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CONTRATO DE FORNECIMENTO
COVID 19
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
Sumário
Sumário (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC): I – A impugnação da decisão quanto à matéria de facto deve incidir sobre os factos necessários para a procedência da ação ou de exceções deduzidas na defesa, devendo ser rejeitada quando incida sobre matéria irrelevante para a decisão. II – Apesar de constituir facto notório o impacto negativo da situação epidemiológica decorrente da epidemia de Covid 19 na vida económica e empresarial em geral, o contraente que pretende invocar o regime da resolução do negócio ou a sua modificação por juízos de equidade, com base na alteração das circunstâncias (cfr. artigo 437º, CC) decorrentes de tal pandemia, deverá alegar e demonstrar factualmente os seus pressupostos, cumprindo o ónus estabelecido no artigo 342º, nº 2, CC. III – Celebrado contrato de fornecimento de café, comparticipação publicitária e comodato de equipamento, para beneficiar de tal regime, incumbia à ré que não cumpriu a obrigação de adquirir determinadas quantidades mensais de café, demonstrar que: - a epidemia por Covid 19 configurou uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar; - que tal alteração não se encontra coberta pelos riscos próprios do contrato e torna lesiva e atentatória da boa fé a exigência do cumprimento da obrigação das quantidades mínimas mensais de café assumida. IV- Tais pressupostos não podem afirmar-se se resultou apurado que a ré, não obstante a pandemia, manteve a sua atividade na área da restauração, não se apurando factos que a impedissem de cumprir o contrato celebrado.
Texto Integral
Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:
I - RELATÓRIO
A autora, Nestlé Portugal, Unipessoal, Ldª, instaurou, em 27-11-2023, contra os réus Restway – Restauração e Catering, Ldª e A, todos identificados nos autos, a presente ação declarativa comum.
Para o efeito, alegou ter celebrado com os réus um contrato de fornecimento de café, comparticipação publicitária e comodato de equipamento (com o nº 44775) que resultou da renegociação de um anterior (nº 37754), que havia celebrado com “Aliser Gest Serviços de Restauração, Ldª”, cuja posição contratual, no contrato mais recente, foi assumida pela ré “Restway”, outorgado pelo réu na qualidade de fiador.
Sucede que a 1ª ré incumpriu o contrato, no que se reporta à obrigação de aquisição de um mínimo mensal de 19 kg de café, bem como à obrigação de pagamento das faturas no respetivo prazo de vencimento, o que determinou que a autora operasse a sua resolução.
Concluiu a autora pedindo a condenação solidária dos réus no pagamento das seguintes quantias:
- € 487,57 a título de restituição da comparticipação publicitária relativa ao contrato 44775 e respetivos juros moratórios vencidos e vincendos, até integral e efetivo pagamento, contabilizados os primeiros em € 5,29, na data da interposição da ação;
- € 7.440,00€, a título de indemnização por café não consumido, no âmbito do contrato 44775, acrescido dos respetivos juros moratórios vencidos e vincendos até integral pagamento, contabilizados os primeiros em € 80,73;
- € 259,70 referente a fornecimento de mercadorias não pagas (relativas à fatura FT3N590335), acrescidos de juros moratórios vencidos, contabilizados desde a data de vencimento da fatura em questão, perfazendo € 21,77 em 27-11-2023, bem como dos respetivos juros vincendos;
- € 40,00, a título de indemnização pelos custos de cobrança de dívida, nos termos do disposto no artigo 7º do D.L. 62/2013 de 01/07.
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Regularmente citados, os réus contestaram, confirmando que a celebração do contrato em discussão nos autos (nº 44775) decorreu da renegociação de anterior contrato (nº 37754) celebrado entre a autora e a anterior arrendatária do estabelecimento comercial “Meio Pizza Meio Grill 2” (denominada “Aliser Gest”), que cedeu à ré “Restway” a sua posição contratual.
Sucede que a Autora impôs à 1ª R. a obrigação de lhe adquirir durante o prazo de 60 meses previsto na Cláusula 6ª do contrato nº 44775, 1.140 quilogramas de café, através de uma compra mínima mensal de 19 quilogramas, quantidades estas que a 1ª R. desde logo lhe comunicou serem “inexpetáveis,senão impossíveis de atingir”, quer em termos absolutos (para o período acordado de 60 meses), quer relativos (quantidades mínimas mensais).
Os réus negaram a violação da cláusula de exclusividade e alegaram que, em decorrência da situação pandémica que assolou o país entre 2020 e 2023, ocorreu uma diminuição substancial da venda de café, não lhes podendo ser imputado o incumprimento do contrato, dado que as quantidades de café efetivamente adquiridas pela 1ª R. à A. em cada mês da vigência daquele contrato, foram as necessárias ao seu efetivo consumo pelos clientes do estabelecimento. Os contestantes negaram o recebimento de qualquer quantia a título de comparticipação publicitária para o contrato 44775, invocaram o pagamento da fatura reclamada, alegando ainda que a Autora aumentava unilateralmente o preço do café, praticando preços muito superiores aos da concorrência.
Concluíram pugnando pela improcedência da ação.
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Exercendo contraditório sobre a defesa por exceção, pronunciou-se a autora alegando que:
- O contrato nº 44775 foi negociado entre as Partes e aceite de modo esclarecido, livre e voluntário;
- A 1ª Ré, nos primeiros meses de vigência do contrato 44775 atingiu ou esteve muito perto de atingir o consumo mínimo mensal contratualizado (19kgs), o que evidencia a sua adequação para o estabelecimento comercial em causa;
- O contrato 44775 teve início a 23-05-2019 e apenas em 2023 a 1ª Ré reclamou do preço do quilo de café;
- Foi efetivamente liquidado o valor da fatura FT3N590335, sendo devidos os respetivos juros moratórios, dado que se venceu a 02-03-2023 e a Autora apenas recebeu o respetivo valor a 19-10-2023. Em conformidade, a autora declarou desistir do pedido formulado na alínea e) do petitório, alterando o valor do pedido formulado na alínea f) para o valor de 18,52€, mantendo todos os demais pedidos formulados.
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Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador que admitiu a desistência do pedido (relativamente ao valor da fatura FT3N590335) e a redução do pedido (incidente sobre os juros contabilizados sobre tal fatura), afirmou a regularidade da instância e enunciou o objeto do litígio e os temas de prova, sem reclamações.
