ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
SENTENÇA
MEDIDAS DE ACOMPANHAMENTO
Sumário

A sentença que decreta o regime de acompanhamento de maior tem de especificar as medidas em que se traduz no caso concreto o regime jurídico de maior acompanhado.

Texto Integral

Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório
O Ministério Público instaurou, em 15/07/2024, acção especial de acompanhamento relativamente a AA, nascido em ... de ... de 2006, ao abrigo do disposto nos artigos 138.º e 141.º, n.º 1 do Código Civil e dos 891.º e segs. do Código de Processo Civil.
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Tendo sido constatada a impossibilidade de citação do requerido, foi nomeado defensor que apresentou articulado em que disse nada ter a opor a que sejam decretadas as medidas sugeridas pelo Ministério Público e à nomeação da pessoa indicada como acompanhante.
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Em 24/10/2024 foi proferido o seguinte despacho:
«Atento o disposto no art. 897º do C. Processo Civil, ao ..., solicite-se a realização de relatório sobre as condições de vida e de saúde, bem como, apoios na família e na comunidade de que beneficie o Requerido.».
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Após junção do relatório foi realizada audição do beneficiário em 27/11/2024 e em 08/01/2025 foi proferida sentença com este dispositivo:
«Conforme os critérios e fundamentos normativos supra referidos, julga-se a acção procedente e, em consequência:
Decreta-se que o Requerido AA, nascido no dia ...-...-2006, na freguesia de Santa Maria Maior, concelho do Funchal, filho de BB e de CC, titular do documento de identificação civil com o número ..., e residente na ... se encontra sujeito ao regime legal do maior acompanhado, nomeando-se como acompanhante CC, mãe, residente na ...
Funchal.
Duração da medida – 5 anos.».
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Inconformado, apelou o Ministério Público, terminando a alegação com estas conclusões:
«DA NULIDADE DA SENTENÇA
1. A sentença recorrida determinou a aplicação do regime jurídico do maior acompanhado, mas não procedeu à aplicação de quaisquer medidas à revelia do artigo 145.º do CC e 900.º do CPC.
2. Como se sabe, as medidas de acompanhamento são uma parte integrante, essencial e necessária do regime de acompanhamento pelo que a sua omissão constitui necessariamente uma nulidade por omissão de pronúncia que expressamente se invoca.
3. Tendo em conta o substrato factual provado não permite a aplicação de quaisquer medidas que não sejam as de representação geral com inibição do direito de testar, conforme requerido na petição inicial.
Termos em que se requer a V/ Exas. que o presente recurso seja julgado totalmente procedente declarando-se a invocada nulidade da sentença proferida nestes autos, por omissão de pronúncia.».
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Não há contra-alegação.
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II – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, pelo que a questão a decidir é:
- se a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia
- se há erro de julgamento
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III – Fundamentação
A) Na sentença vem dado como provado:
1- AA nasceu no dia .../.../2006 no concelho do Funchal e é solteiro.
2- Reside com a mãe na morada acima referida.
3- Frequenta o ...
4- Padece de Perturbação do Desenvolvimento Desintegrativa da Segunda Infância com comportamento e funcionamento semelhante aos do Espectro do Autismo, com baixo grau de funcionamento, com uma incapacidade permanente global avaliada em 60%.
5- Não se consegue situar no tempo, designadamente não sabe indicar o dia, mês e ano em que se encontra.
6- Do mesmo modo, não é capaz de se situar no espaço, não sendo capaz de se orientar sozinho na rua.
7- Necessita do auxílio de terceiros para as atividades básicas do dia-a-dia, como seja preparar as refeições, tomar a medicação, vestir-se ou realizar a sua higiene pessoal
8- Não consegue realizar qualquer tarefa doméstica.
9- Tem dificuldades em manter uma conversa simples e com sentido.
10- Na verdade, devido ao seu problema de saúde, verbaliza pouco.
11- Não sabe ler e escrever.
12- Não é capaz de reconhecer o valor do dinheiro (notas e moedas) e, bem assim, o valor económico das coisas.
13- Encontra-se totalmente incapaz de realizar qualquer tipo de pagamentos, designadamente os pagamentos relativos às despesas da sua habitação (água, luz e gás) e, bem assim, não é capaz de adquirir os bens de que necessita (alimentação e medicação).
14- Não é capaz de compreender o sentido e conteúdo de determinados documentos, tais como contratos, procurações, documentos de entidades públicas (Segurança Social, Finanças).
16- AA beneficia de abono de Família/2.º escalão, no valor de 72€, com majoração por monoparentalidade, no valor de 36€ e bonificação por Deficiência do regime não contributivo, no valor de 103.56€, com majoração por monoparentalidade, no valor de 51.78€.
