CONTRATO DE SEGURO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
ATRASO INJUSTIFICADO DA SEGURADORA
Sumário

(Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art.º 663º nº 7 do Código de Processo Civil)
I - No âmbito do seguro facultativo vigora a liberdade contratual, pelo que haverá indemnização pela privação de uso do veículo se tal cobertura tiver sido contratada e nos exactos moldes e termos em tenha sido contratada.
II - Por isso se alinha o entendimento segundo o qual tendo ocorrido o evento que desencadeou o accionamento de determinada cobertura e não estando concomitantemente coberto o risco de privação de uso do veículo, a não assunção ou demora na satisfação contratual por parte da seguradora apenas dá lugar ao pagamento de juros de mora, os quais correspondem a toda a indemnização pela mora no cumprimento das obrigações pecuniárias.
III - Porém, perfila-se também o entendimento que confere protecção ao segurado nos casos em que a seguradora incorre em atraso injustificado na realização da prestação convencionada, valorando para o efeito a violação de deveres secundários de conduta que impõem à seguradora, parte mais forte na relação contratual, uma conduta leal e cooperante com o segurado conforme ao princípio da boa-fé que deve reger as relações contratuais: não se trata de indemnização de dano decorrente do sinistro, mas sim pela inobservância da obrigação contratual de pagar pontual e atempadamente.
IV - Não é possível afirmar-se que a justificação da seguradora para a não assunção da reparação pelo valor integral dos danos que a viatura apresentava é violadora dos deveres de boa-fé impostos pelo art.º 762º nº 2 do CCivil, nem violadora das condutas que lhe são ditadas pelo art.º 153º da Lei nº 147/2015, de 09/09, quando a matéria de facto apurada e não impugnada revela que os estragos provocados pelo acidente foram em parte agravados pela circulação do veículo, que deveria ter ficado imobilizado após a ocorrência.

Texto Integral

Acordam as Juízes na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
“MFM Unipessoal, Lda”, pessoa colectiva nº …, com sede na Rua … nº …, em …,
intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma única de processo comum, contra
“Caravela – Companhia de Seguros, SA”, pessoa colectiva nº …, com sede na Avenida …, em Lisboa,
pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global de € 11.778,02 que entende ser-lhe devida em cumprimento do contrato de seguro automóvel que com esta celebrou tendo por objecto o veículo com a matrícula … com cobertura de danos próprios; sendo o valor que reclama correspondente aos prejuízos sofridos em consequência de acidente de viação ocorrido em 09/07/2020, consubstanciado em choque,  respeitando a quantia de € 3.243,16 ao valor da reparação dos estragos do veículo já deduzida a franquia contratual, a quantia de € 910,37 aos serviços de aluguer de veículo, e o montante de € 7.624,49 a 101 dias de privação de veículo, à razão de € 75,49 por cada dia, valores acrescidos de juros de mora a contar da citação até efectivo e integral pagamento.

Na sua contestação a ré impugnou as circunstâncias do acidente alegadas pela autora, a imputação ao referido evento da totalidade dos estragos apresentados pelo veículo, o valor da reparação, assim como os prejuízos por privação do uso e respectivo montante, acrescendo que a cobertura de paralisação não foi contratada. Tudo para concluir pela improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador no qual foi identificado o objecto do litígio, enunciados os temas da prova, admitidos os meios probatórios e designada data para a audiência final, sem que tenha merecido reclamação.

Seguindo os autos a sua regular tramitação, foi a final proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 3.208,14, acrescida de juros de mora à taxa comercial desde a citação até efectivo e integral pagamento, absolvendo a ré do demais peticionado.

Inconformada, veio a autora interpor o presente recurso de apelação, com pedido de reapreciação da prova, sustentando que a decisão recorrida deve ser revogada e em seu lugar proferida outra que condene a ré na totalidade do pedido.

Das suas alegações extraiu a Recorrente as seguintes
Conclusões
«1 – Presente recurso vem interposto da douta sentença proferida pelo Juízo Local Cível de Alenquer, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, na parte em que julgou improcedente os seguintes pedidos formulados pela Autora:
a) Que a Ré fosse condenada a pagar à Autora a quantia de 910,37 € referente aos serviços de aluguer de veículo;

b) Que a Ré fosse condenada a pagar à Autora, a título de privação do uso do veículo sinistrado a quantia de 7.624,49 € (101 dias x 75,49 €).

2 – Não obstante o compromisso assumido, a Ré escusou-se a reparar a viatura, pelo que não teve a Autora outro remédio senão proceder à sua reparação, tendo despendido a quantia de 3 426,83 €.

3 – Perante o atraso e recusa da Ré em assumir a responsabilidade pelo sinistro, a Autora viu-se na contingência de proceder ao aluguer de viaturas durante pelo menos 10 dias tendo despendido a quantia de 910,37 €, que reclama da Ré,

4 – Bem como o direito de ser ressarcida dos restantes 101 dias úteis em que se viu também privada do seu veículo, no montante de 7 624,49 €, pois tal facto também lhe causou transtornos durante esses dias.

5 – Com interesse para a decisão do presente recurso, foram dados como provados os factos constantes dos pontos 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18 e 19 do elenco dos factos provados, que aqui damos como reproduzidos.

6 – Quanto à decisão sobre a matéria de facto, a Autora, aqui Recorrente, não se insurge quanto à matéria de facto provada, nem quanto às alíneas a) a e) da matéria de facto não provada.

7 – A Recorrente não se conforma é que se tenha dado como não provados os factos das alíneas f) e g) da matéria de facto não provada, a saber:

a) A autora atrasou trabalho e entregas, o que lhe causou má imagem e desconforto perante os clientes (alínea f) do elenco dos Factos Não Provados).

b) A autora alugou entre 25/07/2020 e 27/07/2020, por dois dias, veículo do grupo 5, pelo valor de 148,56 € (alínea g) do elenco dos Factos Não Provados).