Realizada audiência de julgamento, com produção de prova, foi proferida sentença que julgou a ação procedente, constando do seu dispositivo o seguinte:
“Pelo exposto, decido julgar a presente ação totalmente procedente e, em consequência, declaro resolvido o contrato celebrado entre as partes e condeno os Réus RESTWAY – RESTAURAÇÃO E CATERING, LDA e A a pagar à Autora a quantia total de 7.967,57€ acrescida dos juros de mora vencidos desde, 23/10/2023, à taxa legal de 4%, e vincendos até efetivo e integral pagamento, assim como a quantia apurada de 16,65€ a título de juros moratórios sobre a FT3N590335 vencida a 02/03/2023 e paga a 18-10-2023”. *
Não se conformando com a decisão proferida, os réus dela interpuseram recurso, requerendo que ao mesmo fosse fixado efeito suspensivo, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem: 1ª “Quer o teor dos documentos (e-mails) juntos aos autos na primeira sessão do julgamento, que aqui se dão por reproduzidos;- quer, ainda, o teor das declarações e dos esclarecimentos prestados sob juramento pelo 2º. Réu relativamente aos mesmos factos fixados nos excertos da gravação da segunda sessão do julgamento com início, respetivamente a 00:07:54 e a 00:49:04, que aqui igualmente se dão por reproduzidos; 2ª -Comprovam inequivocamente os factos alegado nos artigos 7º, 8º e 9º da contestação, que o tribunal a quo enuncia no Relatório da sentença, ou seja que a 1ª Ré opôs fortes reservas às novas condições contratuais estabelecidas e formalizadas no contrato 44775, com relação ao período da vigência e às obrigações de compra à Autora (total e mínimo mensal em Kg) durante aquele período, para revenda em exclusivo no estabelecimento (restaurante) dela 1ª Ré “Meio Pizza Meio Grill 2”, do café marca BUONDI, LOTE PREMIUM, comercializado pela Autora, reservas essas comunicadas à Autora, na pessoa do seu responsável, e que a Autora não aceitou. 3ª Sendo a decisão sobre a matéria de facto omissa quanto à prova desses mesmos factos, não só se justifica, como se impõe o suprimento de tal omissão pelo Tribunal da Relação, devendo os mesmos ser levados ao elenco dos factos provados. 4ª Relativamente ao facto julgado provado no número 9 da decisão sobre a matéria de facto, deve igualmente ser julgado provado que, de facto, a 1ª Ré nada, nenhuma quantia recebeu da Autora, a título de comparticipação publicitária, como afirmado pela testemunha B na primeira sessão do julgamento a 00:21:40 da gravação do seu depoimento e, pelo 2º Réu a 00:37:25 da gravação das suas declarações de parte. 5ª Consequentemente, sob pena de deficiência, deve o referido ponto 9 ser aditado da seguinte expressão: “... quantia essa que a 1ª Ré não recebeu da Autora”. 6ª. Por outro lado, a decisão sobre a matéria de facto omite em absoluto o envio pela 1ª Ré à Autora, e a receção por esta, das cartas registadas datadas de, respetivamente, 18 de Maio de 2023 e 6 de Setembro de 2023, juntas como documentos números 7 e 8 à contestação, bem como omite o teor de ambas essas cartas, aliás, reproduzido nos artigos 35º e 37º da contestação. 7ª Sendo as declarações feitas pela 1º Ré à Autora em ambas as referidas cartas da maior relevância para a decisão da presente ação, deve o Tribunal da Relação alterar a Decisão sobre a matéria de facto da 1ª Instância, aditando ao elenco dos factos provados, o envio pela 1ª Ré, a receção pela Autora, bem como o teor de ambas as referidas cartas (Docs. 7e 8 da Contestação). 8ª Quando, feita a articulação total entre os referidos documentos da contestação e o documento número 6 da petição inicial, o que concretamente se verifica é a redução brutal das compras pela 1ª Ré entre Março de 2020 (início da pandemia) e Junho de 2021 (fim da pandemia), redução essa em linha com a redução da faturação, ao mesmo período da 1ª Ré, e que, após Junho de 2021, jamais as compras e a faturação atingiram os níveis de Maio de 2019 a Fevereiro de 2020, como evidenciado no seguinte mapa comparativo: 9ª Assim, impõe-se o suprimento pelo Tribunal da Relação das referidas deficiências e obscuridades, dando como provado neste ponto da matéria de facto a realidade concreta que, como descrito no mapa comparativo supra, resulta da articulação das informações contidas nos documentos 2 a 6 da contestação e o relatório junto como documento 6 à petição inicial. 10ª Pelo que, para além de totalmente injustificada, por não corresponder aos factos aceites por acordo, aos factos provados pelos documentos juntos aos autos, aos factos adquiridos pela prova testemunhal produzida e pelas declarações de parte do 1º Réu, não pode deixar de ser julgada, insuficiente e contraditória a decisão do Tribunal a quo de julgar não provados os factos das alíneas B) e C) da decisão sobre a matéria de facto. 11ª Devendo o Tribunal da Relação revogar essa mesma decisão e, substituindo-se ao Tribunal a quo, julgar provados aqueles mesmos factos. 12ª O facto de a 1ª Ré não ter encomendado à Autora as quantidades mínimas de café́ estipuladas do contrato, n.º 44775, decorreu de factos a ela 1ª Ré totalmente alheios e/ou impossíveis de controlar, pelo que nenhuma culpa por esse facto lhe pode ser imputada 13ª Ao condenar os Réus no pedido o tribunal a quo, violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nos artigos do Código Civil em que se louva Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência ser revogada a sentença recorrida e os Réus absolvidos do pedido” *
A autora apresentou contra-alegações, não tendo formulado conclusões, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
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Foi admitido o recurso, como apelação, com subida imediata e nos próprios autos e efeito devolutivo.
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Inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
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II – QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Assim, inexistindo questões de apreciação oficiosa e não tendo sido ampliado o objeto do recurso, constituem questões a decidir as seguintes:
- Impugnação da matéria de facto;
- Pressupostos da responsabilidade contratual da ré.
* Impugnação da matéria de facto
A reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso implica que o recorrente, nas alegações em que impugna a decisão relativa à matéria de facto, cumpra os ónus que o legislador estabeleceu a seu cargo, enunciados no artigo 640º CPC, com a seguinte redação:
“1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2-No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Incumbe, pois, ao recorrente, por forma a cumprir o que tem vindo a designar-se por “ónus primário de alegação”, e sob pena de rejeição do recurso, identificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (640º, nº 1, alínea a), CPC), os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa (640º, nº 1, alínea b), CPC) e indicar a decisão que deve ser proferida quanto aos factos impugnados (640º, nº 1, alínea c), CPC). Já o designado “ónus secundário” reporta-se à especificação dos meios de prova que implicariam, na perspetiva do recorrente, diversa decisão da matéria de facto, gerando o seu incumprimento a rejeição do recurso apenas se ficar gravemente dificultado o exercício de contraditório ou o exame pelo tribunal de recurso – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2019, proferido no processo 3683/16.6T8CBR.C1.S2, disponível em www.dgsi.pt
Assim, na exigência do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado artigo 640º, “os aspetos de ordem formal (…) devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2019 (proferido no processo nº 3683/16.6T8CBR.C1.S2, disponível em www.dgsi.pt)
Acresce que nesse âmbito haverá ainda que ponderar o AUJ do STJ de 17-10-2023 (acórdão nº 12/2023 de 14 de novembro, publicado no Diário da República nº 220/2023, Série I de 2023-11-14) que uniformizou a seguinte jurisprudência: “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.” Aplicando tal entendimento, o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 08-02-2024, (proferido no processo n.º 7146/20.7T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt) considerou que “a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto apenas deve verificar-se quando falte nas conclusões a referência à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, através da referência aos «concretos pontos de facto» que se considerem incorretamente julgados (alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º), sendo de admitir que as restantes exigências (alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo. 640.º), em articulação com o respetivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações”.
No caso, os recorrentes esclareceram que a impugnação visa a inclusão nos factos provados de matéria que alegaram no seu articulado, indicando os meios de prova, incluindo os gravados (e respetivas passagens) que impunham decisão diversa, de forma a suprir a incompletude/insuficiência que apontam à matéria de facto.
Assim, afigurando-se que os recorrentes cumpriram os ónus enunciados, procede-se à apreciação da impugnação da matéria de facto que deduziram.
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Os recorrentes reagiram ao não apuramento dos factos que alegaram nos artigos 7, 8 e 9 da contestação defendendo que devem transitar para a factualidade provada, tendo por base os documentos que juntaram na primeira sessão de julgamento e as declarações de parte prestada pelo segundo réu (minutos 00.07.05 a 00.49.04).
Tais factos foram alegados pelos réus com a seguinte redação:
“7 - Em clara contradição com a referida justificação, a A. impôs à 1ª R. a obrigação de lhe adquirir durante o prazo de 60 meses previsto na Cláusula 6ª do contrato nº 44775 1.140 quilogramas de café, através de uma compra mínima mensal de 19 quilogramas, quantidades estas que a 1ª R. desde logo comunicou à A. serem inexpetáveis, senão impossíveis, de atingir, quer em termos absolutos (no referido período de 60 meses) quer relativos (as quantidades mínimas mensais). Aliás, 8º - Nos termos do contrato 37754, havia sido fixado em 15 quilogramas a quantidade mínima mensal de café que a Aliser Gest ali se obrigou a adquirir à A., quantidade esta demonstrada inflacionada pela realidade do mercado e, portanto, nada justificava, em resultado da renegociação daquele contrato, o aumento em 4 quilogramas das referidas quantidades mínimas. Mas, 9º A A. nem aceitou estender o referido prazo de 60 meses, nem diminuir, sequer para 15 quilogramas, as referidas quantidades mínimas, deixando a 1ª R. (ambos os RR.) sem outra alternativa que não fosse assinar o contrato 44775, que lhes foi apresentado pela A. para assinatura, sem qualquer possibilidade de discussão”.
Na motivação, com relevo para a questão ora em apreciação, consignou-se:
“De notar que decorreu da prova produzida que a negociação foi livre.”
Reagindo a tal impugnação, considerou a recorrida que a matéria que os apelantes pretendem aditar à factualidade provada é irrelevante para a decisão do mérito da causa, além de que o seu apuramento não resulta de qualquer dos meios de prova produzidos.
