escritura de partilha feita pelas partes e os valores levantados por cada uma delas após o divórcio e concluiu e determinou que a solução jurídica da questão passaria pelo acerto de contas a realizar entre os ex cônjuges, conforme claramente resulta do dispositivo da sua sentença.
Conclui defendendo que não restam dúvidas face á sentença proferida no Proc. n.º 2286/22.0T8VFR, que o Tribunal determinou a realização de uma conferência de contas entre os ex cônjuges e que, por via de tal acerto, o Recorrido sempre será devedor da Recorrente da quantia de, pelo menos, €316.145,18 (não levando em conta os seguros de poupança vida, por ainda e encontrarem em recurso), correspondente à diferença entre as quantias pertencentes ao ex casal (€192.843,17 + €105.408,22 + €719.723,38) a dividir por dois, que corresponderá à sua meação desses bens, subtraído do valor por si já recebido (€192.843,17).
Em nosso entendimento, a Recorrente comete um manifesto erro de interpretação da decisão proferida no indicado Processo n.º 2286/22.0T8VFR, afastando-se, simultaneamente, do regime legal aplicável à partilha de bens dos dissolvidos casais.
Neste particular, as disposições legais estruturantes são as dos art.º 1688.º e 1689.º do Código Civil[4], nos termos das quais “As relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução, declaração de nulidade ou anulação do casamento (…).” E “1 – Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.”
Em termos processuais, o art.º 1133.º, n.º 1, do CP Civil dispõe que “Decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns.”, seguindo-se o regime geral anteriormente estipulado.
Estruturalmente, a partilha efetua-se, em primeiro lugar, separando os bens próprios; de seguida, procede-se ao relacionamento dos bens pertencentes ao património comum, ao pagamento das dívidas a terceiros ou a cada um dos ex-cônjuges e, finalmente, faz-se a partilha da massa comum remanescente, na qual cada um deles receberá a sua meação.
Assim sendo, o direito de cada um dos ex-cônjuges não é nunca um direito a metade de cada um dos bens que integram o património comum do casal (como defende a Recorrente), tendo esse direito de ser concretizado através da liquidação e partilha deste património comum.
Apenas depois da indicada sequência de operações, se poderá dizer cessada a situação pendente de “partilha”.
Este período temporal entre o divórcio e a partilha efetiva não está subordinado, obviamente, ao regime jurídico da comunhão conjugal. Trata-se de uma situação transitória em que cada um dos ex-cônjuges tem apenas direito a uma fração ideal sobre o conjunto dos bens a partilhar.
Resumindo esta situação jurídica e sequência de atos, afirma Hélder Roque[5] “Na constância do matrimónio, os bens do casal constituem um património a que a lei confere determinada autonomia e que pertence, em comum, ao marido e à mulher, embora sem repartição de quotas ideais, sendo, assim, uma comunhão sem quotas. Porém, decretado o divórcio, dissolve-se o casamento, extinguindo-se a comunhão conjugal, razão pela qual só através de partilha, judicial ou extrajudicial, pode, então, concretizar-se o direito de cada um dos cônjuges sobre os bens que integram a comunhão, requerendo inventário para partilha dos mesmos, atento o disposto pelo artigo 2101.º do Código Civil.”
No mesmo sentido, refere-se no Acórdão da Relação do Coimbra de 06/05/2008[6], tendo como Relator Gregório Jesus: “I – As relações patrimoniais entre os cônjuges cessam com a dissolução do casamente, designadamente através do divórcio. II – Cessadas essas relações patrimoniais, procede-se à partilha dos bens do casal (art.º 1689.º C.Civ.) e sendo esta via judicial, será através do processo especial de inventário. III – O processo de inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns entre os cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros, o que pressupõe sempre a relacionação de todos os bens, próprios ou comuns, e também daqueles créditos. IV – É na partilha que os cônjuges recebem os bens próprios e a sua meação no património comum, é na partilha que cada um deles confere o que deve ao património comum (art.º 1689.º, n.º 1), e é no momento da partilha que o crédito de um deles sobre o outro, ou do património comum sobre um deles, e ainda o dos credores do património comum, se tornam exigíveis (art.º 1697.º e 1695.º, n.º 1).”
Nos presentes autos está provado que ainda está pendente processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal, o qual corre termos sob o n.º ..., no Cartório Notarial de S. João da Madeira, da Sr. Dr.ª CC.
Mais está provado que, tendo o aqui Requerido deduzido reclamação à relação de bens, este processo foi suspenso, remetendo-se as partes para os meios comuns “para apuramento da existência de bens comuns não partilhados e apreciação da nulidade do contrato promessa de partilhas e separação de meações outorgado pelas partes.”.
O indicado Processo n.º 2286/22.0T8VFR foi instaurado para este fim e o que foi aí decidido foi que:
“- BB tem a restituir ao património conjugal, para efeitos de conferência, compensação das massas patrimoniais e partilha, os seguintes montantes: a) o montante de € 105.408,22, proveniente dos títulos que transferiu e dispôs associados às contas n.ºs ... e ... do Banco 1.../Banco 2...; b) o montante que se vier a liquidar, proveniente do resgate/venda das ações, das obrigações, dos valores mobiliários, dos fundos de investimento e dos seguros do ramo vida de poupança/unit linked associados à conta n.º ... do Banco 1.../Banco 2...;”
E que “- AA tem a restituir ao património conjugal, para efeitos de conferência, compensação das massas patrimoniais e partilha, o montante de € 192.843,17, proveniente dos títulos que transferiu e dispôs associados às contas n.ºs ... e ... do Banco 1.../Banco 2..., dando-se por reproduzido o demais teor da sentença junta sob Doc. n.º 1 com a petição inicial.”