8 – Quanto ao facto da alínea f), justifica a Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo”, para o dar como não provado que “as declarações do gerente da autora e o depoimento de BB se mostraram vagas e genéricas, quanto a esta matéria, e não foram corroboradas por qualquer outro elemento probatório”.

9 – Salvo o devido respeito por melhor opinião, os depoimentos, quer do legal representante da Autora, quer das testemunhas por si arroladas, AA e BB foram claros, consentâneos e esclarecidos quanto a este de facto, da Autora se ter atrasado nas entregas das suas encomendas aos clientes, conforme depoimentos supra transcritos.

10 – Além disso, como vem sido entendido, o simples facto de determinada pessoa não poder dispor do seu veículo (que utiliza diariamente) é claro e notório que lhe cria sempre transtornos, pois não é igual ter ou não ter o seu veículo.

11 – O facto elencado na alínea f) do elenco dos fatos não provados merecia pois resposta positiva, devendo por isso dar-se como provado que a Autora atrasou trabalho e entregas, o que lhe causou má imagem e desconforto perante os clientes

12 – Quanto ao facto da alínea g), justifica a Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo”, para o dar como não provado que “foram negados pelo gerente da autora, que garantiu, em declarações, que apenas alugou veículo no mês de julho e até ao dia 24 desse mesmo mês”.

13 – Ouvido o depoimento do legal representante da Autora na íntegra, apenas notamos quanto a esta matéria a seguinte passagem: “(39:40 a 39:50) ADVOGADO O Senhor só alugou carros até ao dia 24 de Julho. Correcto? MM Sim”.

14 – Efectivamente, o documento n.º 9 junto com a petição inicial refere-se a um aluguer de viatura efectuado entre os dias 22/07/2020 e 24/07/2020, que era para onde estaria a olhar o Ilustre Mandatário da Ré no momento em que formulou a pergunta.

15 – Contudo, o Documento n.º 10 junto com a petição inicial mostra que a Autora também alugou outra viatura entre os dias 25/07/2020 e 27/07/2020.

16 – Tratou-se, pois, de um equívoco, quer na pergunta, quer na resposta, porque se pensava estar a falar da data da última factura ou último dia em que foi alugada uma viatura, olvidando-se do referido documento n.º10 junto com a petição inicial, pelo  que tal facto também se deve dar como provado.

17 – Entrando no cerne do presente recurso, do elenco dos factos provados, nomeadamente dos pontos 9 a 19, resulta pois que a Ré não diligenciou, como lhe competia, pela reparação da viatura, rejeitando essa responsabilidade com argumentos completamente descabidos da existência de outros danos não compatíveis com o sinistro ou com o seu agravamento, o que de todo, não ficou demonstrado.

18 – Por conseguinte, como resulta dos factos provados, a reparação do veículo tinha um custo de 3.426,83 € mas a Ré entendeu oferecer à Autora apenas o montante de 920,36 €.

19 – A Ré é pois responsável pelo atraso na reparação da viatura, pelos danos que a Autora teve com a privação do seu uso, pois não cumpriu com o que contratualmente estava obrigada.

20 – Como se tem entendido na Jurisprudência mais acertada, a começar pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão de 25/01/20058 “Emergindo as situações mais frequentes de factos ilícitos ligados a sinistros rodoviários, nada obsta a que sejam também tuteladas as situações geradoras de privação decorrentes de incumprimento de contrato”.

21 – Mais recentemente, chamado a pronunciar-se sobre esta matéria, o Supremo Tribuna de Justiça, no seu Acórdão de 15/03/20239 “Todavia, em caso de atraso injustificado na realização da prestação convencionada caso a seguradora não tenha atuado de forma diligente, equitativa, transparente e com consideração e respeito pelos interesses do segurado/credor na prestação, caso a seguradora haja violado os deveres acessórios de conduta e não haja tornado todas as providências necessárias (e razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor, tendo, a tal título e com enfoque jurídico, que indemnizar o chamado dano de privação de uso”.

22 – Ainda mais recentemente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/12/202310 é referido que “Com efeito, ocorre o dever de indemnizar o dano da privação de uso de coisa segura fundada no retardamento pela seguradora da realização da prestação indemnizatória a que se vinculou, por força do contrato de seguro de danos, ainda que tal cobertura não tenha sido expressamente convencionada”.

23 – Voltando ao caso do autos, dando-se como provado que a reparação do veículo ascendia à quanta de 3 426,83 €, dando-se como provado que a Ré, sem razão, apenas ofereceu à Autora a quantia de 920,36 €, não se pode dizer depois que a Ré diligenciou de forma devida dos seus deveres acessórios de averiguação e resolução do sinistro em prazo razoável.

24 – A viatura da Autora esteve imobilizada desde 09/07/2020, data do acidente, até ao dia 17/11/2020, tempo necessário para que se tivesse realizado a desmontagem do carro, as peritagens, se aguardasse pela resposta da Ré (que veio a ser negativa) e posteriores reparações, data em que a Autora efectuou o pagamento da factura supra referida e levantou o veículo da oficina (Factos Provados n.º 9 a 16).

25 – Durante esse período, num total de 111 dias úteis (Sábados incluídos), que a Autora se viu impossibilitada de usufruir de todas as vantagens que o veículo lhe conferia.

26 – Ora, se em sede de reconstituição natural em tempo útil, a solução é, para a privação do uso do veículo, a sua substituição por outro equivalente, ou o pagamento de uma renda pelo seu aluguer, imperioso se torna admitir que, em sede de reparação sucessiva através do pagamento de uma indemnização, o critério para a sua fixação seja precisamente o do seu valor de uso, traduzido no valor do aluguer de um veículo com características equivalentes, como defende o supra mencionado autor Abrantes Geraldes.
27 – É, aliás, essa a actual orientação jurisprudência do S.T.J. Nesse sentido, Acórdão do S.T.J. de 01/06/99, Processo nº 99A379, in Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça - página da Internet do Ministério da Justiça- www.dgsi.pt/juridicas.nsf -, que fixa: “O critério mais directo ou rigoroso de fixação de indemnização por privação de uma coisa, é o seu valor locativo, ou “valor do uso.