Apreciando a impugnação e os meios de prova em que se fundamenta, verifica-se que na sessão de julgamento de 01-10-2024, no decurso do depoimento da testemunha B foi requerida e admitida a junção de documentos, constituídos por emails trocados entre os representantes da autora (depoente) e da ré “Restway” (o réu, A), no decurso da renegociação do contrato que havia sido celebrado com a cedente “Aliser Gest”.
Percorrendo tais comunicações pela sua ordem de antiguidade, verificamos que a primeira se reporta a um email de 13-05-2019, enviado por A a B, do mesmo constando, com relevância para a questão suscitada:
- “Conforme nossa conversa telefónica de há pouco, faço seguir um conjunto de observações à minuta de contrato que me enviou (…) Relativamente ao contrato atual, a quantidade de café a consumir até final do contrato (cláusula 2ª b) reduz-se para 1140 Kilos, mas a compra mínima mensal aumenta para 19 Kilos, quando esse valor no atual contrato é de 15 Kg”;
Comunicação de 27-05-2019 pelas 19.07, remetida por B a A da qual consta:
“Entreguei ao AA o contrato devidamente retificado, que ele deverá deixar no restaurante durante esta semana. O valor remanescente foi atualizado, a nova entidade está devidamente identificada, só não consegui a alteração da compra mensal, mantemos os 19 kgs por mês por um período de 60 meses, mantendo uma redução da quantidade total do contrato. Está previsto a instalação de equipamentos novos. Disponível para qualquer esclarecimento (…)”;
Comunicação de 28-05-2019, pelas 18.56 remetida por A a B:
“Peço-lhe antes de mais que me indique o consumo médio mensal desde o início do contrato (10/10/2017) até agora para poder avaliar a razoabilidade da obrigação de consumo mensal que consta do contrato”;
Comunicação de 28-05-2019, pelas 19.30 remetida por B a A, da qual consta:
“Desde outubro de 2017 a Aliser comprou 287 kg de café, a Restway comprou até ao fecho de abril 18 kgs, fazendo um total de 305 kgs. A média de consumo é de cerca de 17 kgs por mês. Neste novo contrato estamos a retirar 55 kgs de café, face ao contrato assinado em outubro de 2017, que era de 1500 kgs, retirando os 305 kgs consumidos dá uma diferença de 1195 kgs, e neste novo contrato estamos a contratar 1140 kgs (…)”
Comunicação de 29-05-2019, pelas 17.43 remetida por A a B: “(…) Os números que me indica revelam à partida que a fixação dos 19 kilos de compra por mês são irrealistas e que a quantidade que estava fixada no contrato da Aliser Gest (15 kilos) era a mais realista. O consumo pelos nossos clientes depende das condições de mercado, da concorrência de outros restaurantes, da perceção que os clientes tenham da qualidade do produto em comparação com outros e de outros fatores que, tal como estes, não controlamos. Do nosso lado, tudo faremos para vender a quantidade que estabelecem no contrato e mais ainda, pois esse é o nosso negócio: VENDER! Apesar das fortes reservas que pomos à quantidade de Kilos fixada no contrato para compra mensal, vamos assiná-lo, na esperança de que a instalação dos novos equipamentos para a tiragem do café, possa melhorar a qualidade do produto. Amanhã deixarei os contratos assinados no restaurante.”
Comunicação de 29-05-2019, pelas 18.09 remetida por A a B: “(…) Há ainda outro aspeto que não consigo entender: pelas contas que fiz, tendo sido consumido até abril 305 kilos, não me parece que a proporção dos kilos consumidos sobre os kilos iniciais (1500) resulte num valor de 2.973.00 (Cl 5ª, nº 3) e sim em 2914,64 euros + Iva. E menos ainda que se estabeleça aquele valor para um contrato com data de 23 de maio, ou seja, quando durante o mês de maio já houve consumo de café que deveria estar refletido no dito valor. Não vou levantar grande questão sobre o rigor destes apuramentos, desde que todo o consumo de maio se reflita no abatimento do valor, ainda que o contrato esteja datado do dia 23. (…)”;
Comunicação de 29-05-2019, pelas 22.42 remetida por B a A: “(…) Desde já agradeço a sua disponibilidade e a confiança em nós depositada. Em relação à quantidade mensal fixada, foi a quantidade mínima que consegui colocar, que mais se enquadrava com a vossa realidade, uma vez que o prazo máximo que o sistema de apoio ao negócio deixa trabalhar são os 60 meses. Poderia sempre recorrer ao nosso departamento jurídico para que fosse autorizado a negociar prazos acima do 60 meses mas não me parece um consumo desajustado e iríamos demorar mais tempo a resolver a situação de substituição dos equipamentos, que já não estão nas condições ideais. No caso do remanescente do contrato não consigo esclarecê-lo em pormenor quanto à forma como foi calculado, mas quero assegurá-lo que todos os kgs de café adquiridos pela Aliser e pela Restway estão contabilizados na totalidade. Quero demonstra-lhe enorme vontade de continuar a parceria no negócio (…)”
Por outro lado, das declarações de parte produzidas pelo réu A que descreveu, de forma sequencial e lógica, os contornos subjacentes à renegociação do contrato de fornecimento de cafés na sequência da transmissão da posição contratual da “Aliser” para a “Restway”, resultou que os réus estavam “pressionados pelo tempo”, “pela necessidade de começar a organizar a empresa” (minutos 10.50 a 12.00). Quando inquirido sobre quem o estava a pressionar afirmou “eu próprio (…) queria organizar as coisas com os fornecedores”, admitindo que na negociação foi pouco “exigente” e “insistente”, acabando por aceitar ainda que com a “relutância expressa na troca de emails” os termos contratuais propostos pela autora, incentivado pela perspetiva de que receberia um novo equipamento para o café, reconhecendo expressamente que aceitou os 19 kgs mensais, embora não correspondessem à quantidade que lhe parecia a mais adequada (minutos 12.40 a 13.50). Referiu inclusivamente ter sido “pouco diligente” na insistência pela redução das quantidades mensais mínimas de café a convencionar e ainda que a expetativa de crescimento do negócio levou-o a “não questionar” e a “manter” os termos negociais sugeridos pela autora (minutos 00.16.40 a 00.17.00).
A conjugação de tais meios de prova (declarações de parte e emails analisados) que, entre si se mostram consonantes, evidencia que o réu, não obstante ter procurado diminuir os consumos mensais a acordar, conformou-se com os termos do negócio sugeridos pela autora. Consequentemente, não pode concluir-se que as cláusulas do negócio tenham sido impostas e que à ré não tenha sido deixada outra alternativa que não a vinculação contratual nos termos pretendidos pela autora. A este propósito, julgamos ser de conferir especial relevância ao email de 29-05-2019 (17h43m), no qual o representante da ré “Restway” afirma: “Do nosso lado, tudo faremos para vender a quantidade que estabelecem no contrato e mais ainda, pois esse é o nosso negócio: VENDER! Apesar das fortes reservas que pomos à quantidade de Kilos fixada no contrato para compra mensal, vamos assiná-lo, na esperança de que a instalação dos novos equipamentos para a tiragem do café, possa melhorar a qualidade do produto. Amanhã deixarei os contratos assinados no restaurante.” Ou seja, ainda que com dúvidas quanto à viabilidade da venda na quantidade mensal acordada, os réus aceitaram os termos negociais transpostos para o contrato em questão, sendo por isso irrelevantes quaisquer reservas manifestadas no decurso da negociação. Aliás, tais reservas terão sido ultrapassadas com a vinculação da autora à entrega de novos equipamentos “para a tiragem do café”, não resultando, consequentemente, apurada a versão factual alegada pelos réus nos artigos 7º, 8º e 9º da contestação.
Por fim, não pode deixar de salientar-se que tal versão resultou infirmada com o apuramento do acordo mútuo de ambos os contraentes quanto ao clausulado no contrato nº 44775, como consignado no facto provado enunciado sob o nº 4, com a seguinte redação: “4- A Autora e 1ª Ré acordaram revogar o contrato 37754 estabelecendo e acordando entre si novas condições comerciais e contratuais, as quais foram estabelecidas e formalizadas no contrato 44775.”
Pelo exposto, não merecendo qualquer censura a decisão do tribunal recorrido, improcede a impugnação da matéria de facto no que se reporta à inclusão nos factos provados da factualidade contida nos artigos 7º, 8º e 9º da contestação.
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Na perspetiva dos recorrentes, o facto provado sob o nº 9 padece de insuficiência porquanto não esclarece que a primeira ré nenhuma quantia recebeu da autora a título de comparticipação publicitária. Assim, consideram os recorrentes que ao mencionado artigo deve ser aditada a expressão “(…) quantia essa que a 1ª ré não recebeu da autora”.
