ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PROVA DA PROPRIEDADE
AQUISIÇÃO DERIVADA
RESTITUIÇÃO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
DENÚNCIA
CONTRATO DE SUBARRENDAMENTO
EXTINÇÃO
PRINCÍPIO DO SUBCONTRATO
INDEMNIZAÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário

Sumário[1]: (Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil[2])
1. Numa ação de reivindicação, sendo invocada uma forma de aquisição derivada da propriedade do imóvel reivindicado (compra e venda, doação, mortis causa, etc.), não basta a prova do negócio, porque o mesmo não é constitutivo, mas meramente translativo, do direito de propriedade.
2. Uma vez que ninguém pode transferir mais direitos do que os que tem, é preciso, então, provar que o direito já existia no transmitente (dominium auctoris), prova a que alguns autores chamam probatio diabolica, dada a dificuldade de a conseguir em muitos casos.
3. Por isso, neste particular, assumem especial importância as presunções legais resultantes da posse ou do registo, nos termos dos artigos 1268.º do CC e 7.º do CRP.
4. Estando uma das partes de acordo quanto à existência do direito de propriedade da contraparte sobre determinado bem, não pode o juiz, indo além ou contra a vontade da primeira, declarar que tal direito inexiste.
5. É que, desde logo, não havendo questão entre as partes relativamente a esse direito, falha o pressuposto da intervenção do juiz neste capítulo – a existência do litígio.
6. Uma vez demonstrado pelo autor:
- que é proprietário do bem reivindicado; e,
- que o mesmo se encontra sob detenção do réu,
cabe a este provar, se quiser eximir-se à condenação de restituição, que a detém com base um título legítimo, vale por dizer que recai sobre si o ónus de alegação e prova de factos legitimadores do uso da coisa, portanto, dos factos impeditivos do efeito essencial reivindicante (art. 342º, nº 2, do CC).
7. O subarrendamento não sobrevive à extinção do arrendamento, o que significa que qualquer que seja a causa dessa extinção, se o arrendamento termina, termina o subarrendamento, porque este vive nos termos daquele;
8. (...) o que nada tem a ver com o reconhecimento do contrato pelo senhorio, o que permite que o subarrendamento seja legal, mas não lhe permite perdurar para além do arrendamento em que se funda, situação que a lei qualifica como de caducidade, não sendo necessário ao senhorio resolver as sublocações existentes.
9. Trata-se do princípio do subcontrato, segundo o qual a posição do subcontratante está na dependência do contrato principal, pelo que se este se extingue, o subcontrato não pode deixar de se extinguir, porque foi feito nas forças e limites daquele.
10. A ocupação ilícita de um imóvel, causadora de dano para o proprietário, que consiste em ter sido temporariamente privado do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso e fruição, origina a obrigação de indemnizar, ou seja, a mera privação do uso e fruição constitui um dano de natureza patrimonial.
11. Ainda que assim não fosse, sempre se estaria perante uma situação de enriquecimento sem causa no património do réu, ao usufruir de um imóvel sobre o qual deixou de deter, a partir de determinada altura, quaisquer direitos de uso ou fruição, retirando um benefício para si proveniente da ingerência feita sobre direitos e bens alheios.
12. O juízo de inconstitucionalidade só é formulável sobre interpretação normativas e não sobre decisões.

[1] Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[2] Diploma a que pertencem todos os preceitos legais citados sem indicação da respetiva fonte.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
S instaurou ação de reivindicação contra A, alegando, em síntese, que é dona da fração autónoma designada pela letra “I”, ____[1].
A ré vem ocupando a fração desde 1 de agosto de 2023, sem que disponha de qualquer título válido para o efeito, e contra a vontade da autora.
A ocupação da fração pela ré vem causando prejuízos à autora, pois impede-a de a arrendar a terceiros contra o pagamento de uma renda mensal de € 1.100,00.
A autora conclui assim a petição inicial:
«Nestes termos e nos demais de direito deve a presente acção ser julgada procedente e provada e, ipso facto,
A) Reconhecer-se o direito de propriedade da A. sobre o imóvel identificado no Art. 1.º da p.i.;
B) Condenar-se a R. a restituir o imóvel que ocupa;
C) Condenar-se a R. pela ocupação indevida a pagar à A. a quantia mensal de 1.100 € desde o mês de Agosto de 2023, pela ocupação ilegal do imóvel bem como as quantias mensais que se vencerem enquanto não restituir o imóvel, a liquidar em execução de sentença, acrescida dos juros de mora calculados à taxa legal supletiva, até à efectiva desocupação;
D) Condenar-se a pagar uma sanção pecuniária compulsória de 100.00 € por cada dia de ocupação, contados desde a citação até efectiva entrega do imóvel nos termos do art. 829-A do CPC[2]».
*
A ré contestou, alegando, em síntese, que ocupa a fração ao abrigo de um contrato de arrendamento verbal celebrado com a anterior proprietária da fração, mãe da autora, contrato esse que foi por esta ratificado após a morte de sua mãe, contra o pagamento de uma renda no valor mensal de € 400,00.
Além de contestar, a ré pugna pela condenação da autora como litigante de má-fé.
Conclui assim a contestação:
«Termos em que, deve a presente acção ser julgada improcedente por não provada e em consequência:
a) Absolver a R dos pedidos,
b) Condenar a A por litigância de má-fé (...)»
*
Na audiência prévia:
- foi identificado o objeto do litígio; e,
- foram enunciados os temas da prova.
*
Na subsequente tramitação dos autos, realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente por provada e, consequentemente:
a) Reconheço a A. como legítima proprietária da fração autónoma designada pela letra "I" ____.
b) Condeno a R. a restituir à A. a fração identificada em a), limpa e devoluta de pessoas e bens.
c) Condeno a R. a pagar à A. uma indemnização pela ocupação da fração identificada em a), calculada desde janeiro de 2024, inclusive, à razão de € 400,00 (quatrocentos euros) mensais, até efetiva restituição da mesma devoluta de pessoas e bens.
d) Absolvo a R. do pedido de condenação em sanção pecuniária compulsória.
e) Absolvo a A. do pedido de condenação como litigante de má-fé».