Esta decisão - como é evidente e resulta da aplicação da lei – determinou que as indicadas quantias fossem restituídas ao “património conjugal, para efeitos de conferência, compensação das massas patrimoniais e partilha”.
Assim, contrariamente ao defendido pela Recorrente, esta sentença judicial não lhe atribui qualquer crédito.
Por outro lado, da mesma sentença não resulta, nem explícita nem implicitamente, que, no futuro acerto de contas a fazer entre o dissolvido casal, a Recorrente seja presumivelmente credora em larga medida do Recorrido, já que será necessário ainda proceder a conferência, compensação e partilha.
Aliás, esta sentença encontra-se ainda pendente de recurso de revista excecional, quanto aos seguros do ramo vida/unit linked.
Finalmente, perante esta condenação concreta – completamente diferente da sustentada pela Recorrente – não tem qualquer razoabilidade invocar a autoridade de caso julgador.
Damos como nossas as palavras da sentença recorrida que, apreciando os factos dados como provados, refere que, tendo em conta o que adrede ficou convencionado entre autora e réu, verifica-se que para além de terem atribuído aos imóveis a partilhar o seu valor tributário que, por via de regra, é inferior ao seu valor real (como, aliás, o indicia o facto de o empréstimo contraído para a respetiva aquisição ser de montante superior ao indicado valor patrimonial dos mesmos), “ficou de fora” da partilha o estabelecimento comercial a que se alude na cláusula 8ª, apesar de o mesmo constituir um bem comum do casal (como as partes expressamente reconhecem e emerge do regime vertido no art. 1724º do Cód. Civil), não se indicando sequer o respetivo valor.
Significa isto, portanto, ser desconhecido o valor total do ativo dos bens que integram o património comum do casal, o que, naturalmente, inviabiliza qualquer juízo sobre a igualação da partilha, na justa medida em que, por mor dessa omissão, não se pode determinar se cada um dos ex-cônjuges irá participar ou não participar por metade no ativo da comunhão.
Efetivamente, decorre da disposição legal do art.º 1730.º, n.º 1, do C Civil que “Os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso.”
Tal como se refere na sentença recorrida, a nossa jurisprudência superior tem entendido, de forma maioritária, que vigora nesta sede um princípio geral que obriga a que se reponha o equilíbrio patrimonial sempre que se verifique que, feita a divisão dos bens comuns, um dos ex-cônjuges se encontra enriquecido em detrimento do outro.
Cita-se, a título meramente exemplificativo, o Acórdão da Relação de Guimarães de 27/01/2022, tendo como Relato Joaquim Boavida[7], onde se decidiu: “O processo de inventário em consequência do divórcio, instaurado para partilha do património comum do dissolvido casal, é norteado pelo objetivo de conseguir um equilíbrio no rateio final, ou seja, que nenhum dos ex-cônjuges, após a partilha, fica prejudicado em relação ao outro.”
Sem necessidade de mais considerações, concluímos, como a sentença recorrida, que a Recorrente não fez prova da sua qualidade de credora do Requerido.
Tal como refere o Recorrido, nas respetivas contra-alegações, a Recorrente confunde um seu hipotético direito de crédito directamente sobre o seu ex-marido com a (sua) meação ou a contitularidade do direito ao património comum colectivo do seu dissolvido casamento com aquele seu ex-marido, património esse a que pertencem os bens e valores já apurados ou a apurar na acção a que se refere.
As quantias ou valores já fixados e as que porventura venham ainda a ser fixadas na referida acção judicial ingressarão não na esfera jurídico-patrimonial da requerente, mas no património comum do dissolvido casal que foi constituído pela Requerente e pelo Requerido, com a natureza de património coletivo, de tal modo que, só após a partilha que vier a ser realizada pelo referido processo de inventário, cada uma das partes virá a saber o que lhe pertence.
Apenas após a partilha, a Recorrente saberá se é ou não credora do Recorrido.
Temos, assim, que concluir que não resultou provada a situação de insolvência do Recorrido, quer pelo facto de a Recorrente não ter provado a existência da situação-índice por si invocada, quer por não se ter apurado a existência de uma situação de insusceptibilidade deste cumprir as suas obrigações.
A conclusão final é, portanto, a da total improcedência do recurso.
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso da Requerente/Recorrente, mantendo-se a decisão recorrida.
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
Porto, 13 de maio de 2025
Lina Baptista
Alberto Taveira
Márcia Portela
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[1] Doravante designado apenas por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] In Coletânea de Jurisprudência Ano XL, Tomo I, pág. 246.
[3] In O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução, 3.ª edição, Almedina, pág. 25.
[4] Doravante apenas designado por C Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[5] In “Da Partilha parcial, em divórcio por mútuo consentimento convolado, da parcela respeitante à indemnização por cessação do contrato de trabalho de um dos ex-cônjuges vencida na constância do matrimónio” in Julgar, n.º 40, 2020.
[6] Proferido no Processo n.º 202-E/1999.C1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[7] Proferido no Processo n.º 4218/21.4T8BRG-A.G1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.