A tal artigo conferiu o tribunal recorrido a seguinte redação:
“9- Como contrapartida das obrigações contratuais assumidas, a Autora e 1.ª Ré consideraram que para o contrato 44775 e a título de comparticipação publicitária, a 1ª Ré usufruiu da quantia de 2.973,00€, acrescida de IVA à taxa legal em vigor, no total de 3.656,79€, IVA incluído”.
Foi a seguinte a motivação do tribunal:
“Os factos 7 e 9 advêm da análise do contrato celebrado entre as partes junto aos autos, do depoimento da testemunha B, tendo o mesmo esclarecido os termos do negócio e das declarações de parte do 2º Réu”.
Considerou o recorrente resultar do depoimento da testemunha B, na passagem que indicou, que a primeira ré não recebeu qualquer quantia a título de comparticipação publicitária.
Na tese da recorrida, a impugnação ora em análise não deve proceder dado que a segunda ré não recebeu diretamente qualquer quantia da autora, mas beneficiou indiretamente das quantias atribuídas a título de comparticipação publicitária como resulta do facto provado nº 9.
Iniciando a apreciação da impugnação com a análise do contrato celebrado entre a autora e os réus, junto com a petição inicial, verifica-se que, na sua alínea D ficou consignado:
“A NESTLÉ e a ALISER GEST SERVIÇOS DE RESTAURAÇÃO, LDª”, celebraram em 10 de outubro de 2017 um contrato de comparticipação publicitária e comodato de equipamento nº 37754, ao abrigo do qual a NESTLÉ entregou: - O montante de € 3.658,54, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, a título de comparticipação publicitária (…)”.
Já a cláusula 5ª do contrato sob a epígrafe “Comparticipação publicitária”, menciona, no seu nº 1, que o segundo outorgante assumiu a posição da ALISER GEST no contrato descrito no considerando D.
Do nº 2 daquela mesma cláusula resulta:
“Ao abrigo do contrato mencionado no Considerando D) a NESTLÉ entregou € 3.658, 54 (…) acrescido de IVA à taxa legal em vigor, correspondente a 1500 quilogramas de café contratados à data”.
No nº 3 ficou consignado:
“Da quantidade que falta consumir, conforme decorre da análise da cláusula segunda resulta que o SEGUNDO CONTRATANTE usufrui da quantia de € 2.973,00 (…) acrescido de IVA (…), correspondente à diferença entre o valor indicado no nº 1 da presente cláusula e a quantidade acordada consumir”.
Por fim, do nº 4, resulta:
“Resolvido o presente contrato com fundamento em qualquer causa não imputável à NESTLÉ e sem prejuízo de quaisquer indemnizações a que haja lugar, o SEGUNDO OUTORGANTE obriga-se a restituir à NESTLÉ a comparticipação publicitária prestada, deduzida do montante proporcional ao período contratual decorrido, contado em meses”.
Tais termos contratuais inculcam a convicção segura de que não releva para a apreciação do pedido quanto à restituição da comparticipação publicitária a efetiva entrega de qualquer montante à ré, a tal título. Ao invés, resulta do contrato celebrado que tendo sido entregue uma quantia inicial a título de comparticipação publicitária (€ 3.658,54) à “Aliser Gest”, correspondente à quantidade inicial de café contratado (1500 kg), ali se convencionou que a ré “Restway”, que lhe sucedia no contrato, tendo em conta a quantidade de café que faltava consumir, iria usufruir da quantia de € 2.973,00, obrigando-se a restituí-la “deduzida do montante proporcional ao período contratual decorrido, contado em meses”. Ou seja, ao negociar o contrato, a ré assumiu as obrigações decorrentes de uma atribuição patrimonial efetuada pela autora à contraente inicial, “Aliser Gest”, a título de comparticipação publicitária, que correspondeu ao adiantamento de uma quantia global calculada por referência à quantidade total de café acordada. Mais concretamente, tratou-se de um montante pago antecipadamente pela autora, cuja obrigação de restituição a ré assumiu ao renegociar o contrato, na medida proporcional ao período contratual que decorresse desde então e até cessação do contrato.
Tal realidade resultou reafirmada do depoimento da testemunha B quer, logo ao minuto 9.00, aludiu a uma continuidade da relação comercial anterior, referindo que a comparticipação publicitária transitou, que se operou a transferência de parte do investimento anterior para o contrato em discussão nos autos, opção que foi negociada e aceite pela ré “Restway” (minutos 10.00 a 11.15).
Assim, embora das declarações de parte produzidas pelo réu A tenha resultado que a “Restway” não recebeu qualquer quantia a título de comparticipação publicitária (minutos 37.16 a 38.00), a conjugação dos meios de prova já analisados evidencia que esteve subjacente à celebração do contrato em causa nos autos, a assunção da obrigação inicialmente assumida, a esse título, pela “Aliser Gest” e transferida para a segunda ré. Consequentemente, para a decisão do litígio, é irrelevante que a ré tenha recebido ou não alguma quantia a título de comparticipação publicitária, relevando apenas a obrigação que assumiu quanto à restituição da comparticipação publicitária atribuída à sua antecessora, como consignado no facto provado nº 9.
A este propósito, tem vindo a afirmar-se, quer doutrinária, quer jurisprudencialmente, a necessidade de a decisão da matéria de facto se restringir aos “(…) factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as exceções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a ação ou a exceção proceda”, e ainda que a enunciação dos factos complementares ou concretizadores: “(…) far-se-á desde que se revelem imprescindíveis para a procedência da ação ou da defesa, tendo em conta os diversos segmentos normativos relevantes para o caso” – António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 718-719); Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-02-2021, proferido no processo nº 26069/18.3T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), aí se afirmando que nada impede a Relação de apreciar “(…) se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto por se tratar de ato inútil”.
Pelo exposto, em face da irrelevância do segmento que os recorrentes pretendem aditar ao facto provado nº 9, por forma a evitar a prática de atos inúteis em conformidade com o disposto no artigo 130º, CPC, indefere-se, nessa parte, a impugnação da matéria de facto.
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Reagiram os recorrentes à omissão nos factos provados do envio de cartas registadas com aviso de receção datadas de 18-05-2023 e 06-09-2023, correspondente à matéria que alegaram nos artigos 35º e 37º da contestação (documentos juntos com tal articulado com os nºs 7 e 8).
Pronunciando-se sobre a impugnação, considerou a recorrida que os recorrentes não retiram quaisquer consequências, a nível da aplicação do direito, do envio de tais cartas, concluindo tratar-se de matéria irrelevante para a decisão da causa.
No artigo 35º da contestação, os réus alegaram:
“A 1ª R., como já o vinha a fazer, reclamou do referido preço perante a A., primeiro verbalmente, depois por escrito, nos termos da carta registada ela enviada em 18 de maio de 2023, adiante junta como Documento 7, na qual, declarou: “ASSUNTO: Contrato entre a Nestlé e a Restway de exclusividade de compra de café Exmos Senhores “É absolutamente inviável a Restway continuar a comprar café Buondi à Nestlé, no âmbito do contrato acima referenciado. O café está a ser-nos vendido a 35,19 € o kilo, mais Iva, já depois de deduzido “desconto”. A Makro vende o lote de café top da Delta - “Platinum”-por 21,78€ Kilo. O contrato que assinámos com a Nestlé não pode justificar práticas de preços absurdos, para não lhes chamar abusivos, ainda por cima, em circunstâncias que vieram pôr em causa a validade desse contrato, face à alteração anormal das circunstâncias vividas nos últimos três anos. Em consequência direta da pandemia, das medidas e da prática generalizada de novos métodos laborais, como seja o teletrabalho, intensamente praticado pelas empresas na zona do Parque das Nações, bem como, no caso do consumo de café, da sua redução fora de casa, poucos foram os meses dos últimos três anos em que o nosso restaurante conseguiu uma faturação, superior 50% dos valores de 2019. Independentemente da questão da validade do contrato, é nossa intenção continuar a comprar café Buondi à Nestlé, não só por considerarmos que é um produto da qualidade, como pelo facto de ser apreciado pelos nossos clientes, mas só o faremos se o preço se enquadrar nos valores de mercado”.