*
A ré veio recorrer dessa sentença, concluindo assim, com interesse para a decisão deste recurso, as respetivas alegações:
«a) O presente recurso é interposto da sentença proferida em 11/02/2025, pelo Juízo ____, Juiz _, que considerou a acção interposta pela A., parcialmente procedente, condenando a R. a restituir à A. a fração identificada em a), limpa e devoluta de pessoas e bens; a pagar à A. uma indemnização pela ocupação da fração identificada em a), calculada desde janeiro de 2024, inclusive, à razão de € 400,00 (quatrocentos euros) mensais, até efetiva restituição da mesma devoluta de pessoas e bens.
c) Entretanto, da sentença consta, tão-somente, o seguinte a título de fundamentação:
"Que a ... R., desde 1 de setembro de 2021, detinha a posição de subarrendatária da fração reivindicada, subarrendamento que era conhecido da A., não logrando provar o recebimento de rendas relativas ao subarrendamento pela A. e muito menos a emissão de recibos por esta. Nos termos do disposto no artigo 1089º do Código Civil, “o subarrendamento caduca com a extinção, por qualquer causa, do contrato de arrendamento, sem prejuízo da responsabilidade do sublocador para com o sublocatário, quando o motivo da extinção lhe seja imputável.” Do julgamento provou-se que o contrato de arrendamento celebrado entre a A. e a identificada MH, extinguiu-se por denúncia do contrato feito pela primeira à segunda, nada se tendo apurado nos autos quanto à alegada falsidade dos motivos da denúncia. Com a extinção do contrato de arrendamento e a consequente caducidade do contrato de arrendamento, deixou a R. de ter título legítimo para ocupar a fração reivindicada, podendo a sua legítima proprietária, aqui A., a todo o tempo reivindicar a propriedade, sem ter de motivar a sua pretensão, em qualquer outro facto, para além da própria propriedade e sem que a R. possa legitimamente recusar a restituição. Improcedendo a defesa da R. e reconhecido que está o direito de propriedade da A. sobre a fração reivindicada, sendo a ação de reivindicação imprescritível – cfr. artigo 1313º do Código Civil, nada mais resta do que julgar igualmente procedente o pedido de restituição formulado pela A., condenando-se a R. a restituir-lhe a fração identificada nos autos…”
d) sucede porém que, do exame crítico da factualidade dada como provada, e salvo melhor opinião, que muito se respeita, ao contrário da douta sentença recorrida, considera-se que a Apelada intentou a presente acção, unicamente com o intuito de ver resolvido o contrato de arrendamento ou verem a sua caducidade decretada, agindo em abuso de direito.
e) Isto porque, era do perfeito conhecimento da Apelada, que pelo menos desde 2008, que a R, ora Apelante reside no locado, com base num contrato de arrendamento (subarrendamento?) feito entre a anterior arrendatária (mãe da Apelada) e a R (artºs b) a d) e h) dos factos provados).
f) Com efeito, apeasr de em 2018 a Apelada passou a ser proprietária da fracção, só em 2023 veio a indiciar (depoimento da testemunha LG) que não queria mais ter a Apelante como inquilina, tendo no entanto sempre recebido as rendas.
g) Por conseguinte, é legítimo concluir que na esfera jurídica da Apelante foi gerada uma situação de confiança merecedora de tutela do direito, o que não foi tido em conta pela douta sentença recorrida.
h) a R havia sempre liquidado as rendas mensais, sempre para conta bancária titulada pela A, que jamais veio questionar a que título a Apelante continuou a residir no locado, pelo menos até á data anterior a prepositura da presente acção, inexistindo fundamento legal para a resolução do contrato em causa, na qual foi condenada não retrata a realidade dos factos, entendo a presente acção de despejo, ligada a inflação imobiliária que se atravessa no pais.
i) Sendo assim, o tribunal não fez uma correta apreciação da matéria de facto, o que teve como como consequência uma má aplicação do direito, designadamente, os artºs artºs 1311ª, 1313º, 1316º, 1022 e 1023º, 1069º, 1089 e 1090º/2, 562º, 563º e 566º/3, do ccivil,
J) Acresce que a R reside no locado desde de 2008, mediante contrato de arrendamento de renovação automática, pelo que a data da prepositura da presente acção, o mesmo se encontrava válido sendo.
l) Dai que, entende a R que a pretensão da A em fazer caducar o contrato é movida pela inflação no mercado imobiliário, olvidando os legais direitos daquela, sendo o imóvel a casa de morada de família.
m) Assim, o Tribunal a quo julgou mal a matéria de facto constante dos autos não tendo o cuidado de fundamentar devidamente a sentença recorrida, nos termos legais, sendo a mesma nula nos termos do disposto no art 615º do CPC, o que se arguiu, com as legais consequências.
n) Foram violados os artºs os artºs 14º/4 da lei 2006 de 27 de fevereiro, 1048º/1 do NRAU e 1069º/6 do mesmo regime legal. 1311ª, 1313º, 1316º, 1022 e 1023º, 1069º, 1089 e 1090º/2, 562º, 563º e 566º/3. e artº 615º do CPC e ainda o disposto no artº. 65 da CRP».
Conforme refere Rui Pinto, «depois de formular conclusões, o recorrente termina deduzindo um pedido de revogação, total ou parcial, de uma decisão judicial»[3].
Neste recurso, após a formulação das conclusões as apelantes deduzem o seguinte pedido revogatório:
«Pelo exposto, e com o douto suprimento do Venerando Tribunal, deve ser concedido provimento à apelação e revogada a sentença recorrida, absolvendo a R do pedido, como é de inteira JUSTIÇA!»