28 – Perante o atraso e recusa da Ré em assumir a responsabilidade pelo sinistro, a Autora viu-se na contingência de proceder ao aluguer de viaturas durante pelo menos 10 dias tendo despendido a quantia de 910,37 €, quantia essa que desde já se reclama.

29 – Não obstante, tem ainda a Autora o direito a ser ressarcida dos restantes 101 dias úteis em que se também viu privada do seu veículo, pois tal facto também lhe causou transtornos durante esses dias.

30 – Ora, retirando o valor pago a título de seguros, valores de IVA, verificamos que em média a Autora pagou nos alugueres supra referidos o valor diário de 75,49 €.

31 – Assim, deve ser este o valor a atender para a fixação do montante que a Ré terá de pagar à Autora a título de privação do uso do veículo pelos restantes 101 dias.

32 – Que se cifra assim na quantia de 7.624,49 € (101 dias x 75,49 €).

33 – Deviam, pois, ter sido dados como provados, nomeadamente, os factos constantes das alíneas f) e g) do elenco dos factos não provados supra referidos, ou seja que:

a) A autora atrasou trabalho e entregas, o que lhe causou má imagem e desconforto perante os clientes (alínea f) do elenco dos Factos Não Provados).

b) A autora alugou entre 25/07/2020 e 27/07/2020, por dois dias, veículo do grupo 5, pelo valor de 148,56 € (alínea g) do elenco dos Factos Não Provados).

34 – Por todo o exposto, ao assim decidir, violou a sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, entre outros, os artigos 413º e 607º do Código de Processo Civil, 798º e seguintes, 562º e seguintes do Código Civil.

35 – Assim, deve a sentença proferida ser revogada e substituída por uma outra que julgue provados os factos supra referidos e julgue a acção totalmente procedente, por provada, e, em consequência, sempre sem prejuízo do recurso à equidade, para além da condenação já decidida relativa ao valor despendido pela Autora com a reparação do veículo,

36 – Condene também a Ré a pagar à Autora as restantes quantias peticionadas na petição inicial a título de dano de privação de uso do veículo, correspondendo a quantia de 910,37 € a serviços de aluguer de veículo e a quantia de 7.624,49 € a 101 dias de privação, à razão diária de 75,49 €, tal como se peticionou na petição inicial.

37 – Assim decidindo, farão V. Ex.ª, Ilustres Desembargadores, a Vossa Costumada JUSTIÇA !!!
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8 Processo n.º 3498/04, em que foi Relatora a Ilustre Juiz Desembargadora REGINA ROSA, publicado em www.dgsi,pt.
9 Processo n.º 27871/19.4T8LSB.L1.S1, em que foi Relator o Ilustre Juiz Conselheiro ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS, publicado em https://jurisprudência.pt/acordao/213660.

10 Processo n.º 3701/22.9T8OER.L1-6, em que foi a Relatora a Ilustre Juiz Desembargadora GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES, publicado em www.dgsi.pt

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A ré contra-alegou pugnando pela confirmação do julgado, alinhando as seguintes
Conclusões
«a. O Recurso tem por objecto (i) a alteração da decisão quanto à matéria de facto, com reapreciação da prova gravada; (ii) a não condenação da Ré no pagamento da quantia de € 910,37, referente a alegados serviços de aluguer de veículo; (ii) pagamento da quantia de € 7 624,49 (101 dias x 75,49 €), a título de privação do uso.
b. Não assiste qualquer razão ou fundamento à pretensão da Recorrente.

Quanto ao Recurso da Matéria de Facto

c. Pretende a Recorrente que os factos não provados f) e g) passem a ser considerados como factos provados.

d. Para o efeito, a Recorrente sustenta-se no depoimento do seu legal representante e das testemunhas AA e BB.
e. Sucede que, conforme resulta da transcrição do depoimento do legal representante da Recorrente em sede de Alegações supra, para as quais se remete, bem como da transcrição do depoimento do legal representante da Recorrente e das mencionadas testemunhas nas Alegações de Recurso, e sem prejuízo da valoração dos seus depoimentos ter de ser concretizada na sua globalidade, os mesmos não são hábeis a considerar como factos provados que a Recorrente se “atrasou trabalho e entregas, o que lhe causou imagem e desconforto perante os clientes”, nem que “A autora alugou entre 25/07/2020 e 27/07/2020, por dois dias, veículo do grupo 5, pelo valor de 148,56”.

f. Assim, e sem necessidade de considerações adicionais, deve o Recurso no que respeita à decisão quanto à matéria de facto ser considerado totalmente improcedente, mantendo-se, na íntegra, a decisão proferida pelo Tribunal a quo, isto é, mantendo-se como não provados os factos não provados f) e g).
Quanto à Privação do Uso

g. No que respeita à privação do uso, a Recorrida subscreve o entendimento vertido na Sentença recorrida, que transcreveu em sede de Alegações supra, e para as quais se remete.

h. Entende a Recorrida que bem andou o Tribunal a quo ao decidir nos termos em que o fez, não só ao considerar que a ora Recorrente não logrou provar a factualidade constitutiva do direito que alega, sendo certo que tal ónus recaía sobre a mesma conforme resulta do n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, mas também em virtude do  contrato de seguro celebrado entre Recorrente e Recorrida –na vertente accionada referente à cobertura facultativa de danos próprios – não abranger tal cobertura, a qual, aliás, é expressamente excluída.