No artigo 36º da contestação, os réus alegam que a autora respondeu a tal missiva por carta registada de 06-09-2023 (junta com a petição inicial, como documento nº 2). Nesta comunicação, dirigida pela autora à ré “Restway” é, além do mais afirmado: “(…) V.Exas não se encontram a consumir a quantidade de Cafés Torrados acordada, violando assim o disposto na Cláusula Segunda, o que constitui uma violação grave do contrato e é fundamento de resolução do mesmo. Face ao exposto, solicitamos a V.Exas a regularização da referida situação no prazo de 10 dias úteis a contar da data da receção da presente carta, sob pena de resolvermos o contrato com justa causa nos termos da Cláusula Oitava sem prejuízo do direito que nos assiste ao pagamento das indemnizações previstas no mesmo”.
E no artigo subsequente daquele articulado (37º) os réus alegam:
“Carta esta a que a 1ª R. respondeu também por escrito, nos termos da carta registada ela enviada no subsequente dia 6 de setembro, adiante junta como Documento 8, na qual, declarou: “Assunto: v/ carta datada de 6 de setembro de 2023 Exmos Senhores “Relativamente à vossa carta em referência, consideramos que a nossa posição e resposta foi dada pela nossa carta datada do passado dia 18 de Maio, cuja cópia juntamos, e que deixava claro que o referido contrato há muito deixou de ter qualquer validade, dadas as circunstâncias absolutamente excecionais que o país, a restauração e o nosso restaurante em concreto viveram nos últimos 4 anos e ainda a postura comercial da Buondi/Nestlé com a nossa empresa, bem evidenciada na nossa referida carta. Sem reconhecer qualquer direito à Nestlé, nomeadamente por alegado incumprimento pela Restway do contrato 44775, vimos comunicar-vos que poderão recuperar a máquina e moinho de café que nos foi cedido/comodatado no âmbito do referido contrato, devendo manifestar-nos tal intenção até ao próximo dia 14, por email dirigido para o seguinte endereço: gpoliveira.pedro@gmail.com.. “
Com a contestação os réus juntaram cópia das referidas missivas, com o referido conteúdo (documentos nºs 7 e 8).
Na carta junta como documento nº 7, a ré reclama do preço do café, que não considera ajustado aos valores de mercado, manifestando intenção de continuar a cumprir o contrato desde que aquele preço seja objeto de redução. A tal carta respondeu a autora em 06-09-2023, interpelando a ré para o cumprimento do contrato, sob pena de operar a sua resolução, que mereceu a comunicação supra transcrita, naquela mesma data, em que a ré alega que o contrato perdera validade em face das circunstâncias excecionais vividas no país, disponibilizando-se para restituir o equipamento cedido pela autora.
Ora, o envio da carta de 18-05-2023, volvidos quatro anos da subscrição e da vigência do contrato (celebrado em 23-05-2019), estando apurado que em fevereiro de 2023 a 1.ª Ré realizara a última aquisição de café à Autora (facto provado 11), e que na vigência do contrato apenas adquirira 396Kgs de café dos 1140Kgs a que se havia obrigado (facto provado 12), não reveste relevância jurídica. Efetivamente, a ré encontrava-se em incumprimento da obrigação de aquisição de café acordada. Nesse contexto, a discussão quanto ao preço do café não se revelava suscetível de operar qualquer efeito juridicamente relevante, não sendo de censurar a sua não inclusão nos factos provados.
E o mesmo deve ser afirmado quanto à carta enviada pela ré a 06-09-2023, pela qual aceita o levantamento do equipamento de tiragem do café e considera ter o contrato cessado em função das circunstâncias excecionais vividas no país nos últimos quatro anos, não aceitando a cessação do contrato por incumprimento que lhe seja imputável. Certo é que tal carta não corporiza qualquer declaração suscetível de anular a interpelação admonitória que lhe fora dirigida, pelo que a sua não inclusão nos factos provados não merece qualquer censura. Aliás, dessa carta não resulta qualquer declaração de resolução, ou de manifestação de vontade de colocar termo ao contrato, limitando-se a traduzir uma alusão vaga e genérica à alteração de circunstâncias, mas não consistindo na invocação de qualquer facto.
Conclui-se, pois, que as cartas em questão, em função do seu conteúdo e da sua data, corporizam comunicações sem relevo jurídico, enviadas num momento em que já ocorria incumprimento contratual imputável à ré, sendo irrelevantes para o desfecho da causa.
Pelo exposto, indefere-se o requerido, no que se reporta à consignação nos factos provados do teor das comunicações em causa (cartas de 18-05-2023 e 06-09-2023 enviadas pela ré à autora).
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Os recorrentes consideram o facto provado nº 17 redigido de forma incompleta considerando não terem sido devidamente articulados os documentos nºs 2 a 6 que juntaram com a contestação. A articulação entre tais documentos e o documento nº 6 da petição evidencia, na perspetiva dos recorrentes, uma redução significativa das compras pela primeira ré desde março de 2020 e junho de 2021, no período da pandemia, e que após essa data as compras e a faturação jamais atingiram os níveis obtidos de maio de 2019 a fevereiro de 2020. Pretendem assim que tal realidade seja cabalmente ponderada conforme mapa comparativo que juntaram nas alegações de recurso.
Ao facto provado nº 17 foi conferida a seguinte redação:
“17- A receita média mensal do estabelecimento da 1ª R. em 2019 foi de € 40.536,91; em 2020 de € 19.728,97, de € 18.029,64 em 2021, de € 25.529,37 em 2022, de € 16.808,43 entre janeiro e setembro de 2023. Concretamente: a. Em maio/2020 a 1ª Ré adquiriu 4kgs de café e faturou 14.435,93€; b. Em junho/2020 – 0kgs de café adquiridos e faturou 17.235,40€; c. janeiro/2021 - 0kgs de café adquiridos e faturou 15.769,82€; d. janeiro/2023 - 6kgs de café adquiridos e faturou 27.319,05€; e. fevereiro/2023 6kgs de café adquiridos e faturou 27.067,85€; f. março/2023 - 0kgs de café adquiridos e faturou 30.525,83€; g. abril/2023 - 0kgs de café adquiridos e faturou 20.934,00€; h. maio/2023 - 0kgs de café adquiridos e faturou 27.674,07€”
Foi a seguinte a convicção do tribunal:
“O facto 17., advém da articulação do conteúdo dos documentos 2 a 6 da contestação, com as declarações de parte do 2º Réu e com o relatório junto com a petição inicial. De realçar que o 2ª réu afirmou que explorou o estabelecimento até 30 de maio de 2023”.
A recorrida considerou a alteração pretendida irrelevante para o desfecho da causa.
Tal facto foi alegado no artigo 29º da contestação, com a seguinte redação:
“Em consequência de todas as referidas restrições, alterações de regime de trabalho e encerramentos, sem que a 1ª R. o pudesse evitar, a receita (Faturação) média mensal do estabelecimento da 1ª R. (incluindo, portanto, as vendas de café) que em 2019 havia ascendido a € 40.536,91, foi de apenas € 19.728,97 em 2020 (ou seja, menos 51%), de € 18.029,64 em 2121 (menos 56%), de € 25.529,37 em 2022 (menos 37%) e de € 16.808,43 entre Janeiro e Setembro de 2023 (menos 59%) (cfr. Docs. 2 a 6 adiante juntos que aqui se dão por reproduzidos), levando os prejuízos acumulados a forçar a 1ª R. a cessar a sua atividade em junho de 2023.”
Os documentos nºs 2 a 6 juntos com a contestação correspondem a valores “totais mensais” faturados pela ré na exploração do estabelecimento comercial em causa, conforme faturas, discriminados por meses e reportados aos anos de 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023. Porém, constata-se que a informação contida em tais documentos foi efetivamente transposta para o facto provado nº 17, nos precisos termos em que havia sido alegada. Ou seja, ali foi consignado o que os réus haviam alegado, suprimindo-se apenas que tal faturação tenha resultado de restrições, alterações ao regime de trabalho e encerramentos alheio à vontade da ré, precisamente porque, nesse segmento, a factualidade alegada não resultou apurada. Assim como se suprimiu a percentagem da redução da faturação que, na realidade, resulta de simples cálculo aritmético. Consequentemente, afigura-se que os recorrentes pretendem em sede de impugnação obter um grau de concretização e de pormenorização da matéria em questão que não usaram na sua alegação no articulado próprio (contestação), ónus que tinham a seu cargo - cfr. artigos 5º, nº 1, 572º, nº 1, alínea b, e 573º, CPC.