*
A autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da sentença recorrida.
***
II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir:
a) se a ré dispõe de título válido que a habilite a ocupar a fração;
b) se há lugar à condenação da ré a indemnizar a autora por ocupação ilegítima da fração.
***
III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
3.1.1 – A sentença recorrida considerou provado que:
«a) A A. é dona e legítima proprietária da fração "I" ____.
b) A A. deu de arrendamento a fração identificada em a), que a tomou, a MH, divorciada.
c) Em 25 de junho de 2023, por notificação efetuada à arrendatária MH, que a mesma recebeu e aceitou, procedeu a A. à denúncia para habitação do contrato de arrendamento entre ambas celebrado.
d) Quando a A. tentou tomar posse da fração, em consequência da denúncia do contrato de arrendamento, verificou que o mesmo estava ocupado pela R.
e) Por contrato celebrado em 1 de setembro de 2021, MH, subarrendou a fração autónoma identificada em a), pelo prazo de 12 meses, com inicio a 1 de setembro de 2021 e término a 30 de julho de 2022, renovando-se automaticamente no seu termo por sucessivos períodos de 12 meses, sem prejuízo do direito das partes se oporem à sua renovação nos termos legais e contratuais.
f) Por contrato celebrado em 2 de outubro de 2008, MH, na qualidade de proprietária, arrendou a fração autónoma identificada em a), pelo prazo de 12 meses, com inicio a 1 de outubro de 2008 e término a 30 de setembro de 2009, renovando-se por períodos iguais caso não fosse denunciado, contra o pagamento da renda de 380,00/mês, a atualizar um ano após a vigência do contrato e anualmente a partir daí.
g) Com datas, respetivamente, de 31 de outubro de 2022 e 15 de outubro de 2022, MH, remeteu à R. as missivas juntas com o req. refª. 50115391, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
h) A A. sempre teve conhecimento da ocupação da fração pela R..
i) A fração identificada em a) constituiu a casa de morada de família da R., há mais de 11 anos».
3.1.2 – (...) e não provado que:
«i) quando a A. tentou tomar posse da fração, em consequência da denúncia do contrato de arrendamento, se apercebeu-se que o mesmo, à sua revelia e mesmo sem seu conhecimento, estava ocupado pela R..
ii) apenas quando tentou tomar posse da fração é que a A. tomou conhecimento da celebração do contrato de subarrendamento que a sua arrendatária havia outorgado com a R..
iii) a A. [fez] tentativas interpelativas da R., seja por via de contactos pessoais, seja via epistolar, para que esta lhe devolva e entregue a fração, livre de pessoas e bens.
iv) atualmente o valor de mercado de imóveis similares à fração identificada em a) corresponda a quantia mensal não inferior a 1.100,00€.
v) o contrato referido em f) foi celebrado pelo prazo de cinco anos.
vi) o contrato de arrendamento referido em f) foi sempre cumprido pela R.,
vii) esta sempre pagou as rendas.
viii) a A. sempre recebeu as rendas.
ix) a R. tem pago as rendas mensalmente, por transferência bancária, para nib da conta em nome da A..
x) a A. [recebeu] mensalmente as rendas, sem que se tenha recusado o pagamento.
xi) a R. que não dispõe de outra habitação para se albergar.
xii) A. e R. [acordaram] na prorrogação do contrato de subarrendamento».
3.1.3 – A sentença recorrida acrescenta ainda:
«Nada se provou quanto à constituição do agregado familiar da R.».
*
3.2 – Fundamentação de direito:
3.2.1 – Da nulidade da sentença recorrida:
Este é apenas mais um daqueles casos, infelizmente frequentíssimos, em que, sem qualquer fundamento, assim como que em jeito de “atirar barro à parede”, se aventa com uma nulidade da decisão recorrida.
No caso afirma-se que «o Tribunal a quo julgou mal a matéria de facto constante dos autos não tendo o cuidado de fundamentar devidamente a sentença recorrida, nos termos legais, sendo a mesma nula nos termos do disposto no art 615º do CPC, o que se arguiu, com as legais consequências».
A apelante não indica sequer a concreta alínea do n.º 1 do art. 615.º em que fundamenta a arguição de nulidade.
É a al. b) do n.º 1 do art. 615.º que prevê a nulidade da sentença por falta de justificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Os pressupostos em que assenta uma tal nulidade da sentença têm sido abordados até à exaustão, tanto pela doutrina, como pela jurisprudência dos tribunais superiores, sempre no mesmo sentido.
No entanto, continua a ser invocada a cada passo, quase sempre sem o mínimo fundamento, tal como sucede no presente caso.
Como é por demais sabido, não pode confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, sendo que, tal como salientam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[4], só a falta absoluta de motivação constitui a causa de nulidade a que agora nos reportamos.
Afirmam estes Autores, obviamente com referência ao CPC/61[5], que «para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito».
Neste sentido escreve Tomé Gomes, que «(...) a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adotada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo.
A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão»[6].
Ainda a este propósito já Alberto dos Reis afirmava que «há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto»[7].
Em suma, só a total omissão dos fundamentos, a completa ausência de motivação da decisão pode conduzir à nulidade suscitada; já a simples insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, podendo afetar o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada em recurso, mas não produz nulidade. De igual modo não é a eventual falta de exame crítico da prova produzida (art. 607º, nº 4, do CPC) que preenche a nulidade da sentença a que se reporta a 1ª parte da al. b) do nº 1 do art. 615º do CPC.
No caso concreto, na sentença recorrida:
- são elencados os factos considerados provados e não provados;
- procede-se ao respetivo enquadramento jurídico.
É, assim, indiscutível que a sentença recorrida não padece do vício a que alude a 1ª parte da al. b) do nº 1 do art. 615º do CPC.