i. A jurisprudência citada pelo Recorrente diz respeito a situações fáctico-jurídicas distintas da situação sub judice, bem como das consequências do acidente para a Recorrente, não devendo ser tida em consideração por parte deste Tribunal da Relação.


j. Em face de tudo quanto se expôs, mais não se poderá concluir do que o Tribunal a quo andou bem ao decidir nos termos em que o fez quanto à alegada privação do uso, devendo a Sentença ser confirmada por este Tribunal da Relação, improcedendo, em absoluto, o Recurso interposto pelo Recorrente.

k. Devendo, naturalmente, em acréscimo às Alegações de Resposta, atender-se à Sentença recorrida, a qual, a respeito da fundamentação das quantias arbitradas / não arbitradas, se dá aqui por reproduzida.

l. Caso assim este Tribunal não entenda, no que não se concede, sempre os montantes reclamados pela Recorrente – diário e global – a título de privação do uso, deverão ser considerados exagerados considerando o veículo, a utilização e toda a situação controvertida nos presentes Autos, devendo o mesmo, num cenário hipotético de condenação, que não se aceita, ser substancialmente reduzido.
Nestes termos, e nos mais de Direito, deve o Recurso interposto pela Recorrente ser considerado totalmente improcedente, por não provado, mantendo-se na íntegra a Sentença recorrida.
Assim fazendo, V. Exas., a costumada
Justiça!»

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Colhidos os vistos, importa apreciar e decidir.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 662º nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º nº3 do mesmo Código).
No caso, as questões a decidir consistem em saber se deve ser alterada a decisão de facto e se deve ser revogada a decisão de mérito, com a condenação da R. no pagamento de indemnização por privação de uso do veículo, incluindo o valor despendido pela A. em aluguer de viatura.