17- Não há notícia que AA tenha celebrado testamento vital ou procuração de cuidados de saúde.
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C) O Direito
1. Se a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia sobre as medidas de acompanhamento requeridas na petição inicial.
Sobre a nulidade da sentença, importa ter em consideração que o CPC (Código de Processo Civil) prevê:
Art. 608º
«(…)
2 - O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.»
Art. 615º
«1 - É nula a sentença quando:
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
(…).»
Na petição inicial vem requerido:
«a aplicação das seguintes medidas de acompanhamento:
a) Representação geral (artigo 145º, nº 2, al. b), do Código Civil);
b) Limitação dos direitos pessoais de casar, de constituir situações de união de facto, de perfilhar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de testar, de aceitar ou rejeitar liberalidades e de votar (artigo 147º, nº 2, do Código Civil).»
Na sentença lê-se, designadamente:
«Reportando-nos ao caso concreto, verifica-se que o Requerido padece de doença do espectro do autismo. Em virtude de tal doença, vivencia limitações no seu quotidiano e necessita da ajuda de terceiras pessoas para algumas das atividades da vida diária. Nesta medida e em face da citada lei, importará decretar seu acompanhamento.
Impõe-se, ainda, sopesar os deveres gerais de cooperação e de assistência mobilizáveis, por referência ao n.º 2 do artigo 140.º do Código Civil, ante a circunstância do Requerido ter apoio na comunidade e na família.
Apesar da flexibilização do regime jurídico dos maiores acompanhados em contraste com o pretérito regime normativo das incapacidades, não se prescinde da verificação da necessidade do acompanhamento, sendo que por força precisamente do princípio da necessidade, na dúvida, não deve ser decretada nenhuma das medidas de acompanhamento.
Pelo exposto, não se estabelecem outras medidas, além da necessidade de nomeação de acompanhante.
Ao acompanhante, no exercício da sua função, cabe privilegiar o bem-estar e recuperação do acompanhado, devendo manter um contacto próximo com este, vide n.º 1 e 2 do artigo 146.º do Código Civil.».
Decorre desta fundamentação que a 1ª instância não omitiu pronúncia sobre as medidas de acompanhamento requeridas pelo Ministério Público, mas entendeu que não devem ser aplicadas.
Improcede, por isso, a arguição de nulidade da sentença.
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2. No entanto, coloca-se a questão de saber se há erro de julgamento por não ter sido especificado o âmbito e conteúdo do acompanhamento, pois no Código Civil e no Código de Processo Civil, prevê-se, na parte que ora importa:
- Código Civil –
Art. 138º
«O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.»
Art. 140º
«1 - O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.
2 - A medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.»
Art. 145º
«1 - O acompanhamento limita-se ao necessário.
2 - Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes:
a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias;
b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária;
c) Administração total ou parcial de bens;
d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos;
e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.
3 - Os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica.
4 - A representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a constituição do conselho de família.
5 - À administração total ou parcial de bens aplica-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 1967.º e seguintes.»
Art. 147º
«1 - O exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário.
2 - São pessoais, entre outros, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar.»
- Art. 900º do CPC
«(…)
3 - A sentença que decretar as medidas de acompanhamento (…)»
Portanto, a sentença tem de especificar as medidas de acompanhamento adequadas em que se traduz no caso concreto a aplicação do regime jurídico de maior acompanhado.
Conclui-se assim, que o entendimento da 1ª instância configura erro de julgamento.
No caso concreto, decorre dos factos provados que o beneficiário está totalmente dependente de terceiros a nível físico e a nível intelectual, pelo que se impõe aplicar as seguintes medidas: representação geral, inibição dos direitos de casar, de constituir situações de união de facto, de perfilhar, de adoptar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de testar, de aceitar ou rejeitar liberalidades e de votar.
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IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, e em consequência, alterando-se o dispositivo da sentença recorrida, decreta-se que as medidas de acompanhamento de que beneficia AA são: representação geral, inibição dos direitos de casar, de constituir situações de união de facto, de perfilhar, de adoptar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de testar, de aceitar ou rejeitar liberalidades e de votar.
Sem custas.

Lisboa, 24 de Abril de 2025
Anabela Calafate
Nuno Lopes Ribeiro
Maria Teresa Garcia