3.2.2 - O enunciado descrito em 3.1.1.g):
Trata-se de uma incorreta técnica processual de enunciação de facto, aquela que a senhora juíza a quo utilizou para descrever o enunciado transcrito em 3.1.1.g).
Conforme salienta Tomé Gomes[8], o teor dos enunciados de facto correspondentes aos juízos probatórios deve ser depurado de referências aos meios de prova ou às respetivas fontes de conhecimento.
As referências aos meios de prova, quando muito, podem constituir argumento probatório, a consignar na motivação, para fundamentar um juízo afirmativo ou negativo, pleno ou restritivo, do facto em causa.
Nessa linha, o que se requer é que o julgador assuma uma posição clara sobre o julgamento de facto, decidindo o que deve decidir, sem evasivas.
Assim, a senhora juíza a quo, em vez de dar como provado que «Com datas, respetivamente, de 31 de outubro de 2022 e 15 de outubro de 2022, MH, remeteu à R. as missivas juntas com o req. refª. 50115391, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais», deveria ter considerado provados os concretos factos jurídicos que, em seu entender, emanam daqueles documentos enquanto meios de prova.
No entanto, conforme flui da sentença recorrida, nada de relevante resulta daquelas cartas, documentos juntos com o requerimento atravessado nos autos no dia 10 de outubro de 2024, para a decisão da causa e, consequentemente, deste recurso, razão pela qual, por desnecessidade, nada se altera relativamente àquele enunciado.
3.2.3 – A prova da propriedade da fração reivindicada:
Esta é, inequivocamente, uma ação de reivindicação.
Dispõe o art. 1311º, do Cód. Civil:
«1 - O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
2 – Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei».
A sentença recorrida considera provado que «A A. é dona e legítima proprietária da fração "I" ____» - 3.1.1.a).
Afirma-se na sentença recorrida, em sede de motivação da decisão de facto, que «em face do teor da certidão de registo predial e da caderneta predial juntas pela A. aos autos e cujo teor foi aceite pela R., julgou o Tribunal provada a matéria constante da alínea a) dos factos provados».
Em sede de fundamentação de direito afirma-se na sentença que para que a ação de reivindicação «seja procedente é necessário resultar provado que a A. é proprietária da fração a restituir (...).
Dispõe o artigo 1316º do Código Civil “o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, adesão e demais modos previstos na lei”.
Por seu turno decorre do artigo 940º nº 1 do mesmo diploma legal que “doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”.
Do julgamento resultou provado que a A. adquiriu a fração por doação da sua anterior proprietária, estando a aquisição registada a seu favor pela AP. ___, na Conservatória do Registo Predial de ___, freguesia de ___.
Estatui o artigo 7º do Código do Registo Predial “o registo definitivo constitui presunção que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
Do julgamento resulta inequívoco, gozar a A. da presunção de proprietária da fração identificada nos autos, aceitando a R. a qualidade da A. de proprietária da fração.
Assim tendo a A. título de aquisição da fração e gozando da presunção de proprietária da mesma decorrente do artigo 7º do Código do Registo Predial, teremos necessariamente de concluir pela procedência do pedido de declaração da A. como proprietária da fração identificada nos autos, o que faremos sem necessidade de outros considerandos».
Como é sabido, sendo invocada uma forma de aquisição originária (usucapião, ocupação ou acessão, por exemplo), nenhum problema se coloca, desde que sejam alegados os factos integrantes dessa forma de adquirir.
No entanto, sendo invocada uma forma de aquisição derivada (compra e venda, doação, mortis causa, etc.), não basta a prova do negócio, porque o mesmo não é constitutivo, mas meramente translativo, do direito de propriedade.
Uma vez que ninguém pode transferir mais direitos do que os que tem, é preciso, então, provar que o direito já existia no transmitente (dominium auctoris).
A esta prova chamam alguns autores probatio diabolica, dada a dificuldade de a conseguir em muitos casos[9].
Uma vez que a prova da aquisição originária é (ou pode ser) diabólica, entende-se que «não se deve ser muito exigente neste aspecto, tendo em conta as necessidades práticas, sendo suficiente que o reivindicante demonstre uma simples probabilidade que o torne preferível ao seu adversário»[10].
Por isso, neste particular, assumem especial importância as presunções legais resultantes da posse ou do registo, nos termos dos artigos 1268º do Cód. Civil e 7º do Código do Registo Predial[11].
A este propósito, escreve Antunes Varela que «é certo que a nossa jurisprudência tem insistido repetidas vezes, a propósito da definição da causa de pedir nas acções de reivindicação, em que não basta ao reivindicante a prova de ter adquirido por qualquer forma de aquisição derivada, mesmo que esta aquisição tenha sido levada ao registo.
Faltaria sempre, nesse caso, a prova do direito do transmitente, essencial à válida existência do direito do adquirente, em face do velho e sempre actual brocardo de que “nemo plus ad alium transferre potest quam ipse habet”.
A ideia de que na aquisição derivada, não basta para provar a existência do direito do reivindicante a alegação do negócio de aquisição (da compra e venda, da doação, da permuta, etc.) nem o registo deste negócio, porque pode faltar o direito do transmitente, é perfeitamente compreensível e justificada.
Mas já não assim quando o transmitente seja o último titular (do direito) inscrito no registo - facto que, naturalmente, necessita de ser provado.
Quando assim suceda, mesmo que o último inscrito no registo não esteja apoiado numa cadeia ininterrupta de transmissões desde a descrição e a primeira inscrição do imóvel no registo (...) a prova do direito do adquirente beneficia já da presunção de existência do direito do transmitente, que resulta do registo»[12].
Tal como considerou o Ac. do STJ de 07.07.1999, C.J.S.T.J., VII, 2º, 164, «a exigência de em acção de reivindicação ser feita pelo autor a prova de ter havido uma aquisição originária do direito de propriedade ou uma ou várias aquisições derivadas que formem uma cadeia ininterrupta a terminar numa aquisição originária do mesmo direito, vale para os casos em que o proprietário se limita a pedir a declaração de que é dono.