II – FUNDAMENTAÇÃO
A) DE FACTO
Na sentença sob recurso foi considerada a seguinte a factualidade:
«Factos provados
1. Por acordo, junto sob DOC.1 com a contestação, cujo teor se tem por integralmente reproduzido, titulado pela apólice n.º …, celebrado com a autora, a ré, no exercício da sua atividade de seguro e resseguro do ramo ‘não vida’, com início em 11/11/2019, assumiu os riscos inerentes à circulação rodoviária do veículo automóvel marca …, modelo …, com a matrícula …, pertencente à autora, incluindo os riscos de choque, colisão ou capotamento até ao capital de 10 934,27 €, com a franquia no valor de 218,69 €.
2. A referida apólice tem a cobertura designada por ‘Multi-Assistência VIP’, a qual «garante um veículo de substituição, com cilindrada máxima de 1200 cc, durante o período de reparação, por um período máximo de 3 dias por avaria e 3 dias por acidente e anuidade».
3. No dia 9 de julho de 2020, pelas 07 horas e 20 minutos, na autoestrada n.º 1 (A1), em Aveiras, concelho de Azambuja, o veículo referido em 1, conduzido por AA, no sentido Porto-Lisboa, circulava na via central e quando se  preparava para regressar à via mais à direita, foi surpreendido por um veículo que começou a ultrapassar o …, pela direita.
4. Para evitar a colisão com esse outro veículo, o condutor do … guinou de forma repentina para a sua esquerda, perdeu o controlo do veículo e foi embater com a sua frente lateral esquerda no separador central em cimento/betão, onde acabou por se imobilizar.
5. A autora participou o evento à ré, através da declaração amigável de acidente automóvel junta como DOC.1 com a petição inicial.
6. Após ter sido substituído o pneu do veículo, no local do evento, através da assistência em viagem, o veículo circulou pelos seus próprios meios desse local para a fábrica da autora, situada aproximadamente a 200 km do local.
7. No dia subsequente, 10 de julho, o veículo circulou pelos seus próprios meios desde a fábrica até à oficina da Fiat, sita a cerca de 6 km, onde permaneceu até ser concluída a reparação.
8. Do evento descrito resultaram estragos no veículo, constantes do DOC. 5 junto com a petição, que incluem os elencados no relatório de peritagem junto como DOC.5 com a contestação, cujos teores se têm por integralmente reproduzidos, que, em parte, foram agravados pela circulação do veículo que deveria ter ficado imobilizado após a ocorrência.
9. No dia 29/07/2020 deslocou-se à oficina escolhida pela autora para realização da peritagem ao veículo, tendo concluído que apenas resultaram do evento participado à ré, os estragos constantes do relatório de peritagem junto como DOC.5 com a contestação, cuja reparação foi orçamentada na quantia global de 1 139,05 € com IVA incluído à taxa em vigor, sendo 134,85 € relativo a mão-de-obra, 807,44 € referente a peças, existindo um desconto de 16,23 €.
10. Com data de 29/07/2020, a ré endereçou à autora, que a rececionou, a missiva junta como DOC .6 à contestação, cujo teor se tem por integralmente reproduzido e de que se extrai: «[…] Assunto: Informação de valores de peritagem. (…) a reparação da viatura supra referida, foi orçamentada, pelos nossos Serviços Técnicos, em 920,36 €.  Mais informamos, que o nosso processo se encontra em fase de instrução, pelo que, de momento, não nos podemos pronunciar quanto à assunção de responsabilidades.  Do que precede, poderá V.Exa., se assim o entender, ordenar a reparação do veículo sinistrado, por sua conta e risco, não se responsabilizando, esta Seguradora, por eventuais agravamentos de danos, resultantes do mau acondicionamento da viatura, bem como recolhas ou privação de uso. […]».
11. Com essa mesma data de 29/07/2020, a ré endereçou à autora, que a recebeu, a carta junta como DOC. 7 com a contestação, cujo teor se tem por integralmente reproduzido e de que se extrai: […] Assunto: Definição de responsabilidade. (…) Concluída que está, a instrução do nosso processo, apuraram os nossos Serviços Técnicos, que a responsabilidade na produção do acidente correspondente ao processo, acima mencionado, é de imputar, na totalidade, ao condutor da viatura de V.Exa., já que, ao não regular a velocidade de modo que, atendendo à presença de outros utilizadores, e às características e estado da via e do veículo, às condições meteorológicas e à intensidade do trânsito, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, infringiu o disposto no art.º 24, nº1 Código da Estrada. _ Sem prejuízo do acima exposto, garantindo a vossa apólice a cobertura de Choque, Colisão ou Capotamento, informamos V.Exa., que vamos instruir a oficina no sentido de iniciar a reparação da vossa viatura, de acordo com o orçamento elaborado entre aquela entidade e os nossos Serviços Técnicos.  Solicitamos, pois, o favor de junto da mesma, autorizar a reparação. […]».
12. Com data de 29/07/2020, a ré enviou à oficina Auto …, Lda., a missiva junta sob DOC. 8 com a contestação, cujo teor se tem por integralmente reproduzido e de que se extrai: «[…] Assunto: Autorização de Pagamento. (…) Serve o presente para informar V.Exa., que a Caravela Seguros se responsabiliza pelo pagamento do valor de 920,36 € referente à reparação do veículo supracitado, de harmonia com a verba orçamentada pelo nosso perito.  Para que possamos proceder à liquidação do montante em causa, agradecemos que nos remetam a vossa factura/recibo, acompanhada do relatório de vistoria devidamente legalizado pelo proprietário da viatura, após confirmação da sua identidade […]».
13. Não obstante e salvaguardando a existência de mais estragos decorrentes do evento, o perito avaliador deslocou-se novamente à oficina, no dia 05/08/2020, concluindo pela existência de estragos distintos e sobrepostos e pela existência de estragos agravados, como fez constar do DOC. 9 junto com a contestação.
14. A autora não aceitou o valor de 920,36 € que a ré propôs assumir.
15. A autora deu ordem de reparação do veículo à oficina, tendo entregue o valor representado pela fatura-recibo n.º 2020145/145065, datada de 17/11/2020, na mesma data, da quantia de 3.426,83 € (três mil quatrocentos e vinte e seis euros e oitenta e três cêntimos), junta sob DOC. 5 com a petição, cujo teor se tem por integralmente reproduzido.
16. A autora levantou o veículo da oficina no dia17/11/2020.
17. A autora é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de fabricação de mobiliário de madeira, comércio a retalho de tecidos e retrosaria.
18. O veículo … é usado diariamente na atividade da autora, quer pelo seu sócio gerente, quer pelos seus funcionários, para o transporte de mercadorias, quer de matéria-prima, quer de produto acabado, servindo ainda de transporte aquando da necessidade de visitar fornecedores, clientes, locais de obra.
19. Para utilizar na sua atividade, a autora alugou veículos, nos seguintes períodos e pelas quantias indicadas, que suportou:
Em 10/07/2020, um furgão de mercadorias, durante dois dias, pelo valor de 260 €;
Em 16/07/2020, um furgão de mercadorias, durante três dias, pelo valor de 279 €; e
Entre 22/07/2020 e 24/07/2020, por três dias, veículo do grupo 5, pelo valor de 222,81 €.
Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa, não se provaram todos os factos alegados que se não compaginam com os acima descritos, designadamente, que:
a) O valor da cobertura de danos próprios resultante de choque, colisão e capotamento à data do evento era de 9.183,08 € e a franquia de 183,67 €.
b) Parte dos estragos referidos em 8. resultaram de outro embate não relacionado com o evento descrito.
c) O agravamento dos estragos aludido em 8. foi intencionalmente provocado pela autora, circulando com o veículo, após o evento descrito.
d) Ao invés de imobilizar o veículo e aguardar pela reparação do veículo, a autora decidiu fazer do mesmo um uso comum e/ou habitual, provocando-lhe os danos em causa, bem sabendo que a sua atuação era suscetível de causar, ou pelo menos agravar, danos no veículo em causa.
e) O separador central não é uma superfície rugosa, o que foi verificado pelo perito avaliador da ré.
f) A autora atrasou trabalho e entregas, o que lhe causou má imagem e desconforto perante os clientes.
g) A autora alugou entre 25/07/2020 e 27/07/2020, por dois dias, veículo do grupo 5, pelo valor de 148,56 €.»

