REGISTO DE VOZ E IMAGEM
LEI 5/2002
NECESSIDADE PARA A INVESTIGAÇÃO DO CRIME
Sumário

A autorização judicial para o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado, previsto no artigo 6º da Lei 5/2002, de 11 de janeiro, depende, apenas, de aquele meio de prova ser necessário para a investigação de crime, o que significa que tem de ser essencial para a prossecução desse objetivo, ainda que pudesse ser substituído por outro que permitisse o seu atingimento, embora com mais dificuldade.
Numa investigação de crime de tráfico de estupefacientes de distribuição direta ao consumidor, desenvolvido essencialmente em espaço habitacional, numa rua sem saída, num pequeno meio urbano, que dificulta a presença próxima da polícia, ainda para mais a um suspeito que se revela cuidadoso e desconfiado, em que aquele meio de prova permite visualizar e registar imagens a maior distância, está preenchido o requisito da necessidade a que se refere o artigo 6º da Lei 5/2002.

Texto Integral

Acórdão deliberado em conferência
1. Relatório

1.1. Decisão recorrida

Despacho proferido em 3mar2025, no qual a juíza de instrução indeferiu o pedido do Ministério Público de prorrogação por 90 dias da autorização, concedida em 8jan2025, para registo de voz e imagem, no âmbito do inquérito em que é investigado AA por um crime de tráfico de produtos estupefacientes.

1.2. Recurso e parecer

1.2.1. O Ministério Público recorreu do despacho, pedindo a sua revogação e substituição por outro que defira o seu pedido.

Para tanto, concluiu, em resumo, o seguinte:

- A decisão de indeferir a prorrogação da recolha e registo de voz e imagem é precipitada e desrazoável, atento o curto lapso temporal desde o despacho judicial que primeiramente a autorizou e face à natureza do crime em investigação, que exige tempo para aportar a prova aos autos.

- Tal precipitação resulta, desde logo, do ofício de 07.03.2025, junto aos autos pelo órgão de polícia criminal posteriormente ao despacho recorrido, mas dentro do prazo de 15 dias desde o começo da captação de voz e imagem, que contém registos de imagem datados de 26fev2025 do suspeito em interação com aparentes consumidores, resultantes das várias diligências externas que têm vindo a ser encetadas, e de onde se extrai que não corresponde à realidade o alicerce em que o tribunal sustentou o seu indeferimento: “Contudo, in casu, compulsados os autos, verifica-se que não foram adquiridos elementos probatórios, nem elementos probatórios que se possam chamar de relevantes, desde 10.02.2025, data em que ocorreu a autorização de recolha de voz e imagem, que permita ao tribunal deferir a prorrogação de recolha das mesmas”.

- Não merece também concordância o seguinte fundamento de indeferimento no despacho recorrido: "Pelo que se verifica inexistir fundamento válido e suficiente que só por si, permita ao tribunal afirmar ser tal meio de prova um meio necessário à investigação criminal". O despacho recorrido, a manter-se, consiste numa frustração de todas as diligências externas de investigação realizadas desde outubro de 2023, uma vez que ditará o inevitável arquivamento dos autos, por ser inequívoco que o registo de voz e imagem confere uma robustez probatória às diligências de seguimento/vigilância, com as quais se visa acumular, para reunir suficientes indícios do crime em investigação.

- Se no contexto de investigação de crime de estupefacientes fosse possível a certeza de se lograr recolher a prova no lapso de 60 dias, não teria o legislador consagrado um prazo mais longo de 14 meses para a duração dos inquéritos onde se investigam crimes desta natureza.

- O requisito exigido pelo tribunal de lograr recolher prova pertinente para o inquérito, em cada 60 dias que antecedem as promoções de prorrogação de autorização de captação de registo de voz e imagem, não pode ser exigível, por desrazoável, uma vez que depende de fatores extemos não controláveis e é incompatível com o tipo de crime de tráfico de estupefacientes.