A articulação entre esta exigência de prova de uma aquisição originária a fundamentar a existência do direito de propriedade invocado, por um lado, e a força da presunção resultante da inscrição registral da aquisição por outro, faz-se no sentido de que tal inscrição dispensa o seu titular de provar a aquisição originária, bem como a eventual cadeia de aquisições derivadas anteriores à aquisição que conseguiu fazer inscrever».
Na petição inicial com que introduziu em juízo a autora limita-se a alegar que «é dona e legítimo proprietário do prédio urbano identificado como fracção “I” ____».
Portanto, a autora não invoca, nem uma forma de aquisição originária, nem uma forma de aquisição derivada da fração.
Foi, no entanto, junta aos autos uma certidão da Conservatória do Registo Predial de Queluz, da qual resulta o seguinte:
«Pela Ap. ____, encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de ___, a aquisição da fração a favor da autora, S, por doação de MH».
Ainda que assim não fosse, vale por dizer, ainda que a autora não gozasse da presunção decorrente daquele registo, sempre teríamos de considerar que a ré não impugnou a afirmada qualidade da autora como proprietária da fração reivindicada.
Nessa medida, a ré reconheceu, por confissão, a propriedade da autora sobre o bem reivindicado.
Na verdade, tal como se escreveu no Ac. do S.T.J. de 25.06.1998, CJSTJ, ano VI, tomo II, p. 129, «a função dos tribunais é, apenas, a de dirimir conflitos existentes e que lhes sejam colocados pelas partes, não podendo o juiz postergar o princípio do dispositivo, salvo quando a lei lhe impuser, como sucederá, designadamente, no domínio das relações indisponíveis.
Assim, estando uma das partes de acordo quanto à existência do direito de propriedade da contraparte sobre determinado bem, não pode o juiz, indo além ou contra a vontade da primeira, declarar que tal direito inexiste.
É que, desde logo, não havendo questão entre as partes, relativamente a esse direito, falha o pressuposto da intervenção do juiz neste capítulo – a existência do litígio».
No caso ora submetido à apreciação deste tribunal, tal como sucedeu na situação referida no citado aresto do S.T.J., a ré não impugnou o direito de propriedade da autora sobre a coisa reivindicada; antes pelo contrário, "in casu", na contestação que apresentou em juízo, a ré reconhece o autor como proprietário da fração reivindicada.
Assim, não ocorrendo qualquer uma das hipóteses a que se refere o art. 354.º do CC, a propriedade da autora sobre a fração reivindicada, não deixaria de ser uma realidade[13].
De qualquer forma, considera-se tecnicamente adequado alterar o enunciado descrito em 3.1.1.a), que passará a ter a seguinte redação:
«Pela Ap. ___, encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de ____, a aquisição da fração a favor da autora, S, por doação de MH».
3.2.4 – A prova da ocupação da fração pela ré:
Numa ação de reivindicação cabe ao demandante a alegação e prova:
- do seu direito de propriedade sobre a coisa reivindicada; e,
- da detenção dessa coisa pelo demandado,
o mesmo é dizer, cabe-lhe a alegação e prova da causa de pedir, nos termos do art. 342.º, n.º 1, do CC.
Significa isto que à luz das regras do direito probatório material, o ónus da prova do reivindicante limita-se à demonstração de que é proprietário de uma coisa que se encontra sob o uso material do réu.
Está provada, como se viu, a propriedade da autora sobre a fração reivindicada.
O elenco dos factos provados revela-nos igualmente que a tal fração é atualmente detida pela ré, ou seja, que ela se encontra sob o uso material da ré.
3.2.5 – A (in)existência de título legitimador da detenção, pela ré, da fração reivindicada:
Uma vez demonstrado pela autora:
- que é proprietária de fração; e,
- que a fração se encontra sob detenção ré,
cabe a esta provar, se quiser eximir-se à condenação de restituição, que a detém com base um título legítimo; ou seja, recai sobre si o ónus de alegação e prova de factos legitimadores do uso da coisa, portanto, dos factos impeditivos do efeito essencial reivindicante (art. 342º, nº 2, do CC).
Será que, contrariamente ao entendimento, quer da autora, quer do tribunal recorrido, a ré logrou fazer tal prova?
A apelante não impugnou a decisão sobre a matéria de facto, pelo que, será à luz da factualidade que o tribunal a quo considerou provada, que se responderá àquela questão.
Sabe-se que «pela Ap. ___, encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de ____, a aquisição da fração a favor da autora, S, por doação de MH».
Sabe-se também que:
a) em data não apurada, mas seguramente posterior a 7 de maio de 2018, a autora deu de arrendamento a fração à referida MH, que a tomou de arrendamento;
b) por contrato celebrado em 1 de setembro de 2021, MH, subarrendou a fração à ré[14], pelo prazo de 12 meses, com início a 1 de setembro de 2021 e termo a 30 de julho de 2022, automaticamente renovável por sucessivos períodos de 12 meses, sem prejuízo do direito de, tanto a sublocadora como a sublocatária, «se oporem à sua renovação nos termos legais e contratuais»;
c) no dia 25 de junho de 2023, através notificação efetuada à arrendatária MH, a autora procedeu à denúncia, para sua habitação, do arrendamento referido em a) supra;
d) MH recebeu essa denúncia e aceitou-a.
Conforme é afirmado na sentença recorrida, a factualidade provada demonstra que a ré não detinha, desde pelo menos 1 de setembro de 2021, a posição de arrendatária da fração, mas, antes, a posição de subarrendatária.
A ré não logrou, efetivamente, fazer prova de que à data da instauração desta ação detinha a qualidade de arrendatária da fração; quando muito, insiste-se, logrou fazer prova de que no dia 1 de setembro de 2021 era sua subarrendatária.