Porém, ainda que tal concretização não estivesse vedada, dado que como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa (CPC anotado, Volume I, pág. 27) “(…) na sentença, no segmento em que se pronuncia sobre os factos provados (…) o juiz deve ponderar, mesmo oficiosamente, os factos complementares (…) e os factos concretizadores (…) artigos 607º, nº 3 a 5 e 5º, nº 2, b), CPC”, a alteração pretendida não assume relevância para a decisão da causa, como se extrai dos próprios termos da alegação dos recorrentes.
Conclui-se que a redação do facto provado nº 17 respeita os termos em que foi carreado para o processo, não padecendo de qualquer incompletude que justifique a sua maior pormenorização, nos termos introduzidos apenas em sede de alegações pelos recorrentes.
Pelo exposto, improcede a impugnação deduzida ao facto provado nº 17.
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Reagiram os recorrentes ao não apuramento dos factos enunciados sob as alíneas B e C, considerando que a prova produzida determinaria o seu apuramento.
Ao invés, a recorrida considerou que a prova produzida não autoriza o apuramento da matéria em questão.
A tais factos foi conferida a seguinte redação:
“B- A situação pandémica em março de 2020 interrompeu de forma imprevista e brutal o normal funcionamento do estabelecimento da 1ª R., praticamente até final de 2021. C- Em 2022 e 2023, o regime de teletrabalho levou a que os clientes da 1ª R. que anteriormente à pandemia acorriam ao estabelecimento, deixassem de o fazer”.
Foi a seguinte a motivação do tribunal recorrido:
“Sobre os factos não provados em B) e C) concluiu o tribunal que apesar de a pandemia ser facto notório e do conhecimento geral, a interrupção do funcionamento e a perda de clientela não são, estando sujeitos à livre apreciação da prova pelo julgador, sendo neste caso, o ónus da prova da ré. No entanto, a testemunha BB, funcionária da Ré na época pandémica, não conseguiu confirmar totalmente o alegado, apenas referindo uma quebra abrupta nas vendas, mas não concretizando valores, tendo apresentado um discurso pouco esclarecedor. Considerou o tribunal que a testemunha e o 2º Réu quando referem que se verificou uma quebra abrupta das vendas também devido ao teletrabalho não é suficiente para, em concreto, demonstrar a perda gritante de clientela consumidora de café e, consequentemente, a perda abrupta da venda de café. Para além disso, dos documentos juntos com a contestação resulta uma diminuição da faturação do estabelecimento, mas não denota um fecho total do mesmo, tendo em consideração que pelo menos em maio e junho de 2020 e janeiro de 2021 houve atividade, mas a compra de café teve pouca substância apesar da faturação.”
A recorrida pugnou pela manutenção do decidido, no que se reporta ao não apuramento dos factos enunciados sob as alíneas B e C.
Fundamentando a impugnação, consideram os recorrentes que a matéria em questão, que alegaram nos artigos 25º, 26º, 27º e 28º da contestação, não foi impugnada pela autora.
Nos referidos artigos da contestação, os réus alegaram:
- “Em Março de 2020, a situação pandémica decorrente da doença Covid19 (SARS-COV-2), a declaração do estado de emergência, seguida da declaração do estado de calamidade, de novo estado de emergência e de novo estado de calamidade e as restrições sucessiva e correspondentemente impostas, nomeadamente pelo Decreto nº 2-A/2020 de 20 de Março e subsequente legislação conexa com tais situação e declarações, interrompeu de forma imprevista e brutal o normal funcionamento do estabelecimento da 1ª R., praticamente até final de 2021” – artigo 25;
- “Com efeito, para além das restrições impostas à população de confinamento nas suas habitações ou de limitações nas suas deslocações, a obrigatoriedade do recurso ao teletrabalho sempre que possível, encerramento ou autorização de abertura em condições especiais do comércio, salvo bens de primeira necessidade, sucessivamente determinadas” – artigo 26º;
- “Também, no tocante aos estabelecimentos de restauração (como era o caso do estabelecimento da 1ª R.), na maior parte do referido período, as suas atividades foram sucessivamente limitadas ao serviço de entrega de refeições ao domicílio, com exclusão de bebidas e (mais tarde) à entrega de refeições à porta dos estabelecimentos, culminando, nas últimas fases da pandemia, com autorização para a sua abertura, embora com limitação de horários, períodos de funcionamento e de lotação. Como, ainda,” – artigo 27º;
- “O facto de, em 2022 e 2023, tal com já vinha a suceder desde Março de 2020, a grande maioria das empresas tecnológicas, e não só, e dos estabelecimentos com atividade na zona do Parque das Nações onde se situa o estabelecimento da 1ª R., terem passado ao regime de teletrabalho ou, mesmo, encerrado, o que levou a que os clientes da 1ª R. que anteriormente à pandemia acorriam ao estabelecimento, deixassem de o fazer.” – artigo 28º;
Notificada para exercer contraditório relativamente à defesa por exceção alegou a autora por meio do articulado de 10-05-2024:
“19 – Os factos descritos nos artigos 25º, 26º, 27º e 28º não justificam o incumprimento contratual dos Réus”. (…) 22 – Destarte, estes documentos juntos pelos Réus indiciam que a 1ª Ré exerceu sempre atividade mesmo durante o período de fase pandémica, sem efetiva correspondência com as aquisições de café à Autora durante a vigência do contrato 44775 (doc. 6 junto com a contestação) (…),”
Ou seja, a autora, embora não negando a verificação da situação pandémica, refutou as consequências que da mesma retiram os réus, o que impede a consideração de que a matéria em questão tenha sido aceite por acordo.
Acresce que os réus fundamentam tal impugnação também no depoimento da testemunha C, que foi funcionária no estabelecimento comercial em causa até agosto de 2022. Porém, procedeu-se à audição de tal depoimento, designadamente nas passagens indicadas (1.24.00 a 1.35.00), constatando-se que referiu que o negócio, durante a pandemia “foi bastante abaixo (…) só servíamos domicílio (…) e muito pouco porque era uma zona de empresas quem bebia café eram os empregados (…) no domicílio não se vende café”. Mais referiu que se tratava de uma área de escritórios e de empresas que passaram a teletrabalho, que a partir de certa fase apenas 50 % dos trabalhadores se deslocavam à empresa e que no ano de 2022 não houve recuperação na venda de café para valores anteriores à pandemia. Certo é que o seu depoimento foi produzido de forma vaga e imprecisa, não logrando indicar as quantidades globais do café consumido no estabelecimento ao longo dos anos em que lá trabalhou, reproduzindo uma versão de senso comum, insuficiente para dar como demonstrada a matéria em questão, tanto mais que, como se refere na decisão recorrida, o estabelecimento manteve-se aberto ao público e em funcionamento.
Nas declarações de parte produzidas pelo réu A, nos segmentos indicados, admitiu que em alguns meses (no período pré pandemia de abril/maio de 2019 a fevereiro/março de 2020) o consumo de café se aproximou da quantidade mensal acordada. Em março de 2020 a situação alterou-se e, embora não tenham encerrado a atividade, o estabelecimento em si chegou a estar encerrado (por imposição legal). Noutra fase o serviço era prestado à porta do restaurante, o que originou quebra da faturação na casa dos 60% e consequentemente, ao nível da compra de café. O restaurante situa-se mo Parque das Nações, onde existem várias empresas tecnológicas para as quais se revelou propícia a modalidade de “teletrabalho”, o que constituiu fator de agravamento do desempenho da ré. Aludiu a várias medidas de apoio governamentais, das quais dependeu a manutenção da empresa, referindo que nessa época os resultados foram “absolutamente catastróficos”. Embora com o estabelecimento aberto houve meses em que não adquiriram café à Nestlé porque adquiriam packs de 6 kg, que duravam muito tempo. Não entregavam ao domicílio cafés no período da pandemia. No pós-pandemia os níveis de faturação e de compra de cafés melhoraram, mas não muito, mantendo-se as empresas na zona em teletrabalho, pelo que os funcionários, embora deslocando-se às empresas, o faziam com muito menor frequência (minutos 00:14:00 a 00:30.00).