B) DE DIREITO

Da alteração da decisão de facto
É sabido ser ónus imposto ao Recorrente a apresentação de alegações, nas quais deve concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão (cfr. art.º 639º nº 1 CPC), sendo as conclusões que delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem.
Por outro lado, de acordo com o estipulado no art.º 640º nº 1 CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto o Recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (cfr. als. a), b) e c), do mencionado art.º 640º CPCivil), sendo que, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (nº 2 al. a) do citado artigo).
Muito embora para a admissão da impugnação da decisão sobre a matéria de facto não seja necessário que todos os ónus estabelecidos no artigo 640º do CPC constem da síntese conclusiva, dela deve necessariamente constar a especificação dos concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados [não sendo forçoso que delas conste a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações, nem a decisão alternativa pretendida - cfr. Acórdão do STJ de 12/07/2018, proc. 167/11.2TTTVD.L1.S1, in www.dgsi.pt e citado Acórdão Uniformizador nº 12/2023, de 17/10/2023 (proc. 8344/17.6T8STB.E1‑A.S1) publicado no Diário da República I série, de 14/11/2023], e a alegação/motivação deve obrigatoriamente especificar os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que impunham diversa decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, e a decisão que no entender do Recorrente deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Ónus que a Recorrente cumpriu.
No entanto há que ter presente que não haverá lugar à reapreciação da matéria de facto quando os concretos factos objecto da impugnação não forem susceptíveis de, face às circunstâncias próprias do caso sob apreciação, ter relevância jurídica para a decisão do litígio, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inconsequente o que, além de contrariar os princípios da celeridade e da economia processual,redundaria na prática de acto inútil o que se mostra vedado por lei (cfr. art.º 130º CPC).
Assim é porque a apreciação da impugnação da matéria de facto não subsiste por si, assumindo um carácter instrumental face à decisão de mérito do pleito. Daí que só se justifique nos casos em que da modificação da decisão de facto possa resultar algum efeito útil relativamente à resolução do litígio, no sentido propugnado pelo recorrente.
Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(veis) de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação ter relevância jurídica.
O conhecimento da impugnação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação terá de se revelar necessário e relevante para a apreciação das questões objeto do recurso, donde, evidenciando-se que a alteração dos factos pretendida não tem a virtualidade de se repercutir, alterando ou modificando os termos da questão a apreciar no recurso, o Tribunal superior não tem que conhecer do recurso sobre a impugnação da matéria de facto, ou conhecê-lo na sua totalidade, podendo a apreciação cingir-se aqueles concretos pontos de factos relevantes e cuja alteração, supressão ou aditamento, tenham a virtualidade de se puderem repercutir na decisão final do recurso, em face das demais questões objecto do mesmo. Neste sentido, entre outros, Ac. STJ de 3.11.2023 (Mário Belo Morgado); Ac. TRL de 26.9.2019 (Carlos Castelo Branco)
Veja-se, neste sentido, o Acórdão da RC de 27.05.2014, in www.dgsi.pt, onde se escreveu que «se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente destituído de qualquer eficácia, por não interferir com a solução de direito encontrada e com a decisão tomada».
No caso dos autos a Recorrente propugna que sejam tidos por provados o facto não provado f) –  f) A autora atrasou trabalho e entregas, o que lhe causou má imagem e desconforto perante os clientes – e o facto não provado g) – g) A autora alugou entre 25/07/2020 e 27/07/2020, por dois dias, veículo do grupo 5, pelo valor de 148,56 €  - quanto aos quais, como se demonstrará de seguida, mostra-se inútil a reapreciação de facto por da sua alteração no sentido pretendido pela Recorrente não resultar qualquer efeito para a decisão a tomar, pelo que não se conhecerá da impugnação.
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Vejamos então se deve ser revogada a decisão de mérito, com a condenação da R. no pagamento de indemnização por privação de uso do veículo, incluindo o valor despendido pela A. em aluguer de viatura.