Alega ainda que a autora reconheceu a sua qualidade de arrendatária da fração ao receber contrapartidas mensais acordadas entre ela, ré, e MH, no âmbito do contrato referido em b) supra.
Dispõe o art. 1090.º, n.º 2, do CC, que «se o senhorio receber alguma renda do subarrendatário e lhe passar recibo depois da extinção do arrendamento, é o subarrendatário havido como arrendatário direto».
Maria João Vasconcelos refere que «o n.º 2 do preceito pressupõe a caducidade do contrato de subarrendamento provocada pela extinção do arrendamento. Se, após isso, “o senhorio receber alguma renda do subarrendatário e lhe passar recibo”, considera-se celebrado tacitamente um novo contrato – entre o senhorio (primitivo locador) e o subarrendatário, que passará então a ser havido como arrendatário direto. A relação direta do subarrendatário com o senhorio surge, assim, ex novo, mediante a entrega da renda e a passagem de recibo»[15].
No entanto, tal como igualmente se escreve na sentença recorrida, de forma certeira, «não logrou a R. provar que a A. tivesse passado qualquer recibo de renda após junho de 2023, data da extinção do contrato de arrendamento celebrado entre a A. e a identificada MH. Como referimos, a circunstância de, por indicação da sublocadora a renda passar a ser depositada em conta bancária titulada pela A., não prova o recebimento e aceitação das rendas por esta, nem tal resulta das missivas juntas aos autos pela R.. Ao contrário dessas missivas o que se pode extrair é que relativamente ao contrato de subarrendamento que vinculava a R. e a MH, tudo se mantinha sem qualquer alteração.
Não logrando a R. provar que a A. recebeu rendas após junho de 2023, fica igualmente por provar que tivesse assumido por essa via a posição de arrendatária direta da A.».
Recapitulando:
a) está provado que:
- em data posterior a 7 de maio de 2018, a autora deu a fração de arrendamento a MH;
- (...) a qual, com efeitos a partir de 1 de setembro de 2021, a subarrendou à ré;
- (...) situação que era do conhecimento da autora;
- mediante notificação datada de 25 de junho de 2023, a autora denunciou o arrendamento que a ligava a MH;
- (...) a qual recebeu a notificação e aceitou a denúncia.
 b) não resultou provado que a autora tivesse recebido rendas relativas ao subarrendamento celebrado entre MH e a ré, tendo por objeto a fração, e muito menos, que tivesse procedido à emissão de recibos.
Neste contexto, impõe-se chamar à colação o disposto no art. 1089.º do CC, segundo o qual «o subarrendamento caduca com a extinção, por qualquer causa, do contrato de arrendamento, sem prejuízo da responsabilidade do sublocador para com o sublocatário, quando o motivo da extinção lhe seja imputável».
O mesmo já ocorria no domínio da vigência do RAU, traduzindo o citado preceito, ipsis verbis o que constava no art. 45.º deste último diploma, o qual, por sua vez, correspondia ao art. 1102.º do CC, na sua versão anterior à revogação operada pelo Dec. Lei n.º 321-B/90, de 15.10, não tendo o sublocatário “qualquer outro direito a não ser o de ser indemnizado pelo sublocador.”
Em anotação ao atual artigo 1089.º do CC, afirma Maria João Vasconcelos que «o contrato de subarrendamento sobrepõe-se ao contrato de arrendamento anterior, mas fica dele dependente, existindo entre ambos uma relação de subordinação (relação de dependência do contrato derivado ou subcontrato, em face do contrato principal). É neste sentido que a 1.ª parte do preceito em anotação estabelece que a extinção, por qualquer motivo, do contrato de arrendamento, determina a caducidade ope legis do subarrendamento. O termo caducidade é aqui usado em sentido amplo (...). Assim, se (...) a denúncia do contrato base não [é] imputável ao arrendatário-sublocador, os direitos e as obrigações emergentes do subarrendamento extinguem-se nos termos dos artigos 790.º e 795.º, n.º 1»[16].
António Estelita de Mendonça escreve, por sua vez, que «se é evidente que a extinção o contrato de sublocação não atinge o contrato de locação   também parece evidente que a extinção do contrato de locação extinga o contrato de sublocação. É que o contrato de sublocação está, neste aspecto, inteiramente dependente do contrato de locação e só neste encontra a razão de ser da sua existência: se esta deixa de se verificar, aquele, consequentemente, terá de ver terminada a sua existência»[17].
No mesmo sentido aponta Oliveira Ascensão ao afirmar que «o subarrendamento não sobrevive à extinção do arrendamento. Qualquer que seja a causa dessa extinção, se o arrendamento termina, termina o subarrendamento, porque este vive nos termos daquele.
Isto não tem nada a ver, note-se, com o reconhecimento do contrato pelo senhorio. O reconhecimento permite que o subarrendamento seja legal, mas não lhe permite perdurar para além do arrendamento em que se funda. A lei qualifica esta situação como de caducidade: não é pois necessário ao senhorio resolver as sublocações existentes.
O princípio do subcontrato é o de que a posição do subcontratante está na dependência do contrato principal. Se aquele se extingue, o subcontrato não pode deixar de se extinguir, porque foi feito nas forças e limites do contrato principal»[18].
No caso destes autos:
a) o contrato principal, o arrendamento celebrado entre a autora e MH, tendo por objeto a fração reivindicada, extinguiu-se na sequência da notificação operada por aquela a esta com data de 25 de junho de 2023;
b) com a extinção desse arrendamento terminou, extinguiu-se, o contrato de subarrendamento que daquele era dependência, celebrado entre MH e a ré no dia 1 de setembro de 2021.
Por conseguinte, à data da instauração desta ação, a ré não dispunha, nem dispõe atualmente, de título válido que a habilite a ocupar a fração.
3.2.5 – A obrigação de restituir por parte da ré:
A ré não logrou provar a detenção da fração com base num título legítimo, ou seja, não provou factos legitimadores do uso da fração, o mesmo é dizer, factos impeditivos do efeito essencial reivindicante (art. 342º, nº 2, do CC).
Foi, por isso, como se impunha, condenada a restituir a fração à autora.
3.2.6 – A questão indemnizatória:
Afirma-se a este propósito na sentença recorrida:
«Pede igualmente a A. a condenação da R. numa indemnização pela ocupação ilegal da fração à razão de € 1.100,00 por mês, contabilizada desde agosto de 2023, até à efetiva desocupação.
Do supra referido resulta já que o Tribunal entende que a ocupação que a R. vem fazendo da fração, desde a data da extinção do contrato de arrendamento, é uma ocupação sem título e sem causa justificativa.
Não logrou, porém, a A. provar que, antes da citação para a presente ação tivesse interpelado a R. para que esta desocupasse a fração, nem que por qualquer meio lhe tivesse dado a conhecer a caducidade do contrato de subarrendamento.
Assim, só se poderá dizer que a R. tem consciência que ocupa a fração contra a vontade da sua legítima proprietária, a aqui A., desde a data da citação, concluindo-se que a ocupação que faz da mesma desde essa data é uma ocupação ilícita. Vindo a R. a ocupar indevidamente a fração é responsável pelos prejuízos que de tal ocupação ilícita advêm para a A..
A simples ocupação da fração pela R., contra a vontade expressa da A. constitui um dano ao pleno exercício do direito de propriedade desta, na medida em que por força dessa ocupação a A. fica impedida de usar e fruir livremente da sua propriedade ou de a onerar nos termos em que decidir, como sua legítima proprietária.
Não logrou, a A. provar que a fração tenha um valor locativo mensal de € 1.100,00, não obstante, tal como alegado pela própria R. o valor da renda alegadamente pago por esta cifra-se no montante de € 400,00/mensais.
Assim, na ausência de outros elementos, tendo em conta o disposto nos artigos 562º, 563º e 566º nº 3 do Código Civil, entende o Tribunal fixar a indemnização devida pela R. à A. pela ocupação indevida da fração no montante mensal de € 400,00.
Tendo a R. sido citada validamente para a presente ação em 5 de dezembro de 2023, sem que tivesse restituído a fração à A., tem a A. direito a uma indemnização, à razão mensal de € 400,00 contabilizada desde janeiro de 2024 (mês imediatamente subsequente à citação) até à entrega efetiva da fração.
Nestes termos, será igualmente o pedido de condenação da R. no pagamento de uma indemnização pela ocupação ilícita da fração em causa nos autos, julgado procedente, na medida do provado».
A ocupação ilícita de um imóvel, causadora de dano para o proprietário, que consiste em ter sido temporariamente privado do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso e fruição, origina a obrigação de indemnizar; por outras palavras, a mera privação do uso e fruição constitui um dano de natureza patrimonial.
Assim, pois, em situação de privação do proprietário de um bem, traduzido na perda patrimonial que constitui de per si o impedimento de uso pelo seu dono, emerge para ele um dano concreto indemnizável nos termos do disposto nos arts. 483.º, n.º 1, 562.º a 564.º e 566.º, n.º 1, todos do CC.
E, ainda que assim não fosse, sempre se estaria perante uma situação de enriquecimento sem causa no património da ré, ao usufruir de um imóvel sobre o qual deixou de deter, a partir de determinada altura, quaisquer direitos de uso ou fruição, retirando um benefício para si proveniente da ingerência feita sobre direitos e bens alheios.
Veja-se, a este propósito, o decidido no Ac. do S.T.J. de 03.10.2013, Proc. nº 1261/07.0TBOLHE.E1.S1 (Fernando Bento), in www.dgsi.pt, cujo sumário se transcreve:
«I - A privação do direito de uso e fruição integrado no direito de propriedade configura, por si só, uma desvantagem económica que se reflecte necessariamente no valor do mesmo.
II - Em decorrência da teoria da diferença consagrada no n.º 2 do art. 566.º do CC, tal dano – normativo e meramente abstracto – não é autonomamente ressarcível, só o sendo quando se reconduz a dano emergente ou lucro cessante.
III - O ónus de alegação e prova de tais danos incumbe ao lesado.
IV - A fixação equitativa da indemnização supõe a existência de limites quantitativos provados.
V - Se na pendência de uma acção de reivindicação os autores não logram provar os danos emergentes (impossibilidade de habitar e fazer obras no prédio) e lucros cessantes (frustração efectiva do arrendamento do imóvel) por si invocados, fica inviabilizado o recurso à equidade para determinação da indemnização pela privação do uso.
VI - Sem embargo do referido em II e V, a ocupação do prédio pelos réus, beneficiando das vantagens de um bem alheio, sem título que o legitimasse, durante os quase nove anos em que, por via dos sucessivos recursos por si interpostos, esteve pendente a acção, legitima o reconhecimento de um crédito aos autores com fundamento no enriquecimento sem causa.
VII - São pressupostos do enriquecimento sem causa:
a) a existência de um enriquecimento;
b) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem;
c) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento.
VIII - À custa de outrem não significa necessariamente que o credor da restituição seja empobrecido, mas apenas que o valor que entra no património do enriquecido corresponde ao que foi obtido com meios ou instrumentos pertencentes ao credor da restituição.
IX - Nos casos de enriquecimento sem causa fundado na utilização de bens alheios o valor da restituição é o valor de exploração, aferido pelo critério do valor objectivo dos bens».
No caso concreto, neste recurso, a apelante não impugna o segmento decisório da sentença recorrida que a condena a pagar à autora «(...) uma indemnização pela ocupação da fração (...), calculada desde janeiro de 2024, inclusive, à razão de € 400,00 (quatrocentos euros) mensais, até efetiva restituição da mesma devoluta de pessoas e bens», tando mais que, conforme referido na decisão impugnada, é a própria ré quem afirma que se encontra atualmente a pagar à autora aquela quanta mensal, a título de renda, mas no âmbito de um alegado e não provado contrato de arrendamento que, supostamente, as uniria.