- Se tivesse passado um lapso temporal longo, com sucessivas prorrogações, em que não se tivesse logrado obter prova, o Ministério Público nem sequer teria promovido a prorrogação de tal diligência, por aí se constatar que houve oportunidade de rondar o suspeito durante um tempo razoável que permitisse concluir com segurança pela inexistência de indícios de crime. Contudo, não é esse o caso, uma vez que nem houve lugar sequer a uma única prorrogação.

1.2.2. O Ministério Público na Relação emitiu parecer defendendo a procedência do recurso, por adesão à respetiva fundamentação.

2. Questões a decidir no recurso

A única questão que importa analisar e decidir é a de saber se no despacho recorrido se fez uma correta aplicação da lei e se, consequentemente, deve ser confirmado ou revogado o indeferimento da prorrogação da autorização para recolha de voz e imagem.

3. Fundamentação

3.1. O despacho recorrido

O despacho sob recurso, no qual o tribunal expôs os fundamentos da sua decisão, é o seguinte:

Veio o Digno Magistrado do MP requerer a prorrogação do prazo para recolha de voz e imagem aos visados na investigação, invocando manter-se a necessidade de continuar a reunir prova dos factos em causa, utilizando para tal um meio de obtenção de prova que permite conhecer a concreta intervenção do suspeito e o âmbito e contornos da atividade, dados por demais úteis à investigação.

Invoca ainda que o registo de vídeo, som, imagem e fotografia afigura-se imprescindível para a continuação da aquisição de elementos com relevo probatório, cujo conteúdo não pode ser obtido por outra via.

Contudo, in casu, compulsados os autos, verifica-se que não foram adquiridos elementos probatórios, nem elementos probatórios que se possam chamar de relevantes, desde 10.02.2025, data em que ocorreu a autorização de recolha de voz e imagem, que permita ao tribunal deferir a prorrogação de recolha das mesmas. Pelo que se verifica inexistir fundamento válido e suficiente que só por si, permita ao tribunal afirmar ser tal meio de prova um meio necessário à investigação criminal.

Relembremos que "(...) Para a autorização de uma medida tão intrusiva, como a recolha sistemática de imagem e de voz sobre um específico cidadão, incidindo também em cidadãos indiferenciados que com ele interajam no espaço público, é necessário que tenha sido processualmente adquirido um manancial minimamente encorpado de indícios, capazes de legitimar proporcionalmente uma tal restrição da esfera de privacidade. Não basta que se proclame um objeto investigatório, assente numa mera convicção da investigação, com a justificação de que o inquérito se encontra no início. De outro modo, logo no momento da abertura da investigação, sem qualquer diligência, bastaria formular o prognostico se vir a apurar um dos crimes do catálogo para ver franqueado o acesso aos meios de investigação que o legislador reservou para as formas de criminalidade mais graves, vulgarizando uma intromissão que se quer especial e criteriosa (...)”. (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.05.2022. proc. Nº 1519/21.5PDAMD-A.L1-5, relator Fernando ventura, disponível em www.dgsi.pt).

Pelo exposto, indefere-se a recolha e registo de voz e imagens, por 90 dias.

3.2. Mérito do recurso

Está em investigação no presente inquérito a prática de crime de tráfico de produtos estupefacientes, iniciado com base numa suspeita resultante de informações recolhidas na vizinhança e da frequência dos contactos entre o investigado e pessoas conhecidas pela polícia como consumidoras de produtos estupefacientes.

Como está documentado na certidão que instruiu o recurso, o órgão de polícia criminal realizou diversas vigilâncias e seguimentos, (i) verificando contactos que considerou suspeitos, nomeadamente, um em que houve uma troca rápida de algo de reduzidas dimensões, (ii) aprendendo estupefaciente a uma pessoa que tinha acabado de contactar o investigado e (iii) a outra que disse tê-lo comprado ao investigado e (iv) constatando que o investigado executa frequentes manobras de contra-vigilância quando conduz automóveis, típicas em pessoas que praticam crimes e querem certificar-se de que não estão a ser objeto de investigação policial.