A A. insurge-se por a sentença sob recurso ter julgado improcedentes os seus pedidos relativos a prejuízos pela privação do veículo, concretamente a quantia de € 910,37 de aluguer de veículos e a quantia de € 7.624,49 por 101 dias de privação da sua viatura (à razão diária de € 75,49).
Para tanto refere que “Do elenco dos factos provados, nomeadamente dos pontos 9 a 19, resulta, pois, que a Ré não diligenciou, como lhe competia, pela reparação da viatura, rejeitando essa responsabilidade com argumentos completamente descabidos da existência de outros danos não compatíveis com o sinistro ou com o seu agravamento, o que de todo, não ficou demonstrado. (…) a reparação do veículo tinha um custo de 3 426,83 € mas a Ré entendeu oferecer à Autora apenas o montante de 920,36 €. A Ré é, pois, responsável pelo atraso na reparação da viatura, pelos danos que a Autora teve com a privação do seu uso, pois não cumpriu com o que contratualmente estava obrigada. (…) dando-se como provado que a reparação do veículo ascendia à quanta de 3 426,83 €, dando-se como provado que a Ré, sem razão, apenas ofereceu à Autora a quantia de 920,36 €, não se pode dizer depois que a Ré diligenciou de forma devida dos seus deveres acessórios de averiguação e resolução do sinistro em prazo razoável.”
Contudo, analisada a petição inicial dela se vê que a Autora peticionou a indemnização por privação de uso como consequência directa do acidente, tanto assim que considerou (e considera) esse período de privação a iniciar na data do acidente em 09/07/2020 até 17/11/2020, data em que procedeu ao levantamento da viatura da oficina, num total de 111 dias em que referiu ter-se visto privada de usufruir de todas as vantagens que ela lhe poderia proporcionar  (cfr. art.º 19º e 20º da petição), tendo sido nesse contexto alegatório que fez referência ao invocado atraso e recusa da Ré na assunção da responsabilidade pelo sinistro, concretamente no art.º 32º da petição dizendo ”Perante o atraso e recusa da Ré em assumir a responsabilidade pelo sinistro, a Autora viu-se na contingência de proceder ao aluguer de viaturas durante pelo menos 10 dias tendo despendido a quantia de 910,37 €…” e no art.º 34º da mesma peça mencionando “Não obstante, tem ainda a Autora o direito a ser ressarcida dos restantes 101 dias úteis em que se também viu privada do seu veículo, pois tal facto também lhe causou transtornos durante esses dias”. E nesse articulado, em abono da sua posição, fez menção a doutrina e jurisprudência relativa à privação de uso de veículo no âmbito da responsabilidade extracontratual.
Nesse articulado não invocou que à responsabilidade imputada à Ré pela privação de uso do veículo subjazia a violação dos deveres acessórios da sua prestação contratual, apenas agora em sede de recurso o faz expressamente e apenas agora coerentemente se socorre de jurisprudência que versa sobre essa temática.
Dir-se-ia tratar-se de questão jurídica que a A. no momento processual próprio não introduziu na discussão, constituindo uma nova questão.
Contudo, uma vez que a Autora na sua petição fez uma, ainda que breve e singela, referência ao atraso e recusa da Ré em assumir a responsabilidade pelo sinistro, que a deixou na contingência de proceder ao aluguer de viaturas (cfr. citado art.º 32º da petição) e manifestou ainda o entendimento de que tem o direito a ser ressarcida dos restantes 101 dias úteis em que se também viu privada do seu veículo (cfr. citado art.º 34º da petição), a sentença recorrida ponderou o eventual incumprimento dos deveres acessórios da Ré concluindo pela sua não verificação dizendo “os factos provados não são de molde a evidenciar o incumprimento por parte da ré dos deveres acessórios de averiguação e resolução do sinistro em prazo razoável que lhe são impostos pelos ditames da boa-fé, gerador de responsabilidade contratual “, razão pela qual não deixaremos de analisar a pretensão da Autora sob esse prisma.
Como ponto de partida dessa análise temos por boa a qualificação do contrato celebrado entre as partes, por elas indiscutida, como contrato de seguro regulado pelo Decreto-Lei nº 72/2008 de 16/04 (Regime Jurídico do Contrato de Seguro - RJCS).
De outra banda, nessa análise há, naturalmente, que ter presente que o contrato em causa é de natureza formal, obrigatoriamente reduzido a escrito em suporte que consiste na apólice e que constitui documento ad probationem, e ser pacífico nos autos que está em causa um seguro do ramo automóvel com a cobertura facultativa de danos próprios por choque, colisão ou capotamento até ao capital de € 10.934,27, com a franquia de € 218,69, o qual tem a cobertura designada por ‘Multi-Assistência VIP’, que garante um veículo de substituição, com cilindrada máxima de 1200 cc, durante o período de reparação, por um período máximo de 3 dias por avaria e 3 dias por acidente e anuidade, e que a Autora participou o sinistro à Ré mediante envio de declaração amigável de acidente automóvel junta como doc.1 com a petição inicial (cfr. factos provados 1, 2 e 5), documento do qual não consta, nem tal foi alegado ou resultou da instrução da causa, que a Autora tenha accionado aquela cobertura “Multi‑Assistência VIP”.
No âmbito do seguro facultativo vigora a liberdade contratual pelo que não sofrerá dúvida quanto a que haverá indemnização pela privação de uso do veículo se tal cobertura tiver sido contratada e nos exactos moldes e termos em tenha sido contratada, em coerência com o disposto no art.º 99º RJCS segundo o qual o sinistro corresponde à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco prevista no contrato, daí que a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro (cfr. art.º 128º do RJCS).
Por outro lado, o art.º 130º do RJCS estabelece que no caso de seguro de coisas o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado (cfr. seu nº 2), regra que igualmente se aplica quanto ao valor de privação de uso do bem (cfr. seu nº 3).
Por isso se alinha o entendimento segundo o qual tendo ocorrido o evento que desencadeou o accionamento de determinada cobertura e não estando concomitantemente coberto o risco de privação de uso do veículo, a não assunção ou demora na satisfação contratual por parte da seguradora apenas dá lugar ao pagamento de juros de mora, os quais correspondem a toda a indemnização pela mora no cumprimento das obrigações pecuniárias (cfr. a titulo de exemplo Ac. Do TRGuimarães de 02-11-2017, proc. 2936/15.5T8BRG.G1).
Porém, perfila-se também o entendimento – de que a Recorrente dá nota nas suas alegações – que confere protecção ao segurado nos casos em que a seguradora incorre em atraso injustificado na realização da prestação convencionada, valorando para o efeito a violação de deveres secundários de conduta que impõem à seguradora, parte mais forte na relação contratual, uma conduta leal e cooperante com o segurado conforme ao princípio da boa-fé que deve reger as relações contratuais inter-partes; daí se extraindo que não cumprindo a seguradora pontual e diligentemente a prestação indemnizatória que legitimamente lhe é exigida pelo segurado, deve a mesma  responder perante o segurado pelos danos que tal mora lhe cause: não se trata de indemnização de dano decorrente do sinistro – porque o correspondente risco não foi expressamente incluído no contrato – mas sim pela inobservância da obrigação contratual de pagar pontual e atempadamente[1].
Posto é que a seguradora tenha efectivamente recusado ou demorado injustificadamente a obrigação de pagamento da indemnização dos danos provocados pelo sinistro coberto pelo seguro nas condições contratadas, e que dessa recusa ou demora tenham resultado danos para o segurado; o que importa uma análise casuística.