Ora, a conjugação de tais meios de prova não permite concluir que a situação de pandemia e suas implicações ao nível da forma de prestação de trabalho tivesse determinado, ao longo dos anos de 2020, 2021, 2022 e 2023, a interrupção de forma imprevista e brutal da atividade do estabelecimento comercial da ré que, na realidade, como se afirma na decisão recorrida, manteve a sua atividade. Aliás, observando a evolução da faturação e da compra de café pela ré, verifica-se que em março, abril e maio de 2023, apesar de os níveis de faturação se situarem quase no dobro dos obtidos durante a pandemia, a ré cessou a aquisição de café à autora (facto provado nº 17), facto cuja razão de ser não resultou da prova produzida. Ou seja, embora sendo inegável a forte perturbação económica e social causada pelo Covid e o seu impacto, em geral, no sector económico e empresarial, os réus, não demonstraram, como lhes incumbia, que se revelou inviável ou gravemente danoso a manutenção dos deveres contratuais assumidos, nos termos constantes das alíneas B) e C) dos factos não provados. Analisados os meios de prova indicados pelos recorrentes, não merece, pois, qualquer censura o não apuramento da referida realidade.
Como referido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017 (proferido no processo nº 6095/15T8BRG.G1, disponível em www.dgsi): “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efetuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados (..).
Não sendo possível concluir pela existência de erro na valoração dos meios de prova indicados, improcede a impugnação, mantendo-se não apurados os factos enunciados nas alíneas B e C da decisão recorrida.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
Em face da decisão que antecede, são os seguintes os factos provados a considerar:
1- A Autora celebrou com os Réus, no exercício da atividade comercial própria da Autora e da 1.ª Ré para o seu estabelecimento comercial “Meio Pizza Meio Grill 2”, o contrato n.º 44775, datado de 23/05/2019, de fornecimento de café, comparticipação publicitária e comodato de equipamento.
2- O contrato nº 44775 resultou da renegociação do contrato nº 37754 que a Autora celebrou em 10/10/2017 com a sociedade Aliser Gest Serviços de Restauração, Lda, de fornecimento de café, comparticipação publicitária e comodato de equipamento.
3- A 1ª Ré assumiu a posição contratual da sociedade Aliser Gest Serviços de Restauração, Lda no contrato 37754, pelo que lhe foram transmitidos todos os direitos e obrigações inerentes a este contrato, cedência de posição contratual que a Autora aceitou.
4- A Autora e 1ª Ré acordaram revogar o contrato 37754 estabelecendo e acordando entre si novas condições comerciais e contratuais, as quais foram estabelecidas e formalizadas no contrato 44775.
5- A vigência do contrato n.º 44775 foi contratualmente estipulada por um período de 60 meses, com início em 23/05/2019.
6- No âmbito deste contrato, a 1.ª Ré obrigou-se a revender e publicitar em exclusivo, no seu estabelecimento comercial, café de marca BUONDI, LOTE PREMIUM, comercializado pela Autora.
7- Tendo-se obrigado a adquirir à Autora ou a distribuidor por esta indicado 1140Kgs deste produto, através de uma compra mínima mensal de 19kgs.
8- A 1ª Ré obrigou-se ainda a não adquirir a terceiros os produtos contratados, nem publicitar ou revender no seu estabelecimento, café e descafeinado de outras marcas durante o período de vigência do contrato nº 44775.
9- Como contrapartida das obrigações contratuais assumidas, a Autora e 1.ª Ré consideraram que para o contrato 44775 e a título de comparticipação publicitária, a 1ª Ré usufruiu da quantia de 2.973,00€, acrescida de IVA à taxa legal em vigor, no total de 3.656,79€, IVA incluído.
10- Igualmente como contrapartida das obrigações contratuais assumidas, a Autora colocou à disposição da 1.ª Ré, em regime de comodato, o seguinte equipamento:
a. Uma Máquina de café BchM Cimbali M27 2 GR C/ escalda chávenas, no valor de3.311,22€, acrescido de IVA à taxa legal em vigor;
b) Um Moinho BchM Casadio Enea 64, no valor de 652,00€, acrescido de IVA à taxa legal em vigor;
Tudo no valor global de 4.874,76€ IVA incluído.
11- Em fevereiro de 2023 a 1.ª Ré realizou a última aquisição de café à Autora.
12- Na vigência contratual, a 1.ª Ré comprou à Autora 396Kgs de café dos 1140Kgs a que se havia obrigado.
13- A Autora enviou aos Réus as cartas registadas com aviso de receção, datadas de 06/09/2023, interpelando-os para que corrigissem o incumprimento contratual.
13-A - Nessas comunicações, que aqui se dão como integralmente reproduzidas, consta como “Assunto”: “Incumprimento do contrato nº 44775”, aí se referindo, além do mais: “(…) Constatámos, no entanto, que V. Exas não se encontram a consumir a quantidade de Cafés Torrados acordada, violando assim o disposto na cláusula segunda, o que constitui uma violação grave do contrato e é fundamento de resolução do mesmo. Face ao exposto, solicitamos a V. Exas a regularização da referida situação no prazo de 10 dias úteis a contar da receção da presente carta, sob pena de resolvermos o contrato com justa causa nos termos da Cláusula Oitava sem prejuízo do direito que nos assiste ao pagamento das indemnizações previstas no mesmo (…)” – facto aditado atendendo à sua relevância para a decisão da causa, ao abrigo do disposto nos artigos 607, nº 4 e 663º, nº 2, CPC, tendo por base o conteúdo dos documentos nºs 2 e 3 juntos com a petição inicial.
14- O 2º Réu recebeu esta missiva.
15- Por cartas registadas com aviso de receção datadas de 03/10/2023 enviadas aos Réus, a Autora procedeu à resolução do contrato nº 44775 e interpelou aqueles para que efetuassem o pagamento dos valores estabelecidos nos termos dos números 4 e 5 da cláusula 5ª do contrato celebrado e fatura em dívida.
16- O 2º Réu recebeu esta missiva.
17- A receita média mensal do estabelecimento da 1ª R. em 2019 foi de € 40.536,91; em 2020 de € 19.728,97, de € 18.029,64 em 2021, de € 25.529,37 em 2022, de € 16.808,43 entre janeiro e setembro de 2023.
Concretamente:
a. Em maio/2020 a 1ª Ré adquiriu 4kgs de café e faturou 14.435,93€;
b. Em junho/2020 – 0kgs de café adquiridos e faturou 17.235,40€;
c. janeiro/2021 - 0kgs de café adquiridos e faturou 15.769,82€;
d. janeiro/2023 - 6kgs de café adquiridos e faturou 27.319,05€;
e. fevereiro/2023 6kgs de café adquiridos e faturou 27.067,85€;
f. março/2023 - 0kgs de café adquiridos e faturou 30.525,83€;
g. abril/2023 - 0kgs de café adquiridos e faturou 20.934,00€
h. maio/2023 - 0kgs de café adquiridos e faturou 27.674,07€
18- A Autora tentou, por intermédio do seu funcionário CC, reunir com os Réus.
19- A fatura FT3N590335 teve vencimento a 02/03/2023 e a Autora recebeu o respetivo valor a 19/10/2023.
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E são os seguintes os factos não provados a considerar:
A- O preço por Kg para o café que a 1ª R. adquiria à Autora encontrava-se em total dissonância e muitíssimo mais elevado que os preços praticados no mercado para produtos de idêntica qualidade.
B- A situação pandémica em março de 2020 interrompeu de forma imprevista e brutal o normal funcionamento do estabelecimento da 1ª R., praticamente até final de 2021.
C- Em 2022 e 2023, o regime de teletrabalho levou a que os clientes da 1ª R. que anteriormente à pandemia acorriam ao estabelecimento, deixassem de o fazer.
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Fundamentação de direito
Compulsada a petição inicial, verifica-se que a recorrida fundamentou as pretensões deduzidas no incumprimento por parte da ré “Restway” do contrato entre ambas celebrado, designadamente do aí clausulado, ao abrigo do princípio da liberdade contratual previsto no artigo 405º, CC, quanto às quantidades mínimas de café que lhe incumbia adquirir.
Não oferecendo dúvidas a qualificação do contrato constante da decisão recorrida, que se reitera, a controvérsia existe relativamente ao caráter livre e voluntário da assunção do vínculo contratual pela ré. Acresce que permanece controvertido o incumprimento dos seus termos pela ré, de molde a justificar a resolução operada pela autora, equacionando-se a verificação de uma alteração das circunstâncias que fundaram a decisão de contratar, de molde a inviabilizar a afirmação de qualquer ilícito contratual.
Tendo improcedido a impugnação da matéria de facto, manifestamente não ficou demonstrado qualquer vício de vontade subjacente à vinculação contratual dos réus, que afete a sua plena eficácia. Efetivamente, dos factos provados deve extrair-se que as reservas manifestadas pelos réus quanto à quantidade mensal de café a fixar foram ultrapassadas em fase pré-negocial, pelo que assumiram, de forma válida e eficaz, as obrigações contratuais ali consignadas.
O contrato em análise, datado de 23-05-2019, convencionado para o período de 60 meses, estabelecia para a ré/recorrente a obrigação de uma compra mínima mensal de 19kg de café, evidenciando os factos apurados que tal cláusula não foi cumprida, dado que resultou apurado que em fevereiro de 2023, a ré efetuou a última compra de café à autora, e que na vigência do contrato adquiriu 396 kg de café dos 1140 kg a que se havia obrigado. Assim, em 06-09-2023, a autora enviou a ambos os réus comunicação alertando-os para o consumo inferior ao acordado dos cafés torrados, interpelando-os a regularizarem a situação, sob pena de resolução do contrato.
Tal comunicação, alertando para o “(…) retardamento, demora ou dilação no cumprimento da obrigação” – nas palavras de Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Almedina, 1997, pág. 345) - possuiu a virtualidade de converter a mora em incumprimento definitivo, ao fixar um prazo para que a devedora realizasse a sua prestação – cfr. artigo 808º, CC. Na realidade, continha uma intimação para o cumprimento, a fixação de um termo perentório para o efeito e a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se teria por definitivamente incumprida se não se verificasse o cumprimento dentro do prazo ali previsto – a este propósito, veja-se Antunes Varela (RLJ 111, pág. 215), que designa a interpelação admonitória como “uma ponte de passagem obrigatória para o não cumprimento (definitivo) da obrigação”.
Consequentemente, convertida a mora em incumprimento definitivo, nada obstaria, por princípio, à resolução do contrato, que ocorreu por comunicação de 03-10-2023.
Tal incumprimento de aquisição das quantidades mínimas de café não poderá deixar de presumir-se culposo, atenta a presunção estabelecida no domínio da responsabilidade contratual no artigo 799º, nº 1, CC, que estipula: “Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.”
O certo é que os recorridos não aceitam o incumprimento que lhes é apontado, considerando que o impacto produzido pela epidemia Covid configurou alteração das circunstâncias subjacentes à vinculação contratual, desobrigando a ré “Restway” de adquirir as quantidades de café acordadas.
Regulando as condições de admissibilidade da resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias, estabelece o artigo 437º, CC:
“1. Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. 2. Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior.”
Seguindo a sistematização de Menezes Leitão (Direito das obrigações, Vol. II, 2026, 10ª edição, pág. 129), constituem requisitos da possibilidade de resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias: “1) A existência de uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar; 2) O carácter anormal dessa alteração; 3) Que essa alteração provoque uma lesão para uma das partes; 4) Que a lesão seja de tal ordem que se apresente como contrária à boa fé a exigência do cumprimento das obrigações assumidas; 5) E que não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato”.
Na perspetiva de Romano Martinez (Da Cessação do Contrato, Almedina, 2005, pág. 155), tais requisitos “são de verificação cumulativa pelo que faltando algum ou alguns deles, não se pode recorrer a este instituto”.
Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 13-05-2014 (proferido no processo nº 1097/12.6T8BMGR.C1, disponível em www.dgsi.pt): “A alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram o contrato pode resultar da alteração da legislação existente à data do negócio, como pode resultar de acontecimentos políticos ou da modificação repentina do sistema económico vigente. Essas situações são aquelas sobre as quais as partes não construíram quaisquer representações mentais (não pensaram nelas, pura e simplesmente), mas que são de qualquer modo imprescindíveis para que, através do contrato, se atinjam os fins visados pelas partes”.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-01-2015 (proferido no processo nº 876/12.9TBBNV-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt) , salienta-se que o regime do artigo 437º, nº 1, CC: “(…) confronta dialeticamente dois princípios; o da autonomia privada, que impõe o cumprimento pontual do contrato que mais não é que a execução do programa negocial, e o princípio da boa fé, que visa assegurar o equilíbrio das prestações de modo a que a uma das partes não seja imposta uma desvantagem desproporcionada que favoreça a contraparte”.
Constituindo facto notório (cfr. artigo 412º, CPC) que a pandemia de Covid 19 produziu impacto significativo ao nível económico e empresarial, deverá ter-se presente que mereceu, desde logo, reação legislativa, atenta a promulgação pelo Estado de medidas legais tendentes a atenuar os seus efeitos. Daí que não se possa concluir, sem mais, pela afetação grave da situação negocial de qualquer empresa ou empresário.
Nos presentes autos, a questão que se coloca é a de saber se o impacto da pandemia de Covid 19 justifica a manutenção (e em que medida) do programa contratual acordado entre ambas os outorgantes, dado tratar-se de evento suscetível de reconduzir-se a perturbações da designada “(…)grande base do negócio” ao qual se subsumem “(…) conturbações estruturais nas condições políticas, económicas e/ou sociais da comunidade, pondo em causa o seu modo de vida e afetam uma multiplicidade de sujeitos, setores económicos e relações negociais” – Mariana Fontes da Costa, A atual pandemia no contexto das perturbações da grande base do negócio (https://observatorio.almedina.net/index.php/2020/04/01/a-atual-pandemia-no-contexto-das-perturbacoes-da-grande-base-do-negocio/).
Certo é que a resolução do negócio ou a sua alteração por juízos de equidade fundada no regime da alteração das circunstâncias demanda uma análise casuística dos “riscos próprios do contrato e dos riscos que o excedem”. A afirmação da relevância jurídica de tal alteração implica que se averigue da sua imprevisibilidade no momento da celebração do contrato, bem como da inviabilidade de adoção pelo lesado de medidas razoáveis para minimizar os danos, concluindo-se pela inexigibilidade do cumprimento do plano contratual – Mariana Fontes da Costa ob. cit.
A este propósito, referem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil anotado, Volume I, pág. 413): “A resolução ou modificação do contrato é admitida em termos propositadamente genéricos, para que, em cada caso, o tribunal, atendendo à boa fé e à base do negócio, possa conceder ou não a resolução ou modificação”.
É manifesto que no momento da vinculação contratual (maio de 2019), não poderia estar no horizonte mental de qualquer das partes a previsibilidade de ocorrência de uma pandemia como a que veio a verificar-se no ano seguinte. Tratou-se, efetivamente, de evento anómalo e imprevisível.
Porém, como anteriormente afirmado, embora constitua facto notório a repercussão negativa da pandemia de Covid-19 na vida empresarial e económica do país, desde logo em face dos períodos de confinamento decretados, os factos apurados não consentem a afirmação de que a sua verificação inviabilizou o cumprimento do contrato em discussão nos autos. Na realidade, a ré manteve a sua atividade na área da restauração, mantendo-se em funcionamento, não tendo logrado demonstrar, em qualquer uma das instâncias, que viu inviabilizada a comercialização de café por efeito direto da pandemia.
Não pode, pois, afirmar-se que o incumprimento do contrato – verificado em outubro de 2023, em momento em que as repercussões imediatas da pandemia se mostravam ultrapassadas – seja devida uma alteração superveniente das circunstâncias subjacentes à vinculação contratual. Ou seja, não ficou demonstrado que o incumprimento da obrigação de aquisição da quantidade de café acordada decorreu da alteração anormal das circunstâncias, não tendo os réus logrado afastar a presunção de culpa consagrada no artigo 799º, CC.
Além disso, a ré, caso estivesse em situação de dificuldade séria no cumprimento do contrato celebrado com a autora deveria, nos termos do artigo 437º, CC, ter suscitado a questão atempadamente perante a contraparte negocial, solicitando a modificação do contrato ou a sua resolução com base nesse facto. Mas a ré mencionou perante a autora sobretudo a sua discordância quanto ao preço do café, claramente desvalorizando o relevo da pandemia. E o certo é que nunca solicitou à autora a modificação do contrato ou a sua resolução.
Conclui-se que, perante a factualidade apurada, se deverá confirmar a conclusão jurídica afirmada na sentença de primeira instância.
E assim sendo, deverá o recurso ser julgado improcedente.
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Improcedendo o recurso de apelação, deverão os réus/recorrentes ser responsabilizados pelas respetivas custas, atento o respetivo decaimento – cfr. artigos 527º e 529º, CPC.
* III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 2ª secção cível em julgar improcedente o recurso de apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas do recurso pelos réus/recorrentes – cfr. artigos 527º e 529º, CPC.
D.N.
Lisboa, 8 de maio de 2025
Rute Sobral
António Moreira
Laurinda Gemas