Por outro lado, perante a insistência do Ministério Público no sentido de recolher ainda prova mais sólida dos atos de tráfico, o órgão de polícia criminal informou que, face às características do local onde o suspeito atua – uma rua sem saída em que as vigilâncias policiais são facilmente detetadas –, aos hábitos do suspeito – permanece muito tempo em casa, usa as redes sociais para estabelecer os contactos e é cuidadoso e desconfiado quando circula de automóvel e ainda à natureza do crime, a continuação das vigilâncias policiais, se desacompanhada de outras diligências de recolha e registo de prova, não permitirá concluir a investigação com êxito.

Nessa sequência, o Ministério Público solicitou e obteve autorização judicial para a interceção e gravação de conversações e comunicações telefónicas e recolha de sons e imagens do suspeito e das pessoas que com ele contactassem.

No período subsequente à autorização judicial, foram intercetadas duas conversações telefónicas consideradas relevantes para a investigação. Numa, o suspeito combinou um encontro com um indivíduo que não se concretizou porque esse indivíduo referiu que tinha sido seguido pela polícia – o que fez o suspeito ficar desconfiado e hesitante – e acabou por dizer que a pessoa que o acompanhava, face ao sucedido, já não queria aquilo que visava quando o encontro foi marcado. Noutra, durante uma conversa entre o suspeito e uma pessoa de família, ouviu-se um som compatível com a contagem de notas e alguém ao lado desta disse que eram “quatrocentos”, o que a polícia relacionou com a atividade de tráfico.

Foram também presenciados encontros furtivos entre o suspeito e pessoas que a polícia tem como consumidoras de drogas e registadas as respetivas imagens – este registo de imagens realizou-se no período coberto pela autorização judicial, mas só chegou ao processo depois do despacho recorrido, embora dentro do prazo legal de apresentação e validação.

Exposto, muito resumidamente, o percurso da investigação que o Ministério Público está a conduzir, importa agora verificar o que diz a lei e regressar ao despacho recorrido e aos fundamentos do recurso.

O artigo 6º da Lei 5/2002, de 11jan, que prevê medidas especiais de combate à criminalidade organizada, dispõe que (1) “É admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1.º [que inclui o de tráfico de estupefacientes na al. a) do seu nº 1], o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado”; (2) “A produção destes registos depende de prévia autorização ou ordem do juiz, consoante os casos” e (3) “São aplicáveis aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no artigo 188.º do Código de Processo Penal”.

No essencial e no que respeita ao tipo de criminalidade e de investigação aqui em causa, este meio de recolha de prova permite que o órgão de polícia criminal complemente as vigilâncias e seguimentos do suspeito com a recolha e registo das respetivas e imagens e sons. Ou seja, no que respeita às imagens, trata-se, apenas, de documentar em foto ou vídeo os factos ocorridos no espaço público e percecionados pelo órgão de polícia criminal.

Muito embora se trata de um meio de recolha de prova que implica algum grau de compressão na reserva da vida privada e que, por isso, exige uma ponderação cuidadosa do balanceamento proporcional entre a afetação de direitos fundamentais e o interesse da eficácia da ação penal, a verdade é que recolher imagens e sons das ações de pessoas suspeitas ocorridas no espaço público, que podem, de resto, ser livremente percecionadas pelo órgão de polícia criminal quando para tal disponha das condições necessárias, através de vigilâncias e seguimentos, não tem comparação com outras formas de recolha de prova, como a interceção e gravação de conversações telefónicas, que são bem mais intrusivas na privacidade. No fundo, não há diferença substancial entre, por exemplo, um polícia realizar uma ação de vigilância dissimulado numa viatura automóvel estacionada em local público, junto ao espaço em que se desenvolve o tráfico de droga, em que pode ver os suspeitos e ouvir as suas conversas ou depois documentar esses factos em vídeos, fotos ou gravações de voz. É por essa razão que os requisitos legais para a autorização judicial de um e outro meio de prova não são os mesmos. O artigo 187º do CPP determina que a interceção e gravação de comunicações telefónicas só pode ser autorizada quando esse meio de prova for indispensável para a descoberta da verdade ou para a obtenção da prova, ao passo que para se autorizar o registo de voz e imagem o artigo 6º da Lei 5/2002 apenas exige apenas que o meio de prova seja necessário para a investigação do crime.