Haverá que recordar que nos termos do já citado art.º 130º do RJCS o segurador apenas responde pelo valor de privação de uso do bem se tal estiver convencionado – o que no caso não estava, como é pacificamente aceite pelas partes e concretamente pela Autora[2]; pelo que, na perspectiva de aplicação da corrente jurisprudencial acabada de mencionar, a Ré Seguradora apenas responderá pela privação de uso do veículo se tiver injustificadamente recusado, ainda que parcialmente, ou demorado o cumprimento da sua obrigação contratual.
Para tanto tenhamos presente que o art.º 102º do RJCS estabelece que “1 - O segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências. 2 - Para efeito do disposto no número anterior, dependendo das circunstâncias, pode ser necessária a prévia quantificação das consequências do sinistro. 3 - A prestação devida pelo segurador pode ser pecuniária ou não pecuniária.”. E que, por sua vez, o artigo 104º, sob a epígrafe "Vencimento", prescreve que “a obrigação do segurador vence-se decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos a que se refere o artigo 102.º”.
No caso, de acordo com facto provado 3, o sinistro ocorreu em 09/07/2020[3]; muito embora os factos provados não revelem a data em que a Autora participou à Ré o sinistro e a declaração amigável de acidente automóvel pela qual a primeira participou o evento à segunda seja omisso quanto à data da sua ocorrência (cfr. facto provado 5 e doc. 1 da petição aí aludido), poderemos ter por certo, de acordo com as regras da lógica e experiência, que terá sido participado no dia seguinte, a 10/07/2020, data, aliás, na qual o veículo foi para a oficina escolhida pela A. para peritagem e reparação (cfr. facto provado 7). Apesar de os autos sejam exíguos quanto a factos relativos às diligencias encetadas pela Ré para confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências, a matéria de facto revela-nos que no dia 29/07/2020 um perito por conta da Ré deslocou-se à oficina onde o veículo se encontrava para realização da peritagem ao mesmo (cfr. facto provado 9) e nessa mesma data a Ré enviou duas cartas à Autora, que as recebeu, numa informando-a de que a sua instrução ainda não estava concluída e quais os valores de reparação orçamentada pelos seus serviços técnicos, a outra relativa à definição de responsabilidade e, considerando a cobertura contratada de choque, colisão ou capotamento, informando a A. de que iria instruir a oficina para dar inicio  à reparação de acordo com o orçamento elaborado entre aquela e os serviços técnicos da Ré, solicitando que a A., junto da oficina, autorizasse a reparação; e nesse mesmo dia 29/07/2020 a Ré enviou à oficina carta dando-lhe conta de que se responsabilizava pelo pagamento de acordo com o orçamentado na sua peritagem (cfr. factos provados 10, 11 e 12). E em 05/08/2020 o perito avaliador da Ré deslocou-se novamente à oficina para averiguação de danos ao nível de mecânica após desmontagem – como se verifica do doc. 9 da contestação, para que remete o facto provado 13 – concluindo pela existência de estragos distintos e sobrepostos e pela existência de estragos agravados (cfr. facto 13), denotando o facto provado 14 que manteve a sua proposta de assunção de responsabilidade por reparação de € 920,36 como comunicara à A. em 29/07/2020.
Quanto antecede revela que desde a data do acidente – em 09/07/2020 – e o fim das suas averiguações – em 05/08/2020 – a Ré em menos dos 30 dias a que se refere o art.º 104º RJCS procedeu às diligências relativas à confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências, comunicou à A. a sua posição quanto à definição de responsabilidades, a sua assunção pela reparação por força da cobertura contratual de choque, colisão ou capotamento quantificada em € 920,36, e procedeu à inerente comunicação à oficina para reparação.
Como se vê não é possível afirmar que a Ré não tenha actuado com a prontidão e diligência exigível na definição da sua responsabilidade e assunção de pagamento dos danos provocados pelo sinistro coberto pelo seguro, não se vislumbrando qualquer demora da sua parte.
Mas poderá afirmar-se que houve da parte da Ré Seguradora uma recusa parcial injustificada de reparação dos danos como a Recorrente defende, com fundamento em que aquela assumiu apenas o valor de reparação de € 920,36 quando se apurou que a reparação do veículo tinha o custo de € 3.426,83?
Salvo o devido respeito, a resposta só pode ser negativa.
Efectivamente, a Ré ainda em fase de instrução do seu processo assumiu junto da A. por uma das cartas de 29/07/2020 a reparação do veículo por € 920,36, valor que manteve após conclusão da sua averiguação em 05/08/2020, em peritagem após desmontagem em que concluiu pela existência de estragos distintos e sobrepostos e pela existência de estragos agravados.
E a verdade é que a própria matéria de facto apurada e não impugnada – por isso estabilizada nos autos – revela que após o sinistro, tendo sido substituído um pneu no local, o veículo circulou pelos seus próprios meios desse local para a fábrica da Autora situada a cerca de 200 km do local, e que no dia seguinte o veículo circulou pelos seus próprios meios desde a fábrica até à oficina sita a cerca de 6 km de distância, tendo os estragos provocados pelo acidente sido em parte agravados pela circulação do veículo, que deveria ter ficado imobilizado após a ocorrência (cfr. factos provados 6, 7 e 8).
Portanto não é possível afirmar-se que a justificação da seguradora para a não assunção da reparação pelo valor integral dos danos que a viatura apresentava é violadora dos deveres de boa-fé impostos pelo art.º 762º nº 2 do CCivil, nem violadora das condutas que lhe são ditadas pelo art.º 153º da Lei nº 147/2015, de 09/09, nomeadamente os deveres de diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado/credor na prestação, cuja valoração é especialmente relevada na aplicação do entendimento jurisprudencial acima citado e de que a Recorrente se quer valer.
Assim, não tendo a Ré Seguradora violado os deveres acessórios de conduta nem os princípios da boa fé contratual,  única via de a responsabilizar pelo pagamento da peticionada indemnização a título da privação de uso do veículo, inexiste fundamento para a responsabilizar por quaisquer danos que pudessem ter advindo para a Autora pela privação de uso da viatura, daí que se mostrasse desprovida de utilidade, como acima anunciámos, a apreciação da impugnação da matéria de facto por a mesma incidir exclusivamente sobre factos relativos a alegados danos por privação do uso.

Assim, aqui chegados há, pois, que concluir pela improcedência do recurso e pela manutenção da sentença recorrida.

III - DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, acorda-se em julgar a apelação improcedente, mantendo-se a sentença de 1ª instância.
Custas a cargo da Recorrente.
Notifique.

Lisboa, 15/05/2025
Amélia Puna Loupo
Carla Matos
Maria Carlos Calheiros
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[1] Remetemos para o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25/01/2022, proc. 168/18.0T8FVN.C2, pela sua clareza acerca das várias vertentes da temática em causa, como também pela profusa e exemplificativa jurisprudência aí invocada.
[2] Na exposição de Direito da sentença - sem que, no entanto, se mostre enunciado na decisão de facto - faz-se menção a que estariam excluídos da cobertura os lucros cessantes ou perda de benefícios ou resultados, advindos ao tomador do seguro ou segurado, em virtude de privação de uso, por força da clª 51ª nº 11 da apólice – tratando-se de clª integrada nas condições especiais do seguro facultativo, cfr. doc. junto pela Ré em 26/01/2023.
[3] Não obstante entre os documentos juntos aos autos de alguns conste a data de 04/07/2020.