Neste recurso, aquilo que a ré/apelante verdadeiramente impugna é a decisão que a condena a restituir a fração à autora, «limpa e devoluta de pessoas e bens», por entender, ainda que indevidamente, como se viu, que é detentora de um título legítimo para a usar e fruir.
3.2.7 – A questão da violação, pela sentença recorrida, do disposto no art. 65.º da Constituição da República Portuguesa:
Deve começar por afirmar-se o seguinte:
A questão da inconstitucionalidade tem de ser colocada de forma atempada, clara e percetível para que o tribunal saiba que questão tem para resolver[19].
Conforme se afirma no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 242/2007, «(...) sempre que “se suscita a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação de certa (ou de certas) normas jurídicas, necessário é que se identifique essa interpretação em termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os destinatários delas e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa (ou essas) normas não podem ser aplicadas com um tal sentido” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 106/99, não publicado).
A apelante limita-se a arguir genericamente a inconstitucionalidade sem propor um concreto enunciado interpretativo que, a ser acolhido, possa integrar um dispositivo de declaração de inconstitucionalidade.
Por outro lado, o juízo de inconstitucionalidade só é formulável sobre interpretação normativas e não sobre decisões.
Com efeito, o juízo de constitucionalidade é formulável sobre normas e interpretações legais e não sobre decisões judiciais condenatórias de per si. Na síntese clara do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 62/2017:
“(…) sublinhamos corresponder a um traço identitário do nosso sistema de controlo da constitucionalidade a respetiva incidência normativa, com o sentido funcional, de há muito cimentado na jurisprudência do Tribunal Constitucional, de abranger normas e interpretações normativas, considerando o Tribunal,‘[…] que a sua apreciação e a sua decisão não têm de respeitar necessariamente à norma on its face e em toda a sua dimensão, mas bem podem (e devem) muitas vezes circunscrever-se a uma sua certa interpretação – sendo só essa interpretação (a estabelecida pelo tribunal recorrido) que o Tribunal, consoante o que sobre ela vier a entender, avalisará ou cassará” [José Manuel Cardoso da Costa, “Justiça Constitucional e Jurisdição Comum (Cooperação ou Antagonismo)”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, Vol. II, Coimbra, 2012, p. 203]. Com efeito, ao contrário de outros sistemas que consagram a possibilidade de um controlo jurisdicional diretamente dirigido às decisões dos restantes tribunais, como é o caso do sistema espanhol (através do recurso de amparo) e do sistema alemão (por via da queixa de constitucionalidade dirigida ao Tribunal Constitucional), no sistema português a fiscalização incide – e só incide – sobre normas, estando excluída a apreciação pelo Tribunal Constitucional de recursos que questionem, mesmo que o façam numa perspetiva de conformidade a regras e princípios constitucionais, os concretos atos de julgamento expressos nas decisões dos outros Tribunais. Julga este Tribunal, pois, na fase final de controlo concentrado que lhe está cometida, a desconformidade ou não desconformidade, face à Constituição, de normas jurídicas – com o sentido antes referido – aplicadas no tribunal a quo» (sublinhado nosso)».
Pelo exposto, nada há a decidir neste recurso quanto à alegada violação do art. 65.º da CRP.
***
IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do tribunal, em julgar a apelação improcedente, mantendo, em consequência, a sentença recorrida.
As custas do recurso, na vertente de custas de parte, são a cargo da apelante (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2).

Lisboa, 29 de abril de 2025
José Capacete
Rute Sabino Lopes
Paulo Ramos de Faria
_______________________________________________________
[1] Doravante identificada apenas por “fração”.
[2] A autora pretenderia, por certo, escrever «(...) art. 829-A do CC».
[3] Manual do Recurso Civil, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 293.
[4] Manual cit., pp. 670-672.
[5] A norma contida na 1ª parte da al. b) do nº 1 do art. 668º do CPC/61 é idêntica à contida na 1ª parte da al. b) do nº 1 do art. 615º do CPC/2013.
[6] Da Sentença Cível, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, janeiro de 2014, p. 39.
[7] Código de Processo Civil Anotado, Volume V, p. 140.
[8] Da Sentença Cível, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2014, p. 23.
[9] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição, p. 115.
[10] Cfr. Rodrigues Bastos, Direito das Coisas, I, pp. 135 ss., citado no Ac. do S.T.J. 04.02.1993, CJSTJ, I, 1º, p. 137.
[11] Cfr. Ac. da R.C. de 01.06.04, C.J., XXIX, 3.º, p. 13.
[12] R.L.J., Ano 120º, p. 221.
[13] No mesmo sentido, cfr. o Ac. da R.C. de 03/24/2009, Proc. nº 1879/06.8TBCVL.C1, in www.dgsi.pt e os Acs. do S.T.J. de 29.04.1992 e de 20.09.1994, B.M.J. 416.º, 595 e 439.º, 538.
[14] Surpreendentemente, não consta da matéria de facto provada a quem é que, no dia 1 de setembro de 2021, MH subarrendou a fração. No entanto, resulta do contrato junto pela autora com a petição inicial, sob o documento n.º 2, que esse subarrendamento foi feito a favor da ré.
[15] Comentário ao Código Civil Anotado – Direito das Obrigações – Contratos em Especial, Universidade Católica Portuguesa – Faculdade de Direito, UCP Editora, 2023, p. 520.
[16] Comentário cit., p. 518.
[17] Da Sublocação, Coimbra, Almedina, 1972, p. 184.
[18] Subarrendamento e Direitos de Preferência no Novo Regime do Arrendamento Urbano, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 51.º, abril de 1991, pp. 49-50.
[19] Cfr. Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, Breviário de Direito Processual Constitucional, 2ª ed., p. 47.