Os requisitos de indispensabilidade e necessidade têm graus de importância distintos. A indispensabilidade de um meio de prova depende da inexistência uma alternativa que permita substituí-lo com a mesma probabilidade de êxito na obtenção do resultado. Isto é, a interceção e gravação telefónica tem de ser o único meio disponível que permita a obtenção da prova pretendida, em face das circunstâncias concretas da investigação. Já a necessidade de um meio de prova exige apenas que o mesmo seja essencial para a prossecução do objetivo, ainda que pudesse ser substituído por outro que permitisse o seu atingimento, embora com mais dificuldade. É certo que não basta que o registo de voz e imagem seja útil ou vantajoso para facilitar o um resultado que podia ser obtido de outra forma; mas também não se exige que seja imprescindível ou insubstituível.

No caso em apreço, não nos parece haver dúvida sobre a necessidade de o órgão de polícia criminal gravar imagens e sons das ações do suspeito. Trata-se da investigação de um tráfico de distribuição direta ao consumidor, desenvolvido essencialmente em espaço habitacional, numa rua sem saída, num pequeno meio urbano, que dificulta a presença próxima da polícia, ainda para mais a um suspeito que se revela cuidadoso e desconfiado. Sem aquele meio de prova, que permite visualizar e registar imagens a maior distância, as diligências possíveis são apenas as já realizadas, cujo êxito é muito limitado.

Por outro lado, não se pode dizer, como no despacho recorrido, que o resultado das diligências em curso no período abrangido pela anterior autorização judicial tivesse sido nulo. Como referido acima, para além do registo de imagens que só chegou ao tribunal depois da decisão, já tinham sido intercetadas e registadas duas comunicações telefónicas que podem ser conjugadas com as outras provas e revelar-se relevantes para a investigação.

Também não se pode dizer que a investigação esteja a ser conduzida com pouco empenho, tornando desproporcionada uma compressão mais prolongada do direito do suspeito à reserva da sua vida privada. Os autos mostram que nos 90 dias em que a autoridade policial esteve autorizada a registar imagens e vozes e a intercetar comunicações telefónicas não deixou de desenvolver a investigação e de realizar diversas diligências com vista à obtenção de prova. Trata-se de uma primeira prorrogação do prazo e não de uma sucessão de autorizações judiciais.

Por fim, a prorrogação da autorização para o registo de vozes e imagens do suspeito não representa qualquer perigo de realização de ações de investigação desproporcionais e sem controlo. Para além da limitação do prazo fixada pelo tribunal, não pode esquecer-se que o Ministério Público e o órgão de polícia criminal ficam obrigados aos procedimentos previstos no artigo 188º do CPP, que permitem ao tribunal verificar a todo o momento se persistem os pressupostos de adequação, necessidade e proporcionalidade daquele meio de recolha e registo de prova.

O entendimento do acórdão citado no despacho recorrido (TRL, de 17mai2022), segundo o qual a autorização para o registo de voz e imagem prevista no artigo 6º da Lei 5/2002 exige que tenha já sido adquirido um manancial minimamente encorpado de indícios capazes de legitimar a restrição da esfera de privacidade não é, salvo o devido respeito, convocável para o caso em análise. Na investigação em curso já há prova relevante para sustentar a suspeita do crime de tráfico. O que está em causa não é recolher prova para suportar uma suspeita vaga e não demonstrada da prática do crime, mas sim prova para completar e reforçar uma suspeita já confirmada por outras provas.

Em face do exposto, a decisão recorrida não interpretou corretamente o requisito de necessidade a que se refere o artigo 6º da Lei 5/2002 e tem de ser revogada.

5. Decisão

Julga-se o recurso procedente, revoga-se o despacho recorrido e determina-se a sua substituição por outro que admita a prorrogação do prazo da autorização para registo de voz e imagem pedida pelo Ministério Público.

Não há lugar ao pagamento de custas.

Évora, 9abr2025

Manuel Soares

Carla Francisco

Anabela